Escola Base

“O videogame causou o massacre de Suzano”: #SQN

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Flores são deixadas sob o nome dos alunos mortos, no muro da escola Professor Raul Brasil – Foto: reprodução

A quarta, 13 de março, foi dia de mais uma tragédia no país: o massacre na escola estadual Professor Raul Brasil, na cidade de Suzano, na Grande São Paulo. O que levaria dois jovens, ex-alunos da escola, a matar indiscriminadamente estudantes e funcionários, e depois se suicidar? Diante da dor que abalou o país, da perplexidade e da incompreensão, autoridades, ainda no local do atentado, sugeriram que a culpa poderia ser do videogame que os assassinos gostavam de jogar.

Mais que um comentário inconsequente e sem qualquer embasamento, essa afirmação pode desviar o olhar da população das reais causas, turvar as investigações e deixar o caminho aberto para que novos incidentes como esse aconteçam no futuro.

Não estou aqui defendendo o jogo, mesmo porque game não vai preso e é totalmente improvável que o fabricante seja, de alguma forma, responsabilizado por esse ou qualquer outro crime dessa natureza. Tampouco isso provocará queda nas suas vendas. Entretanto, em tempos de redes sociais e algoritmos de relevância, de “fake news”, de radicalização política e polarização ideológica, uma declaração como essa, ainda mais vinda de alguém com qualquer poder instituído, tem a capacidade de acender um rastilho de pólvora que não se sabe onde vai parar.

E o buraco é muito mais embaixo!

Pode ser, sim, que os dois assassinos jogassem um ou mais videogames violentos, inclusive os chamados “tiro em primeira pessoa”, em que o jogador incorpora um personagem que carrega um arsenal e, por diferentes motivos, atira em muita gente. Mas estudos científicos sérios demonstram que esses jogos não causam ou sequer incentivam assassinatos reais. Caso contrário, dada a popularidade desse tipo de jogo, viveríamos em uma sociedade de psicopatas, sendo impossível sair à rua. Pelo contrário, profissionais de psicologia explicam que esse tipo de criminoso é movido por outros problemas, muito mais profundos, que ele já carrega dentro de si, dissociados, portanto, dos games.

Por isso, quando uma autoridade sugere -e mais de uma fez isso ao longo do dia- que existe uma relação entre um videogame e o crime, cria-se, ainda que de maneira totalmente não-intencional, uma cortina de fumaça sobre o problema.

Voz oficial e voz das redes

Também ouvi, aqui e ali, que as redes sociais e a mídia teriam sua parcela de culpa, pois os assassinos teriam se inspirado em outros crimes do tipo, especialmente nos EUA.

Trata-se de um caso clássico de ignorar o problema e matar o mensageiro!

Mas as redes sociais têm um papel nefasto nessa história, sim: o de propagar as versões equivocadas acima. Esse tipo de coisa existe desde que a imprensa foi criada, com o “Acta Diurna”, o primeiro jornal conhecido, ideia do general romano Júlio César, em 69 a.C. Entretanto, se antes o poder de espalhar equívocos se resumia aos veículos de comunicação, hoje o Facebook sozinho tem 2,3 bilhões de potenciais propagadores de “fake news”, auxiliados pelo algoritmo de relevância, que joga na cara de cada um aquilo em que desejam acreditar, mesmo que seja a mais completa porcaria.

Um caso que é estudado até hoje em faculdades de Jornalismo e que ajuda a entender a gravidade desse problema é o da Escola Base, que ficava no bairro da Aclimação, em São Paulo. Em 1994, os donos da escola, uma professora e o motorista do transporte escolar foram acusados de abusar sexualmente de alunos de quatro anos. O delegado Edélcio Lemos, responsável pelo caso, antes de ter em mãos o laudo do IML, corroborou a hipótese para a imprensa, que deu amplo destaque a essa versão (justiça seja feita, exceto a TV Cultura e o finado Diário Popular, cujos editores não “engoliram” a história).

Resultado: a escola foi depredada, os acusados, apesar de posteriormente inocentados na Justiça, foram perseguidos e ameaçados de morte, desenvolveram uma série de doenças, foram obrigados a se mudar de cidade e morreram na miséria. Em resumo, tiveram sua vida destruída instantaneamente pela combinação da fala de uma autoridade e o poder da mídia de ampliar fatos. E tudo isso gratuitamente: ao sair o resultado das análises, conclui-se que as crianças nunca sofreram qualquer tipo de violência.

Tinham tido apenas diarreia.

Risco de explosão e de falta de solução

Isso foi em 1994! Portanto, quando não havia redes sociais ou smartphones.

Hoje a coisa pode ficar muito pior. Em maio de 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi espancada até a morte por dezenas de moradores do Guarujá, no litoral paulista. Ela havia sido confundida como alguém que supostamente sequestrava crianças para rituais de magia negra, a partir de um boato espalhado em uma página no Facebook, que trazia um retrato falado de uma mulher feito pela polícia no Rio de Janeiro 21 meses antes. Fabiane era totalmente inocente. Em 2017, quatro pessoas foram condenadas pelo crime.

É claro que queremos uma explicação para a barbárie cometida na escola Professor Raul Brasil, em Suzano. Não apenas para que os familiares e amigos das vítimas e a própria sociedade tenham alguma sensação de justiça, apesar de os assassinos terem se suicidado assim que a polícia chegou ao local. Mas também porque, caso as autoridades descubram os verdadeiros motivos que levaram os dois ex-alunos a cometerem esse ato tão hediondo, talvez a comunidade possa reunir esforços para evitar que outros casos semelhantes voltem a ocorrer, e não apenas em escolas. E fazendo isso de maneira preventiva, educativa e, se necessário, usando recursos de saúde pública.

O que não precisamos agora é de nos apressarmos para dizer qualquer coisa para satisfazer a sanha de alguns ou a busca de um motivo de outros. Os inocentes vitimados por essa tragédia não voltarão. Busquemos a serenidade para os corações de todos e para encontrar respostas corretas e soluções verdadeiras e duradouras.

E aí? Vamos participar do debate? Role até o fim da página e deixe seu comentário. Essa troca é fundamental para a sociedade.

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Se a carne é fraca, as redes sociais são fortes e a imprensa é mole

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Foto: Nicola Albertini/ Creative Commons

Os resultados preliminares da “Operação Carne Fraca” da Polícia Federal jogaram na lona esse setor da indústria de alimentos nacional. Enquanto importadores essenciais anunciavam restrições à carne brasileira, usuários transformavam as redes sociais no palco de grandes embates (e muitas piadas) sobre o caso, abalando ainda mais a confiança do consumidor. Mas qual é nosso papel nesse salseiro todo?

Passados cinco dias, a impressão que eu tenho é que ninguém sabe ainda qual é a verdade! Assim mesmo, as pessoas continuam se prestando a disseminar versões questionáveis. E tudo isso só acontece porque a imprensa não está fazendo seu trabalho direito. Mas dá para jogar toda a culpa nela?


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A imprensa está construindo todo o seu noticiário em cima de apenas três fontes: a própria Polícia Federal, o governo e a indústria da carne. O problema é que todos eles têm interesses fortíssimos envolvidos no caso. A Polícia Federal é a “dona” da operação e a origem das denúncias; o Governo Federal luta para salvar a imagem do produto brasileiro no exterior (e, de quebra, evitar ainda mais o desgaste da sua própria); e a indústria da carne tenta obviamente salvar a sua reputação e o próprio negócio.

Assim, com poucas e nobres exceções (e é importante frisar que elas existem), o noticiário vem sendo construído a partir do relato desses envolvidos. E só! A maioria dos veículos sequer ouve especialistas independentes! Como é possível o público entender, de verdade, o que está acontecendo, se todas as fontes têm interesses conflitantes, e até mesmo tentam desqualificar os outros lados?

A crise evoluiu rapidamente. A PF soltou a bomba na sexta, anunciada como a maior operação já realizada pela instituição. Empresas, governo e a imprensa foram pegos de calças curtas, e começaram a bater cabeça, cada um do seu lado. Redes sociais foram à loucura com posts de todo tipo. Empresas se defenderam como puderam, e o governo tentou acalmar os compradores internacionais, que anunciaram restrições à carne brasileira. Críticas de todos os lados empurraram a equipe da PF contra a parede, que, na segunda, se defendeu das acusações de sensacionalismo e precipitação, dizendo que “muitos fatos ainda estão sob sigilo e muitas provas ainda serão apresentadas”. Apenas um dia depois, a mesma PF jogou panos quentes, afirmando que foram apenas “problemas pontuais”.

Tudo isso em apenas cinco dias!

A imprensa continua no seu papel de menino de recados. E as redes sociais colocando lenha na fogueira.

 

Caixa de ressonância digital

Como já aconteceu em várias outras ocasiões, especialmente as envolvidas em assuntos de grande comoção social, a imprensa foi a origem do noticiário, enquanto as redes sociais funcionaram como perfeitas caixas de ressonância. Na verdade, dá para dizer que esse já é um padrão comportamental bem estabelecido, o que é perigosíssimo!

O processo é simples -e perverso. Começa com indivíduos selecionando versões de fatos noticiados pela imprensa. Normalmente fazem isso com algo que sejam francamente favoráveis ou contrários: no primeiro caso, defendem a tese com unhas e dentes; no segundo, partem para o ataque. Se o assunto os atingir pessoalmente, fica ainda mais fácil abraçar a causa.

Os locais onde todo esse engajamento acontece são as redes sociais. Se já não bastasse a natureza humana de se associar a indivíduos ou temas com os quais concorde, os algoritmos de relevância de Facebook e afins tratam de jogar na nossa cara apenas aquilo que nos deixa confortável, que gostamos. Isso é mais que suficiente para que uma versão se transforme em uma “verdade incontestável”.

Como já disse, ainda não tenho elementos para saber qual é a verdade nos casos apontados pela “Carne Fraca”. Acho que toda forma de corrupção deve ser exemplarmente combatida, mas e se houve mesmo precipitação e até sensacionalismo pela equipe responsável da Polícia Federal? E se toda essa milionária crise comercial tiver sido causada por uns poucos indivíduos agindo pontualmente?

Se isso se confirmar, a imprensa terá cometido uma falha gravíssima. E todo mundo terá corrido atrás dela, para jogar as suas pedrinhas.

 

A “escolinha do sexo”

Não teria sido a primeira vez que isso teria acontecido. E infelizmente não será a última.

A dinâmica dos fatos me fez lembrar de um caso que que virou objeto de estuda nas faculdades de Jornalismo: em março de 1994, sócios e funcionários da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação (São Paulo), foram acusados por mães de alunos de abusar sexualmente de crianças de um a seis anos de idade. Um laudo não-conclusivo do Instituto Médico Legal informava que as fissuras eram “compatíveis com ato libidinoso”.


Capa do extinto "Notícias Populares" sobre o caso da Escola Base - foto: reprodução

Capa do extinto “Notícias Populares” sobre o caso da Escola Base

 

Casa que abrigava a Escola Base, na Aclimação, em São Paulo - foto: reprodução

Casa que abrigava a Escola Base, na Aclimação, em São Paulo


Isso foi suficiente para que o delegado Edélcio Lemos, responsável pelo caso, convocasse a imprensa e botasse a boca no trombone, condenando previamente os envolvidos. Começando pelo Jornal Nacional, a onda de denúncia se espalhou por toda a imprensa, exceto a TV Cultura e o finado Diário Popular, que não surfaram nela por acharem que não havia provas.

Graças ao noticiário, a escola e as casas dos acusados foram depredadas e saqueadas pela população. Além de falidos, tiveram que se mudar, pois foram ameaçados de morte. Porém, quando a investigação foi concluída, veio o choque: nunca houve qualquer tipo de molestamento sexual às crianças. As tais fissuras encontradas eram causadas apenas por diarreia. Mas o estrago já estava feito.

E isso tudo aconteceu em 1994! Portanto, antes do poder de propagação das redes sociais. Na verdade, antes mesmo da liberação da Internet comercial.

 

Desconfiança saudável

Apesar da terrível crise pela qual a imprensa vem passando, especialmente os veículos mais tradicionais, o noticiário ainda tem grande peso na vida das pessoas. E isso fica ainda mais forte em casos como o da “Operação Carne Fraca”, com fontes oficiais despejando um monte de evidências que incriminariam empresas e fiscais que estariam colocando “comida estragada” em nossas mesas. Para piorar, em um cotidiano em que a corrupção parece brotar o tempo todo de todos os lugares, o combate a ela virou uma questão de vida ou morte.

Muita calma nessa hora! Não podemos acreditar piamente em ninguém: nem na Polícia Federal, nem na imprensa, nem nas empresas, nem no governo! Não temos elementos para concluir coisa alguma com certeza. Portanto, nada de vestir a armadura de paladino digital e sair esculhambando ou defendendo ninguém.

Qualquer jornalista aprende que deve desconfiar de tudo e de todos sempre. Afinal, interesses podem alterar dramaticamente o posicionamento de pessoas, empresas e instituições. Mas essa desconfiança saudável serve para qualquer um, especialmente em tempos em que a opinião de qualquer cidadão tem grande peso, graças aos meios digitais.

Sei que é muito sedutor ver uma postagem no Facebook que nos atinge e “pensar com o fígado”. Como o algoritmo de relevância ainda nos mostra que muitos de nossos amigos também pensam o mesmo, abandonamos a nossa capacidade de questionar e embarcamos na loucura.

É muito triste, portanto, quando se percebe que a origem da confusão toda está exatamente na imprensa, aquela que vive para cavoucar a verdade, esteja onde estiver, doa a quem doer, mas que parece estar se esquecendo dessa sua nobre e essencial tarefa.

O desenvolvimento de uma sociedade está intimamente ligado a uma imprensa livre, mas também a uma imprensa preparada e responsável. Temos que lutar para que isso sempre exista, posicionando-nos contra a censura, mas exigindo também comprometimento dos profissionais. Pois, sem essas três características, o resultado de seu trabalho fica irremediavelmente comprometido. E aí os detentores do poder político e econômico deitam e rolam.

Paralelamente, cada um de nós também tem a responsabilidade de não acreditar em tudo e todos tão facilmente. Criemos um uso mais consciente, crítico e construtivo das redes sociais, para o nosso bem e para o de toda a sociedade.

Afinal, já existem meninos de recado demais por aí.


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Morre outra vítima da imprensa

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Fachada da antiga Escola Base, que foi depredada pela população após denúncias infundadas veiculadas pela imprensa - Foto: reprodução

Fachada da antiga Escola Base, que foi depredada pela população após denúncias infundadas veiculadas pela imprensa

Na quinta, foi divulgada a morte de Icushiro Shimada, ex-dono da Escola Base e vítima de um erro generalizado da imprensa, que destruiu as vidas de sua família e de seus sócios e funcionários. O assunto virou um case que é estudado nas faculdades de jornalismo, mas profissionais e veículos continuam escorregando na ética e publicando denúncias sem a devida checagem. E as redes sociais só fizeram piorar esse comportamento.

Para quem não se lembra, em março de 1994, sócios e funcionários da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação (São Paulo), foram acusados por mães de alunos de abusar sexualmente de crianças de um a seis anos de idade. Um laudo não-conclusivo do IML informava que as fissuras eram “compatíveis com ato libidinoso”. Isso foi suficiente para o delegado Edélcio Lemos, responsável pelo caso, convocar a imprensa e botar a boca no trombone, condenando os envolvidos sem qualquer julgamento. Iniciado no Jornal Nacional, o denuncismo se espalhou por toda a imprensa da época, exceto a TV Cultura e o finado Diário Popular, que não embarcaram por acharem que não havia provas.

Capa do extinto Notícias Populares, colocando ainda mais lenha na fogueira, de maneira totalmente irresponsável - Foto: reprodução

Capa do extinto Notícias Populares, colocando ainda mais lenha na fogueira, de maneira totalmente irresponsável

Graças ao noticiário, a escola e as casas dos acusados foram depredadas e saqueadas pela população. Eles faliram e tiveram que se mudar, pois chegaram a ser ameaçados de morte em telefonemas anônimos. Porém, quando a investigação foi concluída, “surpresa” geral: nunca houve qualquer tipo de molestamento sexual às crianças. As tais fissuras encontradas eram causadas apenas por diarreia. Mas o estrago já estava feito e os acusados para sempre foram condenados pela imprensa, por mais que tenham sido inocentados pela Justiça. Pediram indenizações do Estado e de veículos de mídia; algumas delas foram pagas depois de longos recursos, outras ainda não. Shimada morreu pobre, vítima de um infarto no último dia 16 de abril, assim como sua mulher, que morreu de câncer em 2007.

O comportamento profissional irresponsável e vergonhoso desse caso deveria ser suficiente para que casos assim não voltassem a acontecer. Não me refiro apenas a algo com essa magnitude, que não acontece tanto (mas desgraçadamente ainda acontece), mas também a falhas supostamente menores (mas não menos antiéticas) que estão no noticiário todos os dias.

A busca pelo “furo”, uma notícia exclusiva capaz de aumentar a audiência de um veículo, é como uma corrida por uma medalha de ouro. É legítima e bem-vinda. Mas não pode ser justificativa para atropelos. Mas é justamente isso que acontece: tudo parece ter virado uma “fonte confiável”. E, quando a blogosfera explodiu, lá pelo ano 2000, veículos começaram a usar até blogs obscuros como fonte. À medida que as redes sociais ficaram mais importantes, elas começaram a ocupar esse espaço.

Um caso recente que ilustra bem isso foi o do tal jornalista dinamarquês que teria vindo ao Brasil para cobrir a Copa do Mundo, mas “desistiu de seu sonho” e voltou para seu país depois de se deparar com as nossas mazelas sociais. Esse assunto resultou em longos debates no Facebook (até aí, tudo bem) e chegou a pautar vários veículos, que compraram a historinha como verdade (aí tudo mal!) e publicaram vários artigos (inclusive algumas toscas bravatas nacionalistas). Mas a história não era séria (pelo menos, não totalmente): um resumo da confusão pode ser visto neste post (que, por sinal, teve que ser atualizado após a publicação).

Pressões por dar logo uma notícia, especialmente quando ela é bombástica, sempre existiram, e muitas vezes vêm de fora da Redação. Quando seus concorrentes já estão falando no assunto, fica ainda pior, principalmente em veículos em tempo real, como a mídia online, a TV e o rádio. Mas essa pressão não pode servir de muleta para deslizes. Isso foi muito bem explorado no trecho abaixo, da série da HBO “The Newsroom”:

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=m95qHOmoUXs]

 

Como dizia Gabriel García Márquez, “a pressa é ingrediente desse ofício”, assim como a pressão. Quem não consegue realizá-lo eticamente nessas condições não está apto para o jornalismo. Se a imprensa continuar realizando seu trabalho dessa forma, acabará vítima de si mesma.

Veja exemplo de antijornalismo

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Capas de Veja, O Globo e Folha sobre o resultado do julgamento dos Nardoni, e de Veja, condenando-os dois anos antes - Imagem: reproduções

Capas de Veja, O Globo e Folha sobre o resultado do julgamento dos Nardoni, e de Veja, condenando-os dois anos antes

“Agora, Isabella pode descansar em paz”. Alguém pode me dizer exatamente o que quer dizer a capa da Veja desta semana, reproduzida ao lado? É mais um exemplo do grotesco antijornalismo praticado por esse semanário que insiste em desonrar continuamente a sua própria história.

Mas, agora que o casal Nardoni finalmente foi condenado pela Justiça, passando de acusados a culpados perante os olhos da lei, como Veja poderia agir diferentemente, se ela própria já os havia condenado na capa de 23 de abril de 2008, também reproduzida ao lado. Porém agora ela não está sozinha: O Globo destinou obscenos 47% de sua capa do dia seguinte ao assunto, com uma manchete espalhafatosa e uma foto dos populares comemorando o resultado como a conquista da Copa do Mundo.  Chamadas semelhantes abriram publicações por todo o país. Apenas como comparação, a Folha, apesar de chamada de seis colunas no alto da capa, conseguiu ser um pouco mais “equilibrada”.

Não estou defendendo os Nardoni. Eles foram julgados e condenados pela Justiça e, para mim, isso é tudo o que preciso saber, mesmo diante da trágica morte da menina. Meu objetivo aqui não é discutir o processo, e sim como a mídia, como um todo, transformou o caso em um verdadeiro circo de horrores, iniciado com as primeiras conclusões da investigação policial (que não condena ninguém) e teve seu ápice ao longo dessa semana, com os acontecimentos ocorridos no fórum de Santana.

Veja e toda a turma de coleguinhas agiu de maneira irresponsável ao espetacularizar o caso (que, diga-se de passagem, acontece aos montes nas periferias das grandes cidades, sem que “ninguém” fique sabendo), antecipando-se ao resultado da Justiça. Provocando a massa cinzenta: alguém já pensou o que seria a vida desses dois no caso de uma improvável absolvição? Mais que isso, apesar de todo o trabalho da promotoria e da defesa, os jurados, que são “gente como a gente”, já chegaram ao tribunal com uma enorme carga de “informação” sobre os acusados, pois foram bombardeados com isso pela mesma mídia. Não seria exagero, portanto, dizer que a imprensa teve papel determinante na condenação do casal.

“Vim do Estado do Piauí para ver a justiça ser feita no Estado de São Paulo!” “Vim da minha cidade do interior, porque lá não tem essas coisa (sic) de morte, de assassinato!” “Ora, ora, ora! O júri é aqui fora!” “Pega lá, pega lá, pega lá! Pega lá para nóis linchá (sic)!” “Vamos arrancar o pescoço desse desgraçado!” Frases ditas pelos populares à porte do fórum de Santana… Os mesmos que avançaram sobre os camburões que conduziram os já condenados a presídios em Tremenbé e –pasmem!– sobre o carro de familiares dos condenados.

Quem são essas pessoas e por que elas estão se prestando a isso? Por que Veja e os demais veículos não respondem isso e explicam também o seu papel na redução da nossa sociedade à barbárie? Em nome da liberdade de imprensa e do direito à informação, valores que –sim– devem ser preservados, transformam cidadãos em animais para vender mais exemplares.

Capa do Notícias Populares em que chama a Escola Base (inocentada pela Justiça) de "escolinha do sexo" - Imagem: reprodução

Capa do Notícias Populares em que chama a Escola Base (inocentada pela Justiça) de "escolinha do sexo"

Seria menos pior se algo assim nunca tivesse acontecido antes. Mas infelizmente não é a primeira, nem a segunda (nem a décima) vez que isso acontece. Pelo jeito, os coleguinhas não aprendem com os seus erros, nem mesmo os mais bizarros, como o do caso da Escola Base, que aconteceu a exatos 16 anos. Assim como agora, todos os veículos (exceto o extinto Diário Popular, justiça seja feita) noticiaram, julgaram e condenaram seis pessoas por suposto abuso sexual de crianças que estudavam na escolinha de classe média do bairro da Aclimação (São Paulo), que chegou a ser chamada, em manchete do finado Notícias Populares, de “escolinha do sexo” (reproduzida acima). Assim como agora, a fonte da imprensa foi a polícia. Mas, diferentemente de agora, os acusados foram inocentados: as fissuras anais infantis não foram causadas por abuso sexual, e sim por diarréia. Exatamente o que meus coleguinhas repetiram de novo nesse caso: uma grande cagada!