
Nas últimas semanas, dois casos inusitados chamaram a atenção nas redes sociais e no noticiário. No primeiro, pessoas tentam, em várias cidades, marcar consultas em postos e hospitais do SUS para “filhos” que são, na verdade, “bebês reborn”. No outro, um casal em Goiânia entrou com processo judicial disputando a guarda de uma dessas bonecas ultrarrealistas da moda, após o término do relacionamento.
Esses episódios, à primeira vista anedóticos, revelam uma questão muito mais profunda sobre nosso tempo: por que objetos inanimados estão preenchendo vazios emocionais em uma sociedade cada vez mais solitária e algoritmicamente manipulada?
Por trás desse fenômeno, há algo inquietante sobre como consumimos conteúdo e formamos vínculos na era digital. A Internet nos prometeu uma liberdade de expressão sem precedentes, diminuindo o poder da mídia tradicional e democratizando as vozes. Mas essa promessa foi gradualmente transformada por uma nova forma de controle, com os algoritmos das redes sociais. Sob a aparência de personalização benéfica, esses sistemas não apenas filtram o que vemos, mas moldam sutil e eficientemente o que desejamos, pensamos e sentimos.
Enquanto acreditamos estar exercendo nossa liberdade de escolha, somos conduzidos por sistemas projetados para maximizar o tempo de tela e o consumo. A diferença fundamental é que esse novo tipo de censura não nos silencia, mas nos direciona para canais comercialmente vantajosos, mantendo a ilusão de autonomia.
Em outras palavras, falamos o que quisermos sobre tudo, mas não escolhemos sobre o que falar, e muito menos quem vai ouvir. E vemos só o que as big techs determinam.
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O fenômeno dos “bebês reborn” é um caso emblemático disso. O que aparenta ser uma tendência espontânea é, na verdade, amplificado por algoritmos que identificam pessoas em situações de vulnerabilidade emocional. Eles detectam comportamentos associados à dor, e entregam a promessa de alívio emocional. Agora entramos em uma nova fase, de pessoas que não compram as bonecas para lidar com a dor, mas para exibi-las nas redes sociais, em uma antropomorfização que retroalimenta o processo.
Elas surgiram na Segunda Guerra Mundial, quando mães inglesas, diante da escassez de brinquedos, passaram a consertar e aprimorar bonecas para suas filhas, dando-lhes uma “nova vida” (daí o termo “reborn”: “renascido”, em inglês). Nos anos 1990, artistas começaram a aperfeiçoar técnicas para criar bonecas cada vez mais realistas, utilizando materiais como vinil e silicone, culminando ao nível de hiper-realismo que caracteriza os “reborn” atuais, que chegam a custar R$ 10 mil.
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Como o “tribunal da Internet” é implacável, os já citados comportamentos bizarros criaram uma onda de ridicularização de qualquer pessoa com um “bebê reborn”. É importante, contudo, evitar julgamentos apressados. Para muitas pessoas, o vínculo com uma dessas bonecas não é uma patologia ou uma extravagância, mas um enfrentamento legítimo diante da dor. Em contextos terapêuticos, elas têm sido usadas no auxílio a mães que perderam filhos. Para idosos com demência, o contato com as bonecas pode estimular memórias afetivas e reduzir episódios de agitação, em uma via de conexão com emoções e habilidades que pareciam perdidas.
O alerta surge quando a linha entre consciência e ilusão se desfaz. Quando a pessoa deixa de distinguir entre fantasia e realidade, quando a boneca substitui contatos sociais reais ou quando há uma recusa sistemática em lidar com traumas, isso pode indicar um quadro que necessita de intervenção. Nesses casos, o problema não é a boneca, mas o que ele revela sobre feridas emocionais não tratadas.
Sob uma perspectiva sociológica, esse fenômeno combina com a “sociedade líquida” descrita pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), caracterizada por vínculos frágeis, insegurança permanente e busca constante por satisfação sem compromisso duradouro. No conceito de “amor líquido”, Bauman descreve exatamente o paradoxo com os “reborns”, em que as pessoas querem proximidade, mas temem comprometimento, buscam vínculo, mas fogem da dor que ele pode causar.
Afeto sem risco
Essas bonecas permitem assim a encenação do amor sem o risco da reciprocidade, do conflito ou da frustração. É uma relação que simula o calor humano sem o custo emocional de lidar com alguém. Em uma era de relações passageiras e descartáveis, elas oferecem a ilusão de estabilidade, com um afeto “plastificado”, mas seguro.
Os “bebês reborn” não são um fenômeno isolado. Outros comportamentos contemporâneos nocivos derivam da mesma manipulação algorítmica invisível, como movimentos de saúde e estilo de vida extremados, subculturas de consumo e estética, “gurus” de produtividade e autoajuda e insegurança com a aparência e dismorfia digital (como “corpos de Instagram”). E naturalmente entram aí, com grande destaque, teorias da conspiração variadas, desinformação, extremismo e polarização política.
A sociedade já está de joelhos diante disso. Para resistir, precisamos de mais e melhores ferramentas cognitivas e sociais. A alfabetização digital crítica deve ser tratada como prioridade educacional, permitindo que as pessoas compreendam como os algoritmos moldam sua percepção. Precisamos exigir transparência das plataformas digitais, com regras claras sobre como os sistemas de recomendação funcionam. Também é fundamental o investimento em espaços comunitários reais e atraentes, principalmente para os jovens, que ofereçam alternativas à socialização mediada por telas.
As redes sociais não são inerentemente ruins, podendo também nos trazer (e nos trazem) muitos benefícios. O problema está na assimetria de poder entre quem as programa e quem as consome. Quando acreditamos estar escolhendo livremente, mas estamos sendo conduzidos para consumir aquilo que foi cuidadosamente selecionado para explorar nossas vulnerabilidades emocionais, nossa liberdade se torna uma fachada para um controle eficientíssimo e criminoso.
Como sociedade, precisamos recuperar nossa autonomia emocional e capacidade de escolha consciente. Isso significa reconhecer que, por trás de cada “recomendação personalizada”, existe uma arquitetura invisível projetada não para nos servir, mas para monetizar nossa atenção e emoções.
A verdadeira liberdade começa quando percebemos que muitos de nossos desejos são sussurrados por algoritmos, e que a resistência mais radical talvez seja simplesmente perguntar se cada um desses sentimentos é realmente nosso.