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Brasileiros ficam na 44ª posição do indicador que mede as nações mais felizes do mundo – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Aceleração do mundo digital ameaça a alegria das pessoas

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O brasileiro se gabava de ser o povo mais feliz do mundo. Éramos acolhedores até com estranhos e levávamos a vida de forma leve e bem-humorada, mesmo diante de adversidades do cotidiano. Vivíamos na orgulhosa pátria das chuteiras, do samba, do suor e da cerveja. Mas olhando a nossa volta, parece que isso ficou no passado. Muitas coisas explicam essa queda, mas algo sorrateiro tem um papel decisivo nesse entristecimento: a aceleração descontrolada de nossas vidas pelo meio digital.

Segundo o Relatório de Felicidade Mundial 2024, organizado pela consultoria Gallup, pela Universidade de Oxford e pela ONU, lançado em março, o Brasil amarga uma melancólica 44ª posição no indicador de nações felizes, de um total de 143, logo depois da Nicarágua e da Guatemala. Pelo sétimo ano seguido, o país mais feliz do mundo foi a Finlândia. Aliás, o norte da Europa domina a lista, com as primeiras posições completadas por Dinamarca, Islândia e Suécia.

Cada um sabe “onde aperta seu calo”. Entre outras questões, os brasileiros ficaram tristes pela violência, pela corrupção, pela política suja, pelo acesso precário a serviços básicos e pela instabilidade econômica, que leva a um medo constante de perder o emprego. Mas o nosso profundo apreço pelas redes sociais semeou em nós uma permanente insatisfação, que nos torna ansiosos e substitui muitos bons valores por insanas e contínuas buscas, como riqueza fácil com “jogos de tigrinhos” e afins.

Não dá para ser feliz enquanto se estiver insatisfeito! Obviamente temos que buscar nosso crescimento, mas precisamos resgatar o controle de nossas vidas, valorizando aquilo que verdadeiramente nos faz avançar. As redes sociais nos estimulam o tempo todo, de uma maneira que nosso cérebro não mais consegue lidar com tanta informação. Enquanto não percebermos como somos manipulados digitalmente, não sairemos desse quadro desolador.


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O Relatório de Felicidade Mundial considera diversos aspectos para definir a felicidade de um povo. Entre eles, estão o PIB per capita, o apoio de parentes e amigos, a expectativa de vida ao nascer, a liberdade de se fazer escolhas, a generosidade com o próximo e a percepção de corrupção. Essa última é onde o Brasil aparece pior, mas também vamos mal em liberdade de se fazer escolhas e na expectativa de vida.

A situação se agrava entre os brasileiros mais jovens. Segundo o estudo, se considerarmos só as pessoas com até 30 anos, o país despenca para a 60ª posição. Por outro lado, se computarmos apenas as com mais de 60, saltamos para a 37ª.

Diante disso é inevitável comparar o índice de felicidade com o de uso das redes sociais. De acordo com a versão mais recente do Digital Global Overview Report, publicado anualmente pela consultoria We Are Social, somos os vice-campeões mundiais em tempo online, com uma média diária de 9 horas e 13 minutos, dos quais 3 horas e 37 minutos são dedicados a redes socias. Em comparação, os dinamarqueses têm uma média diária online de 5 horas e 8 minutos e apenas 1 hora e 50 minutos nas redes sociais. A Finlândia não integrou essa pesquisa.

Não é mera coincidência que os mais jovens, que se informam menos por fontes confiáveis e são mais suscetíveis aos algoritmos de relevância, sejam os mais tristes. As sociedades descobriram que, para vender qualquer coisa, de um produto a um político, é preciso acelerar ainda mais a vida, soterrando o senso crítico.

Nesse cenário resultante de estresse, desesperança e cansaço coletivo, as pessoas aproveitam seu pouco tempo livre com diversão rasa, o que reforça a alienação. Rejeita-se tudo que convide a uma leitura crítica da vida.

 

“Pensar dá trabalho”

Fica fácil entender então por que 47% dos brasileiros deliberadamente se recusam a consumir notícias. O número é do Digital News Report 2024, publicado em junho pelo Instituto Reuters e pela Universidade de Oxford. Em 2023, esse índice era de 41%.

O estudo sugere que essa rejeição se deve à percepção de que “só há notícia ruim”. E apenas 43% dos brasileiros confiam no noticiário, o mesmo índice do ano passado, o pior já registrado (há uma década, era 62%). Se serve de consolo, os brasileiros são os que mais confiam nas notícias entre os seis países latino-americanos pesquisados.

Talvez a grande ironia para os que tentam “resistir ao noticiário” é que os mesmos assuntos ruins continuam os impactando, porém a partir de fontes pouco ou nada confiáveis, como WhatsApp ou Telegram. E assim esse conteúdo chega com uma carga emocional ainda mais pesada que se sua origem fosse o noticiário profissional.

Do outro lado, os que mais confiam no jornalismo são justamente os finlandeses, aqueles que também são os mais felizes do mundo, e que integram o grupo de populações menos influenciadas pelas redes sociais.

A informação que processamos em apenas uma semana hoje é muito maior que a que uma pessoa culta era exposta ao longo de toda sua vida no século XVIII. É verdade que o ser humano se adapta a tudo, mas o nosso cérebro tem seus limites. Quando são desrespeitados, entramos em colapso, daí as atuais ansiedade e depressão.

A inteligência artificial infelizmente tende a agravar isso, em um processo batizado de “hipersuasão” pelo filósofo italiano Luciano Floridi, um dos maiores nomes da filosofia da informação. Para ele, a IA já é usada para identificar nossos desejos e medos, e, a partir deles, produzir conteúdos que nos aceleram e nos convencem cada vez mais sobre qualquer tema. E isso ficará pior com o tempo. Tanto que, em janeiro, o Fórum Econômico Mundial em Davos classificou a desinformação impulsionada pela IA como a maior ameaça à humanidade nos próximos anos.

Podemos comprovar isso nas campanhas eleitorais desse ano. Seguindo o padrão dos pleitos anteriores, os candidatos que trazem propostas sensatas ficam muito atrás daqueles que se apresentam como “antissistema”, que “lacram” e acirram os ânimos. Tragicamente eles vencem sem oferecer nada concreto, apenas uma excitação vazia.

Chegamos a um ponto em que parece não haver saída. Governantes não se movimentam para melhorar esse quadro, pois se beneficiam dessa aceleração. As escolas não se posicionam, até por pressão de pais “acelerados”, preocupados com o vestibular e contra professores que insistam em oferecer a seus filhos visões de mundo mais amplas que as de dentro de casa.

Por isso, por mais que sejamos vítimas disso, sua solução recai sobre nossos ombros. E isso é terrível, porque a aceleração do meio digital nos retira os meios para sequer percebermos que ela existe! Somos arrastados a querer sempre mais, porém nunca chegaremos lá, e assim retroalimentamos o sistema que nos massacra.

Não há outro caminho! Temos que pisar no freio e nos questionar se desejaremos continuar fazendo parte dessa roda viva ou se resgataremos o controle sobre nós mesmos. E nesse caso, precisaremos eliminar nossa submissão digital.

 

Recurso de visualização acelerada de conteúdos nos dá mais tempo, mas pode nos deixar ansiosos - Foto: Akshay Gupta/Creative Commons

A tecnologia tenta nos acelerar, mas nossa natureza tem limite de velocidade

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Atire a primeira pedra quem nunca clicou no botão “2X” para ouvir mais rapidamente uma mensagem de áudio do WhatsApp. Quando foi lançado, em maio de 2021, esse recurso foi festejado por aqueles que não aguentam ouvir falas que duram vários minutos. Mas longe de ser um fenômeno isolado, essa possibilidade de “acelerarmos nosso cotidiano” está cada vez mais presente em diversas plataformas digitais.

Reflexo do sucesso da possibilidade de “encurtarmos” todo tipo de conteúdo para termos mais tempo livre, isso dispara alguns questionamentos. O primeiro é descobrir se há algum efeito colateral nesse processo. Outro se trata de um dilema do tipo “ovo e galinha”: as plataformas digitais nos oferecem isso cada vez mais porque é algo que desejamos, ou nós queremos e usamos a funcionalidade porque está mais disponível?

Pesquisadores se debruçam sobre o tema para entender até seu impacto fisiológico em nossos cérebros. Mas não é necessário ser um neurocientista para perceber que essa ânsia pela aceleração transforma nosso cotidiano há muitos anos. Hoje fazemos muitas coisas de maneira diferente e mais rápida, como estudar, trabalhar, nos divertir e até nos relacionar com outras pessoas. E o que começou nas diferentes telas agora também transforma essas mesmas atividades quando feitas presencialmente.

Como era de se esperar, algumas coisas ficaram pelo caminho. Ganhamos na velocidade, mas podemos perder em entendimentos deficientes e no aumento de ansiedade. E disso surge a pergunta: será que vale a pena?


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O conceito foi brilhantemente explicado no filme “Click” (2006), estrelado por Adam Sandler. Na história, seu personagem ganha um controle remoto mágico capaz de manipular o mundo a sua volta. Dessa forma, ele podia, por exemplo, acelerar as partes de sua vida pelas quais tinha que passar, mas de que não gostava. O problema é que o aparelho aprendia essas preferências, começando a “pular” automaticamente todos esses momentos. Como resultado, o personagem de Sandler acabou perdendo informações importantes de sua vida.

Ainda não chegamos a esse ponto de acelerar os acontecimentos reais, mas o que já temos no mundo digital vem alterando nossa percepção. É comum dizermos que os dias parecem estar ficando mais curtos, mas não pensamos na quantidade de coisas diferentes que fazemos a cada 24 horas, muito mais que nossos pais. Há uma sensação de aumento de produtividade, mas até onde isso é real e saudável?

A tecnologia digital combina perfeitamente com o conceito de sucesso da vida contemporânea, fortemente ligada à produtividade. Não basta fazer mais: é preciso brilhar mais e isso precisa ser visto por todos. Trocamos os benefícios de contemplar a vida pela sensação de uma suposta vitória pela hiperpodutividade.

Quem se dispõe a deixar a correria do cotidiano de lado para se dedicar, por alguns minutos que seja, a calmamente apenas ouvir músicas de que se gosta? Esse exemplo é muito emblemático, porque o que se observa é exatamente o contrário: pessoas que aceleram as músicas, para que acabem mais rapidamente, não se importando com a óbvia mutilação da obra.

Isso vem provocando alterações em com as próprias músicas são compostas atualmente. Introduções melodiosas e solos instrumentais desaparecem para que o ouvinte chegue ao clímax rapidamente. A própria duração da faixa fica limitada a três minutos, para evitar que a pessoa passe para outra música antes de se chegar ao final. Se isso acontece, os algoritmos das plataformas de streaming podem entender que a música não é tão interessante, passando a tocá-la menos daí em diante.

 

Crescimento da ansiedade

A comunidade científica ainda não chegou a uma conclusão sobre todos os impactos da aceleração de nosso cotidiano. Muitos estudos se concentram em descobrir quanto isso afeta a nossa compreensão de conteúdos que consumimos.

Em 2021, uma equipe da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA), liderados por Dillon Murphy, publicou um estudo na revista “Applied Cognitive Psychology”. Eles observaram que as pessoas conseguiam compreender vídeos acelerados em até 2X. Acelerações maiores já prejudicavam o processo. Concluíram também que pessoas que usam esse recurso frequentemente têm mais chance de entender e reter as mensagens aceleradas, como se estivessem treinadas.

Mas uma eventual compreensão prejudicada não é a única coisa que deve nos preocupar. Especialistas apontam uma correlação entre uma vida acelerada e o crescimento explosivo de casos de ansiedade. E nós, brasileiros, não estamos nada bem nisso: segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil possui a população com a maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo, com 9,3% dos brasileiros sofrendo de ansiedade patológica.

Tanta ansiedade transforma tudo que fazemos. Qualquer coisa que exija mais tempo, atenção ou reflexão pode disparar esses processos, assim as pessoas procuram evitar isso tudo. Mas gostemos ou não, eles continuam fazendo parte de nosso trabalho, nosso estudo e até de nossos relacionamentos. Nos escritórios, isso se sente em queda de produtividade e menos compromisso profissional.

Essa falta de envolvimento pode tornar tudo superficial. No caso de relacionamentos, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman já havia identificado isso em seu livro “Amor Líquido” (editora Zahar, 2004). Para ele, a redução nas suas qualidades é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. Aceleram-se os inícios e os términos com o clique em um aplicativo. Troca-se, sem remorsos, aqueles que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Como professor, sinto isso na alteração do formato de cursos de extensão universitária. As pessoas desejam, cada vez mais, cursos rápidos e focados em um tema específico, para aplicação imediata no cotidiano. Cursos que oferecem uma visão analítica e estratégica, responsáveis pela formação de profissionais capazes de solucionar grandes problemas, perdem espaço.

Dou aulas presenciais e a distância. Essas últimas, apesar de dadas sempre ao vivo, ficam gravadas e muitos alunos talvez as vejam aceleradamente. Mas seria uma pena: mesmo as pausas nas aulas são importantes para a construção de um raciocínio e para a fixação do conteúdo. Se forem eliminadas, o aprendizado fica comprometido.

Ninguém questiona como as plataformas digitais se tornaram inestimáveis ferramentas de produtividade. É praticamente impossível viver hoje sem o que elas nos oferecem. Mas como qualquer ferramenta, elas precisam ser usadas com inteligência. Longe de representar “esperteza”, o abuso da “aceleração da vida” demonstra um letramento digital pobre da população.

Como diz o ditado, “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza”. A natureza continua seguindo seu ritmo natural, desacelerado. Não somos máquinas! Ao tentar subverter isso, trocamos bem-estar por ansiedade, produtividade por acúmulo insustentável. Esse não é o caminho a ser seguido.