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Nicotina, algoritmos, dopamina, curtidas e outras drogas

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Sinto lhe dizer, mas você provavelmente é um viciado em drogas. Não me refiro às “clássicas”, como crack, heroína, cocaína ou maconha, ou às “drogas legais”, como bebidas alcoólicas ou cigarros. Estou falando de redes sociais, e isso não é um abuso de linguagem.

O que nos faz ficar grudados nas telas é a dopamina que nosso cérebro produz ao sermos bombardeados pelos algoritmos dessas plataformas com conteúdos que nos agradam. Trata-se, portanto, de uma dependência química real.

Esse debate pegou fogo na semana passada, quando a americana Frances Haugen, ex-gerente da equipe de integridade cívica do Facebook, veio a público para dizer que a empresa sabe disso e que não apenas faz pouco para combater esse efeito, como o reforça com seus algoritmos.


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Haugen começou a trabalhar no Facebook em janeiro de 2019. Ela se demitiu em maio deste ano por discordar das diretrizes da companhia. Mas não antes de coletar milhares de documentos que indicariam que a empresa sabe que os conteúdos que geram mais engajamento –e mais lucros– são os que, segundo ela, “fazem mal às crianças, alimentam a divisão e enfraquecem a nossa democracia”.

Ela já vinha informando, de maneira anônima, o jornal americano The Wall Street Journal, que publicou, em setembro, várias reportagens expondo essa gestão da empresa de Mark Zuckerberg. Com sua repercussão, o Congresso dos Estados Unidos decidiu investigar a companhia.

No dia 3, Haugen decidiu mostrar o rosto no programa 60 Minutes, da emissora CBS. Dois dias depois, falou ao Congresso americano. Deixou claro que o Facebook priorizou o lucro às custas da dependência e da saúde mental de seus usuários. Ao 60 Minutes, disse que “o Facebook percebeu que, se mudar o algoritmo para ser mais seguro, as pessoas vão passar menos tempo no site, vão clicar em menos anúncios e eles vão ganhar menos dinheiro”.

As acusações são gravíssimas e precisam ser naturalmente verificadas. Mesmo assim, já na segunda, as ações da empresa despencaram cerca de 5%. Zuckerberg veio a público negar tudo e dizer que seria “ilógico” promover conteúdo que criasse polarização social, e que o Facebook trabalha ativamente pelo bem-estar de seus usuários.

Mas, como diz o professor da Universidade de Yale (EUA) Edward Tufte, “existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software”.

 

O dilema da rede

No sábado, um dia após ganhar o Prêmio Nobel da Paz, a jornalista filipina Maria Ressa acusou o Facebook de ser uma ameaça à democracia, justamente porque ele falha em proteger seus usuários contra a disseminação do ódio e da desinformação.

Passamos cada vez mais tempo nas redes sociais. Segundo o mais recente relatório “Digital Global Overview”, publicado pela Hootsuite e pela We Are Social, o brasileiro fica, em média, 3 horas e 42 minutos por dia nas redes sociais, atrás apenas dos filipinos e dos colombianos.

Haugen não disse nada que já não se soubesse ou pelo menos suspeitasse. O documentário “O Dilema das Redes”, lançado em setembro de 2020 pela Netflix, explicou tudo isso de maneira bastante didática. A novidade agora é uma informante tão bem documentada “colocando o dedo na ferida” de maneira pública.

Não é o primeiro grande escândalo envolvendo o Facebook. Em março de 2018, explodiu o da empresa britânica de marketing político Cambridge Analytica, que usou os recursos da plataforma para roubar os dados de 87 milhões de usuários, para manipulá-los em favor da eleição de Donald Trump em 2016. Em um primeiro momento, Zuckerberg se colocou como vítima, mas, diante da pressão do governo americano, disparou iniciativas para proteger os usuários.

Haugen diz agora que propositalmente ele faz pouco!

Isso me lembra de outro escândalo gigantesco, esse da indústria do cigarro. Em 1996, o mesmo 60 Minutes divulgou uma entrevista-bomba com Jeffrey Wigand, ex-diretor de pesquisa da Brown & Williamson, então a terceira maior empresa do setor no país.

“Somos uma empresa de entrega de nicotina”, ele disse na época. O executivo, que teve a vida devastada pelas revelações, deixou claro que os fabricantes sabiam que os cigarros faziam mal à saúde das pessoas e que eram altamente viciantes. E o que é pior: deliberadamente incluíam produtos para aumentar o vício. O caso foi retratado no filme “O Informante” (1999), com Al Pacino e Russell Crowe.

Isso provocou profundas mudanças na indústria, que ficou muito mais regulamentada no mundo todo. De maneira geral, toda sua publicidade foi proibida, a venda ficou mais controlada e intensas campanhas de conscientização foram feitas. O resultado é que a quantidade de fumantes diminuiu, especialmente entre os mais jovens.

Ainda assim, a indústria do cigarro continua ativa. De uns anos para cá, tenta uma nova roupagem com os “cigarros eletrônicos”, que fazem sucesso justamente com adolescentes.

 

O que pode ser feito

Pelo que Haugen sugere, Zuckerberg quer solucionar o problema, desde que não atrapalhe os negócios do Facebook. Mas eles (pelo menos na atual forma) são o problema! E sua dominância rendeu US$ 86 bilhões de receitas em 2020 à empresa.

Muita gente acha que a solução seria forçar a divisão do império em empresas menores concorrentes, a exemplo do que foi feito em 1982 na telefonia americana, com a AT&T, que acabou dividida em sete empresas, conhecidas como “Baby Bells”. Vale dizer que isso já foi sugerido há alguns anos com a Microsoft e o Google, sem sucesso.

Haugen acha que isso não funciona. Ela sugere que o caminho seria os algoritmos se tornarem totalmente transparentes, e a criação de uma agência para supervisionar as plataformas digitais, além de aumentar a idade mínima dos usuários.

Tudo isso é bem-vindo, mas não deve ser suficiente. A inteligência artificial precisa ser refinada para limitar conteúdos potencialmente perigosos, e usuários reconhecidamente nocivos à sociedade precisam ser banidos. Por fim, a “tirania das curtidas”, que faz com que as pessoas prefiram conteúdos “de gosto fácil” àqueles e alta qualidade, precisa ser impedida.

O usuário é o elo frágil da corrente. Como nas drogas, não consegue sair de seu vício, por mais que lhe faça mal. Por isso, provavelmente as redes sociais precisem sofrer um controle severo como o que foi imposto à indústria tabagista.

O que não é possível é não se fazer nada. A situação dramática pela qual o mundo passa, com uma polarização que cria uma ameaça real à manutenção da sociedade e da democracia, cresceu graças a essas plataformas. O negacionismo científico, que ceifou centenas de milhares de vidas pelo mundo na pandemia de Covid-19, e a radicalização política são apenas os destaques.

As redes sociais podem ser um ambiente incrível de trocas de ideias. Mas seus usuários precisam de ajuda para vencer esse vício.