Usar famosos para vender qualquer coisa sempre foi um recurso poderoso do marketing. Mas agora as imagens e as vozes dessas pessoas estão sendo usadas sem sua permissão ou seu conhecimento para promover produtos que eles jamais endossariam e sem que ganhem nada com isso.
Esse conteúdo falso é criado por inteligência artificial e está cada vez mais convincente. Além de anunciar todo tipo de quinquilharia, esses “deep fakes”, como é conhecida essa técnica, podem ser usados para convencer as massas muito além da venda de produtos, envolvendo aspectos políticos e até para se destruir reputações.
O processo todo fica ainda mais eficiente porque as pessoas acreditam mais naquilo que desejam, seja em uma “pílula milagrosa de emagrecimento” ou nas ideias insanas de seu “político de estimação”. Portanto, os bandidos usam os algoritmos das redes sociais para direcionar o conteúdo falso para quem gostaria que aquilo fosse verdade.
Há um outro aspecto mais sério: cresce também o uso de deep fakes de pessoas anônimas para a aplicação de golpes em amigos e familiares. Afinal, é mais fácil acreditar em alguém conhecido. Esse recurso também é usado por desafetos, por exemplo criando e distribuindo imagens pornográficas falsas de suas vítimas.
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As redes sociais, que são os maiores vetores da desinformação, agora se deparam sob pressão com o desafio de identificar esse conteúdo falso criado por IA para prejudicar outras pessoas. Mas seus termos de uso e até alguns de seus recursos tornam essa tarefa mais complexa que as dificuldades inerentes da tecnologia.
Por exemplo, redes como TikTok e Instagram oferecem filtros com inteligência artificial para que seus usuários alterem (e supostamente “melhorem”) suas próprias imagens, uma distorção da realidade que especialistas afirmam criar problemas de autoestima, principalmente entre adolescentes. Além disso, muitas dessas plataformas permitem deep fakes em algumas situações, como paródias. Isso pode tornar esse controle ainda mais difícil, pois uma mentira, uma desinformação, um discurso de ódio pode se esconder subliminarmente nos limites do aceitável.
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O deep fake surgiu em 2017, mas seu uso explodiu nesse ano graças ao barateamento das ferramentas e à melhora de seus resultados. Além disso, algumas dessas plataformas passaram a convincentemente simular a voz e o jeito de falar de celebridades. Também aprendem o estilo de qualquer pessoa, para “colocar na sua boca” qualquer coisa. Basta treiná-las com alguns minutos de áudio do indivíduo. O “pacote da enganação” se completa com ferramentas que geram imagens e vídeos falsos. Na prática, é possível simular qualquer pessoa falando e fazendo de tudo!
A complexidade do problema cresce ao transcender as simulações grosseiras e óbvias. Mesmo a pessoa mais ingênua pode não acreditar ao ver um vídeo de uma celebridade de grande reputação destilando insanidades. Por isso, o problema maior não reside em um “fake” dizendo um absurdo, mas ao falar algo que o “original” poderia ter dito, mas não disse. E nessa zona cinzenta atuam os criminosos.
Um exemplo pôde ser visto na terça passada (5), quando o apresentador esportivo Galvão Bueno, 73, precisou usar suas redes sociais para denunciar um vídeo com uma voz que parecia ser a sua insultando Ednaldo Rodrigues, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). “Fizeram uma montagem com coisas que eu nunca disse e eu nunca diria”, disse Galvão em sua defesa.
Ele não disse mesmo aquilo, mas poucos estranhariam se tivesse dito! Duas semanas antes, após a derrota da seleção brasileira para a argentina nas eliminatórias da Copa do Mundo, o apresentador fez duras críticas ao mesmo presidente. Vale dizer que há uma guerra pela liderança da CBF, e Rodrigues acabou sendo destituído do cargo no dia 7, pela Justiça do Rio.
Ressuscitando os mortos
O deep fake de famosos já gerou um enorme debate no Brasil nesse ano. No dia 3 de julho, um comercial sobre os 70 anos da Volkswagen no país provocou polêmica ao colocar a cantora Elis Regina (morta em 1982) cantando ao lado da filha Maria Rita. Elis aparece no filme dirigindo um antigo modelo de Kombi, enquanto a filha aparece ao volante de uma ID.Buzz, furgão elétrico recém-lançado, chamado de “Nova Kombi”.
Muita gente questionou o uso da imagem de Elis. Mas vale dizer que, nesse caso, os produtores tiveram a autorização da família para o uso de sua imagem. Além disso, ninguém jamais propôs enganar o público para que achasse que Elis estivesse viva.
Outro exemplo aconteceu na recente eleição presidencial argentina. Durante a campanha, surgiram imagens e vídeos dos dois candidatos que foram ao segundo turno fazendo coisas condenáveis. Em um deles, o candidato derrotado, Sergio Massa, aparece cheirando cocaína. Por mais que tenha sido desmentido, ele “viralizou” nas redes e pode ter influenciado o voto de muita gente. Tanto que, no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já se prepara para combater a prática nas eleições municipais de 2024.
Na época do comercial da Volkswagen, conversei sobre o tema com Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). Para ele, “ficará mais difícil, a olho nu, detectar o que é verdadeiro”, restando aos peritos identificar as falsificações. “O desafio, daqui para frente, é que será mais comum ver esse tipo de debate na Justiça”, acrescentou.
Essa é uma preocupação mundial. As fake news mais eficientes não escancaram uma informação falsa “completa”. Ao invés disso, o conceito que pretendem impor é apresentado aos poucos, em pequenos elementos aparentemente desconexos, mas criteriosamente entregues, para que a pessoa conclua “sozinha” o que os criminosos querem. Quando isso acontece, fica difícil convencê-la do contrário.
Não há clareza sobre como resolver esse problema. Os especialistas sugerem que exista algum tipo de regulamentação, mas ela precisa equilibrar a liberdade para se inovar e a garantia dos interesses da sociedade. Sem isso, podemos ver uma enorme ampliação da tragédia das fake news, construída por redes sociais que continuam não sendo responsabilizadas por disseminá-las.
Como determina a Constituição, todos podem dizer o que quiserem, mas respondem por isso. O desafio agora é que não se sabe mais se a pessoa disse o que parece ter dito de maneira cristalina diante de nossos olhos e ouvidos.