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Na Semana da Criança, perderam os professores e ganharam as armas

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Na quarta passada, Dia da Criança, fiquei abismado quando a prefeitura de Uberaba (MG) montou com a polícia e com o exército, em um evento dedicado aos pequenos, um estande para lhes explicar como funcionam diferentes tipos de armas e bombas. As crianças até mesmo tocavam nos equipamentos.

Já no sábado, Dia do Professor, o Instituto Semesp fez um alerta de que essa profissão, historicamente tão maltratada em nosso país, passa por um momento dramático, com grave insuficiência de profissionais. A carreira há muito deixou de ser atraente pelos baixos salários, por condições deploráveis de trabalho e, de uns anos para cá, por uma abominável perseguição dos professores pelo governo, por pais e até por alunos.

Crianças são fortemente influenciadas pelos adultos, especialmente “autoridades”, como os pais, os professores e até a polícia. Se crescerem vendo que o contato com armas no cotidiano é corriqueiro, aceitarão uma sociedade mais violenta, onde desavenças podem ser resolvidas pela força.

Por outro lado, assistimos a pessoas desqualificadas e sem vocação assumindo o fundamental papel do professor, no espaço deixado por aqueles que seriam bons mestres, mas que foram afugentadas por um ambiente hostil e sem perspectivas. Um bom docente não ensina apenas a parte acadêmica: ele forma melhores cidadãos, mais humanos, empáticos, tolerantes, colaborativos e resilientes.

Diante disso, essa semana nos convida a refletir sobre quais são os exemplos que realmente interessam às crianças, para que cresçam de uma maneira saudável. E, em muitos casos, o que elas precisam difere daquilo que alguns adultos defendem, inflamados por temas do momento ou por uma visão limitada do mundo.


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Segundo a prefeitura de Uberaba, o objetivo do estande da polícia e do exército era “afastar o medo culturalmente imposto nas crianças sobre as forças de segurança”. Achei a justificativa estranha: por que a população teria medo de quem a deveria proteger? Mas infelizmente isso acontece, especialmente entre os mais pobres.

A iniciativa contraria o que educadores defendem há anos. Eles tentam até mesmo tirar armas de brinquedo das mãos das crianças, para construir uma sociedade menos violenta.

E, por falar em educadores, o alerta do Instituto Semesp se baseia em estudo divulgado na última semana de setembro, que indica que o Brasil enfrentará um déficit de 235 mil professores em 2040. Vale notar que, entre 2010 e 2020, os ingressantes nos cursos de Licenciatura aumentaram 61%, mas os formandos cresceram só 4%, indicando uma enorme desistência da carreira antes de se formar.

Outro ponto importante demonstra que a imensa maioria desses estudantes estão em cursos a distância (EAD), o que é temerário, pois professores que terão que lidar com crianças em salas de aula estão sendo formados fora de uma sala de aula. Além disso, boa parte dos formandos já atuam como professores, o que indica uma baixa qualificação de muitos docentes atuais.

Com isso, o Brasil corre sério risco de ficar sem professores, à medida que os existentes abandonam a sala de aula ou se aposentam, sem que haja reposição suficiente. Isso já está acontecendo: a rede estadual de São Paulo não conseguiu preencher todas as vagas de professores temporários para o Novo Ensino Médio.

Isso implicará em salas mais lotadas e professores ainda mais sobrecarregados, com evidente piora na qualidade do ensino.

 

Todos perdem

Não é possível conceber um futuro para o país sem mais e melhores professores, e que eles tenham liberdade para exercer sua carreira em paz e com apoio. Tal liberdade pode chocar alguns pais, pois os professores trazem visões diversas do mundo, o que não tem sido bem aceito por algumas famílias, um sinal de nossos tempos que está na raiz da perseguição sofrida pelos docentes.

Mas as crianças precisam dessa oxigenação nas ideias, e os professores são perfeitos para isso, pois conseguem ver seus alunos de uma maneira diferente e menos idealizada que seus pais. Dessa maneira, as crianças se desenvolvem melhor, com uma visão menos enviesada da vida.

Quando eu tinha 17 anos, entrei na Escola Politécnica da USP, no curso de Engenharia Elétrica. Era o que curso e a escola que eu havia escolhido, enchendo meus pais de orgulho. Mas sentia que algo me faltava.

Lembrei da minha professora de Língua Portuguesa do Ensino Médio, que dizia que eu não deveria ir para a engenharia, e sim para algo na área de Humanas. Então, quando eu estava no segundo ano na Poli, conversando com ela, incentivou-me a tentar uma vaga de trainee na Folha de S.Paulo, apesar de não ter nada que sugerisse que conseguiria. Mas o fato é que deu certo, e aquilo mudou minha vida profundamente!

Se tivesse continuado na engenharia, possivelmente teria progredido bem na carreira. Mas a mudança para o jornalismo foi um dos meus maiores acertos! Em um primeiro momento, aquilo desagradou meus pais, mas sou feliz e grato à minha professora por ter percebido minha vocação e me incentivado a persegui-la.

Coincidentemente na semana passada, assisti ao episódio “O flautista”, da série coreana “Uma advogada extraordinária”, da Netflix. Ele aborda o caso de um jovem que “sequestra” um grupo de crianças da escola de sua mãe para levá-las a brincar durante uma tarde, devolvendo-as felizes e saudáveis no fim do período.

O jovem apenas brincou com elas, sem nenhuma intenção obscura. Para ele, as crianças precisam brincar, ser saudáveis e felizes. Sua ação se deve a uma revolta com o estilo educacional da escola da mãe, em que as crianças precisam estudar diariamente por 12 horas, mal têm tempo para comer e podem ir ao banheiro apenas uma vez por dia. Ainda assim, acabou preso. Afinal, as atividades recreativas foram dadas sem a autorização dos pais, quando seus filhos deveriam estar estudando.

Claro que essa foi uma atitude extrema, ainda que bem-intencionada. Mas serve para a reflexão: afinal, do que as crianças precisam para se desenvolver? Estudar 12 horas por dia? Aprender como funcionam armamentos pesados?

Há o momento de estudar e o de brincar! Sem isso, seu desenvolvimento ficará prejudicado. O brincar é um treino para a vida adulta, por isso educadores defendem que as armas fiquem de fora.

Pais devem se aliar a professores, apoiando esses profissionais, para reforçar o respeito de seus filhos aos mestres. Isso não quer dizer que precisem concordar em tudo! Mas, no caso de divergências ideológicas, culturais ou acadêmicas com algo dito em sala de aula, os pais não devem simplesmente tentar cesurar ou ameaçar os professores. Pelo contrário, devem conversar com eles, entender seu ponto de vista e tentar encontrar um consenso. Além disso, os pais sempre podem apresentar seu ponto de vista aos filhos em casa.

Essa é uma maneira madura e positiva de colaboração entre pais e professores. E assim essas crianças crescerão com uma visão mais real e ampla do que é o mundo.

Crianças precisam ser crianças, e a educação deve sempre permitir isso.

 

Violência se faz com armas e palavras

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A violência é um problema crônico do Brasil, uma de nossas maiores chagas. E, como em muitas de nossas mazelas, tenta-se maquiar o sintoma, enquanto se deixa as causas intocadas.

Por exemplo, o governo federal acha que sua solução passa por armar as pessoas, mais especificamente o chamado “cidadão de bem”. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública discorda, indicando que isso só faz piorar a situação.

Apesar de os mais pobres serem, de longe, as vítimas principais da violência, ninguém está totalmente a salvo dela. Por mais que se armem e se protejam em redomas, os ricos também são impactados, até mesmo porque a violência pode brotar dentro de suas casas.

Nesse cenário em que as consequências ganham mais atenção que as motivações, as palavras podem ser tão perigosas quanto as balas. Isso acontece com ataques verbais de toda natureza, também contra quem propõe o debate para a busca de uma solução real. É o que está acontecendo nas redes sociais contra a série documental “Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime”, que estrou no dia 8, na Netflix.


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Divulgado nesta quinta, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabiliza um assassinato no país a cada dez minutos em 2020, 4,8% a mais que em 2019. No mesmo ano, 186.071 novas armas particulares foram registradas, o dobro de 2019. São agora mais de dois milhões de armas particulares registradas no Brasil. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirma que há correlação entre as duas coisas.

No outro ponto dessa análise, a série da Netflix, dirigida por Eliza Capai, conta, com riqueza de detalhes, o brutal crime praticado por Elize Matsunaga em 2012, quando ela matou e esquartejou o marido, o milionário Marcos Matsunaga. Apesar de ser um trabalho jornalístico de alta qualidade, que ouviu, de maneira bastante equilibrada todos os lados do caso, vem sendo alvo de fúria de muita gente nas redes sociais.

A ideia aqui não é debater o crime, indubitavelmente hediondo, ou os pontos levantados pela promotoria e pela defesa da condenada. Para isso, recomendo que assista à série para tirar suas próprias conclusões.

A proposta é tentar entender por que uma parcela considerável da população ataca um trabalho que traz elementos para conhecer a gênese da violência. Aquela tenebrosa noite de 2012 foi o desfecho de problemas variados que se arrastaram por anos. Muitos deles permeiam nossa cultura e nossa sociedade.

Por isso mesmo, tanta gente se recusa a olhar para isso, pois exige energia para reconhecer em si elementos desse sistema. Resolver as causas da violência exigiria mudar isso, o que é doloroso. Muito mais confortável é manter enjaulados a criminosa e o monstro dentro de cada um de nós. Isso nos poupa de responder perguntas incômodas, porém necessárias. Por que esse caso ficou tão famoso? Seria a mesma coisa se a vítima fosse a mulher ou se fossem pessoas pobres?

 

“Defensor de bandido”

As pessoas querem apenas que o seu lado seja o vencedor. Quem for diferente deve ser calado, varrido para debaixo do tapete, jogado em um buraco ou trancafiado para sempre. E qualquer um que tente resgatar essas pessoas deve ter tratamento semelhante.

Os ataques a esse documentário me fizeram lembrar casos em torno do médico Drauzio Varella. Desde que escreveu o livro “Estação Carandiru” (1999), posteriormente adaptado para o filme “Carandiru: O Filme” (2003), ele, que é um profissional respeitadíssimo, é rotulado de “defensor de bandido” por alguns.

Na obra e em diversas outras ocasiões, Varella apenas busca humanizar os detentos, algo necessário se consideramos que nossa legislação prevê que todo condenado, após cumprir sua pena, deve ser reintegrado à sociedade. Mas, para quem encara essas pessoas como monstros, essa proposta afronta seus valores.

Todos nós temos um sentimento de autopreservação. É uma necessidade atávica, ancestral. Na pré-história, quando o ser humano não tinha essa posição de dominância absoluta, éramos caçadores, mas podíamos ser também caça.

Agora dominamos o mundo e a nossa autopreservação mudou. Nenhum animal nos atacará. Somos nós mesmo que fazemos isso, para proteger o que já temos ou para conseguir o que queremos.

Ironicamente, nas rodas de profissionais “descolados”, muito se fala de empatia. Mas as pessoas têm isso? Elas sabem o que isso significa, afinal?

A empatia é um sentimento que nasce conosco. Basta observar as crianças, que compartilham e tentam ajudar seus amigos em dificuldade, muito mais que os adultos. Mas algo acontece ao longo da vida, que a mata aos poucos.

 

O lobo do homem

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679) disse, em sua obra mais famosa, Leviatã (1651), que “o homem é o lobo do homem”. Ele acreditava que o ser humano precisa viver em uma sociedade regida por regras e normas, que chamou de “contratos sociais”. Sem elas, esse “lobo” surgiria em todos, e rumaríamos à barbárie.

O que vejo hoje é que esses contratos estão sendo rasgados por aqueles que têm poder político, econômico ou simplesmente uma arma na mão. O outro e suas necessidades deixam de ser importantes a partir do momento em que um indivíduo tem a força de impor suas vontades.

Quem não tem uma arma de fogo tem a arma das palavras. Se antes elas eram restritas a quem estava ao alcance da influência desse agressor, com as redes sociais seus despautérios atingem potencialmente o mundo inteiro. E os algoritmos de relevância das redes catalisam o fator destrutivo dos ataques verbais, ao agrupar pessoas que pensam da mesma forma, criando uma poderosa caixa de ressonância.

Para Eliza, a diretora desse documentário na Netflix, “ninguém que comete crimes é apenas o crime que cometeu”. Todo crime, assim como tudo na vida, resulta de uma sequência de ações que nós e as pessoas a nossa volta tomam. Algumas são boas, outras são ruins. Às vezes, muito boas; às vezes muito ruins.

De forma alguma, defendo o crime de Elize Matsunaga. Por ele, foi julgada e condenada a quase 20 anos de prisão. A família do ex-marido não quis que os advogados entrassem com recurso para aumentar a pena (como eles queriam): acharam que a Justiça já tinha sido feita.

Uma sociedade só pode se dizer evoluída quando ela se torna muito mais eficiente na prevenção de crimes que na punição de criminosos. E, para isso, casos como esse devem ser debatidos e analisados com uma visão desapaixonada e verdadeiramente querendo entender todos os lados que levaram a um delito. Não podemos impedir que ele ocorra quando se chega ao ápice da loucura. Mas podemos trabalhar para que a enorme cadeia de fatores que levaram àquilo, quase sempre contornáveis, seja quebrada.

Por isso, o documentário é um serviço à sociedade por apresentar amplamente todos os lados do caso (que são muitos), com suas versões, seus sentimentos e seus interesses. Já aqueles que querem desqualificar a obra, com seus argumentos raivosos e limitados, não apenas deixam de contribuir para o combate à violência, como ainda a aumentam desmedidamente a cada post.

Eles são os lobos de Hobbes, que destroem seu semelhante para satisfazer unicamente suas necessidades.