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Criada por IA, Ren Xiaorong é a âncora do telejornal “Diário do Povo”, controlado pelo governo chinês - Foto: reprodução

IA agora produz e publica notícias, aumentando os riscos de desinformação

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O que você sentiria se o presidente da República telefonasse a você para lhe convencer de algo? Ou se alguém bem próximo, como um sobrinho ou até um filho, enviasse um áudio pedindo dinheiro? Muita gente desconfiaria que se trata de um golpe. Mas o rápido avanço da inteligência artificial está tornando esse tipo de engodo cada vez mais crível, fazendo vítimas em todos os estratos sociais.

Portanto, cuidado ao gritar que jamais cairá em algo assim. Por muito menos, todo mundo já acreditou em alguma fake news!

A ameaça cresce quando se observa que o uso da IA vai muito além da produção de textos, áudios e vídeos bem-feitos. Os robôs agora constroem sequências de notícias falsas sobre temas que lhes forem solicitados. Além disso, eles as distribuem de maneiras cada vez mais criativas, até como se fossem jornalistas humanos.

Não por acaso, em janeiro, o Fórum Econômico Mundial apontou a desinformação potencializada pela inteligência artificial como o maior risco que a humanidade enfrentará nos próximos anos.

As big techs, responsáveis pela criação dessas plataformas, estão se mexendo. No mesmo Fórum, Nick Clegg, presidente de assuntos globais da Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), anunciou que a empresa está trabalhando com os principais nomes do setor para criar mecanismos que identifiquem claramente que um conteúdo foi sintetizado por IA. O executivo classificou a iniciativa como “a tarefa mais urgente” da indústria tecnológica atualmente.

Já passamos há anos do ponto em que as versões ficaram mais “importantes” para o público que os fatos, e falhamos miseravelmente no combate a isso, com consequências desastrosas. Nesse ano, com mais de 2 bilhões de pessoas votando em 58 países, o desafio de todos passa a ser não apenas resgatar o valor da verdade, como também serem capazes de identificá-la.


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Isso já acontece, inclusive onde estão as sedes das big techs: os EUA. O país começou 2024 com a polarização nas alturas pela eleição presidencial em novembro, que deve colocar novamente o atual presidente, Joe Biden, frente a seu antecessor, Donald Trump. O primeiro já vem sendo vítima de vídeos falsos desde o ano passado.

Recentemente, eleitores do Estado de New Hampshire receberam telefonemas com a voz de Biden enganando-os para não votarem na eleição primária local. Isso fez com que o governo proibisse o uso de IA para simular vozes em ligações automáticas no país.

Legislações costumam chegar atrasadas e muitas vezes são ineficientes, diante da velocidade da inovação. O debate sobre regulamentar redes sociais e agora a inteligência artificial vem deixando claro que se focar nas tecnologias é infrutífero, devendo se concentrar na responsabilização dos desenvolvedores e dos usuários que usam esses recursos indevidamente.

O grande problema é que, com ou sem regras claras, os vilões –sejam empresas ou usuários– continuam fazendo o que bem entendem para garantir seus lucros ou outros objetivos. A IA deve facilitar esse processo ainda mais, e eles sabem disso.

A imprensa historicamente desempenha o papel de proteger a sociedade desse tipo de abuso, mas ela própria vem sendo impactada pela inteligência artificial, seja em seus próprios processos, seja na concorrência de “pseudojornalistas digitais” que tentam enganar o público.

O Reuters Institute divulgou em janeiro um detalhado estudo sobre as perspectivas para esse ano sobre jornalismo, mídia e tecnologia. O documento reconhece esses desafios, destacando que a maioria do conteúdo na Internet será produzido por IA já em 2026. Segundo os pesquisadores, isso exige que jornalistas e empresas noticiosas repensem seu papel e propósito urgentemente.

 

“Jornalistas sintéticos”

Essas empresas já observam queda na sua audiência vinda de redes sociais, que passaram a privilegiar criadores no estilo TikTok ao invés de jornalismo, pois isso lhes favorece. O desafio do jornalismo aumenta com o crescimento das “Experiências Generativas de Busca”, um recurso de buscadores como Google e Bing, em que a IA generativa redige parágrafos que explicam brevemente o que o usuário procura. Com isso, ele não precisa mais visitar as páginas de onde as informações foram tiradas.

Em outras palavras, os veículos de comunicação alimentam essas plataformas e não ganham nem mesmo a visita do usuário em troca. É quase como se cada um de nós agora tivesse um “jornalista sintético” a nossa disposição para nos explicar qualquer assunto.

Parece ótimo, mas isso embute um risco enorme: esses parágrafos podem misturar alegremente informações jornalísticas de qualidade com fake news bizarras. Portanto, podem se converter em poderosas ferramentas de desinformação, além de achatar a audiência dos veículos de comunicação.

Pesquisadores acreditam que, nesse ano, plataformas de inteligência artificial também passem a produzir grandes volumes de desinformação, não mais dependendo de comando individuais, mas seguindo diretrizes mais amplas. Como a publicação é automática, isso pode inundar as redes sociais com informações falsas, que soterrariam o conteúdo jornalístico diante dos algoritmos. Além disso, países como China e até Venezuela já usam avatares ultrarrealistas que se passam por jornalistas humanos e despudoradamente leem notícias que lhes forem ordenadas.

O relatório do Reuters Institute indica que as empresas de comunicação pretendem reforçar o contato direto com seu público, em detrimento das plataformas digitais. Mas isso pode afastá-las ainda mais de sua audiência mais jovem e menos instruída, que se sente satisfeita com as notícias geradas por IA.

A inteligência artificial é uma ferramenta fabulosa e estamos em um caminho sem volta para sua adoção em todos os setores da economia, inclusive na comunicação. Apesar de todos esses desafios, ela também oferece muitos ganhos ao jornalismo, se bem usada.

O risco a que todos nós –e não apenas jornalistas– temos que estar atentos é a possibilidade de decisões básicas da sociedade civil, como em quem votar, sejam sequestradas por robôs sem ética. As empresas de comunicação não podem repetir com a IA o erro que cometeram ao desprezar o poder das redes sociais, quando ainda estavam começando. Precisam compreender e se apropriar dessa tecnologia, e ajudar toda a sociedade a fazer o mesmo.

Caso contrário, seremos cada vez mais cidadãos teleguiados.

 

Uma inteligência artificial treinada com informações ruins não deve ser usada para confundir eleitores – Ilustração: Paulo Silvestre

A democracia precisa que o jornalismo e a inteligência artificial se entendam

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A recente briga do New York Times contra a Microsoft e a OpenAI (criadora do ChatGPT) pode ajudar a definir como nos informaremos no futuro e impactar consideravelmente a saúde da democracia no mundo todo. Tudo porque o processo aberto pelo jornal no dia 27 de dezembro contra as duas empresas de tecnologia pode balizar a qualidade do que a inteligência artificial oferecerá a todos nós.

O jornal afirma que seu conteúdo vem sendo usado para treinar as plataformas de IA, sem que seja remunerado ou sequer tenha autorizado esse uso, o que é verdade. Enquanto isso, essas plataformas rendem bilhões de dólares a seus donos.

Desde que o ChatGPT foi lançado no final de 2022, as pessoas vêm usando a IA para trabalhar, estudar e se divertir, acreditando candidamente em suas entregas. Sua precisão e seus recursos para evitar que produza e dissemine fake news dependem profundamente da qualidade do conteúdo usado em seu treinamento. O New York Times e outros grandes veículos jornalísticos são, portanto, algumas das melhores fontes para garantir uma entrega mais confiável aos usuários.

O problema é tão grave que, no dia 10, o Fórum Econômico Mundial indicou, em seu relatório Riscos Globais 2024, que informações falsas ou distorcidas produzidas por inteligência artificial já representam o “maior risco global no curto prazo”.

Nesse ano, dois bilhões de pessoas participarão de eleições no mundo, inclusive no Brasil, e a IA já vem sendo usada para aumentar a desinformação nas campanhas. Por aqui, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) busca maneiras de regular seu uso no pleito municipal de outubro, uma tarefa muito complexa. Por isso, é fundamental que os bons produtores de conteúdo e as big techs encontrem formas de melhorar essas plataformas respeitando os direitos e remunerando adequadamente os autores.


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Em um cenário extremo hipotético em que todos os produtores de bons conteúdos impeçam que os desenvolvedores os acessem, a IA ficaria à mercê de fontes pouco confiáveis (para dizer o mínimo). Isso aumentaria brutalmente a chance de ela ser manipulada, ajudando a transformar os usuários em autômatos da desinformação. E isso seria trágico também para o bom jornalismo, que luta fortemente contra isso.

Criou-se então um dilema: as plataformas precisam de bom conteúdo, mas não estão muito dispostas a pagar por ele, enquanto os veículos jornalísticos têm que garantir seus direitos, mas deveriam ajudar a melhorar as entregas da inteligência artificial.

“Quando eu compro uma assinatura do New York Times, eu não estou autorizado a pegar todo o conteúdo e desenvolver um produto meu em cima dele”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Só que é mais ou menos isso que a OpenAI faz quando pega esses dados”.

Para que os sistemas de inteligência artificial funcionem bem, eles precisam ser treinados com uma quantidade monstruosa de informações diversas, para que aprendam o que dizer e respeitem a diversidade de ideias. Em tese, todas as suas produções são inéditas, por isso os desenvolvedores se valem do conceito jurídico americano do “uso justo” (“fair use”), que protege as big techs há pelo menos duas décadas, quando, por exemplo, rastreiam a Internet inteira para fazer um buscador funcionar.

Por essa regra, os produtos digitais exibiriam apenas pequenos trechos desses conteúdos, insuficientes para configurar uma concorrência. Mas em seu processo, o New York Times afirma que as plataformas de IA exibiriam literalmente grandes nacos de sua produção, inclusive de material exclusivo a seus assinantes. A OpenAI nega.

É um desafio para a Justiça dos EUA, pois as leis do país proíbem a cópia de conteúdo, mas permitem que se criem produtos combinando elementos de diferentes fontes, sem criar concorrência direta. As plataformas de IA fazem as duas coisas.

 

Ameaça à democracia

Nesse pântano jurídico, grupos políticos já vêm se esbaldando nos recursos da inteligência artificial para convencer –ou mais especificamente confundir– os eleitores.

O TSE tenta encontrar formas de pelo menos dificultar que isso aconteça nas eleições brasileiras. No dia 4, publicou dez minutas de resoluções para esse fim. Esses textos estarão em consulta pública até o dia 19 deste mês. Entre 23 e 25 de janeiro, ocorrerão audiências abertas na Corte para o aperfeiçoamento das normas.

Infelizmente, criar ótimas regras é relativamente fácil. Verificar seu cumprimento, por outro lado, é bem difícil, especialmente nas campanhas não-oficiais, realizadas por eleitores diretamente instruídos pelos candidatos ou espontaneamente. Com isso, o gigantesco problema de disseminação de fake news e discursos de ódio em redes sociais (que fazem muito menos do que deveriam para combater isso) agora deve ser potencializado pelo uso da inteligência artificial igualmente não-regulada.

A solução exige, portanto, a participação da Justiça, dos veículos de comunicação e das big techs das redes sociais e de inteligência artificial. Felizmente há também movimentos positivos de consenso.

Segundo o mesmo New York Times, a Apple, que está atrasada no campo da IA, estaria tentando costurar acordos financeiros para justamente usar os conteúdos de grandes empresas de comunicação para o treinamento da sua plataforma em desenvolvimento. A notícia só não é totalmente positiva porque ela estaria interessada em consumir esse conteúdo, mas não em responder por qualquer problema derivado dele, o que está deixando os editores desses veículos desconfortáveis. E eles andam bem desconfiados por seus acordos prévios com o Vale do Silício, que, ao longo dos anos, favoreceram as big techs, enquanto viam seus negócios minguarem.

Tudo isso envolve interesses de bilhões de dólares e moldará a sociedade decisivamente nos próximos anos. É preciso um desenvolvimento responsável e transparente da tecnologia e uma enorme quantidade de boas informações. “Pode ser que a gente tenha modelos de inteligência artificial que sejam focados na maldade”, sugere Crespo. “É que ninguém parou para fazer isso ainda ou talvez ninguém tenha tanto dinheiro para isso.”

Alguns acreditam que a solução seria educar a população para não acreditar tão facilmente no que veem nas redes sociais e agora na inteligência artificial. No mundo ideal, isso resolveria o problema. Mas isso simplesmente não vai acontecer e as pessoas continuarão sendo manipuladas, agora possivelmente ainda mais.

Os já citados atores precisam dar as mãos para evitar o pior. Os veículos de comunicação devem alimentar a IA, mas de maneira justa, sem que isso ameace sua sobrevivência. As big techs precisam se abrir a esses acordos financeiros e se esforçar muito mais na transparência de seus sistemas e no respeito aos usuários e à própria democracia. E a Justiça precisa encontrar meios de regular tudo isso, sem ameaçar o avanço tecnológico.

Em um mundo tão digitalizado, a democracia depende do sucesso dessa união.

 

Um dos problemas derivados da queda na confiança na imprensa é a crescente agressão a jornalistas – Foto: reprodução

As razões para mordermos a mão que nos alimenta

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Um dos sinais da falência de uma sociedade é quando as pessoas deixam de acreditar nas instituições democráticas. Quando não se confia em nada ou em ninguém, perde-se a capacidade essencial de se buscar o bem comum com o outro. Por isso, pesquisas recentes do prestigioso instituto Pew Research Center, que demonstram a baixa confiança da população na imprensa, me impactam, mas não me surpreendem. E isso é um sintoma que deveria preocupar todo mundo.

Segundo os levantamentos, apenas 38% dos americanos adultos se informam “o tempo todo ou quase o tempo todo”. Além disso, só 15% acreditam “muito” e 46% “um pouco” nos veículos jornalísticos nacionais. Em compensação, 14% buscam notícias no TikTok (32% entre os que têm de 18 a 29 anos), que ainda fica atrás do Instagram (16%), do YouTube (26%) e do Facebook (30%).

O mesmo instituto já havia indicado que o aumento de informações nas redes sociais é inversamente proporcional a sua qualidade, e que o público que as utiliza como principal fonte de informação é menos engajado, informado e capaz de demonstrar bom discernimento, se comparado a quem se informa pela imprensa.

Pelas minhas observações, arriscaria dizer que temos números semelhantes no Brasil.

Todos perdem muito com esse divórcio entre a imprensa e seu público, e cada um tem seu papel e razões. Mas isso precisa ser revertido! As bolhas de pensamento único, que nos maltratam diariamente, impedem que vivamos em uma sociedade com cidadãos mais conscientes e capazes de se desenvolver.


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Há mau jornalismo hoje, como sempre houve, porém, há mais bom jornalismo que mau na mídia profissional. Entretanto parte da população aprendeu a ver só o que a desagrada, generalizando como se toda a imprensa fosse pouco confiável.

Vale notar que, até o início do século, não se questionava a importância do jornalismo para o desenvolvimento pessoal. Uma boa informação era um diferencial que resultava em melhores empregos e outras oportunidades na vida. Ler jornais era sinônimo de pertencer à elite intelectual, mesmo que não fosse da elite econômica. E ser jornalista era uma das profissões mais desejadas pelos jovens.

A grande diferença é que, com a ascensão das redes sociais, os veículos de comunicação deixaram de ser os únicos capazes de trazer notícias. Todos nós nos tornamos mídia e somos capazes de produzir enormes quantidades de informação (o que é muito diferente de notícia). Diante disso, muitos grupos de poder descobriram uma nova maneira de dominar as massas, mas, para isso, precisavam usar o meio digital para desacreditar a imprensa, que teima em lhes fiscalizar.

O combate à mídia pelos poderosos não é algo novo: apenas ganhou escala com o meio digital. Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, foi essencial para seu poder, ao criar uma máquina de silenciar a imprensa e vozes dissonantes. Décadas depois, o venezuelano Hugo Chávez contribuiu com o processo, criando a ideia de que, se a mídia fosse contra ele, seria “contra o povo”. E demonstrando que o combate à imprensa não segue ideologia, Donald Trump se notabilizou por ignorar solenemente a verdade e usar o meio digital para impor seus interesses como fatos.

O Brasil também deu suas contribuições. Lula, desde seu primeiro mandato, desqualifica a imprensa e tenta lhe impor seu “controle social”. Jair Bolsonaro, por sua vez, instituiu ataques explícitos a jornais e jornalistas, especialmente mulheres, incendiando a população contra a mídia.

Como resultado, as pessoas só querem ver conteúdos que afaguem seu ego e concordem com seus pensamentos. E essa é uma perigosa zona de conforto.

 

Desagradando seu público

Mas o jornalismo não é feito para agradar. Na verdade, se estiver desagradando alguém, deve estar fazendo um bom trabalho.

Todo governo gostaria de ter uma imprensa dócil. Mas, se fizer isso, não é jornalismo: é relações públicas. Ela deve informar e formar o cidadão e protegê-lo dos interesses de grupos políticos, econômicos ou ideológicos, fiscalizando o poder.

Como disse certa vez o grande cartunista e jornalista Millôr Fernandes, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados.”

Às vezes, o jornalismo deve desagradar até seu próprio público, para forçá-lo a sair daquela zona de conforto perversa. Mas quando tudo vira “pão e circo”, isso coloca os veículos em uma situação delicada: como fazer isso se as pessoas –cada vez mais intransigentes– já estão “com um pé para fora” do jornalismo?

Os veículos têm sua culpa, ao se desconectar dos anseios e da linguagem do público. A distribuição e até seu modelo de negócios também estão ultrapassados. Diante disso, não é de se estranhar que tão pouca gente confie no jornalismo e menos ainda esteja disposto a pagar por ele. Os veículos de comunicação e seu público não conseguem mais ler os sinais uns dos outros.

Permitam-me aqui uma analogia abusada: um animal de estimação amoroso pode morder quem o alimenta como forma extrema de comunicar seu descontentamento. Um dos principais motivos é o animal não entender os sinais do tutor. Nesse caso, fica difícil saber quem é o cachorro e quem é o tutor, pois público e imprensa dependem um do outro, e nenhum está conseguindo entender os sinais alheios.

Mas em tempos tão sombrios e confusos, ambos precisam reaprender isso. Como qualquer atividade humana, o jornalismo é imperfeito, e essa atual situação faz com que sua margem de erro esteja reduzidíssima. Ele precisa ouvir novamente as demandas e falar a linguagem do público.

As pessoas, por sua vez, precisam colaborar, reconhecendo que, sem jornalismo profissional, perderiam elementos essenciais no seu cotidiano. Não saberiam, por exemplo, dos escândalos do governo atual, do anterior e de qualquer outro, ou as diferentes perspectivas sobre a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e o Hamas. Não teriam se vacinado contra a Covid-19 (e muitíssimo mais gente teria morrido), e não conheceriam as potencialidades da inteligência artificial ou os riscos das redes sociais. Não saberiam dos bastidores dos filmes importantes, e nem compreenderiam a crise da Seleção Brasileira. Tudo isso se fala nas redes sociais, mas é o jornalismo que descobre, noticia e explica.

Não há atalho: a imprensa precisa se reconectar com o seu público e vice-versa. É preciso reconquistar a confiança perdida! Isso não se faz com “caça-cliques”, mas com seriedade e transparência.

O jornalismo não pode se render à lógica perversa das redes sociais, que disseminam ódio, intransigência e o pensamento único. A confiança é uma via de mão dupla e benéfica para toda sociedade. Mas ela só existe quando todos estiverem dispostos a falar e ouvir civilizadamente, sem morder a mão um do outro.

 

Mãe beija criança na Faixa de Gaza, de onde saíram os ataques terroristas do Hamas - Foto: Libertinus/Creative Commons

Mais que mísseis, bombas e balas, a guerra hoje é feita também com imagens, palavras e versões odiosas

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Desde o dia 7, o mundo assiste horrorizado à mais recente escalada da violência em Israel e na Palestina, deflagrada pelo ataque dos terroristas do Hamas, que cobrou milhares vidas dos dois lados até agora. Mas esse conflito não está acontecendo apenas na região da Faixa de Gaza: ele invadiu o mundo todo a partir das redes sociais, em uma guerra de versões recheada de palavras e imagens aterrorizantes.

Isso vem servindo de munição para grupos políticos e ideológicos que inescrupulosamente usurpam a barbárie para impor sua visão de mundo. Essas mensagens invadem nossas vidas a partir de computadores e celulares, inflamando pessoas que sequer entendem o que está acontecendo no Oriente Médio. Isso aumenta ainda mais a dor daquele confronto interminável, movido pelo ódio e pela intolerância dos radicais de ambos os lados.

Guerras não são ganhas apenas no campo de batalha: os vencedores também precisam conquistar corações e mentes da opinião pública. Desde a Primeira Guerra Mundial, isso vem acontecendo de maneira cada vez mais intensa e rápida, com o avanço da imprensa e da tecnologia. Mas a também horrenda invasão russa na Ucrânia inaugurou um novo tipo de “cobertura”, feita diretamente do front por combatentes, assim como pela população civil, com seus celulares. A fase atual do conflito israelo-palestino cristalizou isso.

Nesse fogo-cruzado ideológico e digital, as pessoas são praticamente forçadas a escolher um lado. Como palestinos e israelenses possuem seus argumentos, é importante desqualificar o inimigo, para angariar a simpatia internacional. Mas como a maioria da população não tem acesso a informações confiáveis e equilibradas, o que poderia ser um debate construtivo em busca da paz se torna uma arena de insultos.

Aqui o conflito não faz mortos como lá, mas o tecido social fica esgarçado pela ignorância!


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Um triste exemplo aconteceu na terça passada (10), em um debate sobre as causas do conflito, organizado pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ. Mediado pela professora Monica Herz, ele reuniu Márcio Scalercio, docente do departamento, Nizar Messari, da Al Akhawayn University (Marrocos), e Michel Gherman, pesquisador da UFRJ, do centro de estudos de Sionismo e Israel da Universidade Ben Gurion do Negev, e do Centro Vital Sasson de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém, além de coordenador acadêmico do Instituto Israel-Brasil.

Em sua fala, Gherman, condenou veementemente o ataque do Hamas como um ato terrorista. Tentou explicar as consequências nefastas disso aos próprios palestinos e expôs a necessidade de negociação com a Autoridade Nacional Palestina. Por isso, foi agredido por um grupo de alunos, que o acusavam de ser simpático ao Hamas e –pasmem– de ser antissemita.

Diante da impossibilidade de continuar sua fala, Gherman deixou o evento. “Eu vou embora, vocês ganharam”, disse ao sair. Apesar dos protestos de Herz pelo ocorrido, o debate virou um Fla-Flu ideológico entre os alunos.

O “pecado” de Gherman foi não ter destilado um ódio visceral contra o Hamas, apesar de ter deixado bastante claro que classificava o grupo como terrorista. Mas para a turma cega pelo ódio, qualquer um que não se comporte dessa forma deve ser silenciado. As vozes do bom-senso não lhes servem de espelho e pertencem ao “inimigo”.

É nessas horas que os estilhaços da guerra atingem o mundo todo. Quando perdemos a capacidade de dialogar civilizadamente com quem pensa de maneira diferente, o terror ameaça sociedades que suas bombas não conseguem atingir.

 

Streaming de terror

A imprensa profissional filtra o que publica, evitando fake news e conteúdos demasiadamente brutais, que visam aumentar o ódio até daqueles que mal entendem o que está acontecendo. As redes sociais, por outro lado, servem como gigantescos dutos descontrolados e se prestam à polarização irracional.

A ONU (Organização das Nações Unidas) declarou ter “claras evidências” de crimes de guerra e uma enorme quantidade de relatos de mortes de civis por grupos armados dos dois lados, que as propagandeiam pelas plataformas digitais. Eles buscam colher apoio para seus atos e aterrorizar a população do inimigo. E crianças e jovens acabam sendo bombardeados por isso, sem o mínimo preparo para lidar com tanto terror, servindo para depois engrossarem as fileiras da intolerância de todo tipo.

Os terroristas digitais são muito mais rápidos e numerosos que a imprensa. Além disso, como não têm nenhum compromisso com a verdade, usam não apenas imagens reais da guerra, como também conteúdo fora do contexto e ainda material gerado por inteligência artificial. A partir disso, aqueles que se identificam cegamente com qualquer dos lados se encarregam de espalhar o terror, seja verdadeiro ou falso.

Extremistas dos dois lados esperam exatamente que isso aconteça e seja normalizado, a ponto de ser apoiado. Isso não pode acontecer, pois cada grupo busca reescrever a história que ainda está sendo vivida, mas com suas ideias!

Não haverá paz enquanto extremistas dominarem os opostos no conflito. Para eles, massacres dos dois lados da fronteira servem para reforçar suas posições, entrincheirando-se no poder. Talvez essa seja a maior aberração dessa barbárie.

Nessa guerra em que a ideologia mata tanto quanto tiros, as imagens perderam sua capacidade de retratar a verdade. Pelo contrário, elas só mostram aquilo que quem as postou deseja impor. E por isso não é nenhuma surpresa ver a imprensa profissional sendo alvejada pelos mesmos grupos, por insistir em não apenas trazer os fatos, mas explicá-los para todo mundo, especialmente para quem sempre achou a crise entre palestinos e israelenses algo incompreensível, distante e desimportante.

O terrorismo não pode ser normalizado, relativizado ou aceito. Da mesma forma, o extremismo é o grande inimigo da paz, pois ele não ouve a voz do outro ou sequer aceita sua existência.

Quanto a cada um de nós, no conforto de nossas telas, precisamos entender que a vida não é binária. As pessoas não podem escolher um lado do conflito como quem decide para qual time torcerá, especialmente quando sua própria equipe foi desclassificada. Sabemos que a intolerância mata até nas torcidas organizadas.

 

Navio com refugiados é resgatado no Mediterrâneo - Foto: Wikimedia / Creative Commons

Qual vida vale mais: a de um bilionário ou a de um refugiado?

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Você sabe qual a diferença entre um submarino e um submersível? Ou que a pressão no fundo do mar, onde jazem os destroços do Titanic, é 400 vezes maior que a da superfície? E que isso provocou a implosão do Titan, matando cinco ricaços que estavam nele no dia 18?

Se você acompanhou o noticiário por qualquer meio na semana passada, provavelmente pelo menos ouviu falar sobre isso tudo. A cobertura do acidente inundou todos os veículos de comunicação.

Mas você sabe que, poucos dias antes, o naufrágio de um barco hiperlotado de refugiados matou centenas de pessoas nas costas da Grécia, criando aquela que talvez seja a maior tragédia do Mediterrâneo?

Não se sinta mal se souber do primeiro e não do segundo caso. O espaço dado pela mídia para a tragédia do pesqueiro foi muitíssimo menor que o dedicado ao acidente do submersível. O mesmo aconteceu no mundo-cão das redes sociais.

Esse não é um problema só da imprensa, apesar de ela ser essencial para a melhora desse quadro. Porém nós, o público, temos um papel fundamental em algo que impacta a nossa vida, mesmo estando do outro lado do mundo.


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O valor de uma vida humana é imensurável, qualquer vida. Por isso, os dois acidentes são tragédias a serem muito lamentadas. Mas não se pode ignorar que, se os cinco ocupantes do Titan morreram, do pesqueiro que saiu do Egito em direção à Líbia com estimadas 750 almas, apenas pouco mais de cem foram resgatadas com vida e outra centena de corpos foram encontrados. Um número incerto de outras vítimas fatais, talvez 500, se perdeu no mar. Vale dizer que, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações, quase 27 mil migrantes desapareceram no Mediterrâneo desde 2014!

A desigualdade não se dá apenas no espaço dedicado às duas tragédias na imprensa e nas redes sociais. Talvez ainda mais absurdo tenha sido o empenho nos resgates. Investigações apontam que as autoridades gregas foram lentas em reagir no caso do pesqueiro, o que aumentou dramaticamente a taxa de mortos. Enquanto isso, as guardas-costeiras dos Estados Unidos e do Canadá, além de várias embarcações particulares, tentaram resgatar o Titan, um esforço que custou milhões de dólares e que será pago, pelo menos em parte, pelos contribuintes desses países.

Tudo recai sobre porque nos interessamos tanto por tragédias como a do Titan e ignoramos a do pesqueiro.

As redes sociais sempre destacarão, para cada um de seus bilhões de usuários, aquilo que chama mais a sua atenção, mesmo que seja algo horrível. A frieza de seus algoritmos não tem nenhum compromisso com o bem-estar social ou mesmo com a verdade: ele exibirá mais aquilo em que há mais chance de clicarmos. Daí surgem as infames “bolhas”, que racharam a sociedade ao meio nos últimos anos, reforçando as crenças de cada um, mesmo as piores.

Vale dizer que até hoje, mais de uma semana depois do acidente, continuo vendo postagens sobre o Titan nas redes. Mas eu não vi nenhum usuário dedicar algumas linhas aos refugiados. As poucas publicações nessas plataformas foram feitas justamente por veículos de comunicação.

Resta saber então por que esses mesmos veículos seguiram essa desigualdade.

 

A banalização da “morte sem rosto”

Existem algumas regras para que uma notícia chame a atenção do público e assim ganhe destaque na imprensa. Uma dela é o ineditismo, e, convenhamos, não é sempre que um submersível com bilionários querendo passear no Titanic implode. O próprio Titanic estar envolvido também desperta muito a curiosidade. E há ainda sentimentos “menos nobres”, como achar graça de ricaços que pagam uma fortuna para visitar os destroços do naufrágio mais famoso da história (ocorrido em 1912), em uma embarcação com falhas críticas de projeto. Algumas pessoas talvez até quisessem ter tentado aquilo!

No caso dos refugiados, o naufrágio não tinha nenhum desses elementos. O público os despreza poque sente que eles acontecem “a toda hora”, matando pessoas sem nome, rosto, origem, destino ou motivação. Mas não é nada disso! Essas pessoas deixam para trás seu país para salvar a própria vida, fugindo de guerras, terrorismo, perseguições religiosas e outras atrocidades que a humanidade produz.

Isso é tão verdadeiro que, de vez em quando, a tragédia ganha um rosto, chocando o mundo todo. Foi o caso dos ucranianos, que saíam da própria Europa, fugindo da invasão russa. Ou da foto de uma criança refugiada que apareceu morta com sua camiseta vermelha e short azul, na costa da Turquia em 2015. A foto do seu rosto sendo encoberto pela onda na areia provocou uma comoção global pela crise dos refugiados… que infelizmente foi logo esquecida depois.

Esse desprezo não acontece só com quem está do outro lado do mundo. Acontece diariamente na nossa cidade, na nossa rua. Às vezes, tratamos de ignorar a morte até de alguém em nosso condomínio. Afinal, “não é ninguém próximo”.

Até que acontece conosco!

A imprensa “entrou no automático” nesse tipo de decisão editorial há muito tempo. Não chega a ter frieza criminosa dos algoritmos das redes sociais, mas acaba colaborando com a desumanização da sociedade.

Sei que não é possível noticiar todas as mazelas do mundo, mas é preciso mais consciência quando se destaca a morte de cinco bilionários enquanto se varre para o rodapé a maior tragédia marinha do Mediterrâneo.

A imprensa tem o papel de informar, mas também de formar a população. E, salvo em algumas exceções, vem falhando nesse segundo, entregando o público à manipulação dos abutres das redes sociais. Esses chegam ao absurdo de não apenas desprezar a dor alheia, como promover isso!

A vida não tem que ser assim. Não deve ser assim! Quem quer que sejamos, não podemos achar que o problema nunca chegará a nós por não nos envolvermos.

Não dá para se blindar. Os bilionários do Titan acharam que dava. E implodiram.

 

A Bruxa dá a maçã envenenada à Branca de Neve, no primeiro longa-metragem animado da história (1938) - Foto: reprodução

Quem matou a veia criativa da Disney?

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Desde que lançou “Branca de Neve e os Sete Anões” em 1938, Walt Disney elevou o conceito das animações a um patamar altíssimo, sendo responsável por algumas das maiores obras-primas do gênero. Seu sucesso se deve a sua obsessão pela excelência.

Infelizmente não dá para manter a barra no alto o tempo todo: de vez em quando, o estúdio fazia algo que não fosse tão incrível. Mas isso é diferente do que se observa agora: uma aparente decisão de trocar a qualidade pela quantidade.

Já faz muito tempo que a Disney não faz nada que seja realmente memorável. A empresa está se especializando em “live actions” –filmes com atores humanos que reproduzem antigos sucessos de animações– sem nenhuma criatividade, até piorando a história para que fique mais palatável ao mercado. Um exemplo disso foi o remake de “Mulan” (2020).

A mais recente vítima da nova política é a recém-lançada animação da outrora brilhante Pixar, “Elementos”, que teve a pior bilheteria de estreia da história do estúdio. Depois de custar US$ 200 milhões, rendeu “míseros” US$ 29,5 milhões nos EUA no fim de semana de estreia. Para comparação, “The Flash”, da Warner Bros, que também está decepcionando, rendeu US$ 55,1 milhões na estreia por lá.

Esse resultado é emblemático, porque a Pixar foi comprada pela Disney em 2006, em uma época em que a última passava por uma seríssima crise criativa, com lançamentos como os pavorosos “Nem Que a Vaca Tussa” (2004) e “O Galinho Chicken Little” (2005). Naqueles anos, a Pixar lançava os fabulosos “Os Incríveis” (2004) e “Carros” (2006).

A compra provocou uma transferência de cérebros para a casa do Mickey, especialmente de John Lasseter, que havia sido demitido da própria Disney em 1983 por querer apostar em animação computadorizada. Voltou como diretor criativo da Pixar e da Walt Disney Feature Animation (depois rebatizada como Walt Disney Animation Studios). Aquilo foi um sopro de inteligência e criatividade, gerando bons títulos para a Disney, como “Enrolados” (2010), “Detona Ralph” (2012) e “Frozen” (2013).

A empresa fez outras duas mega-aquisições para seu portfólio nos anos seguintes: comprou a Marvel (2009) e a Lucasfilm (2012), duas marcas que pareciam ter um “toque de Midas”, produtoras de enormes sucessos em sequência.

E então a coisa começou a desandar de novo.

 

Sai a qualidade, entra a quantidade

Sou um fã histórico de “Star Wars”, daqueles que faz citações dos filmes no cotidiano. Ou fazia: sob o comando da Disney, a saga da família Skywalker pariu filmes enlatados de consumo fácil e qualidade sofrível.

Quando o primeiro deles saiu em 2015, “Episódio VII: O Despertar da Força”, trouxe ideias interessantes: uma protagonista jedi, um stormtrooper negro que mostrava o rosto (literalmente) e com crise de identidade, o resgate dos velhos heróis e cenários mais realistas. Infelizmente pouco disso foi bem desenvolvido, sofrendo ainda com um vilão fraco e um roteiro com buracos. Era o prenúncio para o catastrófico “Episódio VIII: Os Últimos Jedi” (2017) e o fraco “Episódio IX: A Ascensão Skywalker” (2019).

Como resultado, aconteceu o inimaginável: perdi o interesse que tinha em “Star Wars”.

Algo semelhante aconteceu com a Marvel. Depois de anos com uma enxurrada de sucessos, começando pelo “Homem de Ferro” (2008) e culminando em “Vingadores: Ultimato” (2019), o selo tem lançado títulos que não empolgam a base de fãs como antes.

Várias coisas levaram a essa relativa queda da Pixar, da Lucasfilm, da Marvel e da própria Disney. Em primeiro lugar, há um êxodo de cérebros da empresa, que a deixam reclamando de más condições de trabalho. Os prazos ficaram tão exíguos, que os artistas estão tendo que piorar a qualidade dos efeitos especiais, pois não há tempo para os computadores gerá-los como gostariam.

Mas há claramente a política da quantidade a qualquer custo. E aí entra um outro fator determinante: o serviço de streaming Disney+, lançado em 2019. Sua principal força é também seu calcanhar de Aquiles: ele possui todo o conteúdo da Disney, da Pixar, da Marvel, de Star Wars e da National Geographic. E só!

Ele chegou tarde a um mercado amplamente dominado por rivais estabelecidos, liderados pela Netflix. Com força bruta, cavou o seu espaço entre eles. Mas, para isso, precisou iniciar uma corrida frenética de produção de filmes e principalmente séries dessas marcas, muitas delas descartáveis.

Outra decisão polêmica tem afastado o público que não assina a Disney+: a decisão de lançar longas-metragens apenas no streaming, ignorando as salas de cinema. Foi o caso de três títulos da Pixar seguidos: “Soul: Uma Aventura com Alma” (2020), “Luca” (2021) e “Red: Crescer É uma Fera” (2022).

De todas as marcas da casa, a Pixar é justamente a que vem se esforçando mais para manter o nível. Tanto que, apesar da bilheteria decepcionante, “Elementos” conseguiu do público uma nota A nas pesquisas do CinemaScore e ficou com 91% no índice Rotten Tomatoes, na manhã de domingo de estreia. É bom, mas está abaixo do índice na estreia de grandes sucessos da Pixar. E precisamos verificar se se manterá quando o público “menos fã” começar a votar.

O mercado cultural e até Wall Street estão preocupados com essas decisões da Disney. O primeiro lamenta a queda na qualidade média das produções a um nível abaixo da crítica. Já a turma dos investimentos quer saber como isso impactará os negócios desse colosso do entretenimento.

Walt Disney criou seu império apostando na qualidade e fazendo o que os outros não conseguiam para encantar o público. Deve estar se revirando no túmulo ao ver que as ainda existentes boas ideias vêm sendo diluídas em um oceano de filmes e séries de fórmulas fáceis e decisões de negócios que afastam o público de suas produções.

Para uma empresa que nasceu com histórias baseadas em contos de fadas, seus gestores deveriam prestar atenção na fábula de Esopo sobre a “galinha dos ovos de ouro”. Ela conta a história de um casal de camponeses que tinha uma galinha que diariamente botava um ovo de ouro! Movidos pela ganância e achando que no interior do animal haveria grande quantidade do metal, eles a matam. Só para descobrir que, nas entranhas, era como qualquer outra galinha, ficando sem sua dose diária de ouro.

Do jeito que está, sinto que os executivos da Disney já estão amolando a faca…

 

Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura e jornalista, que chamou o jornalismo “o melhor ofício do mundo” - Foto: reprodução

Por que a imprensa e a sua liberdade deveriam interessar a você

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Na quarta (7), comemora-se o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. O tema está “na boca do povo”, junto com a afamada liberdade de expressão. Ainda assim, pouca gente sabe o que é de fato ou para que serve, especialmente porque, de uns anos para cá, parte da população perdeu sua fé no jornalismo. Isso traz um enorme risco à sociedade! Por isso, aproveito a data para tentar explicar por que um bom relacionamento entre a imprensa e seu público é essencial para todos.

Em primeiro lugar, é preciso definir para quem o jornalista trabalha. Não é para nenhum governo, nem empresas, nem mesmo anunciantes: é para seu público! Ficar sem anunciantes pode quebrar um veículo, especialmente quem ainda adota um modelo de negócios “mais tradicional”. Entretanto, ficar sem público é a sentença de morte para qualquer veículo. Ele é a sua razão de existência!

Como pretendo demonstrar, uma imprensa livre, vigorosa e comprometida é condição para uma sociedade vibrante e próspera. Aí mora nosso problema! Parte dessa desconexão atual se deve a alguns profissionais e veículos de comunicação esquecerem para quem trabalham.

Isso me leva a outro tema que se popularizou recentemente em meio a muita desinformação: a busca pela objetividade. Diante da confusão que muitos colegas fazem em torno dela, seus detratores aproveitam para exigir algo que, se fosse possível alcançar daquela forma, seria um grande desserviço à população.


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De uns anos para cá, muitos colegas abraçaram a ideia de que, pela sua própria humanidade, é impossível ser totalmente isento e objetivo. Isso é verdade: todas a pessoas são movidas por paixões e, portanto, sempre teremos nossas preferências em qualquer tema. Mas, no jornalismo, isso não pode servir para afrouxar a busca da verdade incluindo pontos de vista conflitantes com os seus. Ao fazer isso, muitos jornalistas caem em uma militância, seja real ou apenas aparente.

Isso dá munição àqueles que se beneficiam com o enfraquecimento da imprensa, pois vivem da mentira e da desinformação. Eles propagam a ideia de que o jornalismo deveria se limitar a “contar os fatos”, deixando que as pessoas tirassem suas conclusões. Na verdade, só querem a liberdade para distorcer esses fatos brutos para criarem narrativas que lhes sejam favoráveis.

É nessa hora que o bom jornalismo brilha e protege a sociedade! Ele não pode se limitar a “contar os fatos”: ele precisa explicá-los, contextualizá-los, sempre norteado pelo interesse do público e pela “verdade possível”. A combalida objetividade é sua ferramenta! Não aquela utópica, que só existiria em uma máquina, mas a melhor imparcialidade dentro das limitações humanas e de esforços sinceros.

Isso cria uma armadilha. Na ânsia de apresentar todos os lados de um tema com igual peso, jornalistas podem ironicamente criar visões distorcidas da realidade, colocando, lado a lado, completos absurdos e fatos comprovados. A imprensa pode mencionar as bobagens se também explicar, de maneira equilibrada, porque aquilo não deve ser considerado. Não podem cair na arapuca da falsa equivalência!

Quando falha nessa tarefa, permite o florescimento de teorias da conspiração, que podem ser catastróficas para a humanidade. Um exemplo é a de que vacinas seriam ineficazes e até perigosas, que recebeu um espaço muito maior que o devido na imprensa em nome de “ouvir o outro lado”. Por isso, muita gente acredita nessa aberração, e alguns grupos políticos até se beneficiaram disso.

A pandemia de Covid-19 foi uma dolorosa lição. Um enorme contingente desinformado deixou de se vacinar e, por conta disso, morreu. A situação só não foi mais dramática porque, diante da tragédia em curso, a maioria dos jornalistas e veículos assumiu seu papel e informou corretamente a população para que se vacinasse.

 

Fazendo as perguntas certas

Podemos, nesse ponto, aprender algo com o afamado ChatGPT. Afinal, obtemos boas respostas dele se fizermos boas perguntas, e vice-versa.

Bons jornalistas são justamente treinados para fazer as perguntas certas. Por isso, o valor da reportagem precisa ser resgatado. Uma boa entrevista é uma ótima conversa; uma ótima entrevista é uma sedução em busca da verdade. Deve existir uma ânsia genuína de querer aprender algo, com a mente aberta.

Jornalistas são contadores de histórias da vida real. Isso não quer dizer que têm que agradar alguém, pois o mundo nem sempre é bonito. Mas uma verdade feia é melhor que uma mentira agradável! Costumo dizer que, se fossem contos de fadas, jornalistas os contariam como os Irmãos Grimm, e não como as adaptações fáceis da Disney.

Vivemos em um mundo de obviedades e mesmice. Elas nos embrutecem, eliminam nossas individualidades e nos transformam em massa de manobra. O jornalismo protege a sociedade ao romper esse ciclo, contando as “histórias por trás das histórias”. Como escreveu em 1851 o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), “importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê.”

Ao contrário do que muitos imaginam, não é um trabalho fácil de um bando “apenas contando o que viu e dando sua opinião”. Em 1996, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Nobel de Literatura e também jornalista, disse, sobre o jornalismo, que chamou de “o melhor ofício do mundo”, que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver apenas para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cujo trabalho se encerra a cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede um momento de paz até recomeçar com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Por isso, a liberdade de imprensa é um mecanismo celebrado em todas as democracias. Os jornalistas não são perfeitos (como ninguém é), mas são a última frente de resistência da sociedade contra os diferentes abusos de poder e, por isso, precisam ser protegidos.

Na verdade, precisamos ir além. Mais que “contar fatos”, esse trabalho deve ser encharcado de inteligência e de boa vontade, vibrando com as pessoas que formam o público. Elas, por sua vez, devem apoiar esses profissionais, em uma bem-vinda simbiose.

Fora disso, não há jornalismo: resta apenas a barbárie das redes sociais. E aí salve-se quem puder!

 

Elon Musk, CEO do Twitter, que relaxou o controle de conteúdo quando comprou a rede social - Foto: Daniel Oberhaus / Creative Commons

A marcha da insensatez nas redes sociais e a falência da sociedade

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Na última semana, um dos debates mais intensos no país foi a apuração da culpa das redes sociais no crescimento de ataques em escolas. Se já não bastasse a incredulidade diante de alunos e professores brutalmente assassinados, o posicionamento do Twitter em uma reunião de representantes das principais plataformas com o ministro da Justiça na terça provocou revolta. Entretanto, apesar daquela pavorosa declaração, precisamos olhar o problema sem simplificações.

Especialistas de educação e de saúde mental afirmam que a explosão de conteúdo nas redes sociais que menciona e até glorifica esses crimes serve como catalisador para novos atentados. Neste mesmo espaço, destrinchei o tema na semana passada. Mas como expliquei, apesar da contribuição dessas publicações para esses crimes, eles não podem ser atribuídos apenas a isso.

Ao longo da semana, conversei com profissionais de diferentes áreas sobre o caso. É um consenso que as redes sociais fazem muito menos do que poderiam e deveriam para o combate a esses crimes, como quando o Twitter disse naquela reunião que fotos de assassinos e de vítimas em posts não violariam as regras da rede ou sequer seriam apologia a crimes.

Muitos afirmam que retirar esse ou qualquer outro conteúdo seria censura. Alguns vão além e sugerem que esse movimento encobriria o interesse de um governo que, na verdade, estaria usando essa comoção para controlar a mídia.

São argumentos fortes, e eu até concordaria com isso, se as redes sociais fossem meios de comunicação tradicionais. Mas elas não são: sua gigantesca capacidade de nos convencer de qualquer coisa concentra o núcleo dessa discussão.


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Houve uma época em que eu era muito mais liberal sobre o que poderia ser publicado nas redes sociais. Eu as via como ferramentas que garantiam uma liberdade inédita ao cidadão para expor ideias em pé de igualdade com veículo de comunicação. Em 2015, cheguei a discordar publicamente do escritor e filósofo italiano Umberto Eco, quando ele disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, e que “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Quando alguém argumentava que essas plataformas deveriam ter alguma responsabilidade sobre o que seus usuários publicavam nelas, eu comparava isso com culpar o fabricante de um carro se ele fosse usado em um assalto a banco. Porém, à medida que fui estudando mais os algoritmos das redes sociais, fui percebendo que essa analogia era muito errada. Se os carros fossem como redes sociais, eles eventualmente convenceriam seus donos a roubar o banco!

A minha “fase mais liberal” com as redes sociais vinha do fato de usar essas plataformas desde suas primeiras aparições, como o Friendster e o Orkut, há cerca de duas décadas. Elas eram quase pueris, feitas para encontrar velhos amigos e conhecer gente nova. Todo mundo “brincava” ali, sem ofensas, sem medo, sem ódio.

E tudo isso porque tampouco existiam algoritmos de relevância, popularizados pelo Facebook em 2014. São eles que escolhem o que seus bilhões de usuários veem nas redes. Mais que isso, para que as pessoas se sintam “confortáveis”, exibem apenas conteúdos de que elas gostem, prendendo cada um de nós nas infames “bolhas”.

Ao fazer isso, as redes sociais se transformaram nas ferramentas perfeitas de convencimento de qualquer coisa, até mesmo para se cometer um crime bárbaro.

É nessa hora que “o carro pode induzir seu dono a roubar o banco”.

 

A responsabilidade de cada um

As redes sociais estão na berlinda. Diante de sua apatia, o governo quer que as empresas criem canais para rápida remoção de conteúdo ligado a esses crimes, e ameaça com multas e até bloqueios a quem não colaborar.

“O governo tem na lei os limites aos quais suas ações podem chegar, e não pode haver liberdade para multar ou banir sem a devida previsão legal”, explica Márcio Chaves, sócio da área de Direito Digital do Almeida Advogados. No caso brasileiro, há o Marco Civil da Internet, que prevê que uma plataforma digital seja responsabilizada por um conteúdo apenas se não o remover após uma ordem judicial. “Esse limite foi imposto justamente para evitar a censura prévia e não jogar para o provedor essa obrigação”, acrescenta.

Mas Chaves acredita que a legislação dificilmente dará conta de todas as situações em que a segurança da sociedade seja ameaçada por uma suposta “liberdade de expressão”. Segundo ele, “por isso é tão importante estimular um ambiente não de imposição, mas de cooperação entre as empresas e a administração pública, no qual ferramentas tecnológicas, conselhos de supervisão, e autoridades judiciais possam endereçar situações sensíveis como a que estamos passando agora com os ataques nas escolas, em uma velocidade mais compatível com a que estamos sujeitos com o uso das tecnologias digitais”.

O debate sobre mais responsabilidade para as redes sociais acontece há alguns anos no Brasil. Ele está, por exemplo, no Projeto de Lei conhecido como “PL das Fake News” e em sugestões de atualização do Marco Civil da Internet. No geral, pede-se que essas plataformas sejam mais atuantes e efetivas na identificação de discurso de ódio, desinformação e outros crimes em suas páginas, removendo esse conteúdo sem necessidade de uma ordem judicial, mesmo não sendo obrigadas a isso.

O grande risco é se criar uma espécie de “censura algorítmica”, com essas plataformas eliminando equivocadamente conteúdos legítimos. É verdade que a tecnologia para essas identificações vem progredindo a passos largos, inclusive com o apoio da inteligência artificial, mas ela ainda não é garantida.

Precisamos encontrar mecanismos eficientes para coibir a escalada de crimes incentivados nas redes sociais, sem criar outros problemas. O que não pode acontecer é uma empresa não remover um conteúdo de ódio “porque não violaria seus Termos de Uso”, como disse o Twitter. Chaves lembra que eles “são contratos entre a plataforma e o usuário, e só há liberdade contratual se não for contrária à lei”.

Sobra o temor de o governo usar isso para controlar a mídia. Todos governantes desejam isso, em alguma escala. Antes se restringia à imprensa, mas ela, ainda que independente, obedece a leis. Além disso, o jornalismo profissional segue um Código de Ética, que faz com que sua produção, ainda que às vezes falha, tenha um mínimo de qualidade. Já as redes sociais parecem ser guiadas apenas pelos seus interesses.

Por fim, isso não pode virar uma discussão político-partidária, como muitos já têm feito. Tampouco há espaço para deixar tudo como está, pois o discurso de ódio nas redes agrava o problema de fato. Essas empresas devem abandonar sua complacência, para evitar medidas mais drásticas. E a sociedade precisa ficar vigilante para que nenhum governo use o pânico para controlar qualquer mídia.

 

Anúncio da Bauducco na Times Square, em Nova York: empresa precisou explicar o que é panetone aos americanos – Foto: divulgação

Internacionalizar marca traz benefícios, mas exige cuidados

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Todo mundo sabe o que é um panetone, certo? Talvez isso seja verdade no Brasil, mas não é nos Estados Unidos, onde esse tradicional bolo não faz parte do cardápio de Natal. Por isso, quando a Bauducco decidiu atuar no mercado norte-americano, ela não podia simplesmente fazer propaganda de seu produto: ela precisava explicá-lo à população.

Esse é um desafio típico de um processo de internacionalização de uma marca. Em um mundo globalizado, muitas empresas tentam repetir em outros mercados o sucesso que detêm no seu país de origem. Mas fórmulas consagradas ali podem simplesmente não funcionar em outros locais.

“Em 2014, ninguém sabia o que era panetone nos Estados Unidos, então tivemos que desenvolver a categoria, torná-lo conhecido e cair no gosto do americano”, explica Valter Klug, CEO da agência Samba Rock, especialista em expansão internacional de marcas. “Era um desafio muito maior do que simplesmente comunicar uma marca em um outro mercado.”

Atuar em outros países pode trazer muitos benefícios. O mais óbvio é a abertura de novos mercados para a marca, especialmente quando o país de origem estiver com a categoria saturada. Além disso, a diminuição da dependência de um único mercado protege o negócio de sazonalidades e instabilidades econômicas locais. Um negócio internacional também ganha reputação e experiência, tonando-se mais moderno, competitivo e sustentável

Além disso, desbravar uma categoria em um novo mercado pode ser muito atraente, pois, caso a operação seja bem-sucedida, a marca pode ficar sozinha nela por um bom tempo, consolidando sua imagem e vendendo sem concorrência. Isso dura até que outras empresas consigam se organizar. Foi o caso da Bauducco com seus panetones nos EUA: hoje é a principal marca associado ao produto no país, mas agora enfrenta concorrência.

A internacionalização não é para qualquer um. É preciso ter em mente que mesmo uma marca estabelecida e bem-sucedida em seu país de origem precisa de planejamento para entrar em um novo mercado. É um investimento de longo prazo, não servindo para “aventureiros”.

“A grande maioria das marcas que vai para os Estados Unidos acaba quebrando no primeiro ano, porque não planejaram direito ou porque não havia mercado para elas”, explica Klug. “Às vezes você tem até que adaptar o seu produto”, acrescenta o executivo.

O planejamento também envolve alinhar expectativas. Gestores de grandes empresas precisam entender que, ao chegar a um novo mercado, eles serão praticamente startups. A maturação do negócio e o retorno do investimento inicial pode levar meses ou até alguns anos.

“O pessoal vem para cá e acha que, em um mês, vai sair vendendo tudo, vai colocar na Amazon e todo mundo vai comprar”, exemplifica Klug. Como isso não acontece, muitos acabam cancelando a operação no novo país, perdendo dinheiro. “Não é algo do dia para a noite!”

Contar com a visão de alguém que conheça bem o novo mercado ajuda muito no processo de internacionalização. Trabalhando junto com a equipe da empresa, que conhece seu produto, esses profissionais podem fazer ajustes nas ofertas, criando uma estratégia global de comunicação que seja consistente. Saber das particularidades de cada local pode fazer o negócio ser um sucesso ou um fracasso.

Quando se pensa em expandir o negócio para além das fronteiras, o mercado americano costuma ser a escolha preferida, seja pelo seu tamanho, grandes oportunidades, menos impostos e menos burocracia. Muitos empresários também conhecem o país. Mas uma experiência pessoal, por exemplo como turista, mesmo que recorrente, é muito pouco para dar certo empresarialmente.

Isso reforça a importância do apoio de profissionais com experiência nas peculiaridades locais. É preciso atéestar preparado até para o sucesso, no caso de receber um grande pedido (lembrando que os EUA são um país de consumo muito maior que o Brasil). Se a empresa não for capaz de atender a um primeiro grande pedido, “queima a largada” e talvez nunca mais venda para aquele varejista.

Outro exemplo emblemático de diferenças culturais é o uso do WhatsApp para se relacionar com os clientes. Plataforma digital onipresente nos smartphones dos brasileiros e canal de relacionamento preferido de muitas empresas e consumidores no país, o comunicador é pouco usado nos EUA. Lá os clientes preferem o Facebook Messenger e até o velho SMS. O empresário que não se atentar a essa diferença pode ter sérios problemas de relacionamento com seu novo público.

“Não basta ter um bom produto, é preciso conhecer o mercado, estudá-lo e criar um plano de negócios para sustentar a viabilidade do projeto”, conclui Klug. “Não é só fazer a tradução do que dá certo no Brasil.”

 

A pílula vermelha do filme “Matrix”, usada por grupos que abraçam realidades distorcidas pela Internet – Foto: divulgação

A Internet tem “memória de elefante”, mas alguns apagam seus crimes na realidade alternativa da rede

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Um estudo da empresa de cibersegurança NordVPN indicou que cerca de 20% dos brasileiros gostariam de ter todos os seus dados apagados da Internet. Infelizmente isso é impossível, pois a informação que cai na rede acaba sendo replicada em muitos locais, além de continuarmos deixando nossas “pegadas digitais” o tempo todo. Entretanto, como em outras coisas da vida, a regra parece só valer para o “cidadão comum”: para quem tem muito dinheiro, é possível até remover referências online a seus crimes.

O grupo internacional de jornalistas investigativos Forbidden Stories vem divulgando práticas que alguns bandidos ou simplesmente pessoas endinheiradas usam para alterar seu passado na Internet. Não é trivial ou barato e, na maioria dos casos, é ilegal e antiético. Empresas manipulam os algoritmos de buscadores e de redes sociais para os resultados não exibirem os fatos, mas sim o interesse de seus clientes.

Na prática, vivemos em uma realidade alternativa, em que todos os pecados parecem perdoados. Nossa presença online tornou-se uma ferramenta que nos arrasta para longe da verdade e manipula nossas emoções e comportamentos para proteger criminosos, enquanto nos faz de massa de manobra do poder. O grande risco é que essas versões fabricadas ultrapassem os limites do digital e se imponham sobre nossa vida.


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Essas práticas são primas-irmãs dos mecanismos de desinformação e fake news, que também distorcem a realidade para convencer uma legião de pessoas sobre um assunto do interesse de quem as publica.

Segundo o material da Forbidden Stories, uma das estratégias usadas por essas empresas de “lavagem de reputação” é a velha intimidação. Enviam e-mails a jornalistas, como se fossem autoridades, ameaçando-os de sanções graves caso não apaguem informações contra seus clientes. Outra, mais moderna, consiste em denunciar, com recursos das redes, publicações que exponham negativamente seus clientes, como se violassem direitos autorais. A expectativa é que os algoritmos das plataformas digitais apaguem suas referências a esses materiais.

Outra tática, ainda mais ousada, é criar muitas páginas elogiosas (e falsas) sobre seus clientes em sites pseudojornalísticos. Usando técnicas para aumentar a audiência desse conteúdo, os buscadores acabam empurrando as notícias verdadeiras para sua terceira página de repostas (ou mais), aonde raramente os usuários chegam.

Essa consciente alteração dos fatos no meio digital não serve apenas para apagar rastros de crimes na Internet. Seu poder de convencimento também se manifesta no surgimento de grupos sociais que defendem ferozmente ideias distorcidas como se fossem incontestáveis, colhendo algum benefício a partir disso.

Por exemplo, na semana passada, um dos assuntos mais destacados nas redes foi a série de ataques contra mulheres por homens que acreditam na submissão delas como caminho para que resgatem sua masculinidade. Esses grupos vêm crescendo nos últimos anos, graças a uma combinação de narrativas nos meios digitais.

Essas e outras organizações que distorcem a realidade de diferentes maneiras acreditam que foram “libertados” de um suposto controle da ciência, da mídia e de educadores. Afirmam ter escolhido a “pílula vermelha” (uma referência ao filme Matrix, de 1999), que os permitiria “ver o mundo como realmente é”.

 

A origem de uma ideia

Outro filme que nos ajuda a entender esse mecanismo de convencimento é “A Origem” (2010). Nele, uma equipe entra em sonhos de outras pessoas para “plantar ideias” em suas mentes. Na descrição desse inusitado serviço, uma vez que a ideia ganha força no cérebro da vítima, é quase impossível erradicá-la.

De certa forma, o filósofo e psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) já defendia isso. Para ele, não há nada mais persistente que uma teoria que criamos por conta própria. O poder de convencimento nas redes sociais usurpa esses conceitos ao oferecer recursos para que as pessoas pensem estar construindo suas próprias teorias. Na verdade, estão sendo conduzidas a encontrar elementos que consigam encaixar de maneira crescente, até que cheguem, no seu ritmo, ao momento da “revelação”.

Essas “peças” não precisam ser verdadeiras. Basta que se encaixem em uma ideia que faça sentido, dando ao indivíduo o prazer de sentir que está “vendo o que sempre lhe negaram”. E normalmente essas liberdades ampliam desejos pré-existentes nessas pessoas, como o medo de vacinas ou a submissão de mulheres.

Em outras palavras, a ideia mais forte não é imposta, mas sim construída aos poucos.

Esse poder pode ser visto em nossa sociedade há muitos anos, quando aqueles que escolheram as “pílulas vermelhas” dos mais diferentes sabores na Internet manifestam seu “aprendizado” na realidade. Graças a elas, por exemplo, muitos deixaram de se vacinar contra a Covid-19 e, por isso, morreram.

O clímax da realidade distorcida se manifestou no dia 8 de janeiro, quando uma horda depredou as sedes dos três Poderes da República, achando que estavam defendendo a democracia. E uma parcela significativa da população continua pensando assim, a despeito do absurdo daqueles acontecimentos. Tudo porque essa é a “sua conclusão”.

As diferentes plataformas digitais não podem se furtar de seu papel nisso tudo. Ainda que involuntariamente, elas se tornaram as distribuidoras das “pílulas vermelhas” e se prestam à “lavagem de reputações”. Como esses grupos vêm agindo mais ou menos impunemente há anos, ficaram suas raízes no mundo real a partir do digital. Essas empresas são, portanto, corresponsáveis por isso, e precisam se esforçar muito mais para combater a “realidade alternativa” em suas propriedades.

De toda forma, por mais que façam isso, elas não conseguirão dar conta do problema sozinhas. A mídia e os educadores precisam produzir conteúdos que restabeleçam a verdade e reconstruam os valores de boa convivência.

Entretanto isso não pode continuar sendo feito do jeito de sempre: apontando o que é o certo e o que é errado. Precisam se apropriar das ferramentas dos grupos de desinformação, não para atuar de forma antiética ou criminosa, mas para ajudar as pessoas a aprenderem aos poucos o que é o certo, chegando a suas conclusões.

Isso não é trivial, mas, se não se apropriarem desse recurso, dificilmente terão sucesso nessa empreitada que pode consumir uma geração para desfazer tanto mal.

Até lá, precisamos redescobrir os caminhos para uma convivência pacífica e construtiva, mesmo com aqueles que tenham ideias e valores diferentes do nossos. A despeito de alguns tropeços pela caminho, foi assim que a humanidade chegou até aqui.

 

Na batalha da desinformação, a verdade foi a primeira vítima e agora todos sofremos

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Na primeira semana do novo governo, uma das ações mais polêmicas foi a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, vinculada à AGU (Advocacia-Geral da União). Polêmica que ficou nanica diante do violento ataque à democracia cometido neste domingo, em Brasília. Mas justamente por esses atos antes impensáveis, essa análise ganha ainda mais importância, pois o problema não está distante, e sim algo que toca todos nós, em nossas telas de smartphones e computadores.

A polêmica em torno da criação da nova Procuradoria, que tem como um dos objetivos o combate à desinformação, gira, entre outras coisas, pela definição apresentada para o próprio termo, o que, argumentam alguns, poderia transformá-lo em um instrumento de censura.

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Isso acontece porque, qualquer que seja o lado do conflito, seus cidadãos nunca têm acesso ao ponto de vista e a informações do inimigo. Assim, seus governantes podem manipular os fatos e usá-los como uma “verdade” para seu benefício próprio. É o que se observa hoje claramente na guerra da Ucrânia.

Mas em tempos de redes sociais onipresentes e onipotentes, todos nós sofremos os efeitos de outro tipo de guerra inescapável, que culminou na destruição generalizada na praça dos Três Poderes neste domingo: a da dita desinformação, que tem nas fake news sua maior arma.

Na desinformação, apesar de estarmos todos “do mesmo lado”, cada pessoa recebe informações filtradas pelos algoritmos que a ajudam a reforçar pontos de vista existentes, incluindo preconceitos e mentiras. E, também nesse caso, os grupos de poder manipulam os fatos, para criar “suas verdades”.

Por tudo isso, ninguém questiona a necessidade de se combater a desinformação, que rachou a sociedade brasileira e a levou à beira desse precipício político nunca visto desde a redemocratização.


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O ponto central da polêmica no combate à desinformação foi como ela foi definida pelo novo órgão: “mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”.

Em tese, essa definição é válida. O problema é que não deveria dar espaço a interpretações livres dos envolvidos, mas acaba abrindo brechas para isso com adjetivos, advérbios ou pontos que dependem de comprovação.

A preocupação é legítima pelo histórico de governos de diferentes ideologias de usarem a musculatura estatal e brechas da legislação para legitimar atos questionáveis de aliados e questionar ações legítimas de opositores ou de quem simplesmente os critique. A imprensa é vítima costumaz desse mecanismo, com censuras judiciais e, em anos mais recentes, com a perseguição violenta e até a desumanização de jornalistas por iniciativa de governantes. E, graças ao enorme poder de convencimento das redes sociais, uma parcela significativa da população comprou essa ideia e a pratica.

A AGU declarou, em nota, que “desinformação e mentira são diferentes do sagrado benefício da liberdade de expressão” e que “não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa”.

“A gente precisa compreender que, quando se fala em desinformação, precisamos partir de um conceito mais amplo para ‘dar um norte’ sobre o que a gente está conversando”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Mas também é importante entender que esse conceito mais amplo não pode ser o que vai definir o resultado de uma ação contra a desinformação.”

Ele lembra que a AGU não é uma instituição de governo, é sim de Estado. Dessa forma, não faz parte de suas atribuições defender governantes, apesar de ser responsável pela orientação jurídica do Poder Executivo.

Assim a instituição não poderia censurar ou punir ninguém, um papel do Judiciário. O risco recai no histórico de governos de extrapolar esses limites e, de certa forma, usurpar suas atribuições em anos anteriores.

 

A maltratada liberdade de expressão

Nada disso seria necessário se a sociedade não tivesse descambado nesse vale-tudo em que se incite ou efetivamente se pratique diversos crimes e que, depois, isso seja “desculpado” com uma “aparentemente magia” chamada liberdade de expressão.

“O que aconteceu nesses últimos anos é que discursos golpistas, autoritários, desinformativos foram propagados sob uma chancela de que se estava praticando liberdade de expressão”, explica Crespo. “Como isso foi feito durante muitos anos, em sequência, por muitas pessoas de diferentes instituições, ficou parecendo que liberdade de expressão é isso”.

Mas ela não determina tudo o que pode ser dito. Pelo contrário, em tese, pode-se falar qualquer coisa, desde que isso não configure um crime, contravenção, invada a liberdade de outra pessoa ou a coloque em algum tipo de risco, por exemplo.

Nesse sentido, a iniciativa da AGU pode ser muito positiva, desde que seja bem executada e respeitada pelo próprio governo, pois, em empresas e na sociedade, as pessoas seguem o exemplo de seus líderes. “Quando os nossos dirigentes políticos adotam comportamento violadores da ética, dos bons costumes, das boas práticas, das boas maneiras, da inclusão, da diversidade, do respeito, é muito mais fácil insuflar a população a ir contra isso tudo também”, sugere Crespo.

Em outras palavras, a guerra conta a desinformação tem diversas frentes. Oferecer uma boa definição, que não crie mais dúvidas que certezas, é uma delas. Precisamos também que os órgãos dos três Poderes da República executem adequadamente suas funções, deixando ao Judiciário o papel de proibir ou punir.

Sobre isso tudo, precisamos de bons exemplos de expoentes diversos de nossa sociedade, figurando, em primeiríssimo lugar, nossos governantes. A situação dramática em que estamos vivendo, com nosso tecido social feito trapo e a democracia sob ataque, resulta de um consistente processo destrutivo dos últimos anos.

Resta saber se o novo governo resistirá ao apelo fácil de fazer o mesmo com a desinformação, apenas com outra ideologia. Torço para que resista a isso e tenha sucesso na reconstrução de nossa sociedade, sem fazer mais vítimas nessa guerra contra a desinformação.

 

Esse foi o ano do “ciberpopulismo”

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Nos meses de novembro, os principais dicionários do mundo elegem suas “palavras do ano”, verbetes que, mesmo não sendo necessariamente novos, refletem fatos de grande impacto no período. Com a globalização, muitas dessas palavras valem para o mundo todo, mas as escolhas desse ano se demonstraram muito regionalizadas. Por isso, decidi, de maneira pessoal, escolher uma palavra que representasse bem algo que moveu decisivamente o Brasil em 2022: “ciberpopulismo”.

Esse neologismo une a palavra em inglês “cyber” (em referência ao que se dá no mundo digital) a “populismo”. Ele procura definir como as redes sociais passaram a atuar decisivamente na política nos últimos anos. No populismo, cria-se a figura de um líder capaz de “salvar” o povo dos interesses de uma “elite” ou das ações de um “inimigo comum a todos”. Por depender de um conjunto de narrativas bem arquitetadas, o meio digital surgiu como a ferramenta perfeita de convencimento das massas, amplificando as ideias do populista.

O “ciberpopulismo” vem sendo amplamente usado no Brasil há pelo menos seis anos, mas atingiu a sua maturidade em 2020, com a pandemia de Covid-19. As suas fórmulas usadas durante a crise sanitária pavimentaram o caminho para as eleições de 2022, criando um cenário de polarização política inédito em nossa história, que rachou o país e que continua incendiando corações, mesmo dois meses após o fim do pleito. Daí essa minha escolha.


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O populismo não é um conceito novo. O termo surgiu no século XIX, na Rússia czarista, e propunha dar mais poder político a camponeses com uma grande reforma agrária. De lá para cá, tem sido usado por diferentes grupos, ganhando definições bem variadas, de acordo com o pensamento do autor. Por isso, não há um consenso definitivo sobre ele, e há até uma discussão se o populismo seria, afinal, bom ou ruim: um meio para melhorar a vida do povo ou uma ferramenta para sua manipulação pelos poderosos.

Nas últimas décadas, consolidou-se no Ocidente uma definição do populismo como um conjunto de práticas políticas para obtenção e manutenção do poder, sendo igualmente usado por governantes conservadores ou progressistas em todo mundo, indo do nazismo de Hitler ao chavismo venezuelano. Via de regra, todos eles têm alguns pontos em comum: um povo que se sente oprimido por algum tipo de elite ou agente externo, um inimigo em comum (verdadeiro ou na maioria das vezes imaginário) e um líder apresentado como o único capaz de conduzir a sociedade a sua “salvação”.

Como o populismo depende necessariamente da criação de uma narrativa que legitime a figura e as ideias do seu “líder ungido”, os meios de comunicação acabam sendo peça-chave no processo. Para a cristalização de um pensamento único, os veículos simpáticos à “causa” devem ser promovidos, enquanto os demais devem ser silenciados. E, nos últimos anos, as redes sociais ocuparam esse espaço. Elas diminuíram o poder de mediação da imprensa (que filtra extremismos) e deram voz a todos, especialmente ao “cidadão comum” que antes não se sentia representado pela mídia.

Grupos de poder com valores semelhantes a esses indivíduos perceberam isso e aprenderam a usar, antes dos outros, os recursos digitais, apostando nos extremos e dando origem a esse movimento. Essa dinâmica é bem explicada no livro “Ciberpopulismo” (editora Contexto), lançado no ano passado pelo filósofo e comunicador Andrés Bruzzone. Para ele, nesse cenário, “quem tenta pensar fora dos polos dificilmente será ouvido e certamente não terá espaço nos grandes debates.”

“A combinação eficiente de técnicas de propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia no século XXI já mostrou sua capacidade de causar alterações estruturais nos países e na geopolítica”, escreveu. E, de fato, observa-se esse fenômeno em países muito diferentes pelo mundo.

 

Aldeia global em chamas

O “ciberpopulismo” vem legitimando barbaridades em muitos países há anos, e não foi diferente em 2022.

A mais grave delas é a guerra na Ucrânia. Com o pretexto de salvar russos que lá viviam de “perseguições nazistas”, o presidente russo, Vladimir Putin, invadiu o vizinho. O mandatário diz abertamente que pretende anexar a Ucrânia como seu território, não reconhecendo sua soberania. Os “inimigos do povo” seriam a União Europeia, a OTAN e –diante do inesperado e decisivo apoio militar dos EUA– todo o “Ocidente”. E com uma fortíssima censura local da imprensa e das redes sociais, a maioria da população acredita nisso tudo e que a Rússia estaria vencendo o conflito.

Os EUA também têm suas assombrações. Ao longo desse ano e do anterior, tiveram que lidar com as consequências do bizarro ataque ao Congresso no dia 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump, inconformados com sua derrota na tentativa de reeleição, tentaram impedir a confirmação da vitória de seu opositor, Joe Biden. Foi o maior ataque da história à democracia do país. Vale dizer que Trump é o maior expoente global do “ciberpopulismo”.

Em outro exemplo, no dia 7, o governo alemão deflagrou a maior operação de contraterrorismo em 70 anos. O alvo foi um grupo que cresceu nas redes sociais e pretendia derrubar a república e reinstalar a monarquia, que vigorou até 1918 no país. Eles pretendiam ainda matar 18 pessoas, incluindo o chanceler, Olaf Scholz.

Nossos vizinhos também sofrem com isso. A Argentina tem uma política e uma economia em frangalhos há décadas. No Peru, o presidente Pedro Castillo foi destituído do cargo e preso no mesmo dia 7, depois de tentar um autogolpe. A vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu como sexto presidente do país em seis anos.

Como se pode ver, o “ciberpopulismo” atende bem a interesses da “direita” e da “esquerda”. As aspas são propositais, pois ambas são mais parecidas que diferentes quando se trata de manipulação online. De toda forma, a segunda só agora está aprendendo a jogar a versão digital desse jogo e, para isso, está sujando as mãos também.

Receio que tenhamos que ver ainda mais crescimento do populismo anabolizado pelas redes sociais antes de experimentarmos o seu recuo, com a sociedade regressando aos trilhos de uma vida harmônica e colaborativa, em que ideias divergentes levem à evolução e não a um conflito beligerante. Precisamos voltar a ter apenas adversários para contrapor, ao invés de inimigos a eliminar.

Como Bruzzone explica em seu livro, o contrário do populismo é o pluralismo: a crença de que não há duas visões únicas do mundo. “Pluralista é quem entende que a verdade não se obtém derrotando um inimigo, mas que é o resultado de um processo construído a muitas vozes”, escreveu.

Adoraria voltar a esse espaço no fim de 2023 e dizer que a minha “palavra do ano” seria então “ciberpluralismo”. Mas sinto que teremos que descer ainda mais fundo nessa fossa política antes que as massas entendam a importância dessa diversidade. Nas últimas duas décadas, o populismo, e nos últimos anos o “ciberpopulismo” criaram raízes profundas em nossa sociedade.

Por isso mesmo, está em nossas mãos –e não nas de qualquer “líder”– o poder de diminuirmos a fervura nas redes sociais e reencontrarmos esse bom caminho.

 

O escritor e filósofo italiano Umberto Eco: “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”

O mundo de hoje é pior que o de ontem ou o digital distorce a realidade?

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Estamos nos aproximando do fim do ano, tempo de se fazer balanços do período e preparar resoluções para o que está chegando. Talvez pelo meu ofício, estou sempre “entrevistando” as pessoas, inclusive sobre o que 2022 lhes representou. E, para muitos, a virada de ano chegará encharcada de esperança, depois de anos muito difíceis.

Uns tantos chegam a dizer que foram os anos mais difíceis de suas vidas. Mas longe de julgar os motivos de cada um, será que foram mesmo? Ou os problemas vêm sendo amplificados por uma complexa combinação de sentimentos ruins e desinformações inoculadas pelas redes sociais, a intolerância decorrente disso e a perda do “norte” de cada um?

A humanidade já passou por períodos muito piores, como a Idade Média, a Inquisição, a Gripe Espanhola (que foi muito mais grave que a Covid-19) e as duas Grandes Guerras, só para citar alguns exemplos terríveis. Sobreviveu a todos eles e até prosperou, em vários aspectos impulsionada pelos males associados a essas crises.

Como diz o ditado, “depois da tempestade, vem a bonança”. Mas não dá para ficarmos esperando sentados que as nuvens se dissipem. Temos que fazer nossa parte, e isso inclui nos blindar da influência nefasta da lente de aumento do meio digital para o lado mais feio da vida.


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Claro que tivemos que enfrentar problemas sem precedentes para essa geração nos últimos anos, a começar pela pandemia de Covid-19, que afetou fortemente todo mundo. Não minimizo a gravidade disso ou do ódio que rachou nações inteiras, incluindo a brasileira. Mas precisamos colocar isso em perspectiva.

Hoje temos acesso a um volume de informações inimaginável há 20 anos. Os agentes que viabilizaram isso foram os smartphones e as redes sociais. Os primeiros atingiram uma quase onipresença, mantendo-nos permanentemente em contato com pessoas, serviços e conteúdos diversos. Já as redes sociais criaram uma eficientíssima plataforma para disseminar todo tipo de informação.

Em um primeiro momento, isso parece ótimo: podemos fazer mais e melhor quando somos bem-informados. Mas justamente aí reside o problema: a imensa maioria desse conteúdo é de baixa qualidade ou propositalmente distorcido ou mentiroso, as infames fake news, que já debatemos nesse espaço incontáveis vezes.

A imprensa profissional deveria servir como um porto-seguro contra os efeitos nocivos desse coquetel. Mas apenas recentemente está aprendendo a se posicionar nessa nova realidade informativa, depois de muita autocrítica, sofrimento e estudo. Lamentavelmente parte dela ainda não encontrou esse caminho ou deliberadamente se rendeu aos métodos questionáveis das redes sociais, em busca de audiência.

Esse é um embate desigual! A verdade muitas vezes produz notícias monótonas e até incômodas, pois ela é o que é. Já a mentira pode produzir conteúdos suculentos e alinhados com o que cada indivíduo deseja, pois não tem compromisso com os fatos.

É aí que a verdade sucumbe e os problemas se agigantam.

 

“Certezas” sobre o desconhecido

Esse acesso desmedido a informações boas e ruins, misturadas e sem identificação, nos dá “certezas” sobre tudo, como os bastidores da política, a melhor maneira de nos proteger de doenças e até a receita do bolo de fubá perfeito.

Que saudades do tempo em que éramos “apenas 200 milhões de técnicos de futebol”! Poderíamos estar agora debatendo na mesa de um bar os motivos da desclassificação do Brasil e do triunfo da Argentina na Copa do Mundo.

Tanta “certeza sobre tudo” nos torna intolerantes, alimentando inconscientemente esses monstros do cotidiano. A necessidade de se opinar em qualquer tema, mesmo sobre o que não temos ideia, pode transformar um singelo calango no Godzilla.

E aí salve-se quem puder!

Temos que identificar o tamanho real dos problemas e, para isso, precisamos de informações confiáveis. Elas definitivamente não vêm das redes sociais, e sim da escola, da ciência e da imprensa séria.

Nisso reside outro desafio dessa geração, pois os grupos de poder que se beneficiam da desinformação conseguiram plantar firmemente em parte da sociedade a ideia de que esses três agentes informativos não são confiáveis e devem até ser combatidos. Como toda atividade humana, eles não são perfeitos e têm seus interesses. Mas eles estão muito mais alinhados com as reais necessidades do público que estão as redes sociais ou aqueles que as usam para se beneficiar do caos.

Basta ver que, na semana passada, Elon Musk, que comprou recentemente o Twitter para (segundo ele), “garantir a liberdade de expressão na rede”, bloqueou na plataforma jornalistas que criticavam seus questionáveis métodos de gestão.

Impossível não recordar de Umberto Eco nessa hora. Em junho de 2015, ele disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, que antes “eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra que um Prêmio Nobel”. Para ele, “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Quando Eco disse aquilo, as redes sociais eram muito mais saudáveis, antes de se tornar o atual espaço de manipulação e ódio. O escritor e filósofo italiano parecia ter antecipado todos esses problemas que estavam por vir.

Mas podemos reverter isso tudo!

O fim de ano é um momento de reflexão e de recomeço. É uma pena, mas os problemas não desaparecerão. Ainda assim, temos a oportunidade de dar menos ouvido a “idiotas da aldeia” e olhar os problemas com atenção. Se os virmos menores que o que realmente são, não daremos a eles a importância devida. Se os pintarmos maiores que a realidade, nunca destinaremos recursos e atenção suficientes para sua solução.

Unidos e com consciência e serenidade, podemos resolvê-los de maneira melhor e mais justa para todos.

 

Cena do filme “Morango e Chocolate” (1993), em que um estudante que espionava um artista acaba se aliando a ele ao conhecê-lo melhor

Eu só quero um pouco de paz!

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As redes sociais não nos deixam em paz!

Não falo da característica essencial de seus algoritmos, que nos mantêm continuamente estimulados para que compremos todo tipo de quinquilharia. Estou me referindo ao permanente bombardeio ideológico que cria dispostas a importunar, humilhar e deliberadamente prejudicar desconhecidos, apenas porque pensam de maneira diferente.

Quem faz isso não são os sistemas: são as pessoas que os usam! Poucas delas comandam o processo; a imensa maioria serve de massa de manobra.

Todos nós potencialmente somos vítimas, em maior ou menor escala. Isso acontece desde aquele primo que vota em outro candidato e por isso fala mal de você no “grupo da família”, até manadas que atacam, com processos orquestrados de destruição de reputação, quem pensa de outro jeito.

A vítima não fez nada de errado! Em muitos casos, é agredida justamente por fazer bem o que se espera dela. Isso acontece porque, enquanto um democrata convive e aprende com as diferenças, um totalitário tenta calar e, se possível, destruir qualquer voz dissonante.

Mas, como diz o ditado, “quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Quem hoje pratica esse horror e pede a cabeça de quem está no coliseu amanhã pode virar comida de leão. Não dá para acalmarmos a alma desse jeito!


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Um exemplo tristemente emblemático aconteceu na terça passada, quando o deputado Douglas Garcia (Republicanos-SP) agrediu a jornalista Vera Magalhães, durante o debate da TV Cultura entre os candidatos ao governo de São Paulo. Já há bastante tempo, ela vem sendo atacada não por ter cometido algum erro, mas justamente por estar fazendo bem o seu trabalho de fiscalizar o governo.

Todo governante comete erros: alguns mais, outros menos. Uma as funções da imprensa é identificar, investigar e apresentar isso à população. Dessa maneira, o jornalismo protege a sociedade dos abusos dos poderosos. Quem se dedica a enaltecer governantes não pode ser chamado de jornalista.

Não deixa de ser curioso que aqueles que hoje atacam a imprensa há bem pouco tempo a aplaudiam por fazer o seu trabalho expondo os malfeitos dos governos anteriores. E não será surpresa se voltarem a aplaudir esses profissionais, caso aconteça uma alternância de poder nas próximas eleições presidenciais.

É muito triste que os agressores de Vera Magalhães não consigam conviver com seus erros sendo expostos. Ao invés de aprender algo com isso, tentam “matar o mensageiro”, como se, ao silenciar aqueles que expõem os fatos, seus pecados deixassem de existir.

Trazendo para a realidade cotidiana de quem não tem a visibilidade de uma das mais importantes jornalistas políticas do país, o processo de destruição de reputação também acontece. Nesse caso, ele se dá pelo nefasto “cancelamento” nas redes sociais, em que pessoas incentivam que grande quantidade de usuários ofenda e bloqueie quem lhes incomoda, mesmo que a vítima esteja certa.

Nesse cenário, pensar livremente se transformou em um campo minado difícil de ser transposto. Quaisquer que sejam nossas ideias, elas sempre desagradarão algumas pessoas. Mas, se antes isso não causava nenhum problema, em tempos de redes sociais, seus algoritmos usarão esse desalinhamento para atrair grande quantidade de indivíduos dispostos a nos agredir.

Como resultado, muita gente boa, que poderia contribuir positivamente com a sociedade, deixa de se expor, pelo medo de ser atacada em seu altruísmo.

Nessa hora, todos perdem!

 

O ódio de uma nação

Esse comportamento destrutivo de manada foi antecipado pelo episódio “Odiados Pela Nação” (“Hated in the Nation”), o sexto da terceira temporada da série de ficção científica britânica Black Mirror, lançado em outubro de 2016. Na história, pessoas começam a morrer misteriosamente após sofrerem ataques no Twitter de quem não gostava de suas ideias ou posicionamentos. Entretanto, no final, todos que tuitaram contra as vítimas também acabam sendo assassinadas.

A sociedade é naturalmente plural. Mesmo em ditaduras, em que líderes políticos ou religiosos tentam impor um pensamento único, as diferenças entre as pessoas continuam existindo. Quando muito, elas são sufocadas pelo medo da força bruta ou da truculência ideológica. Ainda assim, a diversidade não morre. Quando há espaço e oxigênio, ela germina.

A “manada” precisa ser impedia de ver o “outro lado”, pois, ainda que não goste de suas ideias, pode perceber que é possível conviver em harmonia com as diferenças e até construir com o outro. Isso aparece em outra ficção, o filme cubano “Morango e Chocolate” (1993). Nele, as autoridades de uma Cuba de 1979 determinam que um estudante universitário se aproxime de um artista descontente com a atitude do governo contra a comunidade LGBT e com a censura cultural. O objetivo é que o primeiro espione o segundo para a máquina de repressão estatal. Mas, no final, ao conhecer e entender o lado do artista, o estudante se torna seu amigo e o apoia.

Somos muito mais parecidos que diferentes dos que têm outras visões de mundo. Quando esquecemos ou somos estimulados a ignorar isso, engrossamos a coluna do “nós contra eles”, que vem crescentemente deformando a sociedade brasileira há uns 20 anos.

As redes sociais não podem se transformar em novos tribunais da Santa Inquisição, pois a fogueira pode ser acesa para qualquer um. Do lado de todos nós, devemos abandonar o hábito de “cancelar” aqueles que pensam de outra forma e passarmos a ver o que essas pessoas têm de bom.

Essas plataformas digitais, por sua vez, precisam melhorar suas regras e seus sistemas, para impedir que a “política de cancelamento” continue a fazer vítimas, cujo direito de defesa é simplesmente eliminado pela massa transloucada pelos algoritmos. Do jeito que funcionam hoje, todos parecem ter o direito de ser sumários juízes e algozes de qualquer caso, o que corrói os princípios básicos de convivência.

E ainda se dizem “redes sociais”!

Quanto aos “intolerantes de carteirinha”, precisam entender que as pessoas com pensamentos diferentes dos seus ajudam a desenvolver a sociedade, justamente porque enxergam o que eles não são capazes de ver, assim como veem a mesma coisa de maneira diversa.

A paz se materializa por uma divergência respeitosa e construtiva.

 

Levantamento global demonstra que países cujos governos negaram a ciência tiveram proporcionalmente mais casos e mortes por Covid-19

A verdade não pode perder o seu valor ou todos pereceremos

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Nessa semana, conversava com uma pessoa que disse que o meu “problema” é que eu vendo um “produto” que anda em baixa no mercado: no caso, a verdade. Mas quando as pessoas perdem seu apreço pela verdade, uma série de aspectos civilizatórios vão para o ralo com ela, abrindo caminho para todo tipo de mazelas.

Nesse sentido, foi emblemático um acontecimento neste sábado, durante o Brazil Forum UK, realizado em Oxford (Inglaterra). Enquanto defendia o sistema eleitoral brasileiro, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e ex-presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Luís Roberto Barroso foi interrompido e chamado de “mentiroso” por duas pessoas na plateia.

Barroso parou sua fala para explicar que “esse é um dos problemas que nós estamos enfrentando no Brasil, um déficit imenso de civilidade”. E, de fato, é uma pena ver parte da população querer “ganhar no grito” quando lhe faltam argumentos diante dos fatos. Quanto mais rumamos para esse caminho da barbárie, mais a democracia e a própria sociedade se esfacelam. E isso não se dá apenas por uma inconsequente batalha de narrativas.


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Daqui a cem anos, talvez os historiadores olhem para essa época como nós olhamos para os anos após a Primeira Guerra Mundial. Eles produziram os elementos para o surgimento do fascismo italiano e do nazismo alemão, que culminaram na Segunda Guerra e no Holocausto.

A despeito da grotesca invasão da Ucrânia pelo presidente russo, Vladimir Putin, quero crer que não estejamos caminhando para a Terceira Guerra Mundial. Mas essa época ficará marcada por algo de enorme dramaticidade social, que é a substituição da verdade por narrativas falaciosas, para atender a interesses de grupos políticos que aprenderam a usar os meios digitais para manipular as massas com enorme eficiência.

Não se trata apenas de narrativas inofensivas. Por exemplo, o estudo “Estimando Infecções Diárias e Cumulativas Globais, Regionais e Nacionais com SARS-CoV-2”, recém publicado na prestigiosa revista médica “The Lancet”, escancara como países cujos governos negaram ou postergaram as indicações científicas contra a doença, como vacinação, uso de máscaras e distanciamento social, e abraçaram teorias conspiratórias e medidas inócuas de combate ao vírus tiveram proporcionalmente muito mais infectados e mortos que aqueles que se valeram da verdade.

Isso pode parecer óbvio, mas o óbvio precisa ser dito, especialmente quando a Covid-19 continua vitimando pessoas por esses motivos.

Outro indicador de que a verdade vai muito mal em nosso país pode ser visto no também recém-publicado “Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2022”. O levantamento é feito anualmente pela instituição Americas Society/Council of the Americas e pela consultoria Control Risks, e avalia 14 critérios, como a independência das instituições judiciais, o combate a desvios de recursos e a força do jornalismo.

O Brasil infelizmente está em queda livre. Em um ano, caímos da sexta para a décima posição, de um total de 15 países, ficando atrás do líder Uruguai e de vizinhos como Peru, Argentina e Colômbia. Na primeira edição, realizada em 2019, o Brasil era o segundo no ranking, atrás apenas do Chile, que aparece em terceiro agora.

Segundo o relatório, o Brasil piorou com os ataques à independência e à eficiência das agências anticorrupção, mas destaca positivamente a resiliência do STF e do TSE ao processo de desgaste junto à população com fake news. Dos 14 critérios, a pior nota (de 0 a 10) do Brasil ficou em “processos legislativos e normativos”, com mísero 1,3, bem abaixo da média regional.

Há, entretanto, esperança para a verdade no estudo: nossa melhor nota ficou em “qualidade da imprensa e jornalismo investigativo”, onde cravamos 7,5, acima da média dos países avaliados.

 

Fato ou versão?

A desmoralização da verdade não vem de hoje. Esse processo ganhou força há cerca de uma década, como ferramenta de ascensão ao poder. Tanto que o mecanismo foi destacado em 2016 pelo renomado Dicionário Oxford. Naquela edição, seus organizadores elegeram “pós-verdade” como a “palavra do ano”. Na sua definição, ela é “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

A mentira sempre foi uma poderosa ferramenta na mão de pessoas inescrupulosas para atingir seus objetivos controlando as massas. Basta lembrar da máxima forjada por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolph Hitler, para legitimar suas atrocidades: “uma mentira dita uma vez é apenas uma mentira; já uma mentira dita mil vezes se torna verdade”.

Para conseguir o que queria, o Fürher destruiu os mecanismos de controle do governo e submeteu a imprensa. Com um discurso nacionalista, pôde escolher os “inimigos do povo alemão”, que o abraçou cegamente em sua jornada de horrores. Quem discordasse era sumariamente eliminado.

A diferença é que, de uma década para cá, populistas do mundo todo descobriram nas redes sociais a ferramenta perfeita para dizerem uma mentira não apenas mil vezes, mas um milhão de vezes! Em linha com a definição de pós-verdade do Dicionário Oxford, manipulam a emoção de milhões de pessoas, que os defendem mesmo diante de fatos inegáveis e amplamente conhecidos, mesmo diante da barbárie e da ausência de civilidade.

Nesse aspecto, retrocedemos quatro décadas. As instituições democráticas continuam sendo alvejadas e muitas já estão em ruínas. Ainda assim, por mais que tenhamos “voltado muitas casas no Jogo da Vida” com as mentiras, sempre podemos dar novos passos para a frente com a verdade. Assim o ser humano evolui.

A verdade é o que é, mesmo quando ela nos desagrada. As pessoas precisam parar de acreditar em quem distorce a realidade para que ela fique mais palatável a seus desejos e crenças. Por mais que isso possa trazer um conforto momentâneo, no final das contas, os únicos beneficiados serão aqueles que plantam as mentiras.

“Precisamos resgatar a civilidade, que é a capacidade de divergir com respeito e consideração pelo outro”, disse Barroso em Oxford, no sábado. Para o ministro do STF, “nós viramos um país de ofensas”.

Precisamos mesmo! Sem civilidade, sem verdade, não há esperança. Como diz o ditado, “o pior cego é o que não quer ver”. Pior ainda é quem se faz de cego por conveniência.