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Tim Cook, CEO da Apple: empresa foi multada pela União Europeia em €1,8 bilhão - Foto: Christophe Licoppe/Creative Commons

Como a tentativa europeia de enquadrar as big techs impacta nossas vidas

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Na segunda passada (4), a Apple foi multada pela União Europeia em €1,8 bilhão (cerca de R$ 9,8 bilhões), em um processo movido pelo Spotify há cinco anos, que a acusava de práticas de concorrência desleal. A decisão impacta muito mais que a empresa e seus clientes: ela reflete mudanças que vários governos tentam impor às big techs para reduzir seu enorme poder sobre a vida da população global.

A principal queixa era a exigência pela Apple de que os aplicativos para o iPhone e o iPad sejam instalados exclusivamente a partir da App Store, com a empresa ficando com 30% das transações na sua plataforma. O Spotify entendia que o Apple Music, serviço de streaming da Apple, tinha uma vantagem indevida, pois esses 30% ficavam na empresa. Além disso, ele já vem pré-instalado em todos esses equipamentos.

Travestida de facilidade para os clientes, essa sutil imposição dos próprios produtos valendo-se de ser dono de um ecossistema digital foi criada pela Microsoft na segunda metade da década de 1990, graças à dominância do Windows. Nos anos seguintes, o modelo foi aperfeiçoado pela Apple, Google e Meta. O processo foi tão eficiente, que nós, os usuários, mal percebemos essa dominação e achamos tudo normal.

Mas isso pode estar com os dias contados. Na Europa, as big techs fizeram mudanças profundas em seus modelos de negócios, graças à Lei dos Mercados Digitais (ou DMA, na sigla em inglês), que passou a valer na quinta passada (7). Pelo tamanho do mercado europeu e por suas regulações da tecnologia inspirarem leis ao redor do mundo, podemos começar a ver movimentos semelhantes em outras regiões.

Essas empresas construíram seus impérios digitais praticamente sem regras, focadas nos lucros, esmagando concorrentes e com rumos definidos apenas pelas suas próprias bússolas morais. Resta saber se o surgimento dessas novas leis realmente encerrará esse período de “autorregulação” e se isso beneficiará os seus clientes.


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A nova lei europeia afeta como as big techs produzem e distribuem seus produtos, os métodos de pagamento e até a publicidade online, visando garantir a concorrência. Quem desobedecê-la pode ser multado em até 20% de sua receita global.

Por isso, a Apple agora permite lojas de aplicativos de terceiros em seus produtos, o Google alterou o Android para usuários trocarem o Chrome por outro navegador e o Google por outro buscador, e a Meta aceita que outros serviços conversem com o WhatsApp e o Messenger, além de permitir que contas do Facebook e do Instagram sejam desvinculadas. A Microsoft já aceita que os usuários desativem o Bing no Windows, e a Amazon solicita o consentimento dos clientes para personalização de anúncios. Por fim, o TikTok agora permite que os usuários baixem todos seus dados na plataforma. Mas tudo isso só vale para os europeus!

Os legisladores de lá entendem que a melhor maneira de ter mais concorrência é ela acontecer na plataforma, e não a substituir. A DMA reforça a União Europeia como o órgão regulador mais agressivo para a tecnologia, já tendo criado regas sobre privacidade de dados, moderação de conteúdo online e inteligência artificial.

As big techs não vendem barato essas derrotas no mundo todo. Basta lembrar o que fizeram no Brasil no ano passado, quando o chamado “PL das Fake News” seria votado, para tentar regular abusos nas plataformas digitais. Elas fizeram um pesado lobby junto aos políticos e usaram sua máquina de convencimento para cooptar a população a seu favor. O projeto acabou engavetado.

“Empresas têm liberdade para oferecer seus produtos e serviços da maneira que considerarem mais estratégica, mas essa liberdade é limitada por leis que procuram prevenir práticas que restrinjam a concorrência”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propagando e Marketing (ESPM). “Também há questões relativas ao direito do consumidor, já que, por exemplo, no Brasil se proíbe a venda casada e outras práticas que violem o direito de escolha”, conclui.

As big techs chegaram a pedir ajuda ao governo americano contra a nova lei europeia, argumentando que ela seria contra os trabalhadores e os interesses dos Estados Unidos. A Casa Branca, mais interessada no apoio europeu para questões como a guerra da Ucrânia, não interferiu.

Mas se a concorrência é benéfica ao mercado e aos clientes, por que não vemos movimentos tão contundentes quanto a DMA fora da Europa?

 

Benefícios e prejuízos aos clientes

Ao longo dos anos, as empresas de tecnologia souberam aproveitar lacunas na legislação para criar seus monopólios. Além disso, são inegáveis os benefícios que sua tecnologia trouxe para a sociedade. Por isso, muitas se tornaram empresas queridas pelos clientes e pela mídia.

Ninguém propõe o fim dessas empresas ou que se deixe de usar seus produtos, e sim que tanto poder não seja usado para esmagar a concorrência. “A questão central é se os benefícios imediatos para os consumidores superam os potenciais prejuízos a longo prazo decorrentes de práticas anticompetitivas”, explica Crespo.

De certa forma, essas leis representam um amadurecimento do setor de tecnologia, a exemplo do que se vê em outros importantes e altamente regulados, como o farmacêutico, o bancário e o automobilístico. Porém mesmo os criadores dessas regras têm dúvidas se elas diminuirão a posição de incrível dominância dessas empresas. Eles esperam que, pelo menos, elas ajudem novos concorrentes a surgir e a prosperar. As big techs, por sua vez, têm muito dinheiro e talentos para se adaptar aos novos cenários. Para Crespo, “o que estamos vendo é uma redefinição das regras do jogo, que visa criar um ecossistema digital mais competitivo e inovador”.

Essas iniciativas funcionam quase como apostas para um mercado mais diverso e saudável. Talvez essas empresas usem suas fortunas, seus produtos e seus exércitos de advogados para sufocar as propostas, mas isso seria muito ruim, pois não bastam mudanças cosméticas para que vejamos o florescimento de uma concorrência real, capaz de beneficiar a sociedade.

Sem isso, continuaremos vendo nossas vidas sendo guiadas por uma mão invisível tecnológica, que nos afaga com inovações verdadeiras, mas que nos coíbe de buscarmos isso em outras fontes. Nossa liberdade de escolha e até de pensamento vem sendo tolhida há muito tempo, enquanto ficamos presos nessas gaiolas douradas.

 

O CEO da OpenAI, Sam Altman, que ganhou a briga contra o antigo conselho da empresa - Foto: Steve Jennings/Creative Commons

Esse foi o ano da inteligência artificial, sem dúvida

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Todo ano uma tecnologia desponta como inovadora, capturando mentes e manchetes. Ao final de 2023, poucas pessoas destacariam outra coisa que não fosse a inteligência artificial. Ela deixou de existir apenas em debates acadêmicos e de especialistas para ocupar rodas de conversas de leigos em mesas de bar. Mas o que fez uma tecnologia septuagenária e que já integrava nosso cotidiano (ainda que a maioria não soubesse disso) ganhar tamanha importância?

A resposta passa pelo lançamento de um produto: o ChatGPT. Apesar de ter sido liberado em 30 de novembro de 2022, nesse ano se tornou o produto de mais rápida adoção da história (e não me restrinjo a produtos digitais), com 100 milhões de usuários em apenas quatro meses! Mas a despeito de suas qualidades, sua grande contribuição foi demonstrar ao cidadão comum o poder da IA. E isso detonou uma corrida frenética para inclusão dessa tecnologia em todo tipo de produtos.

O ChatGPT faz parte de uma categoria da inteligência artificial chamada “generativa”. Isso significa que ele é capaz de gerar conteúdos inéditos (no seu caso, textos) a partir do que sabe. Parece mágica para muita gente, mas uma outra característica sua talvez seja ainda mais emblemática: o domínio da linguagem humana, e não termos truncados ou computacionais. E uma linguagem complexa, estruturada e consciente nos diferenciava dos outros animais e das máquinas.

Agora não mais das máquinas! Ao dominar a linguagem humana, a IA praticamente “hackeou” o nosso “sistema operacional”. E essa é a verdadeira explicação para 2023 ter sido o ano da inteligência artificial.


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Como é preciso quebrar alguns ovos para fazer uma omelete, toda essa transformação trouxe algumas preocupações. Uma das primeiras veio da educação, com professores temendo que perderiam a capacidade de avaliar seus alunos, que passariam a usar o ChatGPT para fazer seus trabalhos. Alguns professores chegaram até a temer que fossem substituídos de vez por máquinas inteligentes. Felizmente nada disso aconteceu, mas o debate serviu para educadores perceberem que precisavam reciclar a maneira como ensinavam e avaliavam seus alunos.

O medo de ser substituído pela máquina também atingiu funções que antes se sentiam imunes a isso, por serem trabalhos criativos. E esse é um temor legítimo, pois muita gente já está perdendo mesmo o emprego para a IA. Mas há “esperança”!

A inteligência artificial realmente cria coisas incríveis depois de processar quantidades obscenas de informação, encontrando soluções que nem o mais experiente profissional conseguiria. Mas ela também erra, e erra muito! São as chamadas “alucinações”, termo que entrou em nosso cotidiano em 2023 com essa acepção.

Trata-se de informações incorretas (às vezes muito erradas) que as plataformas inventam e incluem em suas produções, para tentar atender aos pedidos dos usuários. Por conta delas, muita gente se deu mal em 2023, até perdendo o emprego, por apresentar trabalhos com esses erros grosseiros. Portanto, bons profissionais ainda são necessários, para verificar se a IA não está “mentindo” desbragadamente.

As big techs abraçaram a IA! Depois que o ChatGPT foi chamado inicialmente de “assassino de Google” (outra bobagem que não se concretizou), o próprio Google correu para lançar em fevereiro o seu produto, o Bard, tentando deixar para trás a sensação de que tinha perdido a corrida de algo que já pesquisava havia muitos anos. No segundo semestre, a Meta incorporou seu Llama 2 a suas plataformas.

Mas quem acabou aparecendo com força mesmo foi a Microsoft, que teria investido algo como US$ 12 bilhões na OpenAI, criadora do ChatGPT. Com isso, essa tecnologia foi incorporada em muitos de seus produtos, como o Bing e o Word.

A inteligência artificial parece estar em toda parte. Mas isso é só o começo!

 

“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”

A IA realmente deslumbrou todos. Não é exagero afirmar que, mesmo em seu estágio atual, para muitos ainda embrionário, ela já está transformando o mundo. Mas para muita gente, ela está indo rápido demais.

Hoje há um embate entre dois movimentos. De um lado, temos o “Altruísmo Eficaz”, que defende que o desenvolvimento da IA seja bem regulado, para evitar que ela se torne muito poderosa e destrua a humanidade. Do outro, há o “Aceleracionismo Eficaz”, que defende justamente o contrário: que seu desenvolvimento aconteça totalmente livre, sem regras. Para esses, os benefícios da IA superam eventuais riscos que traga, por isso deve acontecer o mais rapidamente possível.

Esse embate provocou um abalo sísmico no dia 17 de novembro, quando o conselho da OpenAI sumariamente demitiu Sam Altman, fundador e CEO da empresa. Os conselheiros alegaram que Altman não era mais “confiável”. Isso porque a OpenAI nasceu como uma organização sem fins lucrativos, para criar uma IA “que beneficiasse a humanidade”. Com o tempo, Altman percebeu que, se não criasse produtos comerciais para captar novos investimentos, a empresa não evoluiria. Foi quando se juntou à Microsoft!

O que se viu nos cinco dias seguintes foi uma reviravolta cinematográfica, com Altman recebendo apoio massivo dos funcionários da empresa e dos investidores, especialmente da Microsoft. Nesse curtíssimo tempo, reassumiu o cargo e o antigo conselho renunciou. No novo, a Microsoft ganhou um assento.

Por tudo isso, o ano que começou com uma mistura de deslumbramento e temor em torno da inteligência artificial termina com um debate fortíssimo em vários países, inclusive no Brasil, se essa tecnologia deve ser regulamentada. A preocupação é que, se empresas de redes sociais, que não respondem pelos problemas que causam, racharam sociedades ao meio, a IA poderia criar danos potencialmente muito maiores, se usada para o mal e sem nenhuma responsabilização dos usuários e das plataformas.

Com tudo isso, esse definitivamente não foi um ano típico na tecnologia! As mudanças promovidas pela inteligência artificial foram tantas e tão intensas que é como se todo esse debate estivesse acontecendo há muitos anos. Mas não: ele aconteceu todo em 2023. Portanto, não há como negar à inteligência artificial o título de tecnologia mais impactante do ano, para não dizer da década! Precisamos nos apropriar adequadamente dela!