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Sinto informar, mas o mundo não existe para lhe servir

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O meio digital nos deu poderes com os quais talvez não estejamos prontos para lidar, e isso pode estar destruindo nossa humanidade!

Costumo dizer que quando algo aparece em novelas ou reality shows, a coisa definitivamente já está integrada na vida da maioria da população. E uma coisa que vejo representado nesses programas, nos últimos anos, é o poder de observar, influenciar e até destruir a vida alheia com as redes sociais.

Vivemos uma época de crescente tirania digital, em que muitos acham que o mundo tem a obrigação de lhes agradar. Caso contrário, agem como se tivessem o direito de punir severamente quem quisessem.


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No Big Brother Brasil, maior reality show do país, a presença nas redes já é critério de escolha dos participantes há algumas edições. Na que está acontecendo agora, uma palavra não sai da boca de alguns deles: “cancelamento”, esse comportamento nefasto de uma multidão abandonar e criticar pesadamente alguém nas redes ao mesmo tempo, na tentativa de calar suas ideias.

Oras, como alguém entra no BBB, o ambiente de maior exposição do país, com medo de ser “cancelado”? Até mesmo porque uma coisa é certa: ninguém agrada todo mundo!

Por outro lado, será que alguém merece ser “cancelado” ou qualquer coisa do tipo? Essa punição me parece severa demais, especialmente porque a condenação vem sempre da cabeça de uma pessoa ou de um grupo, que pode estar errado. Mais que isso: uma ação impensada e às vezes até gratuita dessas pode destruir a vida de alguém! E, se hoje o indivíduo é algoz, amanhã mesmo pode se tornar vítima.

Para entendermos de onde veio essa aberração comportamental, precisamos conhecer a história dos relacionamentos on line.

 

A origem das conversas on line

Quando surgiram os primeiros serviços na Web, existiam apenas as salas de bate-papo dos portais para conhecermos outras pessoas, e aquilo já parecia incrível: a chance de falar com muitas pessoas ao mesmo tempo, onde quer que estivessem, era inebriante! Depois vieram os sites de namoro, cada vez mais segmentados, e finalmente os aplicativos “de pegação”.

Lá atrás, existia a falsa ideia de que a vida on line e a off line eram separadas. Isso era parcialmente explicado por que a tecnologia era precária: até para nos conectarmos, tínhamos que estar diante de um computador, on line por uma lenta conexão telefônica. Esse ritual criava uma ruptura que sugeria que nossa presença nas redes era dissociada de quem somos.

Para quem procurava conhecer novas pessoas ou até explorar novas possibilidades, isso era muito interessante: o aparente anonimato digital permitia que fôssemos quem quiséssemos! Além disso, se algo não saísse como planejado, bastava deixar de falar com a outra pessoa. Eventuais danos ficariam restritos àquele caso.

Entendo que o fim de um relacionamento pode ser doloroso, não desprezo isso. Mas infelizmente isso evoluiu para algo muito mais abrangente e pior, à medida que nossa vida se tornou cada vez mais ligada e dependente do meu digital. Com os smartphones, estamos permanentemente on line e muitas, muitas coisas que fazemos passam pela Internet, seja trabalho, lazer, estudos, compras e até relacionamentos.

Aquele mecanismo pueril de que, se algo não desse certo, bastaria excluir o outro também evoluiu e ficou mais poderoso, resultando nos infames “cancelamentos”, com seus danos crescendo na mesma escada. Nesse ponto, surgem os tiranos digitais, que podem ser restritos ao grupo da família no WhatsApp ou atingir escala global. Em qualquer caso, “brincam de deus”, exercitando alguns de seus piores sentimentos.

Sua humanidade desce pelo ralo quando são incapazes de demonstrar o menor sinal de empatia com o outro: se não me servir, não fizer o que desejo ou simplesmente pensar de maneira diferente, então se decreta que deve ser varrido de sua própria existência ou que, pelo menos, sofra muito.

Essa ilusão de onipotência chega às raias da loucura ao se manter pessoas em “cativeiros digitais”: quando não se quer falar com o outro, ele é bloqueado. Quando, por qualquer motivo, precisa-se dele novamente, o bloqueio é desfeito.

Isso é insano! A outra pessoa também tem sentimentos, desejos, uma vida, enfim. Não está nesse mundo para servir a ninguém. Insistir nessas ações pode indicar uma psicose que nos foi “presenteada” pelo meio digital.

 

Devastando a psique

O que mais me preocupa é que não há indícios de que as pessoas possam melhorar nesse ponto. Pelo contrário, vejo cada vez mais gente disposta a brincar em seu fantasioso “Olimpo digital”.

Temo que cheguemos a um cenário de exclusão digital como o visto no episódio “Natal”, da série “Black Mirror”, disponível na Netflix. A exemplo do que se faz hoje nas redes sociais, nessa história, os indivíduos podem efetivamente bloquear outros na sua realidade. Graças a sinistros implantes que todas as pessoas lá têm, ao se bloquear um indivíduo, ele não será mais capaz de ver ou ouvir quem o bloqueou (e vice-versa), mesmo que estejam frente a frente. Sua imagem será substituída por uma silhueta animada cinza e sua voz ficará incompreensível.

Se essa tecnologia já estivesse disponível, receio que muita gente a adotaria alegremente. O problema é que, quando existe uma grande demanda reprimida no mercado, eventualmente um produto acaba se tornando realidade.

Quando teremos algo assim? Apesar do que acabei de dizer, espero que nunca!

Isso não é engraçado e muito menos inofensivo. “Apagar alguém da existência” de outras pessoas a seu redor pode ter efeitos psicológicos devastadores para a vítima. Quem me conhece sabe que sou um entusiasta e um grande defensor no mundo digital, mas isso não pode jamais matar a nossa humanidade.

Infelizmente, aqueles sistemas primitivos e quase inocentes de relacionamento dos anos 1990 foram a semente para esse comportamento nocivo que temos hoje. As pessoas se tornaram brutalmente intolerantes. Não aguentam frustrações em qualquer área de sua vida. Estão prontos a “cancelar” quem quer que seja por questões sentimentais, sexuais, políticas, religiosas e até esportivas.

Isso precisa ser revertido o quanto antes! Infelizmente parece que o mundo caminha justamente rumo ao que se vê naquele episódio, pois muitos indivíduos e grupos descobriram que manipular o outro pode ser um grande negócio. E, usando outra referência a séries, no caso “The Boys”, disponível no Amazon Prime Video, muitos percebem que manipular o ódio das multidões pode trazer mais dividendos que manipular seu amor.

Corremos o risco de estagnar no nosso desenvolvimento como espécie. Crescemos quando somos confrontados com as diferenças e a sociedade só se desenvolve com o trabalho conjunto para o bem de todos, e não de apenas um grupo.

Se não se gosta de alguém ou de algo, basta não comprar aquilo. Não é preciso destruí-lo para que ninguém mais o consuma.

O mundo não existe para nos servir: vivemos em constantes trocas. Sempre foi assim e sempre será! As pessoas devem reaprender que não são o centro do universo e que precisam do outro.

Quantos cartões de Natal você recebeu neste ano?

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Composição de fotos: dodô (BazzaDaRambler) e cartão (Viscious-Speed)/Creative Commons

O dodô e o cartão de Natal: extintos?

Os cartões de Natal, um dos símbolos dessa época do ano, caminham para se juntar ao dodô no rol das coisas extintas. As pessoas naturalmente continuam desejando boas festas, mas algo mudou, e não é apenas a troca do papel e selos pela Internet: há um componente comportamental interessante.

Até há poucos anos, eu recebia cartões suficientes para forrar a minha árvore de Natal. Eles vinham de familiares, de amigos, de empresas com as quais eu tinha alguma relação. O volume em todo país era tão grande, que as entregas dos Correios sempre atrasavam nessa época do ano. Hoje não chega nenhum, nem para remédio! Aliás, nem vi para comprar.

Lá pelos idos de 1997, começaram a surgir os primeiros sistemas de “cartões virtuais”. A ideia era simples: ao invés de se mandar um cartão pelo correio, criava-se um na Web, e o sistema o entregava ao destinatário por e-mail. Prático e de graça, o que era um apelo interessante. Ainda assim, tratava-se de um cartão composto pelo remetente para cada um dos seus destinatários para desejar-lhe o tradicional “feliz Natal e próspero ano novo”.

Isso certamente representou o início do fim dos cartões em papel, mas nunca acabou com eles, nem de longe. Além do mais, de um jeito ou de outro, as pessoas continuavam mandando essas mensagens.

A digitalização do “feliz Natal” ganhou uma nova escala com as redes sociais e os smartphones. Agora é possível enviar os mesmos votos a várias pessoas individualmente. Mais fácil que isso: basta mandar para meia dúzia de grupos do WhatsApp que englobem quase todos os conhecidos. Ou ainda escrever os votos na linha do tempo do Facebook e esperar que ele entregue o desejo de boas festas.

Ou torcer. Pois, nesse caso, a rede social é quem decidirá quem será “merecedor” para receber os votos, seguindo seu critério de relevância.

 

Digitalizando lembranças e emoções

Não estou pregando aqui qualquer tipo do moralismo ou defendendo os fabricantes de desejos natalinos impressos. Acho apenas que é interessante ver como a oferta tecnológica, de certa forma, transformou o significado do envio de cartões de Natal.

Peguemos um outro exemplo: aniversários. Admito: eu hoje me lembro do aniversário de muito mais gente! Quer dizer, quem se lembra é o Facebook, que gentilmente cria uma lista diária de aniversariantes que devo cumprimentar. Antes disso, muitos deles passavam em branco, inclusive de algumas pessoas relativamente próximas a mim, assim como eu também era muito menos lembrado pelo meu dia.

Isso não quer dizer que saio mandando parabéns para todo mundo. Talvez eu seja bobo, mas não vejo muito sentindo em mandar um “post de aniversário” para um amigo da minha primeira infância que é meu “amigo” no Facebook, mas com quem, de verdade, não falo há uns 30 anos.

Mas fico feliz que o Facebook sirva como meu elefante particular, que não me deixa esquecer de (quase) nada. Entretanto, eu me reservo o direito de decidir o que fazer com essa informação. Mais que isso, usarei Facebook, WhatsApp e o que mais tiver disponível para enviar, do jeito que eu quiser, meus votos de aniversário, Natal ou Star Wars Day.

Apenas me decepciono quando vejo as pessoas operando no piloto automático na hora de fazer isso. A tecnologia existe para nos atender, deixar nossa vida mais produtiva e mais divertida. Ela trabalha para nós, e não o contrário.

Dessa forma, não temos que sair dizendo “feliz aniversário” só porque o Facebook nos avisou, ou delegar às redes sociais o trabalho de criar e enviar cartões de Natal às pessoas que ela mesma escolher. Os recursos estão aí e eles são fascinantes! Devemos usá-los, porém precisamos parar, pelo menos por um minutinho, para entender qual é o significado dessas funcionalidades e dos gestos que elas estão captando. Eles não devem ser banalizados.

Pois, por mais irônico que possa parecer, mesmo a mais sofisticada tecnologia tem o poder de nos tornar mais humanos. Basta usá-la com sentimento.

 

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Você é o que você gosta

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Home page do serviço "Apply Magic Sauce" - Imagem: reprodução

Home page do serviço “Apply Magic Sauce”

Seus pais provavelmente lhe falavam: “diga-me com quem andas e eu te direi quem és”. Mas em tempos de tecnologia ubíqua, o ditado, além de velho, parece ultrapassado. Para saber quem é você, o melhor é prestar atenção no que você gosta ou, mais especificamente, no que você “curte”.

Deixamos, o tempo todo, nossas pegadas digitais por aí, e elas são cada vez mais profundas e reveladoras. Há duas semanas, comentei aqui a crise causada pelo vazamento de informações dos assinantes do Ashley Madison, recomendando que pelo menos tentemos cuidar das informações pessoais que publicamos na Internet. O problema é que inadvertidamente fazemos pequenas ações que dizem muito sobre nós.

Quantas vezes você clica, todos os dias, no botão “curtir” do Facebook, seja nas páginas da própria rede social, seja naqueles que estão espalhados pelos mais diferentes sites? Não se sinta constrangido se a resposta for um número alto: essa ação inocente está tão integrada ao nosso cotidiano, que talvez nem saibamos responder a essa pergunta.

Mas não se engane: de inocente ela não tem nada. Mesmo quando “curtimos” uma pueril foto de gatinho ou uma piada tosca de um amigo, estamos afirmando um pouco do que somos. E a soma disso tudo pode ser surpreendente.

O Psychometrics Centre da Universidade de Cambridge (Reino Unido) criou, já há algum tempo, uma interessante ferramenta para demonstrar isso. Batizada de Apply Magic Sauce (algo como “Aplique o Molho Mágico”), o site faz, em poucos segundos, uma análise psicológica do usuário, incluindo os principais itens de sua personalidade, gênero, idade percebida, orientação sexual, inteligência, satisfação com a vida, orientação política e religiosa, educação e status marital. Detalhe importante: a única fonte de informação analisada são as suas “curtidas” no Facebook, nada mais. Nem mesmo o que você posta é considerado. E, mesmo o sistema estando calibrado para o idioma inglês, seus resultados têm uma precisão impressionante, quase assustadora.

Não é de se espantar que o nome da versão anterior da ferramenta era “You Are What You Like” (“Você é o que você gosta”).

 

Fazenda de dados

Imagem: reprodução

Se um instituto independente consegue tirar conclusões assim apenas a partir das “curtidas” do sujeito, que dizer então do verdadeiro “dono” da informação: o Facebook?

Mas a rede de Mark Zuckerberg está longe de ser a única empresa com esse poder. Seu maior rival, o Google, conseguiu colocar, no bolso da maioria de nós, um “rastreador” que carregamos alegremente. O Android, sistema operacional que dá vida à maioria dos celulares do mundo, é uma pequena maravilha na coleta de informações pessoais, de maneira quase inconsciente.

O “quase” acontece porque nós, de fato, autorizamos explicitamente essa coleta (e isso vale para qualquer sistema, não apenas o Android). Ao configurar um novo aparelho, respondemos afirmativamente várias perguntas que, na verdade, sequer entendemos do que tratam. E reafirmamos esse nosso “desprendimento” quando baixamos novos aplicativos. Eles invariavelmente listam toda informação pessoal a que terão acesso (muitas delas completamente desnecessárias para seu funcionamento). E nós graciosamente concedemos isso, ao clicar no botão “aceito”, quase sempre sem sequer ler a relação do que lhes repassaremos. A ânsia por baixar o novo aplicativo é tão grande, que o “aceito” do botão poderia ser perfeitamente substituído por um “me dá logo!”

É um fenômeno social maiúsculo o que vivemos. Grupos de proteção à privacidade pressionam governos para tentar limitar o acesso das corporações às informações pessoais. Por outro lado, as pessoas estão cada vez mais lenientes com o compartilhamento de seus dados em troca de serviços que efetivamente tornam suas vidas mais eficientes e divertidas.

Estou absolutamente certo que ninguém deixará de usar seu celular ou o Facebook só pelo que eu disse acima. Eu não deixarei! Mas precisamos estar cientes de que as empresas nos conhecem muito mais que nossas mães, talvez mais que nós mesmos! E, quem sabe, passar a ler a lista do que estamos dando antes de clicar “aceito”.