
Se fosse lançada hoje, a tirania dos algoritmos das plataformas de streaming teria matado “Bohemian Rhapsody”, obra-prima do Queen. Seus 5 minutos e 55 segundos e estilo para lá de ousado não passariam pelo crivo dessas plataformas, que promovem insistentemente músicas de até 3 minutos, para satisfazer uma geração de ouvintes ansiosos. Mas outro fator nos privaria dessa que é considerada uma das músicas mais inventivas da história: a “criatividade estatística” da inteligência artificial.
O debate ganhou força com regras do Spotify para coibir o uso indevido de IA em sua plataforma, anunciadas no dia 24 de setembro. Elas incluem filtros rígidos para evitar spam musical, proteção contra a imitação não autorizada de artistas e a exigência de transparência na adoção da tecnologia. Segundo a plataforma, o objetivo não é punir o “uso criativo” da IA, mas impedir práticas que prejudiquem artistas e ouvintes.
Apesar de restrições assim, o concorrente Deezer aponta que hoje 28% das músicas publicadas na plataforma são totalmente feitas por IA; em janeiro, eram “apenas” 10%. Um estudo da consultoria francesa PMP Strategy, publicado em dezembro, indicou que, até 2028, os artistas perderão 24% da receita no setor, pela substituição das obras humanas pelas geradas por IA e pelo uso não autorizado de criações originais.
As plataformas de streaming e a IA estão transformando nosso gosto e a própria produção musical. Mas essas mudanças vão muito além do audiovisual. Com o tempo, a IA modificará qualquer tipo de produção em nosso cotidiano, e infelizmente há um risco concreto de que isso leve a uma piora acentuada na qualidade.
Isso acontecerá porque já estamos usando, como ferramenta criativa, uma tecnologia que muitos especialistas afirmam não ter nenhuma criatividade. E isso pode gerar um círculo vicioso que achatará cada vez mais o nível da sociedade.
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O limite dos três minutos dos algoritmos acontece porque, se alguém não ouve uma música até o fim, eles entendem que a pessoa não gostou tanto dela, passando a promovê-la menos. Como uma música curta tem mais chance de ser ouvida inteira, os artistas estão se limitando a esse tempo, mesmo que isso castre seu desejo criativo.
A inteligência artificial, que é mestre em identificar padrões e maximizar resultados, já captou esse comportamento. Por isso, as músicas que produz estão cada vez mais curtas e óbvias, abolindo recursos como introduções e solos instrumentais. É o “fast food musical” levado às últimas consequências, criando obras musicalmente ruins, mas fáceis de agradar um público intelectualmente mais preguiçoso.
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Tudo isso é polêmico. O que torna uma música “boa” depende de técnica, emoção e contexto cultural. Aspectos como harmonia, melodia e produção influenciam a qualidade, mas não se pode ignorar a capacidade de gerar conexão emocional. Além disso, valores culturais e de época moldam a percepção, indicando que o julgamento musical é sempre atravessado pelo gosto pessoal.
A IA se sai bem na parte técnica da criação, pois reproduz padrões de harmonia, melodia e arranjo aprendidos ao analisar milhões de músicas, o que garante rapidez, baixo custo e versatilidade. Mas ela falha no resto, pois lhe falta emoção, intenção e vivência cultural, elementos que transformam um amontoado de notas em uma obra de arte capaz de marcar as pessoas.
É por isso que músicas, textos, vídeos e qualquer produção da IA podem ser tecnicamente impecáveis, mas costumam ser sempre “mais do mesmo”. Parece legítimo, então, discutir se essa tecnologia é afinal criativa.
A essência da criatividade
Na verdade, esse questionamento pode mais confundir que ajudar. O problema não é se máquinas podem ser inventivas, mas entender o que realmente significa criatividade e se estamos dispostos a reconhecê-la em processos não-humanos.
A IA pode combinar elementos de formas inesperadas, produzindo trabalhos originais e, em alguns casos, até surpreender. Se um humano fizesse o mesmo, chamaríamos de criatividade sem pestanejar. Mas críticos argumentam que a IA apenas recombina padrões aprendidos em seu treinamento, sem verdadeira compreensão ou intenção.
A criatividade humana também opera por recombinação. Artistas criam a partir de conceitos e técnicas que aprenderam. Mas há duas diferenças essenciais. A primeira é a consciência e a intencionalidade do artista; a segunda, o fato de poder se inspirar pela sua experiência por estar vivo. Essas são duas coisas que a IA não tem. Assim, se criatividade for definida como a capacidade de criar algo novo a partir do que se sabe, a IA demonstra que pode haver criatividade sem consciência, simulada, diferente da humana em aspectos importantes.
A grande diferença recai na intencionalidade.
Talvez, no futuro, ela também consiga simular estatisticamente essa característica tão humana. Até lá, ela será refém de sua construção que privilegia sempre os caminhos mais óbvios, seguros e estatisticamente mais relevantes.
No final, esta estrutura e o despotismo dos algoritmos de relevância tornam o mundo mais homogêneo e menos criativo, seja com produções humanas ou artificiais. Desvios, falhas e o inesperado do nosso cotidiano, que alimentam os melhores artistas, não são tolerados pelas máquinas.
É por isso que a IA jamais comporia algo como “Bohemian Rhapsody”, a menos que a obra fosse detalhadamente solicitada por uma mente inquieta humana, capaz de olhar além do óbvio e do provável. Mesmo a “estética do erro”, que usa imperfeições e falhas como elementos criativos que desafiam a perfeição técnica, para novas formas de arte, não teria espaço com “artistas estatísticos”.
Diante dessa cisma criativa, talvez o mais produtivo seja começar a questionar como a criatividade da máquina se relaciona com a nossa, e descobrir como essas ferramentas podem ampliar nossa própria capacidade criativa.
O mais importante é que a criatividade artificial sirva a propósitos humanos e não apenas interesses comerciais, como parece acontecer no momento em que produz músicas, textos ou imagens tecnicamente perfeitas, mas de qualidade questionável, ainda que de fácil agrado. Afinal, uma das características mais marcantes da arte é nos ajudar a crescer como seres humanos, superando a mesmice do dia a dia.