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Sundar Pichai, CEO do Google e da Alphabet, anuncia o “Modo IA” na conferência Google I/O, em maio – Foto: reprodução

“Modo IA” do Google sedimenta mudanças em como faremos nossas buscas

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Quando foi lançado, o ChatGPT ganhou a alcunha de “assassino do Google”, pois muita gente achava que a sua proposta seria a nova maneira de se buscar conteúdo. Mas passados 33 meses, o uso do buscador mantém-se estável. A ironia é que uma novidade do próprio Google pode enterrar, aos poucos, seu formato consagrado.

Trata-se do “Modo IA”, que estreou no Brasil no dia 8, quatro meses depois dos EUA. Ele se parece ao ChatGPT, com uma janela para o usuário escrever o que quer e então receber uma resposta completa, construída pelo Gemini –a plataforma de IA do Google– sintetizando o conteúdo de páginas selecionadas pelo buscador.

Mas ao contrário do ChatGPT e do próprio Gemini, o “Modo IA” faz parte do buscador. Considerando que seu uso segue alto, isso pode ser determinante para popularizar o novo formato em substituição à busca tradicional. Assim a empresa pretende defender seu principal produto do crescimento das plataformas de IA concorrentes.

A novidade não deve ser vista como “apenas mais um recurso”. Seu sucesso pode alterar significativamente o processo de como buscamos conteúdo e construímos conhecimento, a exemplo do que o próprio Google fez no passado. Isso atende à demanda crescente por velocidade e praticidade, mas pode levar a ainda mais desinformação e conteúdos errados, e ampliar a tendência à superficialidade.

Mais grave é o risco de afetar cognitivamente os usuários. O “Modo IA” transforma a busca em um consumo passivo de respostas prontas, reduzindo o hábito de confrontar informações, exercitar a memória e analisar criticamente as fontes. Pela sua ilusão de completude, reduz a curiosidade e a busca por múltiplos pontos de vista, levando a um processo de “terceirização cognitiva”, em que delegamos tanta coisa às máquinas, que acabamos enfraquecendo nossa própria autonomia intelectual.

Surge então a dúvida legítima se esse recurso é mais positivo ou negativo para nós.


Veja esse artigo em vídeo:


Em julho de 2011, a pesquisadora Betsy Sparrow, da Universidade de Columbia (EUA), publicou, na prestigiosa revista científica Science, um artigo em que explicava como buscadores já funcionavam na época como “memórias externas” para nosso cérebro. Batizado de “Efeito Google”, ela demonstrou que memorizamos menos informações quando sabemos que elas podem ser facilmente encontradas. Em contrapartida, ficamos melhores em criar estratégias de pesquisa.

A inteligência artificial generativa nos leva a um outro patamar, pois a construção de respostas confrontando as fontes trazidas por um buscador é substituída por fazer boas perguntas ao sistema. Se as pessoas ainda analisassem criticamente as respostas da IA e verificassem sua correção, o problema não seria tão grande.

Mas as respostas da IA transmitem a sensação de serem “verdades definitivas”, quando, na prática, são apenas construções probabilísticas feitas a partir de padrões de dados. Assim, ao terceirizar a seleção e interpretação, as pessoas podem perder o hábito de confrontar informações, criando uma relação passiva com o conhecimento, em que a resposta não vem da investigação, mas do consumo imediato.

Extrapolando as conclusões de Sparrow, a ciência mostra que, quando não precisamos acessar a memória ou estruturar argumentos, há um enfraquecimento de circuitos neurais ligados à retenção e à análise crítica. A IA então pode mesmo nos deixar mais rápidos, entretanto também mais superficiais, se abusarmos desse recurso. Funciona no curto prazo, mas enfraquece nossa autonomia intelectual no longo prazo.

Outra pergunta legítima é por que o Google lançou o “Modo IA” se já tem a sua plataforma Gemini consolidada em smartphones e computadores. Entender a diferença entre ambos ajuda a esclarecer o escopo dessa novidade.

 

Google versus Google

O Gemini é o modelo de linguagem de IA da empresa, que alimenta diferentes aplicações, inclusive o próprio “Modo IA”. Este, por sua vez, oferece uma busca com raciocínio avançado, multimodalidade e capacidade de dividir perguntas complexas em subtópicos, com respostas aprofundadas em texto, tabelas e links relacionados.

O Gemini brilha em experiências amplas de assistente pessoal, realizando diversas tarefas, incluindo controle do smartphone, acesso a aplicativos, interação multimodal, personalização e respostas complexas em linguagem natural. Já o “Modo IA” é indicado para se obter respostas detalhadas e estruturadas a partir de múltiplas fontes da Web. Vale dizer que o Gemini também faz buscas, mas só se considerar que não consegue responder usando apenas seu treinamento.

Não se pode esquecer que todas essas plataformas –Gemini, “Modo IA”, ChatGPT e suas concorrentes– ainda erram muito. Um grupo de pesquisadores da OpenAI (criadora do ChatGPT) publicou recentemente um artigo em que reconhecem que isso acontece, em parte, porque elas são construídas para sempre darem uma resposta, mesmo que seja um “chute” baseado no que parece mais provável.

Isso se deve a como todos esses modelos são treinados, aprendendo a prever a próxima palavra em uma frase, mas sem informações sobre aquilo ser verdadeiro ou falso. As métricas tradicionais recompensam só respostas totalmente corretas e não penalizam erros, o que incentiva o modelo a arriscar e até inventar respostas, em vez de admitir quando não sabe ou está incerto. Para os pesquisadores, os modelos deveriam ser recompensados por indicar incerteza e punidos por erros cometidos com confiança excessiva, estimulando respostas mais cautelosas.

O Google avisa que “o Modo IA se baseia nos nossos principais sistemas de qualidade e classificação, e estamos usando abordagens inovadoras para aprimorar a veracidade”, e que “nem sempre vamos acertar, mas tenha certeza de que estamos trabalhando para melhorar dia após dia”.

Essa mea culpa é muito pouco para um recurso que pode impactar decisivamente como as pessoas construirão conhecimento de agora em diante.

A IA não é intrinsecamente boa ou ruim. Seu impacto depende de como é usada, regulada e compreendida. Ela oferece benefícios claros, como ampliar o acesso à informação, acelerar processos criativos e produtivos e até democratizar o conhecimento. Mas também carrega os riscos aqui debatidos, além da concentração de poder nas big techs e uma ameaça à sobrevivência dos produtores de conteúdo, tudo já debatido anteriormente nesse espaço.

Para um uso seguro e construtivo dessa tecnologia, as pessoas precisam adotar uma postura crítica, verificando informações, diversificando fontes e entendendo que respostas de IA não são verdades absolutas. Além disso, escolas, empresas e governos devem educar, regulamentar e incentivar boas práticas de uso. Por fim, as big techs devem buscar transparência, qualidade de dados, mecanismos de auditoria e abertura a revisões humanas, algo a que a maioria delas resiste ferozmente.

Só assim a IA deixará de ser uma ameaça à autonomia intelectual e se tornará um recurso poderoso para potencializar nossa capacidade de aprender, criar e decidir de forma consciente. Resta saber se conseguiremos fazer tudo isso.

 

Como a conquista das crianças pelo YouTube pode impactar empresas e a educação

By | Educação | 5 Comments

Foto: Tobyotter/Creative Commons

Pergunte a uma criança onde ela vê seus programas preferidos. Há uma grande chance de o YouTube ser a resposta. Ele caiu de vez no gosto dos pequenos. Ótimo para o Google, dono da plataforma! Mas isso abre algumas interessantes questões educacionais e de negócios.

Um recente levantamento da ESPM Media Lab, conduzido pela pesquisadora Luciana Corrêa, jogou luz sobre isso. Suas observações combinam com o relatório “Children and Internet use: a comparative analysis of Brazil and seven European countries”, produzido a partir de estudos comparáveis dos países participantes. No Brasil, os dados foram levantados pelo Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação).


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Para crianças e adolescentes, o YouTube já é muito mais que uma simples plataforma de vídeos: é a sua principal ferramenta de busca para qualquer assunto, ocupando o espaço que o próprio Google tem para os adultos. Tanto que a empresa lançou o YouTube Kids, um versão do serviço com recursos especiais para crianças (ainda não disponível no Brasil).

Naturalmente os vídeos de entretenimento são o principal atrativo da plataforma. Corrêa identificou que, dos 100 canais com mais audiência do YouTube, 36 abordam conteúdo direcionado a crianças de 0 a 12 anos. E, de 110 canais brasileiros analisados (que já renderam 20 bilhões de visualizações), a categoria mais comum é a de “games”, seguida pela de “programação infantil também disponível na TV”. Apenas um canal era “educativo”.

A segunda categoria me chamou muito a atenção. Para as crianças, não existe diferença entre o conteúdo no YouTube, em serviços pagos de vídeo sob demanda (como Netflix) ou nas TVs por assinatura ou aberta: tudo é vídeo! E isso acende uma grande luz vermelha para o negócio das emissoras de TV.

As crianças estão vendo TV fora da TV!

 

Tela do passado

Acontece que os pequenos cada vez menos usam o aparelho de TV. Para elas, a programação “nativa” na telona é uma coisa anacrônica com três características muito indesejáveis: existência de uma grade de programação (que as obriga a assistir aos programas em horários específicos), programação continuamente interrompida por comerciais e impossibilidade de ver o conteúdo com privacidade. Não é de se estranhar, portanto, que o dispositivo preferido para assistir a vídeos seja o celular, e a plataforma seja o YouTube: a combinação elimina, de uma só vez, esses três incômodos.

Esse comportamento também pôde ser observado em uma outra pesquisa, realizada no ano passado pela comScore e pela IMS, com latino-americanos que veem vídeos online, uma realidade cotidiana para 81% do público pesquisado, contra apenas 70% da TV aberta (no Brasil, os números foram 82% contra 73% respectivamente). E os mais jovens eram os que mais preferiam vídeos online à TV.

Chegamos a debater neste espaço como o lançamento do Globo Play não deve cativar os mais jovens. O produto tem um formato técnico e um modelo de negócios semelhantes aos da Netflix, mas falha ao se manter atrelado à grade de programação da emissora. Não é, portanto, suficiente para estancar a sangria desatada do público.

Os fabricantes de TV, que já perceberam os ventos da mudança há alguns anos, estão transformando os aparelhos em poderosos computadores, capazes de rodar todo tipo de aplicativo, inclusive o YouTube e a Netflix (não por acaso os mais populares em suas plataformas). Resta saber o que as emissoras de TV farão para evitar que seu negócio mingue por falta de público.

Até o momento, não vejo grande coisa.

 

YouTube babá?

Mas há outro aspecto importante a se analisar nesse fenômeno: as crianças estão ficando tempo demais no YouTube?

Curiosamente, há uns 20 anos, essa pergunta recaía sobre a própria TV, chamada pejorativamente então de “babá eletrônica”. As crianças passavam horas a fio assistindo à sua programação, e depois seus pais acusavam-na de “deformar” seus filhos. A bola da vez para esse “cargo” é a tecnologia digital, com o YouTube em destaque.

Quando uma criança deve ter acesso à tecnologia é um debate que parece não ter fim. Existem bons argumentos a favor e contra. Particularmente acho um grande erro querer privá-las disso por princípio, pois vejo falhas conceituais no que diz a “turma do não”. Além disso, vivemos em um mundo em que a tecnologia digital é cada vez mais ubíqua, e, por isso, as crianças devem aprender, desde cedo, a se apropriar dessas ferramentas em seu favor.

O que não quer dizer abandonar as crianças à sua própria sorte com seus gadgets. Pais que acusavam a TV e, depois dela, a Internet, os videogames, os smartphones, o YouTube por problemas com seus filhos estão tentando jogar em outro a culpa que é, na verdade, sua!

Como explica muito bem a psicóloga Katty Zúñiga, do NPPI (Núcleo de Pesquisas da Psicologia e Informática) da PUC-SP, os pais não devem vetar o acesso à tecnologia para seus filhos, pois eles acabarão encontrando maneiras de burlar a proibição, eliminando a chance de os pais construírem algo juntos com os filhos nesse ambiente. Por outro lado, os responsáveis devem oferecer e incentivar outras atividades aos pequenos, como livros, brincadeiras, atividades manuais, passeios, para que as ferramentas digitais sejam apenas “mais uma” das atividades disponíveis para a criança. Pois, se ela não tiver alternativa, usará o que estiver à mão, no caso, literalmente, o smartphone. Além disso, os pais devem se envolver e demonstrar interesse genuíno pelo que seus filhos fazem nos meios digitais. Tudo isso é o que pode ser considerado um uso consciente e construtivo da tecnologia pelas crianças.

Sim, o cotidiano é difícil, todos têm que trabalhar, estão sempre na correria, sobra pouco tempo para lazer. Mas –sinto muito– nada disso serve de desculpa para não dispensar às crianças o tempo e a atenção que elas necessitam e merecem. Isso é ser pai e mãe.

Portanto, antes de o uso intensivo do YouTube pelos pequenos ser a causa de algum problema, ele é um sintoma. A plataforma pode ser muito interessante por si só. Não há nada de errado nas crianças gostarem dele, desde que não seja por falta de alternativas ou orientação. Muito mais que as emissoras de TV, são os pais que devem estar atentos a isso.


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