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Soldados ucranianos exibem drone russo capturado em agosto passado - Foto: Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia/Creative Commons

Como vencer uma guerra sem disparar um único tiro

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Para mim, as guerras representam a falência da humanidade. Quando governos recorrem a armas para impor pontos de vista ou obter ganhos às custas de incontáveis vidas humanas e enorme destruição, algo dramaticamente deu errado, partindo para a força. A tecnologia vem abrindo novos caminhos para a guerra, em que as armas dividem seu protagonismo com o mundo digital.

Talvez cheguemos a um cenário em que se vença um conflito sem que nenhum tiro seja disparado, o que não quer dizer que não mais existirão prejuízos e sofrimento. Ainda não estamos lá, mas a brutal invasão russa na Ucrânia fez dos dois anos desse teatro de guerra um campo de testes tecnológicos de drones, novos materiais e inteligência artificial para fins militares, que estão transformando o conceito da guerra.

Ela sempre esteve associada à ciência, para o desenvolvimento de melhores estratégias e armamentos. Grandes avanços para a humanidade também se derivaram disso, como a penicilina e até os fornos de micro-ondas.

Agora a Ucrânia vivencia uma guerra de algoritmos, inteligência artificial e satélites. O desconhecido se torna claro, previsível e muitas vezes evitável. Por outro lado, tropas e civis se tornam mais vulneráveis. Generais criam assim suas estratégias com o apoio de algoritmos preditivos e de armas que cumprem “suas missões” sozinhas.

Mas então por que o conflito da Ucrânia chegou a um impasse, sem conclusão aparente? Por que as cidades seguem sendo destruídas e as pessoas continuam sendo mortas? Como se pode ver, nesse videogame, ninguém tem vida extra.


Veja esse artigo em vídeo:


A resposta passa, em parte, por essas novas tecnologias serem relativamente portáteis, baratas e disponíveis para ambos os lados do conflito. Em janeiro, dois comandantes veteranos, o general Yuri Baluievski, ex-chefe do Estado-Maior russo, e o general Valeri Zaluzhni, chefe do Estado-Maior ucraniano, fizeram publicações em que abordam a digitalização da guerra, respectivamente na publicação russa “Army Standard” e no site do Ministério de Defesa da Ucrânia.

As tropas de ambos os países estão aprendendo as mesmas lições. Entre elas, está que a tecnologia favorece mais a defesa. A exceção são os drones, veículos aéreos e aquáticos não-tripulados, que conseguem causar danos aos inimigos de maneira barata, eficiente e preservando tropas, enquanto tanques, aviões e navios têm sido mais facilmente interceptados. Eles são as estrelas desse conflito sangrento.

Não se trata dos sofisticados drones militares americanos. Os veículos usados no conflito são baratos, às vezes equipamentos de mercado, que podem ser adquiridos em grande quantidade. Eles são modificados para carregar explosivos e para tentarem ser menos suscetíveis aos sistemas do inimigo que embaralham as frequências que usam, fazendo com que os pilotos percam seu controle. E nessas contramedidas digitais, a Rússia vem levando vantagem, com sua massiva máquina de guerra.

Mas uma nova geração de drones tenta resolver esse problema. Graças à inteligência artificial, eles são capazes de cumprir sua missão, mesmo que seu piloto remoto perca o contanto com eles. Nesse caso, o sistema no próprio veículo assume o controle e faz tudo que for necessário para atingir seu alvo, mesmo que ele se mova.

Nem sempre dá certo. Em uma simulação no ano passado, um “drone inteligente” atacou seu próprio centro de comando depois de receber dele um comando para cancelar a missão. O robô entendeu que essa ordem atrapalhava o objetivo de destruir o inimigo, e por isso atacou a própria base. Felizmente era apenas uma simulação.

Às vezes, soluções simples podem ser mais eficientes. As armas antigas, sem inteligência ou guiadas por GPS, ganham uma sobrevida com o apoio da tecnologia, que indica com precisão onde os disparos devem acontecer. Os ucranianos também têm usado celulares espalhados pelo território para captar o zunido típico dos drones. Dessa forma, identificam sua aproximação melhor que caros sistemas de radar.

Smartphones nas mãos dos soldados tornaram-se, por outro lado, uma perigosa ameaça a sua segurança. A Ucrânia infligiu pesadas baixas aos russos ao atacar locais em que identificaram grande concentração de sinais de celulares, WiFi ou Bluetooth.

 

Uma guerra sem disparos

A guerra do futuro tem outras formas, igualmente ligadas ao avanço da tecnologia. Ela pode viabilizar confrontos que acontecerão sem disparos e uso de tropas militares, mas ainda assim criarão grandes prejuízos ao inimigo.

Além dos já citados drones, mais fáceis de compreender e implantar, Forças Armadas de diversos países investem no desenvolvimento de ataques cibernéticos, capazes de inutilizar digitalmente a infraestrutura de inimigos. Em um mundo cada vez mais digital, isso pode colocar uma nação de joelhos em curtíssimo tempo. Militares estão atentos a isso e tratam de proteger seus equipamentos. Mas atacar sistemas civis, muito mais vulneráveis, podem trazer resultados catastróficos.

A inteligência artificial, especialmente modelos de linguagem amplos (como o ChatGPT), está sendo usada para identificar fragilidades em inimigos, analisar fotos de satélite e até decifrar suas mensagens cifradas, o que pode conceder uma vantagem tática incrível. Isso teve um papel decisivo na vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, quando uma equipe de matemáticos britânicos, liderada por Alan Turing, construiu um rudimentar computador mecânico capaz de decifrar a máquina Enigma, usada pelos nazistas para suas transmissões militares codificadas.

Rompendo a tradição de se manterem afastadas de desenvolvimentos militares, algumas big techs e startups americanas, como Microsoft, Amazon Web Services, OpenAI e Scale AI, têm trabalhado com os militares do país para que sua tecnologia seja usada com esse fim. O Google também fazia isso, mas encerrou sua colaboração com o Pentágono em 2019, após protestos de seus funcionários.

A mistura de IA com armamentos desperta medo em muita gente, alguns oriundos da ficção científica, como nos filmes do “Exterminador do Futuro”. Espero que não cheguemos àquilo, mas uma guerra cibernética pode envolver a contaminação de bases de dados dessas plataformas no inimigo, para que elas tomem decisões erradas e potencialmente devastadoras.

O militar prussiano Carl Von Clausewitz (1790-1831), especialista em estratégias militares, escreveu em sua obra “Sobre a Guerra” (1832) que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Segundo ele, trata-se de “um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade.”

Para isso, ao longo da história, o ser humano usou porretes, flechas, rifles, canhões e bombas, armas químicas e biológicas, e dispositivos nucleares. A tecnologia da vez vem do mundo digital. Mas qualquer que seja o meio, a guerra continua sendo o que é, conduzida por homens que desprezam qualquer vida que não seja a sua própria, para atingir objetivos no mínimo questionáveis.

 

Tom Cruise viveu pela segunda vez o intrépido piloto da Marinha dos EUA Pete Mitchell, em “Top Gun: Maverick” (2022) - Foto: divulgação

Inteligência artificial pode mandar “Top Gun” para o museu

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Em 1986, plateias do mundo todo prenderam a respiração diante das acrobacias aéreas de Tom Cruise nas telas de cinema em “Top Gun”. Ele repetiu a dose em “Maverick”, a segunda maior bilheteria de 2022, rendendo US$ 1,4 bilhão, logo atrás de “Avatar 2”. Agora a inteligência artificial pode fazer essas peripécias virarem peças de museu, ao tornar pilotos de caça obsoletos e desnecessários.

Duas notícias recentes, uma do The New York Times e outra do The Washington Post, revelam planos dos militares de usar essa tecnologia em novas gerações de aviões e de drones. Ela seria capaz de tomar decisões mais rápidas e precisas que os pilotos, até os mais experientes.

A ideia é controversa. Muito se tem debatido sobre a substituição das mais diversas categorias profissionais por robôs, considerando o impacto social dessa mudança. Mas o que se propõe agora é uma máquina tomar decisões que efetivamente visam a morte de pessoas.

Diversos aspectos éticos são levantados nessa hora. Os próprios pilotos veem isso com ressalva, e não apenas porque podem perder seu emprego daqui um tempo. Afinal, uma máquina pode decidir sobre a vida ou a morte de um ser humano? E se isso realmente acontecer no controle de aviões de combate, quanto faltará para vermos robôs policiando nossas ruas e tomando as mesmas decisões letais por sua conta na vizinhança?


Veja esse artigo em vídeo:


Não estamos falando da atual geração de drones militares, que, apesar de úteis, são bem limitados. Um bom exemplo do que vem por aí é o veículo aéreo não tripulado experimental XQ-58A, conhecido como “Valkyrie”, da Força Aérea americana. Ele, se parece muito mais a um caça furtivo futurista, apesar de ser bem menor que os aviões de combate. É impulsionado por um motor de foguete e é capaz de voar de um lado ao outro da China, carregando munições poderosas.

Mas seu grande diferencial é o controle por inteligência artificial, podendo tomar decisões sozinho, apesar de os militares afirmarem que só executará ações letais se autorizado por um ser humano. Ele pode voar diferentes tipos de missões, inclusive apoiando pilotos em seus caças, aumentando o sucesso e preservando suas vidas.

Como sempre, uma guerra não se ganha apenas com os melhores soldados, mas também com a melhor tecnologia. Mas até agora a decisão de matar sempre recaiu sobre os primeiros. O que pode estar diante de nossos olhos é o surgimento de armas que tomem essa decisão seguindo seus critérios, um ponto sensível para os EUA, pelo seu histórico de ataques ilegais com drones convencionais que mataram civis.

Diante disso, o general Mark Milley, principal conselheiro militar do presidente americano, Joe Biden, afirmou que os EUA manterão “humanos à frente da tomada de decisões”. Ele recentemente conclamou forças armadas de outros países a adotar o mesmo padrão ético.

Nesse ponto, caímos em um outro aspecto crítico desse avanço. Países que adotem essas “boas práticas” poderiam ficar em desvantagem diante de outras potências militares e tecnológicas não tão “comprometidas”, com o maior temor recaindo sobre a China. Como a guerra é, por definição, algo “sujo”, seguir as regras poderia então criar uma desvantagem catastrófica.

Outra mudança trazida pela IA ao tabuleiro armamentista é a entrada de novas empresas fornecedoras de equipamentos. No caso da Força Aérea americana, dois nomes surgem quando pensamos na indústria de caças: a Lockheed Martin e a Boeing. Esses casamentos comerciais são tão antigos e poderosos que sua tecnologia jamais chega, por exemplo, a países menores ou –pior– a grupos guerrilheiros.

Com a pulverização de drones com IA relativamente baratos, muitas outras empresas passam a disputar esses bilionários orçamentos. O “Valkyrie”, produzido pela Kratos (fundada em 1994) custa cerca de US$ 7 milhões. Pode parecer muito, mas é bem menos que os US$ 80 milhões de um F-35 Lightning II, da Lockheed Martin. Outros modelos podem custar ainda menos, na casa de US$ 3 milhões.

O receio é que esses fabricantes passem depois a oferecer tecnologia militar de ponta a terroristas e ditadores. E aí o medo de maus usos pela China vira “café pequeno”.

 

Campo de testes

O poder da inteligência artificial contra exércitos poderosos está sendo colocado à prova na invasão da Ucrânia. Seu exército vem usando drones bem mais simples que os citados, mas que já contam com recursos de IA, para atacar tropas russas. Mesmo quando essas aeronaves perdem o contato com seus pilotos remotos, devido aos sistemas de interferência do inimigo, ainda completam sua missão por conta própria.

De fato, a Ucrânia vem se tornando um frutífero campo de testes desses armamentos, que vêm sendo produzidos aos milhares. Além de poderem refinar seus equipamentos em situações reais de combate, os fabricantes podem fazer testes que dificilmente podem acontecer em um país que não esteja em guerra.

Os militares sabem que a inteligência artificial toma decisões erradas. Basta ver as falhas –algumas fatais– de carros autônomos nos últimos anos. Mesmo a tecnologia militar sempre sendo muito mais refinada e cara que a civil, não há garantias quanto a sua precisão. E há outros aspectos a serem considerados.

O primeiro é que a IA pode ser excelente em decisões a partir de padrões conhecidos, mas pode se confundir bastante diante do desconhecido e do inesperado, algo que permeia qualquer campo de batalha. Além disso, máquinas não possuem uma bússola moral, que norteia algumas das melhores decisões de um soldado.

É inevitável pensar no filme RoboCop (1987), em que um policial dado como morto é praticamente transformado em um robô. Apesar de ser obrigado a seguir diretivas em seu sistema, o que o tornava realmente eficiente era a humanidade que sobreviveu em seu cérebro. Isso lhe permitia vencer robôs de combate mais poderosos.

Tudo isso me faz lembrar da Guerra do Golfo, que aconteceu entre 1990 e 1991, quando os americanos invadiram o Iraque. Os militares invasores exterminavam o inimigo de longe, quase sem entrar em combate. Na época, um especialista criticou “soldados que querem matar, mas não querem morrer”.

A inteligência artificial pode potencializar isso. É claro que ninguém quer morrer e todos querem vencer um conflito, de preferência logo. Mas quem ganha algo com isso, além da indústria armamentista? Se a Rússia tivesse essa tecnologia, talvez a Ucrânia tivesse deixado de existir em poucas semanas dessa nefasta invasão atual.

Esse é um dos casos em que a inteligência artificial nunca deveria ser usada. Mas seria uma ilusão pueril acreditar que isso não acontecerá. Talvez o futuro da guerra pertença mesmo às máquinas autônomas. Só espero que isso não aconteça também em policiais-robôs nas ruas de nossos bairros.

 

O que acontecerá quando o supermercado lhe entregar a compra que você NÃO fez?

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Homeplus, sistema da Tesco na Coreia do Sul, que permite que os consumidores façam compras na plataforma do metrô com seus celulares, apenas fotografando as imagens dos produtos, que são depois enviados a suas casas – imagem: divulgação

Homeplus, sistema da Tesco na Coreia do Sul, que permite que os consumidores façam compras na plataforma do metrô com seus celulares, apenas fotografando as imagens dos produtos, que são depois enviados a suas casas

Há alguns dias, a Amazon fez outro daqueles anúncios com potencial de chacoalhar o varejo: a Amazon Go, uma loja em que o consumidor simplesmente pega os produtos que quiser e sai, sem precisar passar por um caixa. Mas apesar de ser algo incrivelmente inovador, está longe de ser a única tecnologia que impactará profundamente a nossa maneira de fazer compras em um futuro próximo. E isso dá espaço a uma série de questionamentos éticos pela forma como afeta algo tão essencial a todos nós.

Para quem não sabe do que se trata, Amazon Go é o nome de uma cadeia de lojas físicas da gigante do e-commerce, cuja principal característica é a inexistência de caixas: o consumidor pega o que quer e vai embora. Ele é identificado por um aplicativo em seu smartphone e uma grande combinação de sensores da loja verifica o que o consumidor pega e quanto pega. Caso desista da compra, é só devolver o item à gôndola. Quando terminar, basta sair da loja e todos os produtos serão automaticamente cobrados no seu cartão de crédito.

O vídeo oficial abaixo demonstra bem o conceito:



A Amazon pretende abrir 2.000 lojas como essa. A primeira está prevista para o início de 2017 em Seattle (EUA), onde fica sua sede.

Para alguém que adora tecnologia, como eu, a Amazon Go é de encher os olhos. A princípio, o que se vê é uma incrível simplificação do ato de fazer compras, e uma grande agilidade no processo. Mas a iniciativa traz muito mais que isso, inclusive potenciais riscos de invasão de privacidade.

Foi-se o tempo que varejo era movido pela intuição do gerente da loja e pela lábia do vendedor. Há anos, já se guia por uma ciência própria, que embute cada vez mais tecnologia. Inúmeras variáveis são consideradas para escolher quais produtos oferecer em uma loja e como fazer isso, como o perfil do negócio, local onde está a loja, faixa etária, classe social e nível educacional de seus compradores, época do ano, entre tantos outros.

É por isso que não existem, por exemplo, duas Lojas Americanas iguais no mundo, apesar de todas pertencerem a uma mesma empresa. Os produtos oferecidos e sua distribuição podem variar dramaticamente de uma loja para outra, seguindo critérios como os indicados acima.

O objetivo de tudo isso: maximizar a receita e os lucros. E isso só é possível conhecendo muito bem seus clientes.

E aí a Amazon Go começa a mostrar a que veio.

 

Quer pagar quanto?

Não é de hoje que a Amazon é um incrível case sobre como obter informações de todo tipo de seus consumidores e as combinar de maneiras inteligentes, para criar ofertas muito mais atraentes. As pessoas acabam comprando lá, mesmo quando o preço não é o mais baixo. Tudo porque as ofertas são as mais assertivas, mais adequadas a cada cliente individualmente.  E isso graças à tecnologia.

Então chega a Amazon Go.

Para que funcione, ela precisa obrigatoriamente rastrear em detalhes tudo que o consumidor faz enquanto estiver dentro da loja. Isso não apenas evita furtos, como também garante que produtos selecionados sejam cobrados e que, por outro lado, o consumidor não pague por algo que não levou.

Só que, ao mesmo tempo, a Amazon coleta informações valiosíssimas sobre os hábitos de consumo dos usuários: o que compram frequentemente, o que compram eventualmente, qual a sequência de compras, o que é adquirido sem pestanejar e o que só acontece depois de alguma reflexão ou relutância, combinação de produtos adquiridos, frequência com que cada item é comprado, entre muitas outras coisas.

Para uma empresa que é conhecida como “a loja que vende de tudo” (apesar de que isso obviamente não será verdade nas lojas da Amazon Go), essa informação é valiosíssima, não apenas para organizar a oferta de produtos e de preços em cada ponto de venda e o estoque nos depósitos, como também para criar uma experiência de compra mais eficiente para cada consumidor.

Costuma-se dizer que existe uma Amazon para cada cliente, e isso não é um exagero. Transpondo isso para as lojas físicas desse projeto, o consumidor poderia ser avisado que está chegando a hora de reabastecer alguns itens de sua despensa. Mais que isso: supondo que as etiquetas de preço na loja fossem compostas por pequenas telas de cristal líquido, seria possível alterar dinamicamente o preço de acordo com o consumidor que estivesse olhando para cada produto.

Como? Se se tratar de um item que o consumidor sempre compra, exibe-se o preço “cheio”; se for algo que exige dele um pouco mais de reflexão, pode-se oferecer um desconto, “para fechar negócio”. Isso já acontece no e-commerce, mas agora pode começar a acontecer também no varejo físico.

Não será mais conversa fiada de vendedor quando ele disser que “esse preço é só para você!”

 

Conhecendo o consumidor como ninguém

No final das contas, a turma de Jeff Bezos faz tudo para não perder um negócio, abusando de toda a tecnologia disponível para isso. A entrega em até 30 minutos por drones, que já vem sendo anunciada há anos, literalmente decolou no início deste mês, com os primeiros testes de entregas reais na Inglaterra, como pode ser visto abaixo:



Como já foi dito antes, nem sempre o preço será o mais baixo, mas receber um produto tão rapidamente –às vezes mais que a ida a uma loja no bairro– é um atrativo inegável. E as empresas de comércio eletrônico sabem que o prazo de entrega pode ser o fator de desempate para o consumidor comprar de uma loja e não de um concorrente, que oferece o mesmo produto pelo mesmo preço.

Nesse sentido, tão ou mais ousado que a entrega por drones é o conceito de “remessa antecipada”, patenteada pela mesma Amazon no final de 2013. Funciona da seguinte maneira: os servidores da empresa tentam “adivinhar” compras de seus consumidores antes que elas tenham sido sequer feitas –e sem qualquer garantia que elas sejam efetivadas. De posse dessa informação, eles verificam se o produto está disponível no centro de distribuição da companhia mais próximo da residência do comprador em potencial. Caso não esteja, ele é enviado para lá antes que o pedido seja concretizado. O objetivo: ganhar alguns dias no prazo de entrega para cada caso e, dessa forma, vencer a concorrência nesse quesito.

Parece exagerado? Jeff Bezos acha que não. Se a informação para até mesmo antecipar o que o consumidor deseja existe, e a tecnologia para extraí-la está disponível, por que não aproveitar isso para fechar vendas?

Um outro exemplo tecnológico no melhor estilo “de grão em grão a galinha enche o papo” é o da Kiva Systems, uma empresa americana que cria robôs e sistemas de organização inteligente de grandes centros de distribuição.

No modelo tradicional desses depósitos, metade do tempo dos funcionários se consome com o pessoal literalmente andando até as prateleiras para buscar os itens que serão entregues. A Kiva criou um sistema inovador que, ao invés disso, robôs trazem as prateleiras inteiras com os produtos até os funcionários responsáveis pelo despacho, economizando muito tempo.

Mas o mais surpreendente é a devolução das prateleiras: o sistema está constantemente reorganizado o lugar delas no depósito com base no volume de pedidos de cada item individualmente. Como exemplo, se o Dia dos Namorados está chegando, as prateleiras de produtos de grande saída nessa data vão sendo, aos poucos, reposicionadas pelos robôs perto das esteiras de despacho. Tudo para ganhar preciosos minutos. Passado esse dia, tais produtos voltam a ser colocados mais para o fundo do centro de distribuição, abrindo o “espaço nobre” para outros itens, com mais demanda no novo período.

O vídeo abaixo ilustra bem isso:



O sistema traz benefícios tão claros que, em 2012 a empresa foi comprada por US$ 775 milhões. Adivinham o comparador? Uma dica: seu nome começa com “A” e termina com “mazon”. E a Kiva foi rebatizada de Amazon Robotics.

 

Case brasileiro na Copa do Mundo

No Brasil, também temos exemplos muito criativos –e ousados– do uso de tecnologia para vendas. E a Netshoes puxa essa fila.

Na Copa do Mundo no Brasil, a empresa ganhou destaque na imprensa e nas redes sociais com uma inusitada campanha. Pouco antes da competição, um grupo muito bem selecionado de clientes recebeu uma caixa especial da empresa contendo uma camisa oficial da Seleção Brasileira do tamanho de cada um desses clientes e com seu nome estampado atrás, além de uma Brazuca, a bola oficial daquela Copa.

Um detalhe interessante: nenhum dos clientes tinha pedido aquilo, e não era um presente. Junto com os produtos, foram instruções para pagar pelo pacote, uma conta que se aproximava de R$ 500. Caso o cliente não o quisesse, a empresa buscava a caixa, sem nenhum custo para o consumidor.

Qualquer um diria que se tratava de uma operação extremamente arriscada pela alta chance de rejeição e os custos associados. Advogados arrancariam os cabelos, pois, pelo Código de Defesa do Consumidor, o envio de produtos não solicitados configura uma amostra grátis.

Mas a campanha foi incrivelmente bem-sucedida! Uma porcentagem bastante alta dos consumidores não apenas topou pagar por aquilo, como ainda ficou extremamente feliz com o fato de “a Netshoes ter se lembrado deles”. Muitos chegaram até mesmo a viralizar a campanha, gravando vídeos e postando nas redes sociais. Apenas uma pessoa ficou muita brava com aquilo: acabou ficando com os produtos de graça, “em nome do bom relacionamento com a marca”.

Assim como nos casos acima da Amazon, o sucesso da Netshoes só aconteceu por um uso criativo e criterioso de tecnologia e de informações coletadas dos clientes: eles sabiam exatamente para quem estavam enviando sua caixa, e que existia uma grande chance de eles aceitarem a oferta.

 

Questões éticas

Vendo tudo isso, o futuro parece brilhante para consumidores e varejistas. E quero acreditar que, no final das contas, os resultados serão mesmo positivos. Mas há algumas coisas a serem considerados.

Se o varejo sabe tanto sobre nós a ponto de nos enviar produtos não solicitados (e as pessoas acharem isso o máximo), quanto falta para que as nossas compras sejam feitas automaticamente? E, por isso, eu quero dizer que não tenhamos mais que nos preocupar com isso: os próprios varejistas identificarão nossas necessidades, selecionarão os produtos, enviarão a encomenda a nossas casas e debitarão tudo em nosso cartão de crédito. Sem nenhuma intervenção nossa.

Certamente essa é uma comodidade e tanto! Mas o que impediria o varejista de, por exemplo, começar a oferecer não exatamente o que seria mais interessante ao consumidor, e sim o que fosse mais conveniente para ele? Só para ficar em exemplos simples, seleção de marcas que estejam com estoque muito alto ou que lhe paguem pela “seleção preferencial”.

Honestamente entendo que isso acontecerá inevitavelmente: é apenas uma questão de tempo. Mas, quando isso acontecer, seremos capazes de perceber essa eventual manipulação? Já que estamos caminhando para isso –e tudo isso pode nos trazer muitos benefícios reais– precisamos estar atentos.

Afinal, todo tipo de informação nossa, inclusive de consumo, já está “voando” por aí. E pensar que ainda tem gente que não quer informar o CPF para emitir a nota fiscal, com medo de que o governo descubra o que ele está comprando…

“Sabe de nada, inocente!”


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