Daily Archives: 27 de outubro de 2025

Roberto Brito de Mendonça, líder da comunidade Tumbira (AM), trocou o desmatamento ilegal pelo turismo ecológico – Foto: reprodução

Onipresente nas cidades, Internet ainda amplia a fronteira civilizatória na Amazônia

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Para você que está lendo isso, a Internet funciona de maneira líquida e certa, como uma força da natureza. Mas para quem vive na floresta amazônica, onde a natureza verdadeiramente se impõe, sua chegada amplia a fronteira civilizatória. Não se trata de conforto, e sim de uma “virada de época”, reconfigurando possibilidades de vida.

A Amazônia é um desses lugares onde a transformação digital é forçada aos seus limites operacionais, sociais e éticos. Não há comitês de inovação em salas com ar-condicionado simulando a floresta. A tecnologia se torna fator de sobrevivência em um teste de legitimidade. Afinal, se algo funciona lá, funciona em qualquer lugar; se fracassa, expõe que o discurso digital talvez fosse frágil, apenas protegido por infraestrutura abundante. E se a tecnologia não preserva a vida com sentido e não produz valor para quem mora na floresta, ela falha miseravelmente.

Pude comprovar esse impacto na semana passada, quando visitei a comunidade ribeirinha Tumbira e a aldeia da etnia Kambeba Três Unidos, ambas nas margens do rio Negro, a cerca de duas horas de lancha de Manaus (AM). Assim como outras 796 comunidades, elas recebem orientação e investimentos da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), totalizando 21 mil famílias assistidas na região. Para isso, há dez anos usa soluções da gigante de software alemã SAP na gestão de seus projetos, com ganhos em transparência, planejamento e impacto socioambiental.

A FAS visa conservar o bioma pela valorização da “floresta em pé” e melhorar a qualidade de vida das populações da Amazônia. Partindo do pressuposto de que pessoas com melhores condições cuidarão mais da natureza, implanta programas de educação, cidadania, saúde, empoderamento, pesquisa e inovação, conservação ambiental, empreendedorismo e geração de renda. Também melhora a infraestrutura das comunidades, inclusive com eletricidade e Internet, apoiada por empresas.

Isso impede que a Amazônia entre em um colapso ecológico, o que agravaria a crise climática global. Portanto, não se trata de ganhos pontuais. Eles fortalecem a posição do Brasil como um país capaz de conservar e gerar prosperidade na região, não apenas por ser “dono da floresta”, mas sim dono de soluções.


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A floresta impõe o aprendizado de que programas de transformação digital que chegam prontos, sem aderência cultural, morrem por falta de enraizamento. “Não impomos nada de cima para baixo, ou a comunidade não se engaja”, explica Michelle Costa, superintendente de Gestão e Finanças da FAS.

Ela lembra também que o Terceiro Setor amazônico opera sob grande estresse, com sua reputação sempre atacada, recursos limitados frente a altos custos, eventos climáticos extremos, enormes distâncias e infraestrutura precaríssima. Além disso, enfrentam a violência de traficantes e outros criminosos típicos da região.

Em um ambiente tão hostil, nenhuma organização pública, privada ou social consegue operar sozinha. “Sustentabilidade, você não faz sozinho, faz em parcerias”, afirma Pedro Pereira, diretor de Sustentabilidade da SAP para a América Latina e Caribe. Iniciativas como essas ajudam a reconectar a inovação ao seu fundamento de produzir valor para pessoas reais, em situações reais.

De fato, sustentabilidade que não entrega valor morre e projetos locais de ESG que não resistem ao “teste da Amazônia” cheiram a simples retórica. Em ambientes onde quase tudo falta, não há espaço para enfeite, apenas para o que gera resultados verificáveis.

Ao orientar, investir e conectar essas comunidades, elas ganham visibilidade e melhoram seus produtos. Isso muda sua posição na cadeia de valor, abandonando o papel de dependente e vulnerável e promovendo sua emancipação econômica.

 

Meu avô e meu pai cortavam árvores

“Não sou ambientalista, nem ativista”, esclarece Roberto Brito de Mendonça, líder da comunidade Tumbira. “Nosso trabalho é para dar qualidade de vida para nós mesmos”, acrescenta.

Ele cresceu cortando madeira ilegalmente para seu sustento, pois seu pai e seu avô faziam isso: “eles usavam machado; eu usava motoserra”. Com a FAS, trocou o desmatamento pelo turismo ecológico. Hoje é dono de uma pousada, faz transporte, excursões e oferece alimentação. Pensa agora em criar um espaço para eventos.

“A gente trabalha de forma unida para melhorar a comunidade na saúde, na educação e na sustentabilidade”, conta Neurilene Cruz, dona do restaurante Sumimi, que fica na aldeia Três Unidos. As cinco mulheres que o operam precisaram vencer o machismo, que ditava que “mulher não cozinha para fora”.

Graças ao apoio da FAS, a aldeia também conta hoje com dois atletas: um no tiro com arco e outro na canoagem. Eles sonham em participar de uma olimpíada, mas Cruz lamenta a dificuldade de conseguir patrocínios na região.

Fica claro que parcerias que respeitam os contextos de cada comunidade são desenhadas para que ela queira que funcione, e não para que uma organização externa as destaque em seus relatórios. E quando vozes da floresta ganham visibilidade, não se pode mais falar da Amazônia como se ela fosse mera paisagem.

É por isso que tratar a chegada da Internet na região como um simples serviço é demasiadamente reducionista. Ela cria infraestrutura de cidadania, com informação, educação, saúde e inclusão. Onde o Estado não chega, o mercado não se interessa e a geografia intimida, a conectividade tira populações inteiras da invisibilidade e as integra ao mundo, respeitando suas culturas.

Dessa forma, se o Brasil considera mesmo estratégico ter “a floresta em pé”, deveria considerar igualmente estratégico ter os povos da floresta conectados. Sem isso, a Amazônia se limita à imagem da “imensidão verde”, quando as pessoas que lá vivem podem e devem ser agentes de um futuro melhor para si.

A Amazônia redefine, assim, que parcerias não podem ser apenas transações, vitrines ou mecanismos de reputação. Elas devem ser arranjos de execução compartilhada, onde a escuta vem antes de tecnologia e método. E quando esse tipo de parceria frutifica diante de tantos desafios, o restante do país precisa se questionar por que não daria certo onde tudo sobra se funciona onde tanta coisa falta.