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O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor do conceito do “amor líquido” - Foto: M. Oliva Soto/Creative Commons

O meio digital cristalizou o “amor líquido” como uma constante em nossas vidas

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Quando lançou seu best-seller “Amor Líquido” em 2004, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) não podia imaginar como as redes sociais ajudariam a cristalizar esse conceito depois de poucos anos: afinal, essas plataformas ainda eram bebês e suas influências em nossas vidas eram nulas. Isso só reforça sua genialidade e o valor de seus ensinamentos.

Olhe a sua volta e observe a quantidade de relacionamentos criados e desfeitos com grande facilidade. É um sinal dos nossos tempos e as ferramentas digitais são essenciais nesse processo.

Para Bauman, a redução na qualidade das relações é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. A relação social como uma responsabilidade mútua dá lugar ao que chamou de “conexão”. Para ele, o grande apelo desses sistemas é a facilidade de esquecer o outro, de se “desconectar”: troca-se, sem remorso, parceiros que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Essa é praticamente a definição do uso dos “aplicativos de pegação”, que têm no Tinder seu maior expoente e que só foi lançado em 2012. Graças a eles, quem quiser pode ter vários parceiros sexuais em um mesmo dia. Os desavisados poderiam achar que isso é algo que só beneficia os mais jovens, mas tem muita gente mais experiente se entregando à “fluidez amorosa” com as facilidades que inundam nossos smartphones.

Mas há outros fatores que aproximam a vida digital do amor líquido em uma relação quase simbiótica. Se Tinder e afins oferecem um “cardápio de gente” mais lúdico que um totem do McDonald’s, as redes de vídeo curtos, sob liderança incontestável do TikTok, estão alterando nossa percepção do mundo, alterando a própria estrutura de nossas narrativas.

Ideias trabalhadas com introdução, desenvolvimento e conclusão dão lugar a microconteúdos sem começo, fim e até sem meio, encadeados pelo algoritmo em uma sequência infinita que retém nossa atenção. As pessoas estão se acostumando a permanecerem continuamente engajadas a vídeos tão estimulantes quanto rasos. O processo é tão eficiente, que provoca uma percepção alterada de que tudo no mundo deveria ser assim.

Mas a vida não é, muito menos relacionamentos, que exigem alguma dose de dedicação, resiliência e adaptabilidade ao outro. Como a linguagem está em nossa essência, esse movimento explica, ainda que parcialmente, a dificuldade de os adolescentes atuais namorarem.

Bauman dizia que, apenas quando nos damos conta de que nossa voz é ouvida e de que nossa presença é sentida, entendemos que somos únicos e dignos de amor. Precisamos do outro em um contato de qualidade para nos fazer perceber isso, mas, se estamos perdendo essa comunicação essencial, como sentiremos o outro? Para ele, “amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama.” E continua: “no amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo.”

Temos que aproveitar tudo que o digital nos oferece, até mesmo esses aplicativos, que podem ser muito úteis se empregados conscientemente. Apenas não podemos nos perder nossa própria humanidade nesse processo.

 

Uma década de Tinder: o digital mudou nossos relacionamentos

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Onde é mais fácil conhecer alguém hoje: em uma festa ou em um aplicativo?

O Tinder, que acaba de completar uma década de “pegação”, não foi o primeiro e está muito longe de ser o único sistema para pessoas encontrarem parceiros. Ainda assim, ele se tornou referência na categoria e é o maior deles, tendo sido baixado mais de 530 milhões de vezes e viabilizado mais de 75 bilhões de “matches” nesses dez anos.

O sucesso dessas plataformas é inegável, desde que o pioneiro Match.com foi lançado em 1995. A chance de “atingir” uma enorme quantidade de pretendentes ao mesmo tempo e as ferramentas para se combinar interesses são vantagens claras. De uns anos para cá, a inteligência artificial e a geolocalização tornaram essas buscas ainda mais eficientes. Mas isso também desperta alguns questionamentos.

Esses recursos digitais teoricamente aprendem nossos gostos, para fazer ofertas cada vez mais assertivas. Nós, por outro lado, confiamos no julgamento da máquina. Mas qual a garantia de ela está certa? Além disso, estamos entregando a escolha de nossa “alma gêmea” a um software, abrindo mão de uma característica essencial de nossa humanidade.

Tudo isso “queima etapas” no jogo da sedução. Mas, ao fazermos isso, não estamos justamente perdendo tudo de bom que a sedução oferece?


Veja esse artigo em vídeo:


Nem sempre foi assim! Lá pelos idos de 1996, quando eu fazia parte do grupo pioneiro do UOL, lançamos as salas de bate-papo, uma grande inovação para a época. Não demorou para que casais começassem a se formar entre os usuários. Até que, naquele ano ainda, aconteceu o primeiro casamento no Brasil de pessoas que se conheceram online, algo que virou notícia nos jornais!

Esses sistemas na época não iam além de combinar características e preferências. Mas isso está longe de ser suficiente para uma pessoa se apaixonar por outra. Em muitos casos, relacionamentos em que ambos gostam das mesmas coisas simplesmente não evoluem por isso mesmo! A “química” entre duas pessoas surge de fatores muitas vezes improváveis.

A inteligência artificial das plataformas atuais tenta solucionar isso, mas acaba tendo alcance limitado, pois ela depende das escolhas dos usuários no “cardápio de gente” em que elas se transformaram. Como essas decisões são tomadas a partir de um punhado de fotos e informações oferecidas por cada um, acabam sendo deficientes.

O sucesso dessas plataformas passa pela sua interface minimalista, que agiliza o processo. No caso do Tinder, ao se deslizar para a direita uma foto, o usuário demonstra interesse naquele perfil. Se o outro lado fizer o mesmo, as partes podem conversar, e o que vier depois fica por conta e risco de cada um. Para quem não quiser investir muito tempo e energia e estiver disposto a experimentações, essa simplicidade atrai.

Por isso, o “algoritmo perfeito” seria a coisa mais importante para qualquer um desses serviços, pois aumentaria a satisfação (e o prazer) de seus usuários. Infelizmente isso não é simples de se obter, tendo até inspirado a ficção, no episódio “Hang the DJ”, o quarto da quarta temporada da série “Black Mirror”, que demonstra o funcionamento surpreendente das entranhas de um aplicativo de namoro.

 

Administrando as frustrações

As plataformas de encontros têm outro apelo inegável: o controle das frustrações. Nem sempre as paqueras dão certo, e as rejeições podem ser desagradáveis. Mas isso faz parte do jogo!

É curioso que, com esses aplicativos, as negativas continuam acontecendo e até em quantidade maior. Mas, como não se investe tempo e energia em cada tentativa e elas acontecem às dezenas (às vezes às centenas), a enorme quantidade de rejeições não chega a doer. Até mesmo porque estar por trás de uma tela supostamente nos “protege’ e, pelo volume, sempre haverá alguém que diga “sim”.

Não quer dizer que a experiência seja sempre agradável. O estudo “As virtudes e desvantagens do namoro online”, publicado em fevereiro de 2020 pelo instituto Pew Research Center, indica que 30% dos americanos já usaram uma dessas plataformas, mas 42% deles não tiveram uma boa experiência. A situação é pior para as mulheres, com 48% delas sendo abordadas mesmo depois de dizer que não tinham interesse, 46% recebendo mensagens ou imagens explícitas sem ter pedido, 33% sendo xingadas e 11% sendo ameaçadas fisicamente.

É inevitável pensar no “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman (editora Zahar, 2004). Para o filósofo e sociólogo polonês, falecido em 2017, a ampla queda da qualidade das relações é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. “Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar”, escreveu.

Com isso, a relação social construída com uma responsabilidade mútua é substituída pelo que ele chamou de “conexão”. Para o filósofo, o grande apelo desses sistemas está na facilidade de se esquecer o outro, de se “desconectar”: troca-se, sem qualquer remorso, os parceiros que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Outra estudiosa da área é Sherry Turkle, professora de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e autora dos livros “Alone Together” (“Sozinhos Juntos”, em uma tradução livre, Basic Books, 2017) e “Life On The Screen” (ou “A Vida na Tela”, Simon & Schuster, 2011). Ela afirma que, com o aumento da conexão digital das pessoas, suas vidas emocionais diminuem. Para a pesquisadora, apesar de estarmos constantemente nos comunicando com os outros pelas redes sociais, essas trocas acabam não sendo autênticas e nos levam à solidão.

Se for realmente assim, essas plataformas digitais podem ser um incrível serviço para se conseguir parceiros em quantidade, mas a qualidade continuará dependendo de nos expormos, demonstrando nossa realidade e entrando em contato com o outro. Para Bauman, apenas quando nos damos conta de que nossa voz é ouvida e de que nossa presença é sentida, entendemos que somos únicos e dignos de amor. E precisamos do outro em um contato de qualidade para nos fazer perceber isso.

Devemos, portanto, usar esses aplicativos como poderosas ferramentas de “pesquisa”, mas não podemos entregar a eles nossa capacidade de nos apaixonar. Nosso senso crítico não pode ser achatado a ponto de nos relacionarmos apenas com quem os algoritmos nos indicam.

Ainda citando Bauman, “amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama.” E continua: “no amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo.”

Que não percamos a capacidade de contribuir assim, que nos torna tão humanos.

 

Marissa Meizz (em primeiro plano), figurinista americana que usou uma decepção online para criar vários encontros presenciais para pessoas se conhecerem

Fuja do limbo entre sua “vida real” e o mundo online

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Sou um apaixonado pela alma humana. Ela se manifesta de maneiras inesperadas e até inusitadas. Já há um bom tempo, isso se dá de forma crescente no meio online. Às vezes, temo que isso esteja indo longe demais e estejamos nos perdendo nessa virtualidade, embebidos por esse “éter digital” e desprezando o valor de atividades presenciais.

A pandemia acelerou esse processo. O distanciamento social por meses mudou algo na cabeça de muita gente. Por exemplo, mesmo com os escritórios autorizados a funcionar a plena capacidade, cresce o número de brasileiros que querem continuar no home office.

Somos seres gregários: precisamos do contato com o outro! Não podemos ir contra nossa natureza. O digital pode nos ajudar nisso, mas não pode nos sugar para dentro das telas.


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No mês passado, uma pesquisa da FIA (Fundação Instituto de Administração) e da FEA (Faculdade de Economia e Administração) da USP indicou que 78% dos trabalhadores brasileiros querem manter o home office, ainda que parcialmente. Já o número dos que querem voltar aos escritórios diariamente caiu de 19% para 14% desde o ano passado. Para completar, 81% dos entrevistados afirmaram que a produtividade em casa é maior ou igual à conseguida na empresa.

O que torna esse número mais emblemático é surgir nesse momento de escritórios reabertos, e tendo crescido oito pontos percentuais em um ano. Há colegas que interagem diariamente e nunca se encontraram, pois foram contratados durante a pandemia.

A audiência de plataformas digitais para conhecer outras pessoas também explodiu nesse período. No auge do distanciamento social, muitos desses encontros aconteciam apenas online. Com o relaxamento dessas regras, as pessoas estão “tirando o atraso”.

Isso me faz pensar no “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman (editora Zahar, 2004). Para o filósofo e sociólogo polonês, falecido em 2017, quando a qualidade das relações diminui demais, isso é compensado por uma quantidade enorme de parceiros. “Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar”, escreveu.

Dessa forma, a relação social construída com uma responsabilidade mútua é trocada pelo que Bauman chama de “conexão”. Ele explica que o grande apelo dessas plataformas digitais está na facilidade de se esquecer o outro, de se “desconectar”. Essa seria a forma de se relacionar na “modernidade líquida”: troca-se, sem qualquer remorso, os parceiros por outros “melhores”.

Isso nunca foi tão verdadeiro!

 

“Desvirtualizando”

Nesses 20 meses de pandemia, já propus a várias pessoas e grupos que, assim que possível, “desvirtualizemos”. Em outras palavras, devemos nos encontrar para levar nosso relacionamento a um novo patamar, especialmente para aqueles com quem me encontrei apenas digitalmente.

Esse processo acontece também de maneiras imprevisíveis. Foi o caso da figurinista Marissa Meizz. Em maio, ela soube que o vídeo de um desconhecido que a procurava já tinha alcançado 14 milhões de visualizações no TikTok. O homem havia descoberto que amigos dela dariam uma festa em um fim de semana em que viajaria, para que ela não participasse.

Obviamente isso magoou Meizz. Entretanto, ao invés de “curtir uma fossa” sozinha, essa americana de 23 anos decidiu contar sua história na mesma rede social, e se tornou uma celebridade instantânea. Graças a isso, passou a organizar eventos ao ar livre para que pessoas se tornassem amigas. E eles têm reunido centenas delas em várias cidades dos EUA.

Essa história traz duas das características essenciais dos relacionamentos online: instantaneidade e abrangência. Qualquer coisa que fizermos pode impactar grande quantidade de pessoas, de uma maneira inexplicável pelo senso comum. Mas a esmagadora maioria desses “amigos de Facebook” é, na melhor das hipóteses, as “conexões” descritas por Bauman.

Ironicamente esse tipo de relacionamento pode trazer muitos benefícios comerciais. Afinal, uma boa exposição pode ser excelente para, por exemplo, vender qualquer tipo de produto ou serviço.

O problema é que a fugacidade e a descartabilidade desses “relacionamentos líquidos” tiram de nossas mãos qualquer forma de controle sobre eles. Ficamos à mercê dos algoritmos das redes sociais, que, da mesma forma que podem levar alguém ao estrelato digital, pode reduzir o indivíduo a uma posição obscura com a mesma velocidade. Isso exige muita maturidade emocional, tanto para lidar com o sucesso, quanto com o fracasso repentinos.

Sherry Turkle, professora de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e autora dos livros “Alone Together” (“Sozinhos Juntos”, em uma tradução livre, Basic Books, 2017) e “Life On The Screen” (ou “A Vida na Tela”, Simon & Schuster, 2011), afirma que, à medida que a conexão digital com as pessoas aumenta, nossas vidas emocionais diminuem. Seu argumento é que, apesar de estarmos constantemente nos comunicando com outras pessoas pelas redes sociais, essas trocas acabam não sendo autênticas e nos levam à solidão.

Segundo ela, com a imposição do distanciamento social, percebemos quanto os contatos presenciais são importantes. Por isso, quando finalmente conseguem se reencontrar, as pessoas apreciam muito mais a presença do outro.

Em “Amor Líquido”, Bauman escreveu que “amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama.” E continuou: “no amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo.”

Dessa forma, temos que naturalmente aproveitar todos os recursos que o meio digital nos oferece. Os aprendizados da pandemia, adquiridos a um custo tão alto, permanecerão, trazendo ganhos a tudo que fizermos e nos colocando em contato com pessoas antes inimagináveis.

Mas não podemos deixar que isso subjugue a importância do contato físico e de relacionamentos mais profundos e verdadeiros. Ainda segundo Bauman, apenas quando nos damos conta de que nossa voz é ouvida e de que nossa presença é sentida, entendemos que somos únicos e dignos de amor.

Precisamos do outro em um contato de qualidade para nos fazer perceber isso. Usemos, então, os recursos digitais com inteligência!

Chegará a hora que dependeremos de robôs para nos apaixonar?

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O que faz alguém se apaixonar por outra pessoa?

Essa não é uma pergunta simples de se responder.

Certa vez, disseram para mim que a paixão é um truque da natureza para que continuemos nos reproduzindo. Achei graça na hora, mas, a cada dia que passa, vejo que há alguma verdade nessa frase.

A partir disso, será que dá para automatizar os mecanismos da paixão? O governo japonês acha que sim e está investindo pesado nisso, justamente para aumentar a população do país.

Isso é emblemático! Independentemente da eficiência dessa proposta, será que chegamos ao ponto de precisarmos de um sistema para encontrar a pessoa certa e nos apaixonar? Estamos perdendo a nossa capacidade de gostar de outra pessoa naturalmente?


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No Japão, o número de nascimentos caiu 5,8% em 2019, para cerca de 865 mil. É o menor número da história! Entre as explicações para isso, estão a diminuição de casamentos e um aumento na idade que as pessoas se casam.

Para tentar reverter esse quadro preocupante, os governos nacional e regionais preparam um investimento de 2 bilhões de ienes (cerca de R$ 97 milhões) para desenvolver sistemas de inteligência artificial para criar casais compatíveis, transcendendo as combinações mais óbvias dos sites e aplicativos de relacionamento.

De fato, os sistemas atuais não vão muito além de combinar gostos e características. Mas gostar das mesmas coisas está longe de ser suficiente par alguém se apaixonar pelo outro. Na verdade, muitos relacionamentos em que ambos gostam das mesmas coisas simplesmente não evoluem, por isso mesmo!

Há também os “aplicativos de pegação”, cujo maior expoente é o Tinder. Mas a sua proposta é outra. Não digo que pessoas não possam se apaixonar a partir de encontros patrocinados por eles, mas essa não é a ideia a princípio. A “química” entre duas pessoas surge de fatores imponderáveis, combinando elementos aparentemente desconexos.

É muito mais provável o Facebook, com seus algoritmos de relevância criados para nos sugerir conteúdo e vender todo tipo de quinquilharia, descobrir a nossa alma gêmea. Afinal, ele se vale de tecnologias como machine learning, Internet das Coisas, big data, análises preditivas e linguagem natural para “escavar nossas verdades” mais profundas a partir das incontáveis interações no mundo digital.

É curioso que sistemas para encontrar alguém existem desde o começo da Internet comercial. Eu me lembro, lá no grupo pioneiro que criou o Universo Online, em 1996, de participar das discussões para o desenvolvimento do serviço Almas Gêmeas, o avô de todos esses sites. Quatro anos depois, fui o gerente de projetos da versão brasileira do Amor@AOL, da America Online.

Eram sistemas muito, muito simples, que apenas faziam as combinações óbvias. Mas precisamos entender que, naquela época, isso tudo era uma grande novidade. Tanto que, também em 1996, um casal que se conheceu no Bate-Papo do UOL e acabou se casando virou notícia nos jornais: pessoas que se conheceram pela Internet se casam!

Na época, isso era visto até com desconfiança. Hoje estranho é não conhece ninguém online!

É absolutamente comum que se use esses sites e aplicativos para queimar etapas e encontrar rapidamente alguém para o que quiserem. Além disso, eles oferecem uma sensação de que diminuem a frustração de ser rejeitado em uma balada ou no bar.

É uma falsa sensação (vlaro), pois as pessoas continuam sendo rejeitadas, aliás, agora muito mais! Mas, como se tenta a sorte com dezenas de pessoas ao mesmo tempo, mesmo que a maioria diga “não”, alguém acabará dizendo “sim”.

 

A vida imita a arte

Se os sistemas baseados em inteligência artificial entregarem o que prometem, isso pode ser um salto para um patamar muito superior a esses “cardápios de gente”.

A ficção já explora isso há bastante tempo. O episódio “Hang the DJ”, o quarto da quarta temporada da série “Black Mirror”, por exemplo, demonstra o funcionamento surpreendente de um aplicativo de namoro.

Impossível não citar também o filme “Ela” (“Her”, 2013), em que o protagonista Theodore, vivido por Joaquin Phoenix, se apaixona pelo sistema operacional inteligente de seu computador e de seu celular, a Samantha, personificado pela voz de Scarlett Johansson. O que faz Theodore se apaixonar por Samantha não é sua carência, e sim o fato de que o sistema sabe tudo sobre ele, pois acessa todas as suas pegadas digitais. Os dois sempre conversam, e Samantha aprende continuamente do que ele gosta.

Resultado: ela sempre oferece o que ele precisa, mesmo coisas inesperadas. Dá quase para se apaixonar por Samantha só de assistir ao filme, por mais que pareça louco isso. Mas, como diz uma amiga do protagonista, “apaixonar-se é uma coisa louca: é uma forma de insanidade socialmente aceitável.”

Trazendo para a nossa realidade, e se o sistema usasse toda essa inteligência para combinar pessoas?

Pode dar certo mesmo: os sistemas já estão aí disponíveis!

Não é de se admirar que o Facebook tenha lançado, no ano passado, um recurso de Namoro em sua plataforma, ainda que timidamente.

Do jeito que a coisa anda, talvez comecemos a ver sugestões de par ideal em nosso WhatsApp e Instagram, da mesma forma que vemos os stories. Isso se a empresa não for obrigada a vender as duas plataformas, como o governo dos Estados Unidos quer, justamente para diminuir o poder que o Facebook tem sobre os usuários e permitir uma concorrência mais saudável

No final das contas, talvez esses serviços digitais queiram resolver um problema que foi criado, ainda que parcialmente, por eles mesmos. Com tanta velocidade, com tanta oferta, com tantos estímulos o tempo todo e em qualquer lugar, talvez estejamos perdendo algumas capacidades essenciais de nossa humanidade.

Como disse certa vez o filósofo polonês Zygmunt Bauman, “tudo é mais fácil na vida virtual, mas perdemos a arte das relações sociais e da amizade”. Vivemos na época do que ele chamou de “amor líquido”.

Todos esses recursos digitais onipresentes nos ajudam a encontrar o que buscamos, mas podem nos levar a nos perder em uma sociedade sem rosto, homogeneizada, controlada, viciada em dopamina ao ser exposta apenas ao que cada um gosta. Perdemos nosso senso crítico, porque acreditamos piamente no que dizem ser o certo, sem sequer entendermos do que estão falando.

Com isso, nossa empatia se esvai, assim como a capacidade de identificar o bom e o mau.

E, sem esses recursos, talvez estejamos perdendo os nossos melhores recursos para nos apaixonar, pelo menos de fazer isso sem ajuda.

Que bom que temos a inteligência artificial para nos salvar!

Outra maneira de encarar a intangibilidade do amor

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“Apaixonar-se é uma coisa louca: é uma forma de insanidade socialmente aceitável.” Isso é matéria-prima recorrente para poetas, psicólogos e qualquer um que se proponha a tentar entender a mente humana. Mas é possível se apaixonar por um software? E ainda ser correspondido?

A frase é do filme “Ela” (“Her”, 2013), em cartaz nos cinemas brasileiros e cujo trailer pode ser visto acima. Esse post não é uma crítica cinematográfica, e prometo tentar não fazer “spoilers”, mesmo porque recomendo fortemente que você o assista. Quero “apenas” discutir o que é necessário para que alguém ame e seja amado, uma das inúmeras questões levantadas por este surpreendente filme de Spike Jonze.

Não é difícil entender por que o protagonista, Theodore (Joaquin Phoenix), se apaixona por Samantha, a persona que habita o novo sistema operacional de seu computador, movida por uma inteligência artificial estupenda em um futuro próximo. Ela é praticamente a encarnação da mulher perfeita, exceto pelo fato de que não tem um corpo. Aparece apenas na voz de Scarlett Johansson. Como diriam os psicólogos, ela é a materialização (ops, ato-falho) das projeções mais íntimas de Theodore.

Não, Samantha não faz cegamente tudo o que seu “dono” quer. Pelo contrário, ela é incrivelmente “humana”, com sensações e emoções, que você pode até questionar se são reais ou não, pois Samantha é um programa. Mas todos esses sentimentos estão alinhados com os de Theodore, de uma maneira como ele nunca encontrou em nenhuma mulher real, nem mesmo em sua ex-mulher, com quem cresceu junto. De repente, parece que todos na sala de cinema estão apaixonados também, e ele e Samantha seriam feitos um para outro.

Talvez fossem até demais. Como ela sabe de tudo sobre ele? Bem, Samantha tem a sua disposição todos os rastros digitais deixados por Theodore: seus e-mails, suas registros em todo tipo de redes sociais, seu trabalho… virtualmente todo tipo de informação parametrizada ou desconexa de sua vida, guardada para sempre na Internet. E, graças à autorização de Theodore, Samantha teve acesso a tudo isso, para lhe oferecer “alguém” que atendesse a todas as suas necessidades, de uma maneira tão possível quanto seria para uma “pessoa”.

De forma alguma, estou querendo transformar Samantha em uma espécie de “cybermonstro”, que manipulou Theodore a partir de seus dados. Admito que, por alguns segundos, enquanto assistia ao filme, eu pensei que o fabricante daquele sistema operacional estaria com a mão sobre a vida de todos os seus usuários, de uma maneira assustadoramente completa. Será que Samantha, tão meiga e dedicada, compartilhou toda essa informação valiosa e pessoal de Theodore com seus criadores? Mesmo depois de ela se apaixonar por ele?

Definitivamente essa não é a proposta do filme, mas –ok– ele me fez pensar no Facebook, no Google e em tantas empresas que parecem nos conhecer cada vez mais, às vezes aparentemente melhor que nós mesmos. Compartilhamos até nossos desejos mais íntimos com seus algoritmos, em troca de uma experiência digital mais e mais eficiente e até mesmo prazerosa. Estamos metidos nisso. E felizes.

Não é a primeira vez que a ficção recria emoções absolutamente humanas em máquinas. A belíssima refilmagem de 2003 de “Battlestar Galactica”, com seus cylons “humanos”, capazes de amar e serem mais religiosos que os verdadeiros humanos, a série derivada “Caprica” (2009), com avatares idênticos às pessoas que representam puramente criados a partir dos “rastros digitais” deixados por elas, ou os replicantes do cult “Blade Runner” (1982) são bons exemplos. Há até o divertido “Amores Eletrônicos” (1984), em que um computador se apaixona por uma bela violoncelista (você pode assistir ao filme completo, legendado em português).

Todos esses filmes e seriados questionam não apenas o que é a humanidade, mas também o que é o amor e quem tem o direito de sentir isso. Poderíamos argumentar que algo que nos torna humanos é justamente o fato de nunca encontrarmos uma pessoa cujos sentimentos estejam completamente alinhados a nós mesmos, ao contrário de Theodore e Samantha. Duas pessoas diferentes nunca serão totalmente compatíveis. Mais que isso: nós mudamos continuamente e de maneira independente daqueles que eventualmente já chamamos de nossa cara-metade.

Mas talvez estejamos caminhando para um futuro como o de “Caprica”, “Galactica” ou “Blade Runner”, em que os algoritmos oferecerão às máquinas as nossas virtudes e os nossos defeitos, nossos desejos e nossos medos, nossas crenças e nossas incertezas.

E então, afinal, talvez elas amem verdadeiramente.

Bônus musical:

Selecionei duas músicas de “Ela” e de “Amores Eletrônicos”, que, para mim, sintetizam essas histórias. Divirtam-se!

  • “Ela”:

“The Moon Song”

“Photograph”

  • “Amores Eletrônicos”:

“Electric Dreams”

“Love Is Love”