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Elon Musk, CEO do Twitter, que relaxou o controle de conteúdo quando comprou a rede social - Foto: Daniel Oberhaus / Creative Commons

A marcha da insensatez nas redes sociais e a falência da sociedade

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Na última semana, um dos debates mais intensos no país foi a apuração da culpa das redes sociais no crescimento de ataques em escolas. Se já não bastasse a incredulidade diante de alunos e professores brutalmente assassinados, o posicionamento do Twitter em uma reunião de representantes das principais plataformas com o ministro da Justiça na terça provocou revolta. Entretanto, apesar daquela pavorosa declaração, precisamos olhar o problema sem simplificações.

Especialistas de educação e de saúde mental afirmam que a explosão de conteúdo nas redes sociais que menciona e até glorifica esses crimes serve como catalisador para novos atentados. Neste mesmo espaço, destrinchei o tema na semana passada. Mas como expliquei, apesar da contribuição dessas publicações para esses crimes, eles não podem ser atribuídos apenas a isso.

Ao longo da semana, conversei com profissionais de diferentes áreas sobre o caso. É um consenso que as redes sociais fazem muito menos do que poderiam e deveriam para o combate a esses crimes, como quando o Twitter disse naquela reunião que fotos de assassinos e de vítimas em posts não violariam as regras da rede ou sequer seriam apologia a crimes.

Muitos afirmam que retirar esse ou qualquer outro conteúdo seria censura. Alguns vão além e sugerem que esse movimento encobriria o interesse de um governo que, na verdade, estaria usando essa comoção para controlar a mídia.

São argumentos fortes, e eu até concordaria com isso, se as redes sociais fossem meios de comunicação tradicionais. Mas elas não são: sua gigantesca capacidade de nos convencer de qualquer coisa concentra o núcleo dessa discussão.


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Houve uma época em que eu era muito mais liberal sobre o que poderia ser publicado nas redes sociais. Eu as via como ferramentas que garantiam uma liberdade inédita ao cidadão para expor ideias em pé de igualdade com veículo de comunicação. Em 2015, cheguei a discordar publicamente do escritor e filósofo italiano Umberto Eco, quando ele disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, e que “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Quando alguém argumentava que essas plataformas deveriam ter alguma responsabilidade sobre o que seus usuários publicavam nelas, eu comparava isso com culpar o fabricante de um carro se ele fosse usado em um assalto a banco. Porém, à medida que fui estudando mais os algoritmos das redes sociais, fui percebendo que essa analogia era muito errada. Se os carros fossem como redes sociais, eles eventualmente convenceriam seus donos a roubar o banco!

A minha “fase mais liberal” com as redes sociais vinha do fato de usar essas plataformas desde suas primeiras aparições, como o Friendster e o Orkut, há cerca de duas décadas. Elas eram quase pueris, feitas para encontrar velhos amigos e conhecer gente nova. Todo mundo “brincava” ali, sem ofensas, sem medo, sem ódio.

E tudo isso porque tampouco existiam algoritmos de relevância, popularizados pelo Facebook em 2014. São eles que escolhem o que seus bilhões de usuários veem nas redes. Mais que isso, para que as pessoas se sintam “confortáveis”, exibem apenas conteúdos de que elas gostem, prendendo cada um de nós nas infames “bolhas”.

Ao fazer isso, as redes sociais se transformaram nas ferramentas perfeitas de convencimento de qualquer coisa, até mesmo para se cometer um crime bárbaro.

É nessa hora que “o carro pode induzir seu dono a roubar o banco”.

 

A responsabilidade de cada um

As redes sociais estão na berlinda. Diante de sua apatia, o governo quer que as empresas criem canais para rápida remoção de conteúdo ligado a esses crimes, e ameaça com multas e até bloqueios a quem não colaborar.

“O governo tem na lei os limites aos quais suas ações podem chegar, e não pode haver liberdade para multar ou banir sem a devida previsão legal”, explica Márcio Chaves, sócio da área de Direito Digital do Almeida Advogados. No caso brasileiro, há o Marco Civil da Internet, que prevê que uma plataforma digital seja responsabilizada por um conteúdo apenas se não o remover após uma ordem judicial. “Esse limite foi imposto justamente para evitar a censura prévia e não jogar para o provedor essa obrigação”, acrescenta.

Mas Chaves acredita que a legislação dificilmente dará conta de todas as situações em que a segurança da sociedade seja ameaçada por uma suposta “liberdade de expressão”. Segundo ele, “por isso é tão importante estimular um ambiente não de imposição, mas de cooperação entre as empresas e a administração pública, no qual ferramentas tecnológicas, conselhos de supervisão, e autoridades judiciais possam endereçar situações sensíveis como a que estamos passando agora com os ataques nas escolas, em uma velocidade mais compatível com a que estamos sujeitos com o uso das tecnologias digitais”.

O debate sobre mais responsabilidade para as redes sociais acontece há alguns anos no Brasil. Ele está, por exemplo, no Projeto de Lei conhecido como “PL das Fake News” e em sugestões de atualização do Marco Civil da Internet. No geral, pede-se que essas plataformas sejam mais atuantes e efetivas na identificação de discurso de ódio, desinformação e outros crimes em suas páginas, removendo esse conteúdo sem necessidade de uma ordem judicial, mesmo não sendo obrigadas a isso.

O grande risco é se criar uma espécie de “censura algorítmica”, com essas plataformas eliminando equivocadamente conteúdos legítimos. É verdade que a tecnologia para essas identificações vem progredindo a passos largos, inclusive com o apoio da inteligência artificial, mas ela ainda não é garantida.

Precisamos encontrar mecanismos eficientes para coibir a escalada de crimes incentivados nas redes sociais, sem criar outros problemas. O que não pode acontecer é uma empresa não remover um conteúdo de ódio “porque não violaria seus Termos de Uso”, como disse o Twitter. Chaves lembra que eles “são contratos entre a plataforma e o usuário, e só há liberdade contratual se não for contrária à lei”.

Sobra o temor de o governo usar isso para controlar a mídia. Todos governantes desejam isso, em alguma escala. Antes se restringia à imprensa, mas ela, ainda que independente, obedece a leis. Além disso, o jornalismo profissional segue um Código de Ética, que faz com que sua produção, ainda que às vezes falha, tenha um mínimo de qualidade. Já as redes sociais parecem ser guiadas apenas pelos seus interesses.

Por fim, isso não pode virar uma discussão político-partidária, como muitos já têm feito. Tampouco há espaço para deixar tudo como está, pois o discurso de ódio nas redes agrava o problema de fato. Essas empresas devem abandonar sua complacência, para evitar medidas mais drásticas. E a sociedade precisa ficar vigilante para que nenhum governo use o pânico para controlar qualquer mídia.

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse estar “um pouco assustado” com a inteligência artificial – Foto: Steve Jennings / Creative Commons

Como lidar com os algoritmos que se sobrepõem à verdade

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Três acontecimentos da semana passada, que provavelmente passaram despercebidos da maioria da população, envolvem tecnologias de enorme impacto em nossas vidas. O primeiro foi uma audiência no STF (Supremo Tribunal Federal) que debateu, na terça, o Marco Civil da Internet. Na quarta, mais de mil pesquisadores, executivos e especialistas publicaram um manifesto solicitando que pesquisas de inteligência artificial diminuam o ritmo, por representarem “grandes riscos para a humanidade”. Por fim, na sexta, a Itália determinou que o ChatGPT, plataforma de produção de textos por inteligência artificial da OpenAI, fosse bloqueado no país.

Em comum, os três tratam de tecnologias existentes há anos, mas com as quais paradoxalmente ainda temos dificuldade de lidar: as redes sociais e a inteligência artificial. E ambas vêm se desenvolvendo exponencialmente em seu poder para distorcer a realidade a nossa volta, muitas vezes contra nossos interesses e a favor dos das empresas que criam essas plataformas.

Não é um exagero! As redes sociais, usadas por quase 5 bilhões de pessoas, definem como nos relacionamos, nos divertimos, conversamos e nos informamos, manipulando-nos para consumirmos o que os algoritmos consideram melhor (mesmo não sendo). A “inteligência artificial generativa”, que ganhou os holofotes no ano passado e tem no ChatGPT sua estrela, produz conteúdos incríveis, mas que podem embutir grandes imprecisões que as pessoas aceitam alegremente como fatos.

As preocupações que se impõem são como podemos aproveitar o lado bom desses serviços, enquanto nos protegemos de potenciais efeitos nocivos, além de como responsabilizar seus produtores, algo que não acontece hoje!


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As redes sociais já são nossas velhas conhecidas. Segundo o relatório “Digital 2023 Global Overview Report”, da consultoria americana We Are Social, os brasileiros passam uma média de 9 horas e 32 minutos na Internet por dia, das quais 3 horas e 46 minutos são em redes sociais. Nos dois casos, somos os vice-campeões mundiais.

Não é surpresa para ninguém que sejamos manipulados por elas, em maior ou menor escala. Segundo a mesma pesquisa, 65,2% dos brasileiros se dizem preocupados se o que veem na Internet é real ou falso. Nesse quesito, somos o quinto país no mundo.

Agora a inteligência artificial ganha um destaque sem precedentes nas discussões tecnológicas, pelo poder criativo das plataformas que elaboram conteúdo. Algumas pessoas acham isso a aurora de uma nova colaboração entre nós e as máquinas; outros veem como um risco considerável para a própria humanidade.

Mas ela já faz parte do nosso cotidiano profundamente. Basta ver que os principais recursos de nossos smartphones dependem da inteligência artificial. As próprias redes sociais fazem uso intensivo dela para nos convencer. E se considerarmos que isso provocou uma polarização social inédita, colocando em risco a própria sociedade, os temores dos pessimistas fazem algum sentido.

Essa amálgama de euforia e paranoia provoca decisões às vezes precipitadas, mesmo de pessoas qualificadas. Países do mundo todo, inclusive o Brasil, se debruçam sobre o tema, tentando encontrar mecanismos legais para organizá-lo.

 

Regular ou não regular?

No Brasil, o uso das redes é disciplinado pelo Marco Civil da Internet, de 2014. “Ele entrou em vigor quando discurso de ódio e fake news estavam em outro patamar”, afirma Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Acredito que a revisão seja necessária, mas não com a simples declaração de inconstitucionalidade do artigo 19, e sim a partir de sistemas mais efetivos e transparentes de como as big techs fazem a gestão dos próprios termos de uso quando violados.”

“Hoje temos interações mais rápidas e intensas, que mudam a forma como vivemos em sociedade”, explica Carolina Giovanini, advogada especialista em direito digital do Prado Vidigal Advogados. “Porém isso não significa que o Marco Civil da Internet esteja ‘ultrapassado’, pelo contrário: é uma legislação que foi pensada levando em consideração o futuro da rede.”

O referido artigo 19 está no centro dessa discussão porque protege as plataformas digitais de serem responsabilizadas pelo conteúdo que os usuários publicam em suas páginas. Segundo o texto, elas só poderiam ser penalizadas se deixassem de retirar algo do ar após uma ordem judicial.

Como a Justiça não consegue analisar tudo que se publica nas redes, especialistas defendem que as plataformas sejam obrigadas a fazer isso por sua conta. A inteligência artificial seria fundamental para decidir o que seria apagado, mas a subjetividade de muitos conteúdos dificulta a definição inequívoca do que é desinformação, o que poderia levar a censura por falsos positivos.

“A própria ideia das redes sociais é ser um portal descentralizado, sem ‘pauta editorial’ ou viés socioeconômico, para que a sociedade pulverizada ganhe voz”, sugere Matheus Puppe, sócio da área de TMT, privacidade e proteção de dados do Maneira Advogados. “Responsabilizando as plataformas, todo o modelo de negócios e o propósito da informação descentralizada vai por água abaixo.”

Na prática, isso vem permitindo que as empresas que produzem essas tecnologias gozem de uma prerrogativa rara, que é responder pouco ou nada por danos que provoquem. Não se pode imaginar um mundo sem elas, mas o crescimento explosivo da desinformação e a consequente polarização social não podem ser vistos como meros “efeitos colaterais”. É como “perdoar” um remédio que mate 5.000 pessoas para curar outras 10.000: a cura é bem-vinda, mas não se pode tolerar tantas mortes.

“O ponto é que um novo regime de responsabilidade não é desejado pelas big techs”, afirma Crespo. “Elas têm até bons argumentos para manter como está, na medida em que elas mesmas removem alguns conteúdos ilícitos por vontade própria.”

Estamos em um impasse! Como canta Ney Matogrosso, “se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come!” As redes sociais estão no centro da nossa vida. A inteligência artificial abre possibilidade incríveis e necessárias. Eliminá-las é impossível, desacelerá-las é improvável. Mas esses problemas aparecem cada vez com mais força.

Qualquer que seja o futuro, ele precisa ser criado com a participação ativa de todos os agentes da sociedade. Essas empresas não podem continuar dando as cartas baseadas apenas na sua busca pelo lucro, pois seus produtos estão muito além de qualquer outra coisa já feita, do ponto de vista de transformação social.

Os benefícios devem ser distribuídos para todos, assim como as responsabilidades e os riscos. O futuro não pode ser distópico!

 

EUA e outros países ocidentais acusam Pequim de espionar seus cidadãos pelo aplicativo - Foto: divulgação e reproduções

TikTok vira arma na escalada da tensão entre Ocidente e China

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O TikTok cozinha em fogo alto no caldeirão das crescentes tensões políticas entre países ocidentais e a China. Após ser proibido em celulares corporativos de órgãos públicos de EUA, Canadá, vários países europeus e Nova Zelândia, o aplicativo corre o risco de ser banido dos smartphones pessoais de todos os americanos. Mas por que uma plataforma de vídeos curtos de amenidades está enfrentando isso?

Tudo passa pelo temor de que a chinesa ByteDance, criadora do TikTok, compartilhe os dados dos usuários coletados pelo aplicativo com o governo de Pequim. Apesar de a empresa rejeitar categoricamente fazer isso, ninguém consegue afirmar ou negar que exista essa colaboração. Portanto, não se sabe quanto dessas preocupações são fatos, paranoias ou mero teatro político.

O debate fica mais quente quando se observa que os dados coletados pelo TikTok são basicamente os mesmos que os de qualquer rede social, a maioria delas americanas, como Facebook ou Instagram. O mesmo pode ser dito dos sistemas operacionais Android e iOS, que gerenciam nossos smartphones e que, por si só, nos rastreiam de diferentes formas. E essas empresas colaboram com governos.

Grupos de usuários que não querem perder acesso ao TikTok afirmam que tudo isso não passa de hipocrisia, e que o banimento do aplicativo violaria seus direitos.


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A ByteDance naturalmente não quer perder esses mercados, por isso vem acenando com várias mudanças para mitigar tais temores, como hospedar os dados dos usuários americanos em servidores no país, e ter seu código revisado por autoridades locais. Em um caso extremo, o TikTok poderia ser vendido e se tornar uma empresa independente.

“Como tudo o que envolve um governo autoritário, é difícil dizer o quanto é verdade e o quanto é ficção ou retórica nos medos ocidentais em relação ao TikTok”, explica Marcelo Cárgano, especialista em direito digital no escritório Abe Advogados. “Mas é fato que há pouca transparência em relação a um eventual compartilhamento de dados entre a empresa e o governo chinês”.

Não é a primeira vez que suspeitas de espionagem recaem sobre empresas chinesas. O ex-presidente americano Donald Trump gostava de acusar a Huawei disso e fez pressão internacional para que países não adotassem seus equipamentos para suas redes de celulares 5G. Mas não teve muito sucesso em sua campanha.

Apesar de o Brasil estar passando por um amplo debate sobre a regulação das plataformas digitais, especialmente para tentar coibir a desinformação, não há nenhum movimento especificamente contra o TikTok. Vale lembrar que, ao contrário desses países, o Brasi não tem restrições políticas ou comerciais contra a China, que, aliás, é nosso principal parceiro de negócios no mundo.

Todos esses países têm mecanismos legais que exigem cooperação de empresas em seus territórios em temas ligados a segurança nacional. Mas, na opinião pessoal de Rubens Kuhl, instrutor de governança de Internet do NIC.br, há diferenças na disposição das empresas de cooperar, mesmo nos EUA. “Já na China, a cultura é tipicamente de cooperação, então um pouco dessa preocupação se justifica, apesar das bases legais serem bem similares”, acrescenta.

 

Riscos reais aos usuários

Além da premissa central do compartilhamento de dados dos usuários com o governo chinês não ter sido comprovada, há dúvidas sobre o risco que a coleta de informações poderia representar às pessoas.

Kuhl explica que, como há a identificação de onde a pessoa está, haveria riscos físicos. Além disso, informações derivadas de interesses e de informações de contatos poderiam causar riscos reputacionais.

A situação fica mais grave em celulares corporativos de empresas e de órgãos governamentais. Em tese, informações sensíveis dessas instituições poderiam ser passadas à administração de um país hostil. É por isso que, até o momento, o TikTok foi banido apenas desses equipamentos.

Outro temor é que o TikTok seja usado para promover a desinformação entre seus usuários, especificamente algo associado a interesses chineses. Em uma situação extrema, serviria como ferramenta de um governo autocrático para inocular mensagens antidemocráticas em usuários contra seus próprios países.

Novamente nesse ponto é importante lembrar que algumas das principais plataformas para disseminar fake news –o Facebook, o WhatsApp e o YouTube– são de empresas americanas. E os agentes da desinformação nessas plataformas podem ser cidadãos e governos de qualquer país, inclusive dos próprios EUA, como tem acontecido nos últimos anos, até no Brasil.

Precisamos pensar também que muita gente está alheia a todo esse debate e nem sonha em deixar de usar o TikTok ou qualquer outra plataforma de sua preferência. Bilhões de pessoas no mundo usam esses sistemas para se divertir, se informar e até trabalhar.

Banir um aplicativo como esse representaria, portanto, um grande prejuízo a essas pessoas. Por isso, grupos de defesa de liberdades individuais nos EUA estão se posicionando contra as proibições. “Nos EUA, qualquer banimento total do aplicativo certamente desencadeará uma discussão a respeito da constitucionalidade de tal medida face à Primeira Emenda da Constituição americana, que protege, entre outras questões, a liberdade de expressão”, explica Cárgano.

No meio do fogo cruzado da política internacional, estamos nós, os usuários. E temos que fazer o que estiver a nosso alcance para proteger nossos interesses. Não encaro o TikTok como um braço de um “império maligno”, nem pior ou melhor que outras redes sociais. Então, como em toda plataforma digital, minha sugestão é compartilhar apenas informações necessárias para que você obtenha os benefícios que ela oferece. Isso exclui, no caso do TikTok, sua localização e seus contatos.

Precisamos entender que nossas ações em qualquer rede social são construções em um terreno instável e que não é nosso. As regras mudam a toda hora e nem conhecemos seus detalhes. Por isso, muita gente vai do sucesso ao ostracismo digital e nem sabe por quê.

No final das contas, devemos usar esses recursos com consciência, pois as redes sociais são as máquinas de convencimento e de coleta de informações mais perfeitas já criadas. Não dá para escapar totalmente de sua influência, mas podemos pelo menos tentar não ser feito de bobos. E a influência do país de onde a empresa vem acaba ficando pequena diante de tantos interesses envolvidos.

 

Mark Zuckerberg, CEO da Meta: e-mails vazados da empresa propunham aceitar ações violentas contra russos durante a guerra

Como seria nossa vida sem as redes sociais

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Não é exagero afirmar que as redes sociais estão entre os produtos de maior sucesso da história. Poucas criações foram usadas por tanta gente, ocupando um espaço tão relevante em suas vidas. O que aconteceria então se, de repente, essas plataformas digitais fossem sumariamente tiradas de nós?

De certa forma, é o que os russos estão descobrindo agora. A combinação da censura imposta por Vladimir Putin com o posicionamento das próprias empresas contra a guerra na Ucrânia está bloqueando parcial ou completamente o acesso a redes no país. Por exemplo, desde esta segunda, a Rússia restringe o acesso ao Instagram, como já vem fazendo com o Facebook e com o Twitter há dez dias.

A guerra não acontece apenas no campo de batalha. Mas agora, os mecanismos para o domínio da narrativa, que sempre foram importantes em qualquer conflito, afetam diretamente o cotidiano digital de pessoas e empresas.


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Uma polêmica decisão da Meta, empresa dona do Facebook, jogou lenha nessa fogueira: e-mails internos vazados na semana passada indicavam que a companhia decidiu permitir que usuários em alguns países, incluindo Ucrânia e a própria Rússia, defendam atos de violência contra russos no contexto da guerra. Contrariando suas próprias políticas também aceitará temporariamente publicações que defendam a morte do presidente da Rússia, Vladimir Putin, ou de Belarus, Alexander Lukashenko.

A Meta não comentou o assunto até o momento.

Isso fez o Kremlin classificar a empresa como uma “organização extremista”, bloqueando o Instagram. Facebook e Twitter já vinham sendo restritos desde o dia 4, por estarem limitando o acesso a veículos de comunicação governamentais russos, além de marcar alguns de seus conteúdos como “fake news”.

Outras redes digitais, como o YouTube, estão impedindo que canais que apoiem Putin possam ganhar dinheiro com suas publicações nessas plataformas. O TikTok, por sua vez, está proibindo que usuários na Rússia façam publicações, pois o governo ameaça com prisões de até 15 anos a quem publicar conteúdo que o Kremlin considere como falsas. Ainda assim, YouTube e TikTok continuam acessíveis na Rússia até agora.

É incrível ver como o poder dessas empresas chega a rivalizar com o de governos, inclusive o da maior nação do mundo, dono do principal arsenal nuclear do planeta. E quem lhes garante isso somos nós mesmos, com nosso uso incessante de seus produtos, que supostamente deixam nossas vidas mais divertidas e mais fáceis. De fato, muitos profissionais e empresas dependem hoje umbilicalmente desses recursos para a manutenção de seus negócios.

Não é pouca coisa: segundo o relatório Digital 2022 Global Overview, publicada pelas consultorias Hootsuite e We Are Social, o mundo terminou 2021 com 4,62 bilhões de usuários de redes sociais, que ficam, em média, 2 horas e 27 minutos nessas plataformas todos os dias. No Brasil, usamos ainda mais: 3 horas e 41 minutos em média!

Vale notar que a Internet russa sempre foi bastante livre, apesar do caráter autoritário de Putin. Isso é muito diferente do que se vê em uma de suas principais aliadas: a China. Lá o governo sempre controlou a rede com mão de ferro. Tanto que as grandes plataformas digitais sempre foram restritas no país. Os chineses têm que se contentar com produtos locais, que são censurados e adaptados à sua cultura.

Portanto, cabe uma pergunta: e se o Brasil, de repente, banisse o Facebook, o Instagram, o WhatsApp, o Twitter, o YouTube e o Google, como ficaria sua vida?

 

Censura ou proteção?

O WhatsApp já foi bloqueado quatro vezes no Brasil, por determinação da Justiça: duas em 2015 e duas em 2016. De lá para cá, o relacionamento da Meta com a Justiça brasileira melhorou. Hoje ela faz parte de um acordo contra a desinformação, especialmente em um cenário eleitoral, uma iniciativa que também conta com outras empresas, como Google, Twitter e TikTok.

Desde o ano passado, o Telegram está sob os holofotes por se recusar a colaborar nesse sentido, o que o deixa em risco de ser bloqueado no Brasil. Com sua política de não interferir nas publicações de seus usuários, tornou-se a principal ferramenta de desinformação no mundo. Assim muita gente ficou surpresa quando a plataforma suspendeu a conta do blogueiro Allan dos Santos no último dia 26, atendendo a pedido do STF (Supremo Tribunal Federal) no seu combate às fake news.

Muitos questionam qual a diferença de um eventual bloqueio do Telegram no Brasil do que se pratica agora na Rússia. Afinal, os mecanismos pareceriam os mesmos, executados pelos poderes centrais de cada país. Mas existe uma diferença essencial: na Rússia, o bloqueio está sendo feito para permitir que o governo continue disseminando sua desinformação; aqui, o bloqueio aconteceria para justamente evitar a desinformação.

A legislação brasileira oferece bons recursos para esse combate: precisam apenas ser aplicados. O Marco Civil da Internet é um ótimo exemplo: equilibrado e construído a partir de um debate amplo com a sociedade. Por outro lado, vemos iniciativas para novas leis, que, apesar de bem intencionadas, estão sendo feitas sem o devido debate, deixando brechas que podem levar a censura de conteúdos legítimos que desagradem o governo e à liberação do que lhe interesse, mesmo que ruim. É o caso do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como o “Projeto de Lei das Fake News”.

A “virtualização” de nossas vidas acontece com força desde que a Internet comercial foi lançada, em 1994. A popularização dos smartphones, há uma década, acelerou muito esse processo e a pandemia reforçou isso ainda mais.

No momento de distanciamento social mais severo, no primeiro semestre de 2020, muitas pessoas e muitas empresas só conseguiram continuar operando graças às redes sociais. Apesar da grande dor que isso causou inicialmente, muitas desenvolveram novos e poderosos recursos de relacionamento com seu público. Tanto que hoje, com tudo já reaberto, continuam com essas boas práticas.

Fica difícil imaginar alguém completamente fora do mundo digital hoje. É possível não se gostar de uma ou outra plataforma, mas sempre existe aquela que combina mais com cada um de nós, trazendo benefícios reais a nossas vidas. Por isso, estar completamente off line, faz de alguém quase um “cidadão de segunda categoria”, pelos recursos que deixa de usufruir.

Temos que usar o que essas plataformas nos oferecem, e ficar atentos aos riscos associados a elas. Da mesma forma, temos que cuidar para não abusar dos poderes que elas nos dão, que poderia causar restrições evitáveis por serem transformadas em armas para se atacar os direitos alheios.

As redes sociais são um caminho sem volta! Usemos, então, seus recursos com inteligência.

O negócio agora é matar o mensageiro

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Alguns acontecimentos recentes demonstram que muita gente, diante da incapacidade de resolver problemas ou do simples desejo de manter as coisas como estão, prefere que a verdade não apareça. Esse comportamento reflete um retrocesso social, em que alguns grupos entendem que podem impor sua visão de mundo sem diálogo.

O primeiro foi o endurecimento da censura do governo russo. Veículos de comunicação foram proibidos de trazer notícias sobre a guerra, e o Facebook e o Twitter foram bloqueados na Rússia. Enquanto isso, na Ucrânia, jornalistas ingleses foram baleados por milicianos russos.

Mas se engana quem acha que isso acontece apenas em terras distantes e por causa da guerra. Na quarta, uma equipe da Rede Globo foi agredida por um homem em São Paulo, que os atacou gratuitamente com uma corrente.


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A expressão “não mate o mensageiro” se aplica perfeitamente a tudo isso. Ela vem do provérbio latino “ne nuntium necare”, que teria sido criado a partir do ato intempestivo do rei da Pérsia Dario III, que, em 331 a.C., mandou executar o mensageiro que lhe havia trazido a notícia de que seu exército havia sido derrotado pelo de Alexandre, o Grande. Criou-se um código de honra em que o mensageiro, mesmo enviado pelo inimigo, deveria ser preservado.

Matar o portador de más notícias não faz com que elas desapareçam, mas pode fazer bem ao ego ferido do governante. Além disso, se a informação negativa for silenciada antes que se espalhe, isso pode permitir que ele continue distorcendo a realidade segundo seus interesses.

Trazendo para um contexto atual, “matar o mensageiro” seria silenciar, a qualquer custo, a imprensa livre e, mais recentemente as redes sociais. E é exatamente o que se observa hoje, inclusive nos exemplos citados.

Na sexta, o parlamento russo aprovou leis que, na prática, criminalizam a cobertura da guerra na Ucrânia, com penas de 1 a 15 anos de prisão e interrupção de atividades de veículos. Não é permitido sequer usar os termos “guerra” ou “invasão” ou mencionar o total de civis mortos.

Como consequência, Facebook e Twitter, que vinham restringindo os canais oficiais russos, foram banidos do país. O mesmo deve acontecer com outras redes sociais, cujos usuários mostram os horrores da guerra, até mesmo de dentro da Ucrânia.

A rede britânica BBC, que vinha sendo restrita na Rússia, encerrou suas operações no país para salvaguardar seus profissionais. Ela foi seguida pelas americanas CNN e Bloomberg, a espanhola Efe, a italiana RAI e a canadense CBC. O jornal russo Novaya Gazeta –de Dmitri Muratov, ganhador do Nobel da Paz em 2021– e o canal alemão Deutsche Welle foram bloqueados pelo governo.

Suas coberturas da guerra continuarão normalmente fora da Rússia. Não se sabe como essa censura impactará os movimentos que combatem a guerra no quintal do presidente Vladimir Putin, mas ele já deixou claro que não vai facilitar a vida dos mensageiros.

 

A verdade como inimiga

Que ninguém duvide da disposição de autocratas como Putin de impor seus desejos sobre a verdade. É um movimento semelhante ao visto em ditadores e se transformou em ferramenta de governos autoritários no mundo todo.

A prisão, o fechamento de veículos de comunicação e a violência moral e física –incluindo assassinato– são os mecanismos usados. Mas uma das facetas mais assustadoras é que eles não são aplicados apenas por agentes repressores do Estado. Incentivados por governantes que atacam abertamente a imprensa, muitas pessoas aliadas ideologicamente a eles se investem do “dever” de calar as vozes dissonantes.

Foi o que aconteceu na sexta com uma equipe de cinco pessoas da TV britânica Sky News, cujo carro foi alvejado por uma milícia russa na Ucrânia. Apesar de gritarem que eram jornalistas para que os agressores parassem de atirar, o correspondente Stuart Ramsay foi atingido na parte inferior das costas, enquanto o operador de câmera Richie Mockler levou dois tiros em seu colete à prova de balas.

Aqui no Brasil, o exemplo mais recente aconteceu na quarta passada, quando os repórteres da Rede Globo Renato Biazzi e Ronaldo de Souza foram agredidos enquanto gravavam uma reportagem na região do Brás, em São Paulo. Um homem que segurava um cachorro preso por uma corrente se aproximou dos dois e começou a xingá-los, sem nenhum motivo aparente. Depois atacou os jornalistas com a corrente. Souza foi atingido na mão e terá que fazer uma cirurgia por isso.

A narrativa dominante sempre foi incrivelmente importante para qualquer grupo de poder. Não é à toa que a imprensa é uma das primeiras coisas atacadas por qualquer governo autoritário, seja qual for sua ideologia. Ter o povo a seu lado aumenta o poder de qualquer um. Mas a verdade acaba se sobrepondo em algum momento, por mais eficiente que seja a história.

Por exemplo, quem tem mais de 40 anos talvez se lembre dos “fiscais do Sarney”, cidadãos comuns que, a pedido do então presidente, procuravam estabelecimentos que estariam aumentando seus preços em uma época de congelamento. Alguns chegavam a baixar a porta de lojas, como se tivessem autoridade para isso. Mas todos os malfadados planos econômicos daquele governo terminaram catastroficamente.

De lá para cá, todos os presidentes brasileiros abusaram desse recurso, uns mais, outros menos. E, de 20 anos para cá, tenta-se criar por aqui o controle da imprensa como política de Estado, com eufemismos como “controle social da mídia” ou com agressões explícitas partindo do próprio presidente da República.

É uma pena observar que o poder seja usado para turvar a verdade, com o único objetivo de se ampliar o próprio poder, mesmo às custas de diminuição da qualidade de vida, de sofrimento e até da morte de inocentes. E é ainda mais triste observar como isso eficientemente convence parcelas significativas da população, seja com uma censura marcial, seja com pregações ideológicas.

Quando temos uma sociedade em que cada indivíduo tenta impor suas ideias sobre todos os demais, temos o caos. Por outro lado, quando um grupo usa da força para calar pensamentos diferentes e institucionalizar suas visões de mundo, temos um regime de natureza fascista. Os dois casos não se sustentam a longo prazo e levam a sociedade à ruína. O ditador italiano Benito Mussolini, pai do fascismo, que o diga.

Precisamos da verdade chegando livremente a todos para não rumarmos a esse abismo social. O mensageiro deve ser salvo, para que ela prevaleça.

O premiado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que teve o cartaz de seu novo filme, “Madres Paralelas”, censurado pelo Instagram

As pessoas podem emburrecer a inteligência artificial

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Nesse exato momento, um sistema de inteligência artificial pode estar tomando uma decisão em seu nome! Mas, apesar de sua incrível capacidade computacional, não há garantia de que esteja fazendo a melhor escolha. E, em muitos casos, os responsáveis pela falha são outros usuários.

Vivemos isso diariamente e o exemplo mais emblemático são as redes sociais. Essas plataformas decidem o que devemos saber, com quem devemos falar e sugerem o que devemos consumir. E são extremamente eficientes nesse propósito, ao exibir sem parar, em um ambiente em que passamos várias horas todos os dias, o que consideram bom e ao esconder o que acham menos adequado.

Alguns acontecimentos recentes reforçam isso, demonstrando que esses sistemas podem tirar de nós coisas que, na verdade, seriam muito úteis para nosso crescimento. Não fazem isso porque são “maus”, e sim por seguirem regras rígidas ou por estarem sendo influenciados por uma minoria de usuários intolerantes. E pessoas assim podem ser incrivelmente persistentes ao tentar impor suas visões de mundo, algo a que esses sistemas são particularmente suscetíveis.

No final das contas, apesar de a inteligência artificial não ter índole, ela pode desenvolver vieses, que refletem a visão de mundo das pessoas a sua volta.


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Um exemplo recente disso foi a censura pelo Instagram do cartaz do novo filme do premiado diretor espanhol Pedro Almodóvar. O pôster de “Madres Paralelas” traz um mamilo escorrendo uma gota de leite dentro de um contorno amendoado, dando ao conjunto a aparência de um olho derramando uma lágrima. O autor da peça é o designer espanhol Javier Jaén.

O algoritmo do Instagram identificou o mamilo, mas não foi capaz de interpretar a nuance artística envolvida. Como há uma regra nessa rede que proíbe fotos em que apareçam mamilos, para combater pornografia, a imagem foi sumariamente banida da plataforma. Depois de muitos protestos, incluindo de Almodóvar e de Jaén, o Facebook (que é dono do Instagram) se desculpou e restaurou os posts com o cartaz, explicando que, apesar das regras contra a nudez, ela é permitida “em certas circunstâncias, incluindo quando há um contexto artístico claro”.

Não é de hoje que o Instagram cria polêmicas ao bloquear imagens e até suspender usuários por decisões equivocadas de seus algoritmos. Um caso recorrente há anos são fotos de mulheres amamentando. Oras, amamentação só é pornografia na cabeça de pervertidos… e de alguns algoritmos.

O sistema é bastante inteligente para identificar um mamilo entre milhões de fotos, mas muito burro para interpretar os contextos. Ironicamente vemos baldes de fotos com proposta altamente sexualizada no mesmo Instagram, que “passam” porque os mesmos mamilos são cobertos, às vezes com rabiscos grosseiros sobre a foto.

Ou seja, quem age naturalmente, com algo que está dentro do que a humanidade considera normal e até positivo pode ser punido. Por outro lado, quem “joga com o regulamento debaixo do braço” (como se diz nos torneios esportivos) pode driblar o sistema para atingir seus objetivos impunemente.

 

Ferramenta de intolerância

Em um programa de computador convencional, o desenvolvedor determina que, se uma condição A acontecer, o sistema deve executar a ação B. Nesse modelo, o profissional deve parametrizar todas as possibilidades, para que a máquina opere normalmente.

Na inteligência artificial, não se sabe de antemão quais condições podem acontecer. O sistema é instruído a tomar ações seguindo regras mais amplas, que são ajustadas com o uso.

A máquina efetivamente é capaz de aprender o que seus usuários consideram melhor para si. Com isso, suas ações tenderiam a ser mais eficientes segundo o que cada pessoa aprova e também pela influência do grupo social que atende.

O problema surge quando muitas pessoas que usam um dado sistema são intolerantes ou têm valores questionáveis. Nesse caso, elas podem, intencionalmente ou não, corromper a plataforma, que se transforma em uma caixa de ressonância de suas ideias.

Um dos exemplos mais emblemáticos disso foi a ferramenta Tay, lançada pela Microsoft em março de 2016. Ela dava vida a uma conta no Twitter para conversar e aprender com os usuários, mas ficou apenas 24 horas no ar.

Tay “nasceu” como uma “adolescente descolada”, mas, depois de conversar com milhares de pessoas (muitas delas mal-intencionadas) rapidamente desenvolveu uma personalidade racista, xenófoba e sexista. Por exemplo, ela começou a defender Adolf Hitler e seus ideais nazistas, atacar feministas, apoiar propostas do então candidato à presidência americana Donald Trump e se declarar viciada em sexo.

A Microsoft tirou o sistema do ar, mas o perfil no Twitter ainda existe, apesar de ser agora restrito a convidados, não ter mais atualizações e de os piores tuítes terem sido excluídos. A ideia é promover a reflexão de como sistemas de inteligência artificial podem influenciar pessoas, mas também ser influenciados por elas.

 

Tomando decisões comerciais

Em maio de 2018, o Google deixou muita gente de boca aberta com o anúncio de seu Duplex, um sistema de inteligência artificial capaz de fazer ligações para, por exemplo, fazer reservas em um restaurante. Na apresentação feita no evento Google I/O pelo CEO, Sundar Pichai, a plataforma simulava com perfeição a fala de um ser humano e era capaz de lidar, em tempo real, como imprevistos da conversa.

O produto já foi integrado ao Google Assistente na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos, na Nova Zelândia e no Reino Unido. Mas, diante da polêmica em que muita gente disse que se sentiria desconfortável de falar com um sistema pensando que fosse outra pessoa, agora as ligações do Duplex informam ao interlocutor, logo no começo, que está falando com uma máquina.

No final de 2019, fui convidado pela Microsoft para conhecer o protótipo de um assistente virtual que ia ainda mais longe, sendo capaz até de tomar decisões comerciais em nome do usuário. Muito impressionante, mas questionei ao executivo que a apresentou qual a certeza que eu teria de que a escolha feita pelo sistema seria realmente a melhor para mim, sem nenhum viés criado por interesses comerciais da empresa.

Segundo ele, o uso de uma plataforma como essa implicaria em uma relação de confiança entre o usuário e ela. O sistema precisa efetivamente se esforçar para trazer as melhores opções. Caso contrário, se tomar muitas decisões erradas, ele tende a ser abandonado pelo usuário.

Essa é uma resposta legítima, e espero que realmente aconteça assim, pois o que vi ali parecia bom demais para ser verdade, apesar da promessa de que estaria disponível no mercado em um horizonte de cinco anos. Mas infelizmente o que vemos hoje nas redes sociais, que nos empurram goela abaixo o que os anunciantes determinam, coloca em xeque a capacidade de as empresas cumprirem essa promessa.

O fato é que a inteligência artificial está totalmente integrada ao nosso cotidiano, e isso só aumentará. Com seu crescente poder de influência sobre nós, os desenvolvedores precisam criar mecanismos para garantir que esses sistemas não abandonem valores inegociáveis, como o direito à vida, à liberdade e o respeito ao próximo, por mais que existam interesses comerciais ou influências nefastas de alguns usuários.

Quanto a nós, os humanos que se beneficiam de todos esses recursos e que têm o poder de calibrá-los para que nos atendam cada vez melhor, precisamos ajustar nossos próprios valores, para que não caiamos nesse mesmo buraco moral.

Videodebate: como calar um jornalista no Brasil

By | Jornalismo | No Comments

Quer saber como destruir um país? Destrua sua imprensa primeiro!

Ou você acha que ela não passa de um bando de “vendidos”, que só pensam em seus interesses?

Nesses tempos sombrios, em que a intolerância destrói relacionamentos de longa data e a verdade foi trocada pela versão, a imprensa nunca foi tão importante! Ironicamente, nunca esteve tão ameaçada! E isso afeta todos nós!

Na semana passada, por exemplo, dois veículos foram censurados pelo STF. Na mesma semana, a organização Repórteres sem Fronteiras publicou seu Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. O Brasil amarga uma vergonhosa 105ª posição, entre 180 países.

Noruega, Finlândia e Suécia são os com mais liberdade de imprensa. Sugestivamente, também encabeçam as listas dos países com melhor qualidade de vida, melhor educação e com as pessoas mais felizes do mundo.

Não é coincidência! Tudo está intimamente ligado!

Todos nós temos um papel essencial para melhorar a péssima situação em que o Brasil se encontra nesses indicadores. Sabe como? Veja no meu vídeo abaixo. E depois vamos debater aqui nos comentários.



Você consegue ignorar o que Facebook joga na sua cara?

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Foto: Visualhunt / Creative Commons

Há alguns dias, o Facebook foi acusado de censurar conteúdos conservadores. Mais que uma cisma política, a gritaria daqueles produtores era pela queda na audiência que isso lhe causaria. Tudo porque as pessoas devoram, quase sem pensar, o que ganha destaque no seu feed de notícias ou nas suas listas. Mas o fato é ainda mais delicado que parece.

Ele reabriu o debate sobre a influência que o Facebook tem sobre seus 1,65 bilhão de usuários. Mas também expôs que, além dos seus algoritmos, a empresa teria um grupo de editores com poder de censura (o que a empresa nega), o que seria gravíssimo, por conta desse poder. Além disso, escancarou a dependência que os veículos de comunicação têm da rede, que se transformou no maior distribuidor de jornalismo do mundo.


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O Facebook afirma que sua missão é “fazer do mundo um lugar mais aberto e conectado”. Apesar disso, de aberto, ele tem muito pouco: ninguém sabe exatamente quais seus critérios para destacar algo na infinidade de conteúdos publicados nele por pessoas e por empresas.

Agora considere que, segundo o respeitado Pew Research Center, 63% dos usuários do Facebook e do Twitter leem notícias nessas redes. Mas onde mais importa –nos smartphones– o Facebook é, de longe, quem mais manda pessoas para os sites dos veículos de comunicação. E o instituto ainda diz que quanto mais as pessoas ficam no Facebook, mais notícias elas consomem.

Como os veículos perderam sua capacidade de sedução, cada vez mais eles dependem das redes sociais para atingir o público que um dia já foi seu. Por isso, fazem tudo o que o Facebook manda. Parece até que o algoritmo ficou mais importante que seus próprios clientes.

É aí que mora o perigo!

 

Escrevendo para o sistema

Quantas vezes você não clicou em um post no Facebook e caiu em uma página que tratava muito pouco daquele assunto?  Ou viu algo que propunha um mistério “irresistível” para você clicar e descobrir o que era? Ou ainda teve a impressão de que um veículo “sério” parecia ter muito mais notícias “divertidas” nas suas publicações no Facebook que no próprio site? Bem, você não está sozinho nesses sentimentos: essas práticas são “caça-cliques”.

No final das contas, o que vemos são os veículos não mais promovendo aquilo que importa para a sociedade, mas o que é mais adequado ao algoritmo ou o que cria mais apelo à audiência fácil, em um novo “sensacionalismo de rede social”. Fazendo isso, os veículos abalam ainda mais a sua já bastante corroída credibilidade junto ao público, jogando na lata do lixo a sua nobre função de, além de informar, formar o cidadão.

O Facebook já percebeu que está com a faca e o queijo na mão, e não está disposto a perder a oportunidade de reforçar ainda mais a sua posição de “maior banca de jornal do mundo”. E, até agora, seus esforços estão dando ótimos resultados, fazendo até a Apple comer poeira, com seu malfadado serviço Apple News não conseguindo decolar.

Além de algoritmos que dão cada vez mais aquilo que o leitor quer saber, a rede social vem lançando alguns recursos para amarrar ainda mais os veículos, como a capacidade de as pessoas obterem notícias a partir do Messenger ou os Artigos Instantâneos, que carregam reportagens e artigos muito rapidamente, desde que não se saia do próprio Facebook.

Os veículos de comunicação, por não conseguir mais falar ao coração do seu público, abraçam tudo isso, como tábuas de salvação. Ótimo para o Facebook: cada vez mais as pessoas consomem noticiário dentro da sua plataforma. Péssimo para quem produz esse material: pesquisa da Digital Content Next indica que, nas redes sociais, 43% das pessoas já não sabem quem produz o que consomem.

E assim a rede de Mark Zuckerberg dita mais e mais o que cada um de nós deve ler.

 

Moldando mentes

Apesar de toda essa relevância na indústria da notícia, o Facebook não é um veículo de comunicação. Dessa forma, seu objetivo é tão somente fazer com que as pessoas naveguem mais pelos seus produtos. Ele não tem a função social que os veículos têm (ou deveriam ter) de informar e formar.

Se o seu algoritmo tenta entregar apenas aquilo que a pessoa quer ver, eliminando o que lhe desagrada (mesmo aquilo que ela precisa saber), e os veículos de comunicação ficam fazendo o “joguinho” do Facebook, o resultado a médio prazo é uma população desinformada, desengajada e socialmente deformada. É a combinação do pior de dois mundos.

E quando se fala disso, não há como não mencionar o estudo que Adam Kramer, pesquisador do Facebook, realizou em 2012, demonstrando que é possível “transferir estados emocionais” a pessoas simplesmente manipulando o que elas veem online. No experimento, os feeds de notícias de 689.003 usuários (1 a cada 2.500 na época) foram manipulados pelo sistema por uma semana. Metade deles ficou sem receber posts negativos; a outra metade não viu nada positivo.

Análises automatizadas comprovaram que usuários expostos a posts neutros ou positivos tendiam a fazer posts mais positivos, enquanto os expostos a posts neutros ou negativos tendiam a fazer posts mais negativos! Trocando em miúdos, Kramer atuou decisivamente no humor de quase 700 mil pessoas deliberadamente manipulando seus feeds de notícias. O paper foi publicado na prestigiosa “Proceedings of the National Academy of Sciences of USA”. Vale lembrar que o mesmo Kramer, em outra ocasião, já tinha aumentado o comparecimento dos americanos às urnas, também manipulando seus feeds. Isso em um país em que não é obrigatório votar.

No final das contas, o que temos aqui é um poderosíssimo algoritmo capaz de embrutecer e manipular a população (apesar de o Facebook negar que faça isso) e uma mídia fragilizada, que fica dançando a música da rede social em troca de migalhas de atenção. Então, se a empresa realmente tiver editores censurando conteúdos específicos, como foi dito, isso seria o menor dos problemas.

Não temos como exigir que o Facebook encampe os valores de cada sociedade e passe a fazer o trabalho no qual os veículos de comunicação têm fracassado miseravelmente, pois ele não é um deles. Mas podemos pelo menos tentar fazer com que as pessoas usem a rede social de uma maneira mais consciente e criativa.

Para isso, debates em torno de assuntos como esse são fundamentais para a conscientização de todos! Ninguém precisa parar de usar o Facebook: é só não ceder ao prazer imediato e fugaz de conteúdos rasos, e sair clicando, curtindo e compartilhando tudo o que o Facebook joga na sua cara. E desconfiar sempre! Nessas horas, ignorar pode ser a ação mais efetiva.


Vamos falar sobre a linguagem certa para público certo na Social Media Week? Esse é o segredo do sucesso nas redes sociais. É só entrar nesta página e clicar no botão verde de CURTIR abaixo da minha foto.


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Na China, dedurar o vizinho pode virar um bizarro game da vida real

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Foto: Jonathan Kos-Read/ Visual Hunt/Creative Commons

A partir de 2020, todo cidadão chinês terá o seu “crédito social”, um número constantemente atualizado que identificará quanto cada indivíduo se alinha ao que o governo considera “boas práticas de um cidadão confiável”. Quem tiver bons números será recompensado; os de escore baixo serão punidos.

Essa ferramenta de controle social parece saída do livro “1984”, de George Orwell, mas é muito mais sofisticada que os sonhos mais sórdidos do Big Brother. A faceta mais cruel do sistema é que, em nome de ter uma boa pontuação, as pessoas serão tentadas a controlar seus familiares e amigos, para que “andem na linha”. O motivo: o placar de um indivíduo poderá influenciar no do outro. Assim, se você se relacionar com um “mau cidadão”, perderá parte dos seus pontos, que conseguiu dando duro ao seguir a cartilha chinesa.

O sistema funcionará de maneira semelhante aos sistemas de análise de crédito usados pelos bancos: se o indivíduo tem um trabalho estável, um bom salário, um bom histórico de pagamentos, os bancos tendem a considerá-lo uma pessoa confiável para lhe conceder crédito, pois o risco de dar o calote tende a ser menor. Pessoas com números ruins nesses indicadores têm menos acesso a crédito.

A ideia chinesa teria surgido justamente do fato de aquele país ter um sistema de análise de crédito frágil, com uma parcela imensa da população sem histórico no assunto. A diferença é que a proposta evoluiu rapidamente para uma análise muito mais profunda do indivíduo.

Por exemplo, comprar ferramentas sugere que o indivíduo é “trabalhador”, o que aumentaria o seu placar; comprar videogames pode indicar um “comportamento desleixado”, derrubando o índice. Republicar noticiário oficial é positivo; mencionar o “Massacre da Praça da Paz Celestial” é horrivelmente negativo. Pagar os impostos corretamente é muito bom; levar multas de trânsito nem tanto. Participar de programas de controle de natalidade é legal; ler mangás é subversivo.

Mas ao contrário das análises de crédito ocidentais, que costumam ser restritas ao sistema financeiro, a proposta chinesa será pública e os cidadãos serão encorajados a escancarar os seus números, que variarão de 350 a 950. Isso porque, com essa informação, poderão ter acesso a benesses no seu cotidiano.

A China está “gamificando” a obediência do cidadão!

 

Serve até para namorar

Um indivíduo que tiver um escore de 650 poderá, por exemplo, alugar um carro sem deixar um depósito. Já alguém com 700 pontos poderá “furar a fila” na burocracia para viajar para fora do país. Placares mais altos ainda serão exigidos para se conseguir os melhores empregos. Já quem tiver um escore baixo pode ser impedido de comprar alguns produtos e ter a velocidade da sua Internet reduzida.

O sistema governamental ainda não existe, mas os políticos chineses autorizaram oito companhias a criar programas que caminham nessa direção. O que tem conseguido mais repercussão é o Sesame Credit, criado pelo braço financeiro da gigante Alibaba, o maior varejista online do mundo, que se baseia no histórico de itens adquiridos e pagamentos em dia.

Aliás, “Sesame” vem do personagem Ali Babá. “Abre-te, Sésamo!” Lembram disso?

Esses escores já estão sendo usados para fins no mínimo curiosos. O Baihe, maior serviço online de encontros da China, com 90 milhões de clientes, já exibe o Sesame Credit daqueles que o informarem. Zhuan Yirong, vice-presidente do site, explicou à BBC que “a aparência de uma pessoa é muito importante, mas é mais importante ela ser capaz de se sustentar”. Pois é.

Esses oito sistemas privados não pretendem ter a abrangência do futuro programa oficial, mas certamente funcionam como projetos-pilotos para ele. Apesar de ainda não existir, o projeto já está bem documentado pelo próprio Partido Comunista. Ele traz frases como “estabelecer a ideia de uma cultura de sinceridade e levar adiante sinceridade e virtudes tradicionais” e “gratificar a sinceridade e punir a falta de sinceridade”. Bom, estão sendo sinceros.

Ativistas de liberdades individuais e defensores de privacidade estão em polvorosa. Afinal, além de o sistema invadir a privacidade do indivíduo de uma maneira sem precedentes e ainda tornar o placar público, é capaz de fazer com que as pessoas passem a não se importar tanto com isso. Tudo porque a sensação repugnante de estar sendo controlado e punido é substituída pelo conceito de valorizar e presentear aqueles que “fazem tudo direitinho. Ou seja, o medo é substituído pelo afago. Mas, no final, é tudo a mesma coisa.

 

Dedos-duros

Tenho que admitir: isso é uma ideia de gênio! O Estado não apenas deixa de ser visto como o vilão da história, como ainda passa todo o trabalho de espionar os cidadãos aos próprios cidadãos! Que NSA nada! Isso dá trabalho, custa caro e ainda o governo fica péssimo na foto quando aparece um Edward Snowden para botar a boca no trombone e contar todos os podres.

Deixe que os próprios indivíduos coloquem amigos e familiares na linha! Afinal, quem vai querer ver sua família prejudicada por se associar a um “subversivo”? Se não for possível “convertê-lo”, então que seja relegado ao ostracismo. Assim, no seu isolamento, não incomoda os “cidadãos de bem” nem tampouco (e principalmente) o governo.

Assustador, não é?

Por outro lado, como ninguém pensou nisso antes?

Opa! Facebook e Google têm uma quantidade indescritível de informações sobre nós, que cedemos graciosa e alegremente toda vez que usamos os seus produtos. E continuaremos usando, pois deixam nossas vidas mais divertidas e gostosas.

Provavelmente já são muito mais eficientes que o monstro digital que o governo chinês imporá aos seus cidadãos em 2020. Mas, justiça seja feita, os propósitos dessas empresas são outros.

Certo?

Como dito, o sistema chinês ainda não existe. Talvez nem chegue a se materializar dessa forma. Mas essa possibilidade já está servindo para gerar uma importantíssima discussão sobre como empresas e governos podem extrapolar gigantescamente os limites do razoável graças à tecnologia e como ela é apresentada. E esse debate é fundamental para fortalecer a cidadania!

E –não– isso não acontece apenas na China. Neste espaço, temos discutido como empresas e políticos vêm tentando derrubar, aqui no Brasil, alguns dos maiores ganhos sociais garantidos pelo Marco Civil da Internet, como a “neutralidade da rede”.

Só espero que nenhum deputado espertinho em Brasília fique inspirado pelas ideias vindas da China.

 

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Quem vigia os vigilantes (ou os políticos)?

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Foto: Chuck Patch (Creative Commons)

A Câmara dos Deputados está gestando três projetos de lei que, na prática, criam mecanismos de censura da Internet e ferem liberdades do indivíduo. O principal deles tem, como objetivo, a punição de quem publicar conteúdo ofensivo a parlamentares. O segundo oferece a qualquer “autoridade competente” o poder de exigir que serviços online forneçam os dados de seus usuários sem ordem judicial. E o pacotão de arbitrariedades é concluído com outro projeto que determina que qualquer um que poste conteúdos na Internet seja identificado por nome completo e CPF.

Os três projetos se completam e criam uma sensação de que o cidadão está indefeso diante daqueles que o deveriam defender, e que legislam sem controle ou limites, um caso clássico de “quis custodiet ipsos custodes?” A frase em latim, atribuída a Juvenal, poeta romano do início da era cristã, é normalmente traduzida como “quem vigia os vigilantes:” e se refere à dificuldade de controle das ações de quem está no poder.

Os projetos batem de frente com o Marco Civil da Internet, propondo sua alteração em uma de suas maiores conquistas: a garantia do sigilo dos dados dos usuários, que só pode ser violado por força de uma ordem judicial. Mas o primeiro dos três projetos, de autoria do procurador parlamentar, deputado Cláudio Cajado (DEM-BA), abre portas para que qualquer parlamentar cale a boca de qualquer um que, mesmo dentro do jogo da democracia, diga algo que o incomode.

Isso piora ainda mais a já desgastada imagem do Legislativo junto aos brasileiros. Em todas as esferas e em todos os rincões desse país, vemos parlamentares tentando silenciar aqueles que, mesmo munidos de provas irrefutáveis, dizem coisas contrárias a eles. As vítimas desse abuso de poder vão desde pequenos blogueiros até grandes veículos de comunicação. Para os pequenos, as coações são mais brutais; para os grandes, recorre-se a uma espécie de “censura de toga”.

Um exemplo foi a proibição, por ordem judicial, de o Estadão de falar mal da família Sarney na “Operação Boi Barrica” da Polícia Federal. Até mesmo sites de humor são vítimas da intolerância parlamentar: no mês passado, o deputado Marco Feliciano tentou calar e pedir indenização ao Sensacionalista, por ser alvo de piadas do site humorístico. A Justiça, dessa vez, não acatou as alegações do deputado.

A proposta de Cajado está em fase final de elaboração e deve ser apresentada em setembro, com o apoio do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Se virar lei, esse tipo de pressão tende a aumentar exponencialmente, pois o parlamentar se sentirá amparado em uma lei que lhe dá poder de punir os autores daquilo que não gosta, como também os serviços que hospedarem esses conteúdos.

 

Rito sumário e ignorância técnica

Mas a situação fica ainda pior quando o projeto de Cajado se combina com os outros dois, esses já apresentados.

O projeto de lei da deputada Soraya Santos (PMDB-RJ) abre um perigosíssimo precedente quando, no artigo 7º, diz que qualquer “autoridade competente” pode exigir (e receber) informações pessoais dos usuários de um serviço online. Mas o que é uma “autoridade competente”? O texto não especifica isso e, portanto, amparado pela lei, um soldado da PM ou delegado poderiam exigir informações confidenciais em nome daquele que estiver “representando”. Não se enganem: isso tipo de abuso já existe hoje, mesmo sem amparo legal. Novamente, se o projeto se transformar em lei, a tendência é que assistamos impotentes ao enorme crescimento dessa prática abjeta.

O terceiro dos projetos, de autoria do deputado Silvio Costa (PSC-PE), é uma pérola de desconhecimento básico da Internet. Ele propõe que “o provedor de aplicações de internet, sempre que permitir a postagem de informações públicas por terceiros, na forma de comentários em blogs, postagens em fóruns, atualizações de status em redes sociais ou qualquer outra forma de inserção de informações na internet, deverá manter, adicionalmente, registro de dados desses usuários que contenha, no mínimo, seu nome completo e seu número de Cadastro de Pessoa Física (CPF).”

Ou seja, segundo o deputado, para um simples “curtir” no Facebook, o usuário deverá informar nome e CPF ao serviço, que será obrigado a repassar essa identificação “às autoridades competentes” para a supostamente devida punição, antes de qualquer julgamento, sem ordem judicial. O objetivo está bem claro na justificação do projeto: “essa simples exigência irá, por certo, coibir bastante as atitudes daqueles que, covardemente, se escondem atrás do anonimato para disseminarem mensagens criminosas na rede.” Ou seja, contrariando a Constituição, todo mundo é, por definição, culpado, até que se prove o contrário.

Mas de “simples”, a exigência não tem nada. Dentro do território nacional, existem pessoas que podem legalmente usar redes sociais, mas não têm CPF. Que dizer então de pessoas que vivem em outros países, particularmente estrangeiros? Eles não têm, nem nunca terão CPF, independentemente do que o Congresso Nacional Brasileiro determinar. Mesmo assim, o que postarem nas redes sociais eventualmente chegará aos usuários brasileiros. Parte desse conteúdo pode estar em português e, seja verdade ou mentira, poderá incomodar alguém por aqui. Como resolver isso e atender o que propõe o projeto de lei? Mais que uma impossibilidade técnica, a proposta é inócua porque trata a Internet e todos os seus usuários no mundo como se estivessem sujeitos à legislação brasileira.

Os três projetos são, portanto, indefensáveis do ponto de vista técnico e da democracia. Qual seria o próximo passo? Talvez os deputados peçam que a Internet seja simplesmente “fechada” ou, quem sabe, absurdamente restringida no país. Estaríamos, assim, bem próximos a “nações progressistas”, como a Coreia do Norte.

Liberdade de expressão não é para qualquer um

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Exemplo de sátira do blog Falha de São Paulo - Imagem: reprodução

Exemplo de sátira do blog Falha de São Paulo

O terrível massacre no jornal satírico francês Charlie Hebdo, ocorrido na manhã do dia 7, despertou uma reação nos países do Ocidente em defesa da liberdade de expressão. Oito dias depois, o processo que a Folha de S.Paulo move contra o blog satírico Falha de São Paulo chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Qual a relação entre esses dois episódios? Para quem não conhece a história, o jornal processou, em setembro de 2010, os irmãos Mário e Lino Bocchini, programador e jornalista respectivamente, e criadores do blog. A Falha parodiava a Folha com fotomontagens e chamadas que ironizavam o jornal e seu posicionamento sobre a campanha presidencial daquele ano. A Justiça aceitou os argumentos dos advogados do jornal, que afirmavam que o blog violava a sua marca, por similaridades no nome e no logo, e um visual que se assemelhava a seu projeto gráfico. O blog saiu do ar, depois de ter sido publicado por apenas 17 dias. Os Bocchini perderam todos seus recursos até agora, mas têm conseguido apoios de peso, como da ONG Repórteres Sem Fronteiras e de Julian Assange, criador do WikiLeaks, além de emplacar matérias favoráveis nos sites da revista Wired e do respeitado Financial Times. Agora a bola está com o ministro Marco Buzzi, do STJ.

Voltando à comoção pelo atentado na França, a Folha condenou energicamente o acontecimento, com um editorial defendendo “valores universais de liberdade e tolerância” e estampando na sua primeira página uma charge com as famosas palavras “je suis Charlie” (“eu sou Charlie”).

Je suis? Je ne suis pas. Há uma evidente contradição nessa história.

Alguns podem argumentar que a Folha, com o processo, não cerceia a liberdade de expressão, e que está apenas protegendo sua propriedade industrial. Mas esse argumento é muito frágil: não entendo como os Bocchini poderiam fazer uma sátira ao jornalão, sem mimetizá-lo.

Sátiras e charges não são apenas “coisinhas divertidas”: elas carregam mensagens, que podem ser poderosíssimas. O público de um veículo entende essas mensagens, e normalmente as considera engraçadas. Mas os satirizados podem ter uma visão bem diferente. No caso das charges de Maomé do Charlie Hebdo, mesmo a maioria muçulmana que condenou a violência contra os jornalistas pode se sentir muito ofendida por elas, pois contrariam seu modo de vida e preceitos sagrados de sua religião, como o simples fato de não se poder retratar o profeta.

Por isso, parece fácil, bonito, certo e justo bradar “Je suis Charlie”! Desde que, é claro, a pimenta não esteja ardendo os próprios olhos.

Aqui no Brasil também se mata para calar a imprensa e a liberdade de expressão, principalmente quando se trata de pequenos veículos. Quando o alvo é a grande mídia, recorre-se ao Judiciário, criando uma espécie de “censura de toga”, o que provoca correta indignação na mídia. Um caso importante e relativamente recente é a censura ao Estadão, em que a Justiça o proibiu de falar mal da família Sarney na “Operação Boi Barrica”.

Irônica e infelizmente estamos vendo, cada vez mais, a mesma grande imprensa se valer do mesmo recurso para calar aqueles que a contrariam. Uma vergonha para a democracia e para a liberdade de expressão que ela diz defender!

“Nosso é o sorriso da liberdade, da esperança e da razão”, diz o editorial da Folha do dia 8. Já Suzana Singer, no papel de ombudsman da mesma Folha, disse em sua coluna no dia 9 de janeiro de 2011: “é difícil encarar essa disputa como uma luta pela liberdade de expressão. (…) Não faz bem a um veículo de comunicação progressista –e que se considera “jornal do futuro”– cercear um blog caseiro, apelativo sem dúvida, mas inofensivo. Nessa batalha de David contra Golias, o papel do gigante malvado coube à Folha, que teve sua imagem muito mais prejudicada do que se tivesse simplesmente ignorado as pedrinhas dos irmãos blogueiros.”

Sejamos Charlie! Mas verdadeiramente. E por inteiro.

Como usar o santo nome da democracia em vão

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Capas da Veja e da Carta Capital às vésperas do segundo turno da última eleição: dois lados de uma mesma moeda

Capas da Veja e da Carta Capital às vésperas do segundo turno da última eleição: dois lados de uma mesma moeda

Em um tempo em que o país está polarizado pelo recente resultado das eleições presidenciais, este NÃO é um artigo político. Mas ele foi motivado pelo documento publicado pela Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores no dia 3, mais especificamente pelas partes que se referem à “democratização da mídia”.

Para quem não está a par do tema, o partido propõe a criação de uma “Lei da Mídia Democrática”, dispositivos que, na prática, permitiriam ao governo exercer controle nos veículos de comunicação. Em outras palavras, dificultar a vida de quem falar mal dele, abrindo caminho para a censura velada, que se somaria a ocorrências de censura judicial que estão cada vez mais populares entre os políticos do nosso país. Vocês se lembram, por exemplo, da censura imposta pelo Judiciário ao Estadão, que o proibiu de falar mal da família Sarney na Operação Boi Barrica?

Mas o que me chama mais a atenção nessa proposta da Executiva do PT é o termo “democratização”. Ele se justifica em nome da eliminação do “oligopólio” que a mídia é, segundo o partido. Não sou inocente de negar o poder político e social exercido pelas grandes empresas de comunicação, como Globo ou Abril. Também posso compreender o ódio supremo que o pessoal deve sentir de uma publicação como a Veja, que usa dos métodos mais sórdidos para fazer valer os seus pontos. Mas cercear a liberdade de comunicação e de imprensa é qualquer coisa, menos democracia.

A revista acima pratica há anos o mais rasteiro do jornalismo. Na verdade, o que a Veja faz é antijornalismo, e isso me enoja. Mas seus adversários tampouco são paladinos da ética jornalística: do outro lado desse MMA jornalístico-partidário, vestindo calção vermelho, temos veículos como a Carta Capital, que fazem algo tão desprezível quanto.

Para abusos de qualquer lado, existem o Código Civil e o Código Penal. Nenhum país precisa de controles adicionais para calar sua imprensa, coisa que está na moda em nossos vizinhos há anos, mais notadamente na Venezuela e na Argentina, dois regimes totalitários que, por sinal, adoram usar o nome da democracia para justificar os seus desmandos.

Já viajei por vários países da América Latina e sempre confirmei a regra de que quanto mais frágil, dependente ou controlada era a mídia local, mais corrupto era o governo e mais miserável era a população, do ponto de vista econômico, político e social.

Quando comecei na profissão, o presidente da República era Fernando Collor. Claro que ele, assim como qualquer governante, adoraria ter tido uma mídia dócil. Felizmente, para o país, ele não teve. Graças a isso (e a uma providencial ajuda de seu “querido irmão”), não tivemos que esperar o fim de seu mandato para nos vermos livres dele.

Durante a última campanha presidencial, a então candidata Dilma Rousseff reiterou seu compromisso de não impor controles sobre a imprensa. Eu espero, para o bem do Brasil, que essa promessa de campanha seja cumprida. Mesmo porque, apesar das aberrações acima citadas, a mídia nunca esteve tão democrática. E isso não se deve a qualquer controle grotesco, e sim à tecnologia, que permite que qualquer cidadão expresse suas ideias e defenda suas crenças, individualmente ou criando um veículo digital.

Até onde vai o vale-tudo na China?

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David Drummond, principal executivo jurídico do Google - Foto: divulgação

Drummond botou a boca no trombone, mas o que realmente há por trás da reação do Google?

Pergunte a qualquer grande empresário se ele gostaria de ter uma operação na China e a resposta provavelmente será sim. Entrar no gigante vermelho é quase como uma medalha de mérito, pois representa acesso a um mercado gigantesco e ainda com muito espaço, com custos de produção muito baixos que levam também a exportações para todo mundo de maneira muito competitiva.

Mas, há seis dias, David Drummond, principal executivo jurídico do Google publicou o post “uma nova abordagem para a China” no blog oficial da empresa, informando que a empresa e dezenas de outras foram alvos de ataques de hackers chineses. Até aí, nada demais. Mas o vice-presidente afirmou categoricamente que os ataques tinham, como alvo, contas de e-mail de ativistas de direitos humanos daquele país. Ainda que não tenha dito explicitamente, ficou no ar a ideia de que o governo chinês poderia estar por trás daquelas ações.

O Google afirma que, diante disso, mudará a postura de sua operação local, não mais aceitando a interferência e as regras do governo de Pequim, que obriga a empresa, por exemplo, a censurar os resultados de seu buscador, eliminando links para páginas que o governo considera contrárias a seus interesses. Quando foi anunciada, essa censura causou grande desconforto entre os usuários, inclusive maculando o mote informal do Google, “don’t be evil” (“não seja mau”).

Algumas empresas declararam apoio ao Google –como o Yahoo!– e outras nem tanto –como a Microsoft. E, apesar de a secretária de Estado do EUA, Hillary Clinton, ter dito que as acusações do Google “motivam preocupações e questionamentos muito sérios”, é pouco provável que o incidente provoque alguma crise política entre Washington e Pequim.

Vamos aos fatos! Qualquer empresa que quiser operar no mercado chinês tem que aceitar as regras e a interferência do governo local, e isso não vai mudar. Yao Jian, porta-voz do ministério do Comércio chinês já reiterou isso, após negar que o governo tenha relação com os ataques. Todas as empresas, de qualquer indústria, aceitam essa regra e os computadores vendidos no país vêm com um software-espião, batizado de Green Dam (“barragem verde”).

MAS… será que a China é a única “malvada”? Com toda essa gritaria, alguém se lembrou que as mesmas empresas também colaboram com o governo americano, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001? O próprio CEO do Google, Eric Schmidt, sugeriu publicamente, no fim do ano passado, que ninguém deve colocar na Internet algum tipo de informação da qual possa se arrepender, pois a privacidade total não existe. No final das contas, há mesmo uma diferença nas investidas dos governos dos EUA e da China contra a privacidade? E tem ainda o nosso senador Eduardo Azeredo e seu famigerado projeto de lei, que quer “regular” a Internet brasileira.

Como se pode ver, tá todo mundo com o rabo preso.