Quando a Uber chegou ao Brasil em 2014, trouxe um novo modelo de transporte, que combinava preços baixos e alta qualidade para os passageiros, e ganhos expressivos a motoristas, que poderiam trabalhar sem burocracia. Mas isso ficou no passado: hoje passageiros e motoristas questionam o formato, que vive seu pior momento.
De um lado, clientes reclamam de uma queda enorme na qualidade, com preços altos, demora para conseguir um carro e seguidos cancelamentos, gerando muita frustração. Do outro, motoristas se debatem para conseguir algum ganho diante de aumentos explosivos nos combustíveis, no aluguel de carros e da taxa cobrada por essas empresas.
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Com a popularização do formato, muita gente chegou a vender o próprio carro, pois era mais econômico se locomover dessa forma que comprar e manter um veículo. Além disso, o modelo atraiu dezenas de milhares de motoristas em várias cidades do Brasil, como uma alternativa para complementar a renda ou até se tornar sua ocupação principal.
Mas algo parece ter dado errado. Na semana passada, realizei uma pesquisa com 9.315 pessoas questionando como estava sendo a sua experiência com aplicativos de transporte. O resultado foi acachapante: 88% disseram que a experiência piorou nesse ano, enquanto 9% não sentiram diferença. Apenas 3% observaram uma melhora. Tão ilustrativos quando esses votos, foram os quase 300 depoimentos, tanto de pessoas preocupadas com a deterioração da experiência do passageiro, quanto daquelas solidárias à situação ruim dos motoristas.
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Os passageiros reclamam de incontáveis cancelamentos por parte dos motoristas, especialmente no caso de corridas curtas ou quando a origem for em locais como supermercados. Há relatos de motoristas que cancelam a corrida diante do passageiro, antes de ele entrar no carro, dependendo do destino.
Em outubro, a advogada Nathália Andrade “viralizou” nas redes quando teve que dirigir até o próprio casamento, com vestido branco e véu! Depois de ter mais de 20 corridas canceladas no Uber, ela fez o percurso de 25 km, em Brasília, chegando com uma hora e 20 minutos de atraso para a cerimônia civil.
Ou seja, um serviço que já foi considerado de excelência tornou-se fonte de frustração!
Os motoristas argumentam, com razão, que, se aceitassem todas as corridas hoje, praticamente pagariam para trabalhar. Seus ganhos têm ficado cada vez mais magros, e algumas corridas mal pagam o combustível. Por isso, estima-se que, só na cidade de São Paulo, 30 mil dos 120 mil motoristas registrados tenham desistido da atividade.
Dessa forma, aceitam apenas as corridas que consideram mais lucrativas. Por exemplo, se a distância para pegar o passageiro for superior a dois quilômetros, muitos o rejeitam, pois esse trajeto não será remunerado pela plataforma.
É difícil exigir excelência de um trabalho precarizado. E aí chegamos ao ponto de inviabilidade do próprio conceito.
A história da Uber
Na noite de 31 de dezembro de 2008, Travis Kalanick e Garrett Camp não conseguiam um táxi em uma Paris debaixo da neve. Para voltar ao seu hotel, aceitaram pagar US$ 800 a um táxi executivo que se dispôs a fazer o serviço quando ninguém mais queria. Dessa experiência, os dois colegas decidiram criar uma empresa que juntasse motoristas e passageiros, com vantagens para ambos.
O serviço entrou em teste em março de 2009 em San Francisco (EUA) e foi lançado oficialmente em julho de 2010. A Uber nasceu como uma maneira de oferecer transporte executivo de maneira relativamente econômica, apenas com carros de luxo e motoristas bem preparados.
Com o tempo, foi se expandindo e versões cada vez mais populares foram sendo incorporadas ao serviço. Com isso, o preço caiu muito, democratizando o transporte público individual, mas arrastando a qualidade para baixo. De qualquer forma, a população em geral encontrou uma maneira de se ver livre do transporte público coletivo –visto como barato, porém demorado e desconfortável– e dos táxis –considerados caros e com a reputação manchada por alguns maus motoristas.
Mas com esse barateamento, o modelo executivo originalmente bem desenhado começou a ficar muito dependente de preços baixos. Criou-se um equilíbrio instável, sem espaço para elementos desorganizadores. Por isso, a pandemia desestruturou o serviço quando os passageiros desapareceram. Com a retomada da economia, a demanda voltou a crescer, mas já não havia tantos motoristas disponíveis.
Some-se a isso a bagunça que se tornou a economia brasileira, com inflação e desemprego muito altos, juros galopantes e –o que é particularmente crítico aqui– preços dos combustíveis aumentando explosivamente. Assim, o equilíbrio do negócio foi comprometido. E isso não se aplica apenas à Uber, mas ao próprio modelo. Não é de se estranhar, portanto, que a concorrente espanhola Cabify, apesar de continuar operando em outros países, tenha encerrado a operação brasileira em junho.
Suprema ironia, a população vem trocando a Uber pelos táxis, pois a qualidade do seu serviço agora é vista como superior. Pelo menos, não cancelam as corridas.
O que poderia ser feito
Quando a Uber chegou ao Brasil, ficava com uma parcela fixa de 7% do valor da corrida. Com o tempo, isso foi aumentando, chegando a 25%. Mas, desde 2018, a porcentagem fixa não é mais aplicada, com um desconto variável em cada caso. Segundo os motoristas, isso pode passar de 40% do valor da corrida!
Tentei falar com um representante da empresa para esclarecer melhor esses pontos, mas o que consegui foi apenas uma nota oficial. Ela reconhece o problema dos cancelamentos, mas não oferece nenhuma solução. Sobre a dificuldade dos motoristas, explica que a empresa lhes oferece parcerias para descontos em planos de saúde, academias, escolas e outros estabelecimentos.
Mas claramente evita tocar no ponto crítico do ganho dos motoristas. A única parceria que ajuda nisso é um sistema de cashback de 4% para abastecimentos em uma rede específica de postos. Muito pouco para esse cenário desesperador!
A “solução” recai, portanto, sobre a tarifa dinâmica, em que o passageiro paga mais quando há poucos motoristas dispostos a aceitar sua corrida. Mas isso é quase uma perversão do sistema, pois essa tarifa deveria acontecer apenas em uma situação de grande procura, e não como fórmula regular para motoristas terem ganhos dignos.
Claro que, como toda empresa, a Uber e seus concorrentes precisam manter a operação e ter lucros. Mas, em um cenário de crise como a que o Brasil enfrenta hoje, todos precisam colocar de sua parte, até mesmo reduzindo sua parcela nos ganhos ou pagando mais pelo serviço, se for necessário.
Não se trata de uma visão “romântica” ou simplista da economia. A proposta dos aplicativos de transporte está sendo alvejada pelos seus dois clientes: os passageiros e os motoristas.
Se nenhum movimento que vise realmente resolver o problema for feito, o modelo, que foi tão brilhantemente construído e revolucionou a mobilidade urbana mundial, pode se tornar inviável muito em breve, pelo menos aqui no Brasil. E aí, todo mundo –exceto os táxis– perderá: a própria empresa, os motoristas e os passageiros.