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Violência se faz com armas e palavras

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A violência é um problema crônico do Brasil, uma de nossas maiores chagas. E, como em muitas de nossas mazelas, tenta-se maquiar o sintoma, enquanto se deixa as causas intocadas.

Por exemplo, o governo federal acha que sua solução passa por armar as pessoas, mais especificamente o chamado “cidadão de bem”. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública discorda, indicando que isso só faz piorar a situação.

Apesar de os mais pobres serem, de longe, as vítimas principais da violência, ninguém está totalmente a salvo dela. Por mais que se armem e se protejam em redomas, os ricos também são impactados, até mesmo porque a violência pode brotar dentro de suas casas.

Nesse cenário em que as consequências ganham mais atenção que as motivações, as palavras podem ser tão perigosas quanto as balas. Isso acontece com ataques verbais de toda natureza, também contra quem propõe o debate para a busca de uma solução real. É o que está acontecendo nas redes sociais contra a série documental “Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime”, que estrou no dia 8, na Netflix.


Veja esse artigo em vídeo:


Divulgado nesta quinta, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabiliza um assassinato no país a cada dez minutos em 2020, 4,8% a mais que em 2019. No mesmo ano, 186.071 novas armas particulares foram registradas, o dobro de 2019. São agora mais de dois milhões de armas particulares registradas no Brasil. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirma que há correlação entre as duas coisas.

No outro ponto dessa análise, a série da Netflix, dirigida por Eliza Capai, conta, com riqueza de detalhes, o brutal crime praticado por Elize Matsunaga em 2012, quando ela matou e esquartejou o marido, o milionário Marcos Matsunaga. Apesar de ser um trabalho jornalístico de alta qualidade, que ouviu, de maneira bastante equilibrada todos os lados do caso, vem sendo alvo de fúria de muita gente nas redes sociais.

A ideia aqui não é debater o crime, indubitavelmente hediondo, ou os pontos levantados pela promotoria e pela defesa da condenada. Para isso, recomendo que assista à série para tirar suas próprias conclusões.

A proposta é tentar entender por que uma parcela considerável da população ataca um trabalho que traz elementos para conhecer a gênese da violência. Aquela tenebrosa noite de 2012 foi o desfecho de problemas variados que se arrastaram por anos. Muitos deles permeiam nossa cultura e nossa sociedade.

Por isso mesmo, tanta gente se recusa a olhar para isso, pois exige energia para reconhecer em si elementos desse sistema. Resolver as causas da violência exigiria mudar isso, o que é doloroso. Muito mais confortável é manter enjaulados a criminosa e o monstro dentro de cada um de nós. Isso nos poupa de responder perguntas incômodas, porém necessárias. Por que esse caso ficou tão famoso? Seria a mesma coisa se a vítima fosse a mulher ou se fossem pessoas pobres?

 

“Defensor de bandido”

As pessoas querem apenas que o seu lado seja o vencedor. Quem for diferente deve ser calado, varrido para debaixo do tapete, jogado em um buraco ou trancafiado para sempre. E qualquer um que tente resgatar essas pessoas deve ter tratamento semelhante.

Os ataques a esse documentário me fizeram lembrar casos em torno do médico Drauzio Varella. Desde que escreveu o livro “Estação Carandiru” (1999), posteriormente adaptado para o filme “Carandiru: O Filme” (2003), ele, que é um profissional respeitadíssimo, é rotulado de “defensor de bandido” por alguns.

Na obra e em diversas outras ocasiões, Varella apenas busca humanizar os detentos, algo necessário se consideramos que nossa legislação prevê que todo condenado, após cumprir sua pena, deve ser reintegrado à sociedade. Mas, para quem encara essas pessoas como monstros, essa proposta afronta seus valores.

Todos nós temos um sentimento de autopreservação. É uma necessidade atávica, ancestral. Na pré-história, quando o ser humano não tinha essa posição de dominância absoluta, éramos caçadores, mas podíamos ser também caça.

Agora dominamos o mundo e a nossa autopreservação mudou. Nenhum animal nos atacará. Somos nós mesmo que fazemos isso, para proteger o que já temos ou para conseguir o que queremos.

Ironicamente, nas rodas de profissionais “descolados”, muito se fala de empatia. Mas as pessoas têm isso? Elas sabem o que isso significa, afinal?

A empatia é um sentimento que nasce conosco. Basta observar as crianças, que compartilham e tentam ajudar seus amigos em dificuldade, muito mais que os adultos. Mas algo acontece ao longo da vida, que a mata aos poucos.

 

O lobo do homem

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679) disse, em sua obra mais famosa, Leviatã (1651), que “o homem é o lobo do homem”. Ele acreditava que o ser humano precisa viver em uma sociedade regida por regras e normas, que chamou de “contratos sociais”. Sem elas, esse “lobo” surgiria em todos, e rumaríamos à barbárie.

O que vejo hoje é que esses contratos estão sendo rasgados por aqueles que têm poder político, econômico ou simplesmente uma arma na mão. O outro e suas necessidades deixam de ser importantes a partir do momento em que um indivíduo tem a força de impor suas vontades.

Quem não tem uma arma de fogo tem a arma das palavras. Se antes elas eram restritas a quem estava ao alcance da influência desse agressor, com as redes sociais seus despautérios atingem potencialmente o mundo inteiro. E os algoritmos de relevância das redes catalisam o fator destrutivo dos ataques verbais, ao agrupar pessoas que pensam da mesma forma, criando uma poderosa caixa de ressonância.

Para Eliza, a diretora desse documentário na Netflix, “ninguém que comete crimes é apenas o crime que cometeu”. Todo crime, assim como tudo na vida, resulta de uma sequência de ações que nós e as pessoas a nossa volta tomam. Algumas são boas, outras são ruins. Às vezes, muito boas; às vezes muito ruins.

De forma alguma, defendo o crime de Elize Matsunaga. Por ele, foi julgada e condenada a quase 20 anos de prisão. A família do ex-marido não quis que os advogados entrassem com recurso para aumentar a pena (como eles queriam): acharam que a Justiça já tinha sido feita.

Uma sociedade só pode se dizer evoluída quando ela se torna muito mais eficiente na prevenção de crimes que na punição de criminosos. E, para isso, casos como esse devem ser debatidos e analisados com uma visão desapaixonada e verdadeiramente querendo entender todos os lados que levaram a um delito. Não podemos impedir que ele ocorra quando se chega ao ápice da loucura. Mas podemos trabalhar para que a enorme cadeia de fatores que levaram àquilo, quase sempre contornáveis, seja quebrada.

Por isso, o documentário é um serviço à sociedade por apresentar amplamente todos os lados do caso (que são muitos), com suas versões, seus sentimentos e seus interesses. Já aqueles que querem desqualificar a obra, com seus argumentos raivosos e limitados, não apenas deixam de contribuir para o combate à violência, como ainda a aumentam desmedidamente a cada post.

Eles são os lobos de Hobbes, que destroem seu semelhante para satisfazer unicamente suas necessidades.

O que há por trás do crime do momento

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Na manhã de sexta (19), a Polícia Federal prendeu dois hackers em Uberlândia (MG) e Petrolina (PE), acusados de serem responsáveis pelo roubo e vazamento de dados de 223 milhões de pessoas e de 40 milhões de empresas em janeiro. Mas assistindo às imagens divulgadas pelas próprias autoridades, percebe-se que algo não bate nessa história: extremamente modestos, a casa e o computador de um deles não combinam com alguém que comercializaria uma base de CPFs e CNPJs por 40 mil euros, o que dá mais de R$ 260 mil.

O Brasil se transformou no paraíso dos vazamentos de informações pessoais. Desde o ano passado, várias bases de dados enormes, de diferentes fontes, são oferecidas na Deep Web, uma parte da Internet que não pode ser acessada com navegadores comuns e não é indexada em buscadores, muito usada por delinquentes.

Em um primeiro momento, tudo isso parece envolver grandes ações criminosas, com a participação da máfia russa ou outra organização internacional. Entretanto, é mais provável que os esquemas sejam locais e que o dinheiro não seja a única motivação.

Além disso, a vida dos bandidos está fácil. Empresas, organizações e até o governo brasileiro precisam melhorar muito a segurança de seus servidores. E os usuários, sejam corporativos, sejam qualquer um de nós, precisam ser mais cuidadosos: a maior parte dos roubos acontece graças à inocência das pessoas, que caem em golpes muito básicos.


Veja esse artigo em vídeo:


Obviamente os dois hackers presos na sexta não trabalham sozinhos. Isso explicaria a casa e o equipamento bastante simples do hacker de Uberlândia, algo completamente incompatível com um esquema que já deve ter movimentado milhões de reais.

Vale notar que ele já vinha sendo investigado pela possível participação em outras invasões semelhantes, como o roubo de dados do Tribunal Superior Eleitoral. Esse vazamento foi divulgado justamente no primeiro turno das eleições de 2020, ao que tudo indica para aumentar a desconfiança da população no sistema eleitoral brasileiro, atendendo a interesses de quem questiona as urnas eletrônicas, por exemplo.

Não precisa ser um gênio, portanto, para perceber que os dois presos são apenas peões de um grupo criminoso que usa invasões para obter ganhos financeiros e políticos. Se os dois forem os únicos encarcerados, será uma vergonha! Como em tantos crimes no Brasil, condena-se quem puxa o gatilho, mas o mandante continua solto para cometer outros atos ilícitos.

Com a digitalização galopante de nossas vidas, os crimes eletrônicos se transformaram nos mais devastadores e que causam mais prejuízos à sociedade. Pessoas, empresas e organizações não estão preparadas para lidar com a criatividade e a eficiência dos delinquentes digitais. Eles conhecem profundamente a tecnologia, mas também são especialistas em ludibriar e manipular a população.

O mais nocivo dos crimes digitais atualmente são as fake news, porque elas conseguem de abalar a sociedade. Basta ver o crescimento exponencial da crise de saúde que o Brasil vive com a Covid-19. Sem as infames notícias falsas, o número de mortes seria muito menor e os negócios voltariam a funcionar mais rapidamente, pois as pessoas agiriam de acordo com o que a ciência e os especialistas de saúde determinam. Mas, graças a elas, acreditam em qualquer bobagem messiânica, que não os protege de nada, apenas atende a interesses de grupos específicos de poder.

 

Crime no atacado e no varejo

Assaltos a indivíduos e empresas são substituídos por golpes em redes sociais, comunicadores como WhatsApp e invasões em computadores. Sem sair da cadeira, os bandidos fazem mais vítimas, com ganhos muito maiores e sem risco de morte, raramente sendo pegos.

Apesar de os prejuízos para as vítimas serem expressivos, aos olhos do crime organizado, isso não é tanto: é o crime digital “no varejo”.

O “crime no atacado” vem com esses grandes roubos. E aqui a vida dos criminosos também está fácil, pois as empresas e até o governo ficam a desejar na segurança.

Um bom exemplo é o Ministério da Saúde, que foi invadido em dezembro devido a uma falha muito básica, que permitiu que hackers baixassem dados de todas as pessoas cadastradas no SUS (Sistema Único de Saúde) ou com um plano de saúde, um total de 243 milhões de indivíduos. Depois disso, o site do ministério já foi invadido diversas outras vezes, sendo “pichado” com insultos para expor sua vulnerabilidade.

As grandes bases de dados colocadas à venda nos últimos meses parecem ser uma composição de invasões a sistemas de diferentes fontes, o que indica que as falhas de segurança são muito mais comuns que deveriam.

Os bancos são empresas com bons sistemas de segurança. Eles investem milhões nisso. Afinal, está na essência do seu negócio, seja com sistemas de invasão dificílima, seja com as infames portas com detectores de metal nas agências. Mas outras empresas, mesmo algumas que manipulam grande quantidade de dados de seus clientes, incluindo informações sensíveis, não cuidam tão bem de seus sistemas. E estou falando aqui de grandes empresas. Quando pensamos em pequenas e médias, encontramos verdadeiros shows de horror!

Em uma sociedade totalmente digital, ninguém é pequeno demais para não se preocupar fortemente com a segurança da informação em seus servidores, seja dos clientes, seja do próprio negócio.  E ninguém é grande demais para não correr o risco de ser colocado para fora do mercado no caso de um grande roubo de dados.

 

O desdém pela informação alheia

Há um outro aspecto a ser considerado, muito mais cultural que tecnológico: a falta de respeito com a informação dos outros.

Dados pessoais são indubitavelmente o recurso mais valioso do mundo hoje. Isso foi detalhado na icônica reportagem de capa da revista “The Economist” de 6 de maio de 2017.

O Brasil tem uma boa legislação nessa área: a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), sancionada ainda no governo Temer, em agosto de 2018. As empresas tiveram dois anos para se adaptar à legislação e ainda as multas não estão sendo cobradas de quem infringir suas determinações.

Entre elas, está o fato de as companhias serem responsáveis pelos dados de consumidores sob sua guarda, não importando se elas foram invadidas. Além disso, as empresas devem dizer exatamente que dados serão coletados, o que farão com eles e com quem os compartilharão. O cliente deve autorizar explicitamente tudo isso.

Mas essa prática está longe de acontecer. Somos rastreados o tempo todo, sem saber que informações nossas estão sendo coletadas e o que será feito delas. Isso acontece nas redes sociais, em nossos smartphones e até em eletrodomésticos, como aspiradores de pó robôs, que mapeiam nossas casas e enviam essa informação a seus fabricantes. Mas também somos rastreados em farmácias que associam nossas compras de medicamentos a nossos CPFs, a lojas que nos identificam por suas redes e até a câmeras nas ruas que contam a governos onde estamos por reconhecimento facial.

Não autorizamos nada disso e não temos a mínima noção do que está acontecendo com nossos dados. Diante da ação de criminosos mais perigosos, de empresas que não fazem os investimentos necessários em segurança da informação e de uma sociedade que desrespeita sistematicamente o direito aos dados dos cidadãos, estamos cada vez mais à mercê de um mundo tecnocrático que facilita o crime organizado e viabiliza um estado policialesco.

Ironicamente, no mês passado, o diretor-presidente da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior, falou sobre esses vazamentos em um evento. Segundo ele, “a investigação e o poder de polícia, não nos cabe”. Concordo com isso, mas eles são responsáveis por fazer valer a LGPD, usando todos recursos necessários. E isso vai indo muito mal em nosso país.

Sem melhorias consistentes na área, continuaremos sendo o paraíso dos hackers, das fake news e de todo tipo de criminoso que usa o mundo digital para ter ganhos em cima da nossa miséria.

A monstruosidade humana nas redes

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O ser humano pode ter um lado monstruoso!

No ano passado, empresas de tecnologia identificaram na Internet inacreditáveis 45 MILHÕES de imagem de crianças –algumas com apenas 3 anos de idade- sendo abusadas sexualmente, e até mesmo torturadas. É um volume sem precedentes e o dobro do encontrado no ano anterior!

Temos que falar sobre isso, e buscar uma solução juntos.

Essas imagens na rede, absurdas e inaceitáveis por si só, ainda têm a perversa capacidade de prolongar o sofrimento das vítimas, pois o abuso fica perpetuado nelas. Além disso, temem ser reconhecidas por alguém, criando traumas ainda maiores.

Essa é uma luta de governos, da polícia, das empresas de tecnologia, mas também de cada um de nós, mesmo porque os primeiros não estão dando conta de resolver o problema. Também é essencial o uso de tecnologias como machine learning e reconhecimento de imagens, para dar conta desse volume insano de fotos, que também cresce graças a tecnologias mais poderosas e acessíveis aos criminosos.

Para saber mais sobre isso, leia essa ótima reportagem do The New York Times.

O que você acha que podemos fazer para ajudar a combater essa atrocidade?

Ajude a NÃO transformar as redes sociais na nova Inquisição: pode existir uma fogueira reservada para cada um

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Catherine Deneuve no filme “A Bela da Tarde” (1967); a atriz francesa assinou o manifesto de mulheres defendendo a “liberdade de importunar dos homens” - Foto: divulgação

Catherine Deneuve no filme “A Bela da Tarde” (1967); a atriz francesa assinou o manifesto de mulheres defendendo a “liberdade de importunar dos homens”

No dia 14, William Waack publicou na Folha de S.Paulo um artigo onde conta a sua versão dos fatos que levaram a sua saída da Globo. Foi a única vez que li sua posição, desde que o escândalo de racismo inundou as redes sociais no dia 8 de novembro, culminando em sua demissão da emissora, no dia 22 de dezembro. Longe de ser uma curiosidade entre jornalistas, esse desequilíbrio entre acusação e defesa me chamou a atenção, pois é reflexo de um preocupante comportamento impulsionado pelos meios digitais: todos ganharam o direito de ser juízes e algozes de qualquer caso, mas também podem se tornar vítimas num piscar de olhos.

O caso acima começou quando um ex-funcionário da Globo vazou um vídeo em que Waack aparece cochichando ao comentarista Paulo Sotero uma frase racista, quando estavam fora do ar. A gravação se espalhou feito rastilho de pólvora, tanto pelas redes sociais, quanto pela própria imprensa. No mesmo dia, a emissora afastou o jornalista de suas funções e publicou uma nota dizendo ser “visceralmente contra o racismo”. Seis semanas depois, Waack foi demitido. Poucas pessoas se posicionaram em sua defesa, e essas também foram veementemente desqualificadas nas redes.

Waack errou? Sim. Sua punição foi adequada? Há controvérsias. Ele merecia ter sua reputação jogada na lama por um julgamento sumário nas redes sociais? Certamente não!

Analisemos um outro caso recente: o dia 9 de janeiro, a francesa Catherine Deneuve, uma das atrizes mais respeitadas do mundo e ícone de sua geração, publicou no prestigiado Le Monde, junto com outras 99 mulheres artistas e intelectuais do país, uma carta em que criticam o “puritanismo” de campanhas contra assédio sexual, e defendem o que chamaram de “liberdade de importunar” dos homens, considerada pelo grupo como “indispensável para a liberdade sexual”.

“O estupro é crime. Mas o flerte insistente ou desajeitado não é um delito, nem o cavalheirismo uma agressão machista”, afirmaram no manifesto. Elas também disseram que “não se sentem representadas por esse feminismo que, além das denúncias dos abusos de poder, adquire uma face de ódio aos homens e sua sexualidade”.

Resultado: as signatárias do documento foram apedrejadas nas redes sociais, sendo inclusive acusadas de fazer apologia ao estupro. Oras, elas disseram exatamente o contrário disso na carta! Mas, em um mundo cada vez mais intolerante, viabilizado pelas redes sociais, “se você não está comigo, você está contra mim”.

Isso é perigosíssimo, pois a vida não é preta e branca: tem incontáveis nuances de cinza.

 

Não misturemos os canais

De forma alguma, estou aqui defendendo racismo, assédio sexual ou moral, ou qualquer outra forma de crime, contravenção ou atitude condenável. Mas não podemos entrar nessa onda de ódio e intolerância que vem tomando as redes e a sociedade como um todo, em que pessoas são acusadas, julgadas, condenadas e executadas em ritos sumários, sem a menor possibilidade de defesa. Especialmente porque, em muitos casos, a origem é apenas a palavra de uma pessoa que se sentiu, de alguma forma, ofendida ou desprestigiada pelo suposto agressor, sem qualquer prova, ou porque discorda de algo que alguém disse de forma legítima.

Isso é uma afronta e um seríssimo risco a uma sociedade organizada! Se todo mundo que se sentir incomodado tiver o poder de um canhão para alvejar seus desafetos, viveremos um cenário de caça às bruxas! Mas como prevê a Constituição Federal (e o bom senso), todos são inocentes até que se prove o contrário.

Fico muito preocupado com o fato de estarmos iniciando um ano eleitoral. Com base no que vi há dois anos, nas eleições para prefeitos e vereadores, temo que as redes sociais se transformem em um banho de sangue, cheias de insultos, destruições de reputação, “fake news” e amigos de longa data se tornando inimigos viscerais. Apenas porque agora todos podem emitir suas opiniões e os algoritmos de relevância agruparão os que tiverem os mesmos preconceitos em uma mesma bolha de ódio.

Que caminho estamos trilhando?

 

Poder sem responsabilidade

Todo fã de histórias de super-heróis conhece a icônica frase “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, dita por Ben Parker, tio de Peter, o Homem-Aranha, pouco antes de ser assassinado, na gênese do herói mais amado da Marvel.

É tudo o que não temos visto nas redes sociais!

O conceito foi brilhantemente explorado no episódio “Odiados pela Nação”, o último da terceira temporada da série “Black Mirror”. No roteiro, pessoas passam a ser misteriosamente mortas depois que seus nomes são associados à hashtag #DeathTo no Twitter. A pessoa com mais “votos” no dia acabará morta. Cria-se então um perverso jogo em que qualquer um pode literalmente determinar a morte de alguém que não goste, qualquer que seja o motivo, simplesmente twittando seu nome.

(AVISO: se não quiser saber o fim dessa história, pule para o parágrafo seguinte). As investigações acabam descobrindo que as mortes estão sendo causadas por abelhas-robôs espalhadas por todo Reino Unido, que foram hackeadas para encontrar e atacar a vítima do dia. Mas a grande surpresa que a história reserva para o final é que, quando um comando for acionado, todas as pessoas que participaram do jogo, votando em alguém para ser morto, acabarão também assassinadas pelas abelhas. Isso resulta na morte de mais de 300 mil pessoas em poucas horas, no melhor estilo de que “quem com ferro fere, com ferro será ferido”.

Ou seja, as palavras têm grande poder, por isso, precisamos usá-las com critério. Reitero: coisas como racismo, assédios e outras práticas criminosas ou imorais são condenáveis e devem ser combatidas. Mas não se pode usá-las como desculpa ou cortina de fumaça para se atingir outros objetivos, alguns igualmente condenáveis.

Quando a massa ganha um poder sem limites para expor suas insatisfações, legítimas ou não, resultando em condenações sumárias que lhes agradam, rumamos para o fascismo. O exemplo máximo disso foi o nazismo! Apesar de ter surgido de mentes doentias, ele só prosperou porque a população alemã da época o abraçou e praticou. Não fizeram isso por alguma espécie de surto psicótico coletivo, mas sim porque -por mais absurdo que fossem- os valores pregados pelo partido pareciam então legítimos e corretos. E porque todas as ações tomadas em seu nome, mesmo as mais irracionais, eram apoiadas amplamente.

As redes sociais deram voz a todos, e isso é maravilhoso! Mas não podemos usar esse direito para criar uma nova versão dos tribunais da Santa Inquisição. Ou em breve estaremos queimando mulheres em praça pública apenas por serem ruivas. E, assim como acontecia naqueles tempos sombrios, quem em um dia condena poderá ser queimado no dia seguinte. Basta um desafeto lançar uma suspeita.

E os inquisidores nem tinham as redes sociais ao seu dispor.


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O perverso coquetel da cultura do estupro, impunidade e redes sociais

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Foto: reprodução

Depois de barbarizarem uma jovem de 16 anos no dia 21, alguns de seus agressores, não satisfeitos, decidiram postar um vídeo do estupro coletivo nas redes sociais. Eu me pergunto: o que leva alguém a disseminar online algo que, por si só, já é uma violência inominável?

O tal vídeo viralizou mais rápido que rastilho de pólvora. E de toda essa brutalidade surgiram dois movimentos antagônicos. O primeiro deles, felizmente o da maioria da população, condenou veementemente não apenas o estupro, mas também a sua exposição online. Mas houve um inacreditável grupo que desfilou todo tipo de argumentos justificando tudo aquilo. E isso nos leva a algumas importantes reflexões sobre como os meios digitais atuam no comportamento humano.


Vídeo relacionado:


A pessoa que postou no Twitter o vídeo de 40 segundos que viralizou, onde a adolescente aparece ao lado de seus agressores (que não temem ser identificados pelas imagens), afirma que não conhecia a vítima ou os agressores, nem que se tratava de um estupro. Teria recebido as imagens em um grupo do WhatsApp e as republicado.

Na sua infeliz justificativa, pode ser identificada a raiz de todo esse problema. Apesar de a adolescente estar desacordada, nua, ferida e cercada de homens, ele não viu nada de errado ali: achou apenas muito engraçado, a ponto de fazer piadas enquanto passava adiante o show de horror.

A maior desgraça disso tudo é, portanto, perceber que nossa cultura é a grande responsável por esse completo descaso com a vida, com a honra e com a privacidade. E que os meios digitais se prestam a ampliar tudo isso!

Quando aprendemos, desde pequenos, que a mulher tem uma posição inferior, onde o homem pode tudo e ela não vale nada, criam-se os mecanismos para que mais de 30 sujeitos se unam para violentar uma adolescente, uma quantidade enorme de outros indivíduos ache isso divertido e divulgue o ato para o máximo de pessoas que puder, e uma parcela significativa da sociedade não apenas os aplauda, como também justifique toda essa barbárie.

E não pensem que isso está no inconsciente coletivo apenas das classes sociais mais baixas ou dos menos escolarizados. O anúncio da Dolce & Gabbana que abre este artigo deixa claro que isso acontece mesmo nas classes mais altas e refinadas. Quando foi publicado, causou comoção internacional, sendo acusado de apologia ao estupro coletivo. Para se defender, a marca disse que aquilo fazia parte das “fantasias femininas”.

Portanto, essa cultura do estupro existe, em maior ou menor grau, em todos os países. Infelizmente é muito arraigada na sociedade brasileira. Por isso, a diretora francesa Éléonore Pourriat encontrou uma maneira brilhante de explicar esse desequilíbrio de que “o homem pode tudo e a mulher pode nada”, com seu curta-metragem “Maioria Oprimida”, que pode ser visto abaixo na íntegra e legendado (10’43’’):



Nada como calçar os sapatos do outro, não é?

 

O mito da “vida online”

Infelizmente o caso da jovem carioca não foi o primeiro nem será o último de violência ampliada pela Internet. Aqui mesmo, nesse espaço, já discutimos o que aconteceu com a menina Valentina, participante do programa MasterChef Júnior do ano passado, que foi vítima de uma onda de assédio pelo simples fato de estar lá. Portanto, em uma sociedade completamente conectada, vale discutir o papel dos meios digitais nesse processo todo.

A Internet evidentemente não é culpada de nada disso. Ela não cria esses comportamentos, apesar de funcionar como uma caixa de ressonância daquilo que seus usuários pensam. Por isso, vemos casos assim se tornando populares. E aí surge a sensação de que, na “vida online”, vale tudo.

Quantas vezes não nos surpreendemos com o comportamento de amigos nas redes sociais, que vociferam barbaridades que parecem não combinar com aquela pessoa que conhecemos tão bem? Isso acontece porque, para muita gente, existe uma ilusória sensação de que, quando estão online, aquilo é uma “outra vida”, regida por outras regras, quase como se fossem outras pessoas.

Isso “destrava” elementos de suas personalidades que normalmente são guardados na sua parte mais profunda, justamente porque as convenções sociais fazem restrições a eles. O caso mais comum é o de pessoas que expõem o seu próprio corpo e pensamentos íntimos como se os estivesse confidenciando a um amigo próximo, quando, na verdade, a audiência chega a ser global!

Outro problema decorrente disso –e que tem muito a ver com os casos de violência da jovem do Rio e da menina Valentina– é a sensação de impunidade. Para muita gente, a Internet é uma terra sem lei, onde se pode tudo, mesmo as maiores atrocidades, e que nada os atingirá. Desde pequenas confissões até claramente assumir a participação em crimes, está tudo lá, documentado online.

Nada mais equivocado! Os meios digitais não são a “casa da Mãe Joana”, simplesmente porque não existe essa história de “vida online”: ela é apenas uma outra expressão da única vida que cada um de nós tem. Portanto, o que se faz na rede paga-se “online e off line”.

Se serve de consolo, diante de tanto horror, podemos tirar algo de bom. Se os meios digitais se prestam a disseminar o pior do ser humano, eles também são excelentes ferramentas para se criar debates saudáveis em torno desses temas, ajudando na conscientização das pessoas para que essas barbaridades aconteçam menos no futuro. Exatamente como estamos fazendo aqui.

Como não lembrar da campanha #primeiroassedio, criada justamente por conta dos ataques à Valentina? E agora vemos essa enorme mobilização nacional contra o estupro.

Das cinzas de tanto horror e de tanto sofrimento, temos que nos esforçar para extrair uma sociedade melhor, mais digna, mais humana. E as redes sociais, onde tudo aquilo apareceu, são, afinal, excelentes ferramentas para o bem.


Vamos falar sobre a linguagem certa para público certo na Social Media Week? Esse é o segredo do sucesso nas redes sociais. É só entrar nesta página e clicar no botão verde de CURTIR abaixo da minha foto.


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O papel da Imprensa e da Justiça na crise brasileira

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Dilma conversa com Lula em cerimônia em que ele foi empossado como ministro-chefe da Casa Civil, no dia 17 de março - Foto: José Cruz/Agência Brasil

Dilma conversa com Lula em cerimônia em que ele foi empossado como ministro-chefe da Casa Civil, no dia 17 de março

Nos últimos dias, especialmente depois que as conversas telefônicas de Lula vieram a público, tenho visto uma enorme gritaria contra a Imprensa e contra o Judiciário. O que mais me assusta é perceber que as críticas vêm escoradas em uma ideologia maniqueísta que tenta transformar verdades escancaradas em versões pueris e reduzir aqueles que defendem a sociedade a simples “golpistas”.

Este artigo não tem objetivos partidários e não defenderei nenhum dos lados. Tampouco negarei que existem excessos de apoiadores e de críticos ao governo. A proposta é analisar desdobramentos que levaram o Brasil a uma polarização ideológica inédita e a uma movimentação política que não era vista desde os fatos que culminaram na renúncia de Collor, em 1992.


Vídeo relacionado:


A matéria-prima da Imprensa são os fatos, a verdade; do Judiciário, as leis, a justiça. Dentro desses limites, não podem ser condenados pelo resultado de seu trabalho incomodar alguém, especialmente porque, por definição, sempre incomodam.

No caso do Judiciário, a maior parte das reclamações recai sobre o juiz Sérgio Moro, por ter exposto repetidamente o Governo Federal e membros dos partidos da base governista na operação Lava Jato. Os críticos acusam o juiz de abuso de sua autoridade, por supostamente cercear direitos dos acusados e exagerar nos pedidos de prisão preventiva para obter delações premiadas.

O caso que jogou um tambor de gasolina em uma fogueira, que já estava bastante grande, foi a liberação, no dia 16 de março, de escutas em telefones usados por Lula, nas quais ele conversa com diferentes autoridades, inclusive a presidente Dilma Rousseff.

Como todos devem estar carecas de saber depois de uma semana de noticiário, os dois lados procuram se apoiar em leis para defender ou acusar Moro. Mas evidentemente não há nenhum “golpe” em curso pela Justiça, como muitos, até mesmo a própria presidente da República, insistem em dizer.

Moro está fazendo seu trabalho de juiz. Não é nenhum estagiário e está jogando o jogo com as peças que tem. Seus movimentos são, de fato, muito mais ousados que o que se costuma ver no Brasil. Mas seu baralho não tem cinco ases. Se ultrapassou os limites, a própria Justiça se encarregará de puni-lo. Por outro lado, se ele estiver dentro das regras, expondo ações criminosas de quem for, presta um inestimável serviço ao país. A gritaria dos descontentes não é, portanto, nada além de gritaria.

Mas ainda tem o “Partido da Imprensa Golpista”.

 

Imprensa preservando segredos?

No caso da Imprensa, vemos em diferentes veículos, tanto apoiadores quanto detratores do governo, a distorção da realidade para fazer valer seus pontos de vista. Qualquer título pode (e deve) ter seu alinhamento político, mas nunca, jamais pode faltar com a verdade e a pluralidade para valorizar o seu lado. Mas não vou dar audiência para essa turma que faz antijornalismo. Eu simplesmente não leio mais essas páginas da “direita” ou da “esquerda”. O que quero discutir aqui é a tentativa do governo de desqualificar o trabalho da Imprensa séria. E ele existe em profusão.

O principal argumento da turma do contra é dizer que ela se presta a publicar “vazamentos seletivos” e apenas notícias contra o governo. Eu nunca vi argumentos mais estúpidos e oportunistas, criados para confundir a população.

A fantasia de qualquer governo é ter uma Imprensa dócil, que lhe apoie incondicionalmente. Mas, se ela fizesse isso, não seria Imprensa: seria relações públicas. E o governo, por si só, já tem mecanismos mais que suficientes para se promover, como as mais gordas verbas de publicidade do país e a força da própria máquina governamental.

A Imprensa vem veiculando coisas boas e coisas ruins de governos federal, estaduais e municipais, suficientes até para municiar as diferentes oposições de cada um, que usam material dos veículos de comunicação em seus dossiês e em posts raivosos nas redes sociais.

Alguns podem dizer que agora só se fala nos escândalos que jogam Lula, Dilma e seu governo na lama. Acontece que a quantidade de notícias sobre esse tema, que tem a mais alta relevância jornalística, parece não ter fim. E isso nos leva aos tais “vazamentos seletivos”.

A Imprensa séria não faz, nem publica “vazamentos”. Ela publica reportagens, com verdades apuradas. A turma da gritaria, incluindo a presidente da República, vocifera ao dizer que ela jamais poderia divulgar informações sigilosas, pois isso seria ilegal. Mas a função da Imprensa não é guardar segredos: é revelá-los! Quem tem que guardar segredos são os responsáveis por tais informações. Se elas foram “vazadas”, por incompetência ou de propósito, a função da Imprensa é apurar a verdade, ampliá-la com informações adicionais e publicar tudo com o maior destaque possível. E isso tem acontecido.

Alguns podem dizer que a Imprensa é irresponsável ao divulgar isso tudo, pois estaria criando uma gigantesca instabilidade política. Mas não é ela que está jogando o país no caos. Não são sequer as pessoas que fazem os vazamentos. Os responsáveis pela crise são aqueles que cometeram os crimes, que agora estão sendo desmascarados.

As fontes dos tais vazamentos são sempre pessoas imaculadas, livres de interesses pessoais, pensando apenas no país? Claro que não! Na verdade, o padrão é que seja o contrário disso. Como esquecer de Pedro Collor, que jogou o próprio irmão-presidente na fogueira, motivado por ciúmes? É por isso que os vazamentos nunca podem ser a única fonte da Imprensa, mas são ótimos pontos de partida para as reportagens.

Por isso, quem afirma que ela é golpista não sabe o que é Imprensa, não sabe o que é golpe ou é mal-intencionado. Ilegalidades do Judiciário ou da Imprensa devem ser coibidos. Qualquer outra atitude ousada e que mostre a verdade, deve ser aplaudida.

Nesse cenário, o governo enche a boca para bradar que nossa democracia é plena e madura, por isso temos tantas investigações em curso, inclusive dos próprios governantes. Isso é uma meia-verdade. Esse argumento funciona para quem cresceu sob a truculência militar, com a polícia atirando e jogando a cavalaria sobre manifestantes, para quem aprendeu que um país é “mais estável” quando tem sua Imprensa e seu Judiciário amordaçados e acovardados.

Temos uma cultura construída em cima de 516 anos de rapinagem da nação por aqueles que estão no poder. Nossa democracia é, na verdade, jovem, imperfeita e frágil. Estamos no caminho certo para que ela amadureça de fato, mas isso só será possível com o Judiciário e a Imprensa desempenhando livremente os seus papeis. Assim, qualquer tentativa de impedir isso é uma manobra para debilitar a democracia. E é o que não pode ser tolerado.