Europa

Tim Cook, CEO da Apple: empresa adiará recursos de IA na União Europeia por causa de lei - Foto: Christophe Licoppe/Creative Commons

Ética não pode ser um luxo ou um item opcional nas plataformas de IA

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Na sexta (21), a Apple anunciou que adiará na Europa o lançamento dos recursos de inteligência artificial para suas plataformas, apresentados no início do mês. A empresa culpou a Lei dos Mercados Digitais (DMA, na sigla em inglês), criada para evitar abusos das big techs, pela sua decisão, e não deu um prazo para que esses recursos cheguem ao continente.

Alguns europeus podem ficar irritados com a Apple; outros, com a lei. Mas essas regras existem justamente porque as gigantes de tecnologia abusam do poder que têm sobre seus usuários há décadas, criando relações comerciais desequilibradas, francamente desfavoráveis aos clientes.

A decisão da Apple de adiar a liberação desses recursos na Europa e sua oferta no resto do mundo é emblemática, e podemos aprender algo com ela. Em nota oficial, ela disse estar preocupada que os requisitos da DMA comprometam a integridade dos produtos, colocando em risco a privacidade e a segurança dos dados. Oras, se as regras de uma lei que determina boas práticas comerciais e de concorrência ameaçam um serviço, ele não me parece maduro para ser lançado em qualquer mercado.

Isso precisa ser observado em todos os produtos, mas é particularmente importante nos que usam a inteligência artificial. Essa tecnologia é tão poderosa, que, ainda que esteja em seus estágios iniciais, já transforma nossas vidas e o cotidiano de empresas. Nesse cenário, aspectos éticos e de governança são fundamentais para que a sociedade se desenvolva com a IA, evitando que ela aumente ainda mais a concentração de poder nas mãos de poucos grupos.


Veja esse artigo em vídeo:


A Apple já foi multada em março em €1,8 bilhão (cerca de R$ 10,5 bilhões) por infringir a DMA. No caso, o Spotify moveu um processo alegando práticas anticompetitivas pela Apple exigir de que os aplicativos para o iPhone e o iPad sejam instalados exclusivamente a partir da App Store, com a empresa ficando com 30% das transações na sua plataforma. Talvez por isso esteja ressabiada agora.

Graças à DMA, ela agora permite lojas de aplicativos de terceiros, o Google alterou o Android para usuários escolherem seu navegador e buscador, e a Meta concorda que outros serviços conversem com o WhatsApp e o Messenger. A Microsoft já aceita que os usuários desativem o Bing no Windows, e a Amazon solicita o consentimento dos clientes para personalização de anúncios. Por fim, o TikTok permite que os usuários baixem todos seus dados na plataforma. Mas tudo isso só vale para os europeus!

A inteligência artificial traz essas preocupações a um patamar inédito. A partir do momento em que essa tecnologia pode influenciar decisivamente nosso cotidiano e até nossas ações, é preciso entender como ela funciona. A opacidade dos algoritmos, que já causou muita dor de cabeça nas redes sociais, não pode se sentir confortável com a IA.

“A gente já tem uma dinâmica de inteligência artificial muito madura dentro das empresas, mas o tema de governança tem que ser antecipado”, explica Thiago Viola, diretor de inteligência artificial, dados e automação da IBM Brasil. Segundo ele, os gestores precisam adotar a IA com fortes padrões éticos, transparência e explicabilidade, ou seja, permitir aos usuários saberem como a IA foi construída e entenderem como ela tomou cada decisão.

No Brasil, o Congresso analisa o Projeto de Lei 2338/23, que teve uma nova versão de seu texto liberada na semana passada. Em vários pontos, ele se inspira na Lei da Inteligência Artificial, aprovada pelo Parlamento Europeu em março. E os conceitos de transparência, explicabilidade e rastreabilidade aparecem em toda parte.

Viola está certo: as questões éticas nunca devem ser colocadas de lado por interesses comerciais. Agora, com a ascensão galopante da IA, esses temas gritam para gestores, desenvolvedores e usuários. Mas se é assim, por que tantas empresas só parecem atentar a isso quando são obrigadas por força de lei?

 

Conflito de interesses

Precisamos entender que vivemos hoje uma reedição da “corrida do ouro” patrocinada pela inteligência artificial. Quem dominar essa tecnologia mais que seus concorrentes conseguirá um posicionamento determinante no mercado, especialmente porque, nesse caso, alguns meses à frente nessa etapa inicial podem significar uma liderança consolidada por muitos anos.

Diante disso, as empresas do setor, de startups a big techs, querem experimentar, ajustar e correr o quanto puderem agora, de preferência livres de qualquer restrição. Se algo der errado, pode-se considerar isso como justificáveis danos colaterais do processo de inovação supostamente inadiável.

Por conta da entrada em vigor da DMA, em março, conversei sobre isso com Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Empresas têm liberdade para oferecer seus produtos e serviços da maneira que considerarem mais estratégica, mas essa liberdade é limitada por leis que procuram prevenir práticas que restrinjam a concorrência”, explicou. E segundo ele, “a questão central é se os benefícios imediatos para os consumidores superam os potenciais prejuízos a longo prazo decorrentes de práticas anticompetitivas”.

Em um mundo capitalista selvagem, a busca incessante pelo lucro e a meritocracia de pessoas e empresas parecem valores  inalienáveis. Mas essa é uma distorção de realidade, como ironicamente o próprio mercado ajuda a desmistificar.

Um cenário de segurança jurídica ajuda muito a própria inovação, especialmente as mais vultosas e de mais impacto social. Basta ver que uma das indústrias mais regulamentadas que há –a farmacêutica– vive de inovação. E ainda que elas não pipoquem a cada mês como nas big techs, são mais duradouras e rentáveis a longo prazo.

Viola adverte que a governança precisa ser levada muito a sério pelas empresas quando se fala de IA, pois problemas associados a ela inevitavelmente acontecerão. “Se você tiver cultura, pessoas e ferramental preparados, o seu padrão de ação é muito mais rápido, mas se você não entende e não sabe o que está acontecendo, isso durará dias, semanas, e cairá na Internet”, explica.

Não proponho, de forma alguma, que a inovação seja desacelerada. Mas já passou da hora de as empresas entenderem que ela precisa ser realizada com ética, sem relaxamentos. Hoje as pessoas ainda estão deslumbradas com a inteligência artificial, despreocupadas com assumirem, como suas, sugestões vindas de uma caixa-preta, da qual nada sabem.

Mas à medida que essas decisões se tornarem mais frequentes e críticas em seu cotidiano, e problemas graves acontecerem por essa falta de transparência, a “lua de mel” acabará.  Ninguém continua usando algo pouco confiável. Se a falta de transparência das empresas com a IA levar a isso, todo esse poder será questionado.


Assista à íntegra em vídeo da conversa com Thiago Viola:

 

Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, que acaba de aprovar a Lei da Inteligência Artificial - Foto: PE/Creative Commons

Europa regulamenta a IA protegendo a sociedade e sem ameaçar a inovação

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O Parlamento Europeu aprovou, na quarta passada (13), a Lei da Inteligência Artificial, uma legislação pioneira que visa a proteção da democracia, do meio ambiente e dos direitos fundamentais, enquanto promove o desenvolvimento dessa tecnologia. As novas regras, que devem entrar em vigor ao longo dos próximos dois anos, estabelecem obrigações para desenvolvedores, autoridades e usuários da IA, de acordo com potenciais riscos e impacto de cada aplicação.

Na semana anterior, a Europa já havia aprovado uma lei que regula a atuação das gigantes da tecnologia, favorecendo a competição. Tudo isso consolida a vanguarda do continente na organização do uso do mundo digital para proteger e beneficiar a sociedade, inspirando leis pelo mundo. O maior exemplo é a GDPR, para proteção de dados, que no Brasil inspirou a LGPD, nossa Lei Geral de Proteção de Dados.

Legislações assim se tornam necessárias à medida que a digitalização ocupa espaço central em nossas vidas, transformando profundamente a sociedade. Isso acontece desde o surgimento da Internet comercial, na década de 1990. De lá para cá, cresceu com as redes sociais, com os smartphones e agora com a inteligência artificial.

O grande debate em torno dessas regras é se elas podem prejudicar a sociedade, ao atrapalhar o desenvolvimento tecnológico. A preocupação é legítima, mas ganha uma dimensão muito maior que a real por influência dessas empresas, que se tornaram impérios por atuarem quase sem regras até agora, e gostariam de continuar assim.

Infelizmente essas big techs abusaram dessa liberdade, sufocando a concorrência e criando recursos que, na prática, podem prejudicar severamente seus usuários. Portanto, essas leis não devem ser vistas como ameaças à inovação (que continuará existindo), e sim como necessárias orientações sociais para o uso da tecnologia.


Veja esse artigo em vídeo:


A nova lei proíbe algumas aplicações da IA. Por exemplo, o uso de câmeras fica restrito, sendo proibido o “policiamento preditivo”, em que a IA tenta antecipar um crime por características e ações das pessoas. Também são proibidos a categorização biométrica e a captação de imagens da Internet ou câmeras para criar bases de reconhecimento facial. A identificação de emoções em locais públicos, a manipulação de comportamentos e a exploração de vulnerabilidades tampouco são permitidos.

“O desafio é garantir que tecnologias de vigilância contribuam para a segurança e bem-estar da sociedade, sem prejuízo das liberdades civis e direitos individuais”, explica Paulo Henrique Fernandes, Legal Ops Manager no Viseu Advogados. “Isso requer um diálogo contínuo para aprimoramento de práticas e regulamentações que reflitam valores democráticos e éticos”, acrescenta.

A lei também disciplina outros sistemas de alto risco, como usos da IA em educação, formação profissional, emprego, infraestruturas críticas, serviços essenciais, migração e Justiça. Esses sistemas devem reduzir os riscos, manter registros de uso, ser transparentes e ter supervisão humana. As decisões da IA deverão ser explicadas aos cidadãos, que poderão recorrer delas. Além disso, imagens, áudios e vídeo sintetizados (os deep fakes) devem ser claramente rotulados como tal.

A inovação não fica ameaçada pela lei europeia, porque ela não proíbe a tecnologia em si, concentrando-se em responsabilidades sobre aplicações que criem riscos à sociedade claramente identificados. Como a lei prevê um diálogo constante entre autoridades, desenvolvedores, universidades e outros membros da sociedade civil, esse ambiente pode até mesmo favorecer um desenvolvimento sustentável da IA, ao criar segurança jurídica a todos os envolvidos.

A nova legislação também aborda um dos temas mais polêmicos do momento, que é o uso de conteúdos de terceiros para treinar as plataformas de IA. Os donos desses sistemas vêm usando tudo que podem coletar na Internet para essa finalidade, sem qualquer compensação aos autores. A lei aprovada pelo Parlamento Europeu determina que os direitos autorias sejam respeitados e que os dados usados nesse treinamento sejam identificados.

 

Evitando Estados policialescos

Um grande ganho da nova lei europeia é a proteção do cidadão contra o próprio Estado e seus agentes. A tecnologia digital vem sendo usada, em várias partes do mundo, para monitorar pessoas e grupos cujas ideias e valores sejam contrárias às do governo da vez, uma violação inaceitável a direitos fundamentais, além de criar riscos enormes de injustiças por decisões erradas das máquinas.

Em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, muitas pessoas foram presas por terem sido confundidas pelos sistemas com criminosos. Em São Paulo, a primeira proposta do programa Smart Sampa, implantado em 2023 pela Prefeitura e que monitora os cidadãos com milhares de câmeras, previa que o sistema indicasse à polícia pessoas “em situação de vadiagem”, seja lá o que isso significasse.

A ficção nos alerta há muito tempo sobre os problemas desses abusos. O filme “Minority Report” (2002), por exemplo, mostra que mesmo objetivos nobres (como impedir assassinatos, nessa história) podem causar graves danos sociais e injustiças com a tecnologia. E há ainda os casos em que as autoridades deliberadamente a usam para controlar os cidadãos, como no clássico livro “1984”, publicado por George Orwell em 1949.

O Congresso brasileiro também estuda projetos para regulamentar a inteligência artificial. O mais abrangente é o Projeto de Lei 2.338/2023, que propõe o Marco Legal da Inteligência Artificial. “Enquanto a União Europeia estabeleceu um quadro regulatório detalhado e abrangente, focando na gestão de riscos associados a diferentes usos da IA, o Brasil ainda está definindo seu caminho regulatório, com um enfoque aparentemente mais flexível e menos prescritivo”, explica Fernandes.

É inevitável a profunda transformação que a inteligência artificial já promove em nossa sociedade, um movimento que crescerá de maneira exponencial. Os benefícios que ela traz são imensos, mas isso embute também muitos riscos, especialmente porque nem os próprios desenvolvedores entendem tudo que ela vem entregando.

Precisamos estar atentos também porque muitos desses problemas podem derivar de maus usos da IA, feito de maneira consciente ou não. Por isso, leis que regulamentem claramente suas utilizações sem impedir o desenvolvimento são essenciais nesse momento em que a colaboração entre pessoas e máquinas ganha um novo e desconhecido patamar. Mais que aspectos tecnológicos ou de mercado, essas legislações se tornam assim verdadeiros marcos civilizatórios, críticos para a manutenção da sociedade.

 

Você está pronto para compartilhar suas informações bancárias por aí?

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Foto: reprodução

Quando você pensa em banco, o que lhe vem à cabeça? Provavelmente dinheiro e segurança de bens e informações. Na verdade, essa é praticamente a essência do serviço bancário: pagamos aos bancos para realizarmos, com confiabilidade, todo tipo de transação. Então o que você pensaria se o seu banco lhe dissesse que gostaria de compartilhar a sua informação bancária com outras empresas e pessoas?

Isso pode parecer assustador e absurdo, não é mesmo? Pois saiba que pode acontecer muito em breve, portanto é melhor entender do que se trata.


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Recentemente conversei sobre isso com Tyler Jewell, CEO da WSO2, e Edgar Silva, gerente geral da América Latina da mesma empresa. O papo girou em torno do “open banking”, um conceito que promete revolucionar a maneira como nós nos relacionamos com serviços financeiros e como os próprios bancos funcionam.

O conceito surgiu com força no Reino Unido em 2016, e se espalhou pelo mundo. Resumidamente, ele prevê que instituições bancárias criem mecanismos para compartilhar dados financeiros de seus clientes com outras empresas e desenvolvedores de uma maneira organizada, para que eles possam criar serviços interessantes para seu público. Ou seja, a clientela continua sendo do banco, mas pelo menos algumas de suas informações são distribuídas a terceiros autorizados, para que criem novos serviços.

Essa transferência se dá por sistemas de troca de informações entre serviços online, chamados APIs (sigla em inglês para Interface de programação de aplicações ,exatamente o negócio da WSO2). A teoria por trás do “open banking” é que, por mais que a pessoa esteja vinculada a um banco, ela é a dona das suas informações financeiras, e não a instituição. Portanto, deve ter o controle sobre elas para compartilhá-las com quem bem entender, de modo que possa escolher empresas que, a partir desses dados, lhe ofereçam serviços financeiros melhores.

Confuso? Talvez. Mas isso é porque se trata de um conceito que pode ser realmente revolucionário.

 

Pegadas financeiras na nuvem

Já nos acostumamos com a ideia de que Facebook, Google, Apple e tantos outros nos conhecem incrivelmente bem, pelas nossas pegadas digitais, cada vez mais numerosas e profundas. Mas antes, muito antes disso tudo, os bancos já sabiam bastante sobre nós, pela maneira como gastamos nosso dinheiro.

Afinal, imagine o que poderíamos inferir se soubéssemos tudo o que uma pessoa compra, de quem, quando, de que forma, e pudéssemos cruzar essa informação com suas fontes de renda, dados familiares e mais um monte de outros bancos de informação. Acrescente a isso uma capacidade brutal de processamento e os melhores algoritmos do mercado.

Pois é: os bancos sabem muito sobre nós!

Só que, até agora, elas guardam essas informações só para eles, tirando todo o proveito possível para ganhar ainda mais dinheiro com cada um de nós. O atual estágio é o resultado de um modelo de negócios que vem sendo melhorado há mais de 600 anos (o primeiro banco do mundo, o genovês Banco di San Giorgio, data de 1407). Não é de estranhar, portanto, que mesmo em tempos de crise severa, como a que vivemos, os bancos continuem batendo recordes contínuos de lucratividade.

Agora imagine se pudéssemos compartilhar toda essa riquíssima informação com várias outras empresas, para que nós -e não apenas os bancos- também lucrássemos com isso. Em um exemplo bastante simples, imagine se uma empresa tivesse acesso a nossas compras com o cartão de crédito. Com isso, poderia gerar ofertas de produtos que realmente consumimos de varejistas que os estiverem promovendo quando precisarmos deles. Ou, a partir de nossos extratos, poderiam oferecer opções de crédito ou investimento muito mais vantajosas que as do nosso próprio banco.

Com muito menos –as compras realizadas pelos clientes em suas lojas– o Pão de Açúcar transformou seu programa de relacionamento “Pão de Açúcar Mais” em um aplicativo que oferece grandes vantagens aos próprios clientes, aos seus fornecedores e a ele próprio. Não é “open banking”, mas é um ótimo exemplo como o uso inteligente de dados de consumo podem trazer incríveis resultados.

O uso de dados de clientes fornecidos pelos bancos para sistemas que geram algum tipo de serviço agregado não surgiu com o “open banking”. Ainda nos anos 1990, usuários de antigas versões dos sistemas de gestão financeira Money (Microsoft) e Quicken (Intuit) já conseguiam importar alguma coisa para dentro dessas plataformas. Mas era um processo tão complicado e limitado, que desanimava.

Agora, com o novo conceito e novas tecnologias, os clientes tendem a ganhar muito. As empresas que oferecerem essas soluções também. Já os bancos…

Bem, os bancos precisam se reinventar.

 

Se não é pelo amor, é pela dor

É verdade que os bancos são azeitadíssimas “máquinas de fazer dinheiro” (se me permitem o trocadilho infame). Mas o que vem funcionando há seis séculos precisa ser revisto diante de coisas como o “open banking” e as “fintechs”, empresas que entregam serviços financeiros pelo uso inovador de tecnologia. Portanto, apesar de seu enorme poder, os bancos precisam lidar com as mudanças impostas por essa nova realidade.

O interessante é que os próprios bancos tradicionais podem se beneficiar disso tudo. Muitos deles, inclusive no Brasil, já possuem áreas de inovação que atuam como “fintechs” e já oferecem espontaneamente APIs de “open banking”. Se, por um lado, eles se veem obrigados a fazer isso para não ficarem para trás em um grande movimento tecnológico, por outro podem usar isso para se posicionar no mercado como empresas inovadoras e digitais, bandeiras, aliás, erguidas por muitas dessas instituições.

Dessa forma, além de poderem se tornar mais simpáticos aos correntistas, podem efetivamente descobrir novas e lucrativas formas de negócios. Além disso, podem evitar que outras empresas acabem fazendo seu trabalho e levando embora parte do lucro que teriam com os próprios clientes.

A questão essencial do “open banking” de os dados pertencerem ao cliente e não à instituição envolve outro tema atualíssimo: a proteção aos dados pessoais. O Congresso Brasileiro aprovou há algumas semanas, em plenário, o projeto da Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira (LGPD), que traz ao país alguns importantes pontos já em vigor na Europa, seguindo legislação semelhante local, a chamada GDPR. Ele aguarda agora sanção do presidente Temer.

Conversei sobre isso com Marcelo Crespo, sócio do escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados; “Os bancos, como outras empresas, serão favorecidos com o surgimento de uma Lei Geral de Proteção de Dados, embora isso possa gerar, em algum momento, a necessidade de adequação aos padrões legais, pois as empresas precisarão se preocupar com a fonte dos seus bancos de dados, já que os dados pessoais, para serem tratados, precisarão de autorização específica dos titulares”, explica Crespo.

A LGPD e o próprio “open banking” dificultam a implementação do chamado “cadastro positivo”, um projeto que prevê a criação de uma lista de “bons pagadores”, e incluiria todos os moradores no país, sem que eles dessem autorização para tal. Essa informação seria usada pelos bancos para determinar, entre outras coisas, quem tem ou não direito a crédito.

 

Isso é seguro?

Pouca coisa exige mais segurança que informações bancárias. Não por acaso, os bancos desenvolveram alguns dos sistemas mais impenetráveis do mundo: a sobrevivência do seu negócio depende disso.

Então como pensar em transitar nossas informações bancárias por aí, com terceiros?

Tecnicamente, o “open banking” é bem construído. Mas há um elo muito frágil nessa corrente: o próprio usuário. Para tirar proveito verdadeiro da novidade, o cliente precisa ter um conhecimento mínimo tanto dos próprios conceitos de transações bancárias, quanto da tecnologia.

Basta ver como as próprias redes sociais são usadas para ludibriar o consumidor, que autoriza aplicativos a coletar e usar seus dados indevidamente, em troca de algum pequeno benefício, como testes do tipo “com que celebridade eu me pareço”.

Portanto, os grandes entraves para a adoção do “open banking” não são técnicos, mas sim de conscientização dos correntistas. A proposta é boa, pode realmente trazer grandes benefícios, mas exige um trabalho junto ao cidadão. E, nesse cenário, a Lei Geral de Proteção de Dados pode ser, afinal, uma interessante aliada.


E aí? Vamos participar do debate? Role até o fim da página e deixe seu comentário. Essa troca é fundamental para a sociedade.


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Como a conquista das crianças pelo YouTube pode impactar empresas e a educação

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Foto: Tobyotter/Creative Commons

Pergunte a uma criança onde ela vê seus programas preferidos. Há uma grande chance de o YouTube ser a resposta. Ele caiu de vez no gosto dos pequenos. Ótimo para o Google, dono da plataforma! Mas isso abre algumas interessantes questões educacionais e de negócios.

Um recente levantamento da ESPM Media Lab, conduzido pela pesquisadora Luciana Corrêa, jogou luz sobre isso. Suas observações combinam com o relatório “Children and Internet use: a comparative analysis of Brazil and seven European countries”, produzido a partir de estudos comparáveis dos países participantes. No Brasil, os dados foram levantados pelo Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação).


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Para crianças e adolescentes, o YouTube já é muito mais que uma simples plataforma de vídeos: é a sua principal ferramenta de busca para qualquer assunto, ocupando o espaço que o próprio Google tem para os adultos. Tanto que a empresa lançou o YouTube Kids, um versão do serviço com recursos especiais para crianças (ainda não disponível no Brasil).

Naturalmente os vídeos de entretenimento são o principal atrativo da plataforma. Corrêa identificou que, dos 100 canais com mais audiência do YouTube, 36 abordam conteúdo direcionado a crianças de 0 a 12 anos. E, de 110 canais brasileiros analisados (que já renderam 20 bilhões de visualizações), a categoria mais comum é a de “games”, seguida pela de “programação infantil também disponível na TV”. Apenas um canal era “educativo”.

A segunda categoria me chamou muito a atenção. Para as crianças, não existe diferença entre o conteúdo no YouTube, em serviços pagos de vídeo sob demanda (como Netflix) ou nas TVs por assinatura ou aberta: tudo é vídeo! E isso acende uma grande luz vermelha para o negócio das emissoras de TV.

As crianças estão vendo TV fora da TV!

 

Tela do passado

Acontece que os pequenos cada vez menos usam o aparelho de TV. Para elas, a programação “nativa” na telona é uma coisa anacrônica com três características muito indesejáveis: existência de uma grade de programação (que as obriga a assistir aos programas em horários específicos), programação continuamente interrompida por comerciais e impossibilidade de ver o conteúdo com privacidade. Não é de se estranhar, portanto, que o dispositivo preferido para assistir a vídeos seja o celular, e a plataforma seja o YouTube: a combinação elimina, de uma só vez, esses três incômodos.

Esse comportamento também pôde ser observado em uma outra pesquisa, realizada no ano passado pela comScore e pela IMS, com latino-americanos que veem vídeos online, uma realidade cotidiana para 81% do público pesquisado, contra apenas 70% da TV aberta (no Brasil, os números foram 82% contra 73% respectivamente). E os mais jovens eram os que mais preferiam vídeos online à TV.

Chegamos a debater neste espaço como o lançamento do Globo Play não deve cativar os mais jovens. O produto tem um formato técnico e um modelo de negócios semelhantes aos da Netflix, mas falha ao se manter atrelado à grade de programação da emissora. Não é, portanto, suficiente para estancar a sangria desatada do público.

Os fabricantes de TV, que já perceberam os ventos da mudança há alguns anos, estão transformando os aparelhos em poderosos computadores, capazes de rodar todo tipo de aplicativo, inclusive o YouTube e a Netflix (não por acaso os mais populares em suas plataformas). Resta saber o que as emissoras de TV farão para evitar que seu negócio mingue por falta de público.

Até o momento, não vejo grande coisa.

 

YouTube babá?

Mas há outro aspecto importante a se analisar nesse fenômeno: as crianças estão ficando tempo demais no YouTube?

Curiosamente, há uns 20 anos, essa pergunta recaía sobre a própria TV, chamada pejorativamente então de “babá eletrônica”. As crianças passavam horas a fio assistindo à sua programação, e depois seus pais acusavam-na de “deformar” seus filhos. A bola da vez para esse “cargo” é a tecnologia digital, com o YouTube em destaque.

Quando uma criança deve ter acesso à tecnologia é um debate que parece não ter fim. Existem bons argumentos a favor e contra. Particularmente acho um grande erro querer privá-las disso por princípio, pois vejo falhas conceituais no que diz a “turma do não”. Além disso, vivemos em um mundo em que a tecnologia digital é cada vez mais ubíqua, e, por isso, as crianças devem aprender, desde cedo, a se apropriar dessas ferramentas em seu favor.

O que não quer dizer abandonar as crianças à sua própria sorte com seus gadgets. Pais que acusavam a TV e, depois dela, a Internet, os videogames, os smartphones, o YouTube por problemas com seus filhos estão tentando jogar em outro a culpa que é, na verdade, sua!

Como explica muito bem a psicóloga Katty Zúñiga, do NPPI (Núcleo de Pesquisas da Psicologia e Informática) da PUC-SP, os pais não devem vetar o acesso à tecnologia para seus filhos, pois eles acabarão encontrando maneiras de burlar a proibição, eliminando a chance de os pais construírem algo juntos com os filhos nesse ambiente. Por outro lado, os responsáveis devem oferecer e incentivar outras atividades aos pequenos, como livros, brincadeiras, atividades manuais, passeios, para que as ferramentas digitais sejam apenas “mais uma” das atividades disponíveis para a criança. Pois, se ela não tiver alternativa, usará o que estiver à mão, no caso, literalmente, o smartphone. Além disso, os pais devem se envolver e demonstrar interesse genuíno pelo que seus filhos fazem nos meios digitais. Tudo isso é o que pode ser considerado um uso consciente e construtivo da tecnologia pelas crianças.

Sim, o cotidiano é difícil, todos têm que trabalhar, estão sempre na correria, sobra pouco tempo para lazer. Mas –sinto muito– nada disso serve de desculpa para não dispensar às crianças o tempo e a atenção que elas necessitam e merecem. Isso é ser pai e mãe.

Portanto, antes de o uso intensivo do YouTube pelos pequenos ser a causa de algum problema, ele é um sintoma. A plataforma pode ser muito interessante por si só. Não há nada de errado nas crianças gostarem dele, desde que não seja por falta de alternativas ou orientação. Muito mais que as emissoras de TV, são os pais que devem estar atentos a isso.


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A Grécia está prestes a ser varrida da História

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Composição sobre imagem de VisualHunt.com/Creative Commons

Uma proposta que está sendo gestada em Brasília pode apagar a Grécia da História. Ironicamente ela não afetará nenhum cidadão grego, mas pode ser devastadora para os brasileiros.

Não, o Brasil não mandará tropas ao mar Egeu. A proposta se refere a mudanças no que as quase 200 mil escolas brasileiras deverão ensinar aos seus alunos em todas as disciplinas, a chamada Base Nacional Comum Curricular. Uma organização assim é bem-vinda. Entretanto, para ser benéfica, deve ser muito cuidadosa nos conteúdos propostos. E aí está o problema.

A íntegra da proposta está disponível para consulta pública no site do ministério até o dia 15 de março e o documento vem sendo bombardeado por especialistas. Qualquer brasileiro pode deixar lá sua opinião.

Neste artigo, vou me concentrar em História. É importante também deixar claro que este texto trata apenas de aspectos educacionais, fugindo de qualquer discussão política ou partidária. Mas é impossível não mencionar a característica fortemente ideológica e doutrinária do documento do MEC.

Evidentemente a educação é a mais poderosa ferramenta de controle de um povo. E a disciplina de História tem papel crucial nessa tarefa, pois apresenta elementos capazes de moldar a moral do cidadão. Não é de se espantar, portanto, que todos os regimes totalitários lancem mão desse recurso odioso.

No Brasil mesmo, temos o exemplo do currículo imposto pelo governo militar, que distorceu à vontade a história do país para criar uma geração dócil e pouco contestadora. O próprio currículo atual está longe de ser perfeito, sendo resultado de um arremedo do que sobrou do currículo militar com discussões mal-ajambradas da academia desde então, além da ideologia de cada autor.

No século passado, tivemos também outros excelentes exemplos de doutrinação pela escola, na Alemanha nazista, na União Soviética e na China. E atualmente temos o caso da Coreia do Norte, “o país sem cidadãos tristes”.

Claro que podemos afirmar que não há um currículo escolar sem viés político, pois a História nos mostra (pelo menos para aqueles que tiveram a oportunidade de ter uma visão mais ampla dela) que ela é contada sempre pelo vencedor. Seja o vencedor de uma guerra, seja o vencedor das últimas eleições. E nem precisa ser algo de grande monta: estamos cansados de ver prefeitinhos mequetrefes criando “conteúdos pedagógicos” para as escolas de seus municípios que desqualificam seus opositores e o que pensam.

Mas, afinal, o que o MEC está propondo para História?

 

Ameríndios e africanos versus europeus

A proposta do MEC parte de um pressuposto interessante é válido: como os fatos culminaram na atual sociedade brasileira. Mas a situação se deteriora rapidamente quando observamos os conteúdos propostos para se atingir esse objetivo pedagógico.

Pela proposta, o ensino de qualquer coisa anterior às Grandes Navegações foi eliminado, incluindo aí a formação dos povos mesopotâmicos, egípcios, hebreus, gregos, romanos, além de todos os Estados europeus, pedras fundamentais da cultura ocidental, inclusive da brasileira.

O currículo atual, bastante centrado na Europa, daria lugar a uma proposta fortemente focada em civilizações ameríndias e africanas. Todo o estudo da Antiguidade, Idade Média, Renascimento é eliminado, incluindo o surgimento e a disseminação do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo. Em seu lugar, entram o contexto político dos povos indígenas brasileiros e da África subsaariana às vésperas da Conquista. E até temas para lá de questionáveis para a formação do cidadão brasileiro, como a independência do Haiti e a Revolução Boliviana ocupariam as aulas de história.

É inegável a influência dos índios e dos africanos em nossa cultura e elas merecem ser mais bem apresentadas do que são hoje. Mas de forma alguma isso pode acontecer em prejuízo de outros elementos definidores dela, a maioria mais importantes que os agora propostos. Pois, queiram ou não, nossa cultura e nossas organizações social, política, legal tem base europeia.

Pela nova proposta, eventos históricos europeus só são considerados naquilo que, de alguma forma, se relacionem com o Brasil. Mas como entender a independência do nosso país sem entender que a Corte portuguesa só veio ao país fugindo das Guerras Napoleônicas? É como entendê-las sem compreender a formação do Estado francês, que por sua vez está ligado, em suas raízes, ao fim do Império Romano. Esse, por sua vez, construído sobre a cultura de um país por eles dominado militarmente (mas não culturalmente) séculos antes: os mesmos gregos do início deste artigo.

A própria Revolução Francesa, que ajudou a moldar todo o Ocidente -e posteriormente parte do Oriente, por influência de nações como Inglaterra e EUA- fica reduzida a um estudo no 8º ano de como ela influenciou o nosso processo de independência e do pensamento liberal no país. E não há sequer menção à Revolução Industrial, que cristalizou os conceitos do Capitalismo e abriu espaço para a luta de classes e, portanto, do Socialismo. Que dizer então da Guerra Fria e sua influência decisiva na formação geopolítica global? Também não está lá. E estes são apenas alguns exemplos.

Essa proposta, que, a despeito da consulta pública, é completamente desconhecida da população, precisa ser, portanto, discutida e modificada dramaticamente! Entretanto, o pouco tempo disponível (cerca de seis meses) e a falta de divulgação e transparência nos processos me fazem sinceramente temer pelo resultado final.

A História, apresentada de maneira ampla e sem viés ideológico, é uma essencial para a formação, manutenção e evolução de qualquer sociedade. Estamos em um momento precioso para fazer isso direito, mas a proposta atual corre exatamente em sentido contrário.

Afinal, como nós estudamos na escola, conhecendo a história, compreendemos o presente e criamos um futuro melhor para todos. Mas, com a proposta em questão, temo que nossos filhos e netos não terão a mesma oportunidade de desenvolver essa visão crítica do mundo.

 

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O que a “Green Dam” quer barrar

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Para o governo do premiê Wen Jiabao, a pornografia provoca "sérios desvios de conduta e de moral" nos jovens chineses, por isso, deve ser bloqueada

Para o governo do premiê Wen Jiabao, a pornografia provoca "sérios desvios de conduta e de moral" nos jovens chineses, por isso deve ser bloqueada, mas será só isso mesmo?

Hoje era a data definida pelo governo chinês para que todos os computadores domésticos vendidos no país viessem com o software “Green Dam-Youth Escort” pré-instalados. Pela explicação oficial, o programa impedirá que crianças e jovens tenham acesso a pornografia e outros “conteúdos impróprios” na Internet. Na prática, pode impedir que o internauta acesse qualquer tipo de conteúdo online que desagrade o governo, como sites que promovam a democracia, a libertação ao Tibete ou contrários ao Partido Comunista.

Desde que foi oficialmente anunciado no dia 9, o “Green Dam” (literalmente “barragem verde”) vem causado uma enorme gritaria. A única fabricante que confirmou que cumpriria a determinação foi a Acer. Os EUA, a Comunidade Européia e a OMC (Organização Mundial do Comércio) pediram que o governo chinês retirasse a exigência, que representaria um “sério risco à segurança, privacidade e direito de escolha do usuário”. Na sua véspera, a data-limite foi postergada, em data ainda não informada.

A pornografia é considerada crime na China. Ainda assim, estima-se que metade dos jovens consome algum tipo de pornografia online. O governo afirma que “graves desvios emocionais e de conduta” se devem a isso e ao uso de games violentos. Por isso, a “barragem” protegeria crianças e jovens.

Conversa fiada de ambos os lados! Privacidade, liberdade de expressão e de escolha são coisas que não existem na cabeça dos governantes de Pequim. Por outro lado, os 316 milhões de internautas chineses são um mercado em que qualquer empresa quer colocar as mãos. O que o indivíduo realmente quer pouco importa.

O usuário supostamente poderá desinstalar o “Green Dam”. Por outro lado, pais também poderão ampliar a lista de sites censurados para seus filhos. Mas, na prática, quantas pessoas são capazes de fazer isso?

Acho esse software mais uma aberração governamental contra as liberdades individuais. Sou fortemente contrário a ele, não por causa dessa conversinha dos EUA e da Europa, mas por um posicionamento filosófico, íntimo. Os chineses deveriam continuar navegando livremente, limitados apenas pela sua boa educação e moral. Mas receio que o seu governo prefira o jeito mais fácil –e confortável– e o “Green Dam” logo inundará os computadores do pais.

Uma ressalva final: não pensem que só o “gigante vermelho malvado” quer controlar a Internet. Nos anos 1990, o Congresso dos EUA, berço da liberdade e blá-blá-blá-etc., quase aprovou o “Ato de Decência nas Comunicações”, que, na prática, censuraria fortemente o conteúdo publicado na Internet. E, se quiser algo mais próximo e mais recente, olhemos para o nosso próprio umbigo, com o Congresso Nacional brasileiro tramitando aquela que é conhecida como “Lei Azeredo”, que determina várias ações que, no mínimo, ferem as liberdades individuais.

Pois é: liberdade e educação sempre amedrontam os donos do poder.