Justiça

Policial espanhola atende mulher no programa VioGén, que calcula o risco de ocorrências de violência de gênero - Foto: reprodução

O que acontecerá quando alguém morrer por um erro de inteligência artificial

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O uso da inteligência artificial continua avançando nas mais diversas atividades, trazendo sensíveis ganhos de produtividade em automação de tarefas e no apoio à tomada de decisões. Ainda assim, ela está longe de ser perfeita, mas muitos usuários parecem não se preocupar com isso, pois seus eventuais erros causam prejuízos mínimos. Em algumas funções, entretanto, essas falhas podem levar a enormes transtornos, até mesmo à morte de alguém.

Duas perguntas surgem imediatamente disso: como evitar que uma tragédia dessas aconteça, e quem responderá por isso nesse caso.

A inteligência artificial é fabulosa para encontrar padrões, que permitem que ela tome suas decisões. Esses padrões dependem, entretanto, da qualidade dos dados usados para seu treinamento. Se os dados forem limitados ou cheios de viés, isso comprometerá seriamente a eficiência da plataforma.

Esse é um dos motivos por que a tomada de decisões críticas, por mais que seja auxiliada pela inteligência artificial, deve continuar em mãos humanas, pelo menos no estágio atual da tecnologia.

Algumas pessoas argumentam que isso contrariaria o próprio propósito de se usar a IA. Mas ignorar essa responsabilidade é como entregar uma decisão de vida ou morte para um estagiário eficiente. Talvez algum dia ele tenha estofo para algo tão sério e possa responder por isso, mas, por enquanto, não está preparado para tal.

Nada disso é especulação: já está acontecendo!


Veja esse artigo em vídeo:


Por exemplo, a polícia espanhola usa um sistema chamado VioGén para determinar estatisticamente riscos de ocorrência de violência de gênero. Em 2022, Lobna Hemid foi morta em casa pelo seu marido, depois de dar queixa na delegacia por ter sido insultada e surrada por ele com um pedaço de madeira, diante dos quatro filhos de 6 a 12 anos. Toda a vizinhança tinha ouvido seus gritos.

Não havia sido a primeira vez que o marido, Bouthaer el Banaisati, a havia espancado nos dez anos de casamento. Ainda assim, o VioGén calculou que ela corria pouco risco. O policial aceitou a decisão da máquina e a mandou para casa. Sete semanas depois, Bouthaer a esfaqueou várias vezes no peito e depois se suicidou.

Segundo o Ministério do Interior da Espanha, há 92 mil casos ativos de violência contra mulher no país. O VioGén calculou que 83% dessas vítimas tinham risco baixo ou insignificante de serem atacadas novamente pelo agressor. E o caso de Lobna não é único: desde 2007, 247 mulheres foram mortas depois de serem analisadas pelo sistema, 55 delas com riscos classificados como insignificantes ou baixos.

Os policiais têm autonomia de ignorar a sugestão da plataforma, devido a indícios que observem. Mas em 95% dos casos, eles apenas aceitam a sugestão.

A máquina não pode ser responsabilizada pelo erro de julgamento, por mais que esteja diretamente ligada a essas mortes. Mas então quem reponde por isso? Os policiais que acreditaram no VioGén? O fabricante da plataforma?

No momento, ninguém! As autoridades argumentam que, apesar de imperfeito, o VioGén efetivamente diminuiu a violência contra mulheres. Mas isso não importa para Lobna, que engrossou as estatísticas de agressões fatais contra mulheres e de erros policiais grosseiros causados por decisões auxiliadas por uma máquina.

 

No Brasil

Oficialmente, não há casos assim no Brasil, mas diferentes sistemas de IA já causam severos erros policiais e jurídicos no país.

Assim como acontece em outras nações, muitas pessoas já foram presas por aqui por erros em sistemas de reconhecimento facial por câmeras públicas ou de policiais. A maioria das vítimas são pessoas negras e mulheres, pois as bases de dados usadas para seu treinamento têm muito mais fotos de homens brancos.

Isso reforça ainda mais a já conhecida e aviltante discriminação policial contra negros. E por mais que essas vítimas acabem sendo soltas quando o erro é descoberto, passar alguns dias “gratuitamente” na cadeia é inadmissível!

E nem estou falando nos casos em que a polícia já chega atirando no “suspeito”.

Em outro caso, há o sistema de vigilância pública da prefeitura de São Paulo, o Smart Sampa, que usa IA para evitar crimes. Sua proposta original, que previa “rastrear uma pessoa suspeita, monitorando todos os seus movimentos e atividades, por características como cor, face, roupas, forma do corpo, aspectos físicos etc.”, teve que ser alterada, pois monitorar alguém pela cor é ilegal. Mas a redação era emblemática!

A Justiça também tenta encontrar caminhos seguros para um uso produtivo da IA. Mas casos de erros graves dificultam essa aprovação.

Por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) investiga o caso do juiz Jefferson Ferreira Rodrigues, que negou indenização a uma servidora pública, quando era titular da 2ª Vara Cível e Criminal de Montes Claros (MG). Sua sentença incluía jurisprudências inexistentes criadas pelo ChatGPT. Ele admitiu o erro, mas o classificou como um “mero equívoco” devido à “sobrecarga de trabalho que recai sobre os ombros dos juízes”. Ele ainda atribuiu o erro a um “assessor de confiança”.

Esses são apenas exemplos de por que não se pode confiar cegamente nas decisões de plataformas de inteligência artificial. É muito diferente de dizer que elas não devem ser usadas, pois devem: podem trazer grandes benefícios aos nosso cotidiano!

A decisão sempre deve ser de humanos, que são responsáveis por qualquer falha da plataforma, especialmente em casos críticos. E mesmo que um sistema evite 100 mortes, não é aceitável que 10 inocentes sejam condenados ou mortos por erros da plataforma. Se houver um único erro assim, ela não é boa o suficiente para uso!

Por fim, é preciso criar legislações que também responsabilizem os fabricantes por essas falhas. Caso contrário, seu marketing continuará “batendo o bumbo” quando algo dá muito certo, e “tirando o corpo fora” se algo der errado, jogando a culpa aos seres humanos. A inteligência artificial deve trabalhar para nós, e não o contrário!

 

O absurdo de se bloquear o WhatsApp – de novo!

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Montagem sobre foto do Mídia NINJA/Creative Commons

O Brasil ficou sem WhatsApp a partir das 14h desta segunda (2/5). De novo! Mais que uma batalha entre uma megacorporação e a Justiça, esse caso demonstra como muitos magistrados brasileiros ainda têm um longo caminho a percorrer no entendimento das ferramentas digitais na vida das pessoas e das empresas.

Assim como aconteceu no dia 17 de dezembro passado, quando a juíza Sandra Regina Nostre Marques, de São Bernardo do Campo (SP), determinou que as operadoras de telefonia cortassem o acesso aos servidores do WhatsApp por 48 horas, o motivo agora é o descumprimento do Facebook, dono do comunicador, da ordem judicial para entregar dados e conversas de usuários que são investigados pela Justiça.


Vídeo sobre o bloqueio de 17 de dezembro:


Vale lembrar que, desde o mês passado, todas as conversas no WhatsApp são criptografadas de ponta a ponta, o que, em tese, impede que até a própria empresa consiga ler seu conteúdo.

O responsável pelo novo bloqueio é o juiz Marcel Montalvão, da cidade de Lagarto (SE). Ele é o mesmo que, em março, mandou prender preventivamente o vice-presidente do Facebook para a América Latina, Diego Dzodan, alegando descumprimento de determinação de quebra do sigilo de mensagens no aplicativo.

Mas eu tenho uma pergunta: o que eu, você e os outros 100 milhões de usuários no WhatsApp no Brasil têm a ver com isso?

Pois o real efeito da decisão do senhor Montalvão é eliminar uma ferramenta que, pela sua penetração, se tornou extremamente importante na vida das pessoas, que usam esse messenger para se divertir, se relacionar e trabalhar.

Com uma canetada, o juiz de Lagarto amordaçou metade da população brasileira.

 

Dá para atender aos pedidos?

Juristas criticaram a decisão do juiz Montalvão, classificando-a de “arbitrária” e “violadora de direitos individuais”. Em resumo, não se pode penalizar toda uma população para fazer valer uma decisão judicial, por mais que ela seja legítima.

Fazendo uma analogia, é como se, digamos, a Telefonica resolvesse descumprir uma decisão judicial e, por isso, algum juiz determinasse que os telefones ficassem mudos, impedindo a comunicação de todos os seus milhões de assinantes. Acho que nem a juíza Marques, nem o juiz Montalvão pensariam em um descalabro desses.

Então por que eles acham legítimo tirar do ar o WhatsApp? Pois, para muita gente (provavelmente para a maioria dos seus usuários), ele chega a ser mais importante que o próprio telefone como ferramenta de comunicação.

Por fim, muitos podem argumentar que é muito barulho por nada, que se trata de apenas um comunicador entre tantos outros, inclusive o Messenger, do próprio Facebook. Mas a situação é, sim, tão grave quanto se está vendendo, pois esse tipo de software tem uma característica interessante: só faz sentido usá-lo se “todo mundo” fizer o mesmo. Por isso, migrar para outros produtos é um processo que levaria semanas, sendo muito mais social que tecnológico.

Assim, fica valendo a mordaça do Montalvão. A expectativa é ficar sem o aplicativo por 72 horas. Vamos ver quanto dura. Em dezembro, a determinação foi derrubada depois de apenas 12 horas.

O que parece não cair nunca é essa teimosia combinada com incompetência e inconsequência da Justiça de meter os pés pelas mãos quando o assunto é o trato da tecnologia na vida dos cidadãos e das empresas. Até quando?


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Existe uma ética verdadeira nas redes sociais?

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Foto: reprodução

Quais os direitos e deveres que uma empresa tem sobre as informações que seus clientes lhe confiam? Em tempos em que as redes sociais ocupam um papel central em nossas vidas, essa pergunta é fundamental e serve como base para outras, como até que ponto ela pode se recusar a ajudar a Justiça, alegando proteção à privacidade dos seus usuários? Mais que isso: um sistema pode manipular as pessoas?

As empresas podem dizer que tudo está descrito nos seus “termos de uso”, documentos com os quais todos nós concordamos ao começar a usá-las. Mas sejamos sinceros: ninguém lê aquilo! E, caso leia, nem sempre fica claro o que está escrito ali. Por exemplo, você sabia que, de acordo com os termos do Facebook, ele tem direito a usar qualquer coisa que publiquemos na sua rede (incluindo fotos e vídeos), sem nos pagar nada?


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Há alguns dias, o WhatsApp anunciou que toda a comunicação entre seus usuários passou a ser criptografada de ponta a ponta. Em tese, isso significa que ninguém, além dos próprios interlocutores, podem entender o que está sendo dito, mesmo que a informação seja interceptada.

A empresa afirma que, com isso, nem ela mesma é capaz de decodificar essa informação. É um álibi técnico muito interessante contra as constantes determinações judiciais para informar às autoridades o conteúdo de conversas entre usuários que estão sendo investigados. O Facebook, dono do WhatsApp, tradicionalmente se recusa a cooperar, alegando respeito à privacidade dos usuários. E isso regularmente evolui para batalhas jurídicas, como a que tirou o WhatsApp do ar no Brasil por 12 horas, em dezembro passado.

O cuidado com a privacidade e a integridade dos dados de usuários é mais que bem-vinda: é fundamental! Então, se as empresas estão cumprindo a promessa de não os compartilhar com ninguém, nem mesmo com o governo, isso deve ser comemorado!

Entretanto, sem entrar no mérito de que podemos supor que nem todas fazem isso, é razoável perguntar: o que as próprias empresas fazem com tanta informação pessoal, inclusive muitas intimidades, que lhes entregamos graciosamente?

 

Apaixonando-se pelo sistema

Psicólogos diriam que qualquer relação em que apenas um dos lados sabe muito do outro é desequilibrada, e potencialmente condenada por isso. Mas é exatamente assim que nos relacionamos com as redes sociais, que provavelmente nos conhecem melhor que nossas próprias mães.

Isso foi brilhantemente ilustrado no filme “Ela” (“Her”, 2013), de Spike Jonze. Para quem não viu o filme (que recomendo fortemente), ele conta a história, que se passa em um futuro próximo, do romance entre o protagonista Theodore (Joaquin Phoenix) e Samantha (voz de Scarlett Johansson).

Acontece que Samantha não é uma pessoa: é o sistema operacional que controla o computador e o smartphone de Theodore, tendo acesso a todo tipo de informação dele. O humano se apaixona pelo sistema de inteligência artificial, e é correspondido por ela! Alguns podem achar isso impossível ou até mesmo uma perversão. Mas, ao assistir ao filme, é muito difícil não se apaixonar também! E não pense que Samantha faz tudo que Theodore queira: ela também diz não e demonstra sentimentos como insegurança, ciúmes e raiva. Mas tudo isso é feito de acordo com o que Theodore espera de uma mulher.

Pobre Theodore! Samantha sabe tudo sobre ele, e ele não sabe nada sobre ela.

 

Não é pessoal, são apenas negócios

De volta ao mundo real, várias empresas são candidatas a nossas “Samanthas”. Facebook e Google são, de longe, as que mais sabem sobre nós, mas Apple e Amazon não fazem feio nesse pelotão de elite. E há uma infinidade de outras empresas que também são capazes de traçar nossos perfis psicológicos e de consumo a partir de nossas pegadas digitais, que, cada vez mais abundantemente, deixamos por aí.

Essas empresas certamente podem nos influenciar para, por exemplo, comprar um produto, em uma nova e eficientíssima forma de marketing. E são capazes até de manipular algumas emoções nossas. Não como Samantha! Mas o Facebook já fez algo nessa linha.

Em 2012, Adam Kramer, pesquisador da empresa, demonstrou ser possível “transferir estados emocionais” a pessoas simplesmente manipulando o que elas veem online. Por análise semântica, os feeds de notícias de 689.003 usuários foram manipulados pelo sistema por uma semana. Metade deles ficou sem receber posts negativos; a outra metade não viu nada positivo. Ao final, o cientista concluiu que pessoas expostas a posts positivos tendiam a fazer posts mais positivos, enquanto as expostas a posts negativos tendiam a fazer posts mais negativos! Ou seja, Kramer atuou decisivamente no humor de quase 700 mil pessoas, apenas manipulando o que viam no Facebook! O estudo foi publicado na prestigiosa “Proceedings of the National Academy of Sciences of USA”.

Mas as empresas não querem que nos apaixonemos por elas: querem apenas que compremos os produtos e serviços que elas promovem.

Como diz o ditado, “não existe almoço grátis”. Todas essas empresas nos oferecem uma infinidade de produtos incríveis aparentemente sem nenhum custo. Mas não se engane, se você não está pagando, você não é o cliente: você é o produto!

Somos influenciados, conduzidos, e sabemos disso. Mas continuamos cedendo nossa informação e usando os produtos, pois não dá mais para imaginar a vida sem eles. Ou alguém deixará de usar o seu smartphone, a mais perfeita máquina de coleta de dados pessoais, que carregamos conosco o tempo todo?

Tais empresas estão erradas em fazer isso? Provavelmente não. Elas realmente nos oferecem produtos e serviços incríveis (e um outro tanto de quinquilharias) sem que tenhamos que explicitamente pagar por eles. Mas isso tem um custo. Pagamos contando-lhes o que somos.

Se existe realmente uma ética, tudo tem limite. E é esse limite que diz se o que elas fazem é certo ou errado. Não há problema em fazer uma publicidade muito assertiva. O que não é aceitável é a manipulação das pessoas.

Então, da próxima vez que estiver usando seu smartphone ou a sua rede social preferida, tente manter o controle da sua experiência e não acredite piamente em tudo que vir. Será que você consegue?


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O papel da Imprensa e da Justiça na crise brasileira

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Dilma conversa com Lula em cerimônia em que ele foi empossado como ministro-chefe da Casa Civil, no dia 17 de março - Foto: José Cruz/Agência Brasil

Dilma conversa com Lula em cerimônia em que ele foi empossado como ministro-chefe da Casa Civil, no dia 17 de março

Nos últimos dias, especialmente depois que as conversas telefônicas de Lula vieram a público, tenho visto uma enorme gritaria contra a Imprensa e contra o Judiciário. O que mais me assusta é perceber que as críticas vêm escoradas em uma ideologia maniqueísta que tenta transformar verdades escancaradas em versões pueris e reduzir aqueles que defendem a sociedade a simples “golpistas”.

Este artigo não tem objetivos partidários e não defenderei nenhum dos lados. Tampouco negarei que existem excessos de apoiadores e de críticos ao governo. A proposta é analisar desdobramentos que levaram o Brasil a uma polarização ideológica inédita e a uma movimentação política que não era vista desde os fatos que culminaram na renúncia de Collor, em 1992.


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A matéria-prima da Imprensa são os fatos, a verdade; do Judiciário, as leis, a justiça. Dentro desses limites, não podem ser condenados pelo resultado de seu trabalho incomodar alguém, especialmente porque, por definição, sempre incomodam.

No caso do Judiciário, a maior parte das reclamações recai sobre o juiz Sérgio Moro, por ter exposto repetidamente o Governo Federal e membros dos partidos da base governista na operação Lava Jato. Os críticos acusam o juiz de abuso de sua autoridade, por supostamente cercear direitos dos acusados e exagerar nos pedidos de prisão preventiva para obter delações premiadas.

O caso que jogou um tambor de gasolina em uma fogueira, que já estava bastante grande, foi a liberação, no dia 16 de março, de escutas em telefones usados por Lula, nas quais ele conversa com diferentes autoridades, inclusive a presidente Dilma Rousseff.

Como todos devem estar carecas de saber depois de uma semana de noticiário, os dois lados procuram se apoiar em leis para defender ou acusar Moro. Mas evidentemente não há nenhum “golpe” em curso pela Justiça, como muitos, até mesmo a própria presidente da República, insistem em dizer.

Moro está fazendo seu trabalho de juiz. Não é nenhum estagiário e está jogando o jogo com as peças que tem. Seus movimentos são, de fato, muito mais ousados que o que se costuma ver no Brasil. Mas seu baralho não tem cinco ases. Se ultrapassou os limites, a própria Justiça se encarregará de puni-lo. Por outro lado, se ele estiver dentro das regras, expondo ações criminosas de quem for, presta um inestimável serviço ao país. A gritaria dos descontentes não é, portanto, nada além de gritaria.

Mas ainda tem o “Partido da Imprensa Golpista”.

 

Imprensa preservando segredos?

No caso da Imprensa, vemos em diferentes veículos, tanto apoiadores quanto detratores do governo, a distorção da realidade para fazer valer seus pontos de vista. Qualquer título pode (e deve) ter seu alinhamento político, mas nunca, jamais pode faltar com a verdade e a pluralidade para valorizar o seu lado. Mas não vou dar audiência para essa turma que faz antijornalismo. Eu simplesmente não leio mais essas páginas da “direita” ou da “esquerda”. O que quero discutir aqui é a tentativa do governo de desqualificar o trabalho da Imprensa séria. E ele existe em profusão.

O principal argumento da turma do contra é dizer que ela se presta a publicar “vazamentos seletivos” e apenas notícias contra o governo. Eu nunca vi argumentos mais estúpidos e oportunistas, criados para confundir a população.

A fantasia de qualquer governo é ter uma Imprensa dócil, que lhe apoie incondicionalmente. Mas, se ela fizesse isso, não seria Imprensa: seria relações públicas. E o governo, por si só, já tem mecanismos mais que suficientes para se promover, como as mais gordas verbas de publicidade do país e a força da própria máquina governamental.

A Imprensa vem veiculando coisas boas e coisas ruins de governos federal, estaduais e municipais, suficientes até para municiar as diferentes oposições de cada um, que usam material dos veículos de comunicação em seus dossiês e em posts raivosos nas redes sociais.

Alguns podem dizer que agora só se fala nos escândalos que jogam Lula, Dilma e seu governo na lama. Acontece que a quantidade de notícias sobre esse tema, que tem a mais alta relevância jornalística, parece não ter fim. E isso nos leva aos tais “vazamentos seletivos”.

A Imprensa séria não faz, nem publica “vazamentos”. Ela publica reportagens, com verdades apuradas. A turma da gritaria, incluindo a presidente da República, vocifera ao dizer que ela jamais poderia divulgar informações sigilosas, pois isso seria ilegal. Mas a função da Imprensa não é guardar segredos: é revelá-los! Quem tem que guardar segredos são os responsáveis por tais informações. Se elas foram “vazadas”, por incompetência ou de propósito, a função da Imprensa é apurar a verdade, ampliá-la com informações adicionais e publicar tudo com o maior destaque possível. E isso tem acontecido.

Alguns podem dizer que a Imprensa é irresponsável ao divulgar isso tudo, pois estaria criando uma gigantesca instabilidade política. Mas não é ela que está jogando o país no caos. Não são sequer as pessoas que fazem os vazamentos. Os responsáveis pela crise são aqueles que cometeram os crimes, que agora estão sendo desmascarados.

As fontes dos tais vazamentos são sempre pessoas imaculadas, livres de interesses pessoais, pensando apenas no país? Claro que não! Na verdade, o padrão é que seja o contrário disso. Como esquecer de Pedro Collor, que jogou o próprio irmão-presidente na fogueira, motivado por ciúmes? É por isso que os vazamentos nunca podem ser a única fonte da Imprensa, mas são ótimos pontos de partida para as reportagens.

Por isso, quem afirma que ela é golpista não sabe o que é Imprensa, não sabe o que é golpe ou é mal-intencionado. Ilegalidades do Judiciário ou da Imprensa devem ser coibidos. Qualquer outra atitude ousada e que mostre a verdade, deve ser aplaudida.

Nesse cenário, o governo enche a boca para bradar que nossa democracia é plena e madura, por isso temos tantas investigações em curso, inclusive dos próprios governantes. Isso é uma meia-verdade. Esse argumento funciona para quem cresceu sob a truculência militar, com a polícia atirando e jogando a cavalaria sobre manifestantes, para quem aprendeu que um país é “mais estável” quando tem sua Imprensa e seu Judiciário amordaçados e acovardados.

Temos uma cultura construída em cima de 516 anos de rapinagem da nação por aqueles que estão no poder. Nossa democracia é, na verdade, jovem, imperfeita e frágil. Estamos no caminho certo para que ela amadureça de fato, mas isso só será possível com o Judiciário e a Imprensa desempenhando livremente os seus papeis. Assim, qualquer tentativa de impedir isso é uma manobra para debilitar a democracia. E é o que não pode ser tolerado.


 

 

Por que as pessoas dependem tanto do WhatsApp?

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Foto: montagem a partir de reproduções

Contrariando todas as expectativas, o item mais comentado nas redes sociais na semana passada não foi a estreia do novo Star Wars, e sim a decisão judicial que tirou o WhatsApp do ar em todo o Brasil. A impossibilidade de se comunicar pelo programa deixou muita gente nervosa. Mas por que esse comunicador ficou tão importante na vida das pessoas?

Para quem não sabe, a decisão da juíza Sandra Regina Nostre Marques, que obrigou as teles a bloquear conexões aos servidores do aplicativo por 48 horas, foi tomada depois que os responsáveis por ele terem repetidamente desrespeitado ordens judiciais. Acabou sendo revertida pelo desembargador Xavier de Souza, 12 horas depois.

O WhatsApp tem cerca de 100 milhões de usuários no Brasil. São pessoas que o usam para trabalhar, para conversar com familiares e amigos. Pela sua rede, passam coisa séria e papagaiada em um volume colossal. Portanto, subitamente impedir o uso desse recurso enfureceu os usuários.

Marques afirmou que a decisão está amparada pelo Código Civil e pelo Marco Civil da Internet, que regula o uso da rede no Brasil. Ironicamente, o mesmo Marco Civil da Internet é a base dos que afirmam que a juíza foi longe demais.

Afinal, apesar de ser um ato extremo para fazer a empresa fazer o que a Justiça determinou, prejudicou diretamente 100 milhões de pessoas que não têm nada a ver com isso. É como se a Justiça determinasse que o serviço telefônico em todo o país fosse suspenso até que as teles cumprissem alguma determinação.

Mas o pessoal não tem como falar de outra forma?

 

Efeito manada

Naturalmente sim. Afinal a humanidade chegou até aqui se comunicando, e o WhatsApp tem apenas seis anos. Sem mencionar que existem vários programas alternativos.

Entretanto os comunicadores instantâneos despertam coisas interessantes em nós. A primeira delas é que caminhamos sempre para onde as pessoas estão. O que faz todo sentido, considerando-se a finalidade do produto. Se o grupo migra para outro sistema, logo vamos atrás.

Tanto é assim que o WhatsApp detém essa liderança hoje, mas ela é bem recente. Quem se lembra do ICQ, messenger com uma primazia aparentemente inabalável no fim dos anos 1990? Tinha uma base de apenas poucos milhões de usuários, mas a própria Internet era muito menor. Acabou sendo superado, depois de alguns anos, pelo MSN Messenger, que passou a parecer inalcançável. A Microsoft tentou depois migrar seus usuários para o Skype, mas não teve sucesso. O espaço já estava sendo ocupado pelo Facebook Messenger e pelo próprio WhatsApp: era lá que as pessoas estavam.

 

Um novo jeito de conversar

Tais programas e seu uso em smartphones oferecem duas possibilidades que estão redefinindo a maneira como conversamos. A primeira delas é que, com eles, podemos falar com quem quisermos, a qualquer hora e em qualquer lugar. E mais: sem incomodar quem estiver ao lado. Para muita gente, é a solução para reuniões intermináveis e aulas chatas.

Outra característica é a possibilidade de falarmos com várias pessoas ao mesmo tempo, seja mantendo várias conversas simultaneamente, seja por enviar mensagens a grupos, aliás um dos recursos mais populares do WhatsApp.

Podem parecer tolices, mas a prática demonstra que isso realmente está alterando a forma como nos comunicamos e até mesmo regras de etiqueta. Não é raro ver, por exemplo, várias pessoas em uma mesa de bar teclando em seus celulares. E podem estar enviando conteúdos para quem está ao seu lado.

As pessoas se apropriaram dessa tecnologia e fizeram do WhatsApp algo central no seu cotidiano. O ato da juíza Marques foi, portanto, inadequado, ainda que justificado do ponto de vista legal. Se o Facebook, dono do WhatsApp, se recusa a cooperar com a Justiça, essa é outra questão delicada, que fica para ser discutida em outro artigo.

A proibição do aplicativo entra para a lista de trapalhadas de decisões que tentaram derrubar serviços online inteiros por conta de questões pontuais. Já passou da hora da Justiça entender o espaço que os recursos digitais ocupam na vida das pessoas.

 

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Veja exemplo de antijornalismo

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Capas de Veja, O Globo e Folha sobre o resultado do julgamento dos Nardoni, e de Veja, condenando-os dois anos antes - Imagem: reproduções

Capas de Veja, O Globo e Folha sobre o resultado do julgamento dos Nardoni, e de Veja, condenando-os dois anos antes

“Agora, Isabella pode descansar em paz”. Alguém pode me dizer exatamente o que quer dizer a capa da Veja desta semana, reproduzida ao lado? É mais um exemplo do grotesco antijornalismo praticado por esse semanário que insiste em desonrar continuamente a sua própria história.

Mas, agora que o casal Nardoni finalmente foi condenado pela Justiça, passando de acusados a culpados perante os olhos da lei, como Veja poderia agir diferentemente, se ela própria já os havia condenado na capa de 23 de abril de 2008, também reproduzida ao lado. Porém agora ela não está sozinha: O Globo destinou obscenos 47% de sua capa do dia seguinte ao assunto, com uma manchete espalhafatosa e uma foto dos populares comemorando o resultado como a conquista da Copa do Mundo.  Chamadas semelhantes abriram publicações por todo o país. Apenas como comparação, a Folha, apesar de chamada de seis colunas no alto da capa, conseguiu ser um pouco mais “equilibrada”.

Não estou defendendo os Nardoni. Eles foram julgados e condenados pela Justiça e, para mim, isso é tudo o que preciso saber, mesmo diante da trágica morte da menina. Meu objetivo aqui não é discutir o processo, e sim como a mídia, como um todo, transformou o caso em um verdadeiro circo de horrores, iniciado com as primeiras conclusões da investigação policial (que não condena ninguém) e teve seu ápice ao longo dessa semana, com os acontecimentos ocorridos no fórum de Santana.

Veja e toda a turma de coleguinhas agiu de maneira irresponsável ao espetacularizar o caso (que, diga-se de passagem, acontece aos montes nas periferias das grandes cidades, sem que “ninguém” fique sabendo), antecipando-se ao resultado da Justiça. Provocando a massa cinzenta: alguém já pensou o que seria a vida desses dois no caso de uma improvável absolvição? Mais que isso, apesar de todo o trabalho da promotoria e da defesa, os jurados, que são “gente como a gente”, já chegaram ao tribunal com uma enorme carga de “informação” sobre os acusados, pois foram bombardeados com isso pela mesma mídia. Não seria exagero, portanto, dizer que a imprensa teve papel determinante na condenação do casal.

“Vim do Estado do Piauí para ver a justiça ser feita no Estado de São Paulo!” “Vim da minha cidade do interior, porque lá não tem essas coisa (sic) de morte, de assassinato!” “Ora, ora, ora! O júri é aqui fora!” “Pega lá, pega lá, pega lá! Pega lá para nóis linchá (sic)!” “Vamos arrancar o pescoço desse desgraçado!” Frases ditas pelos populares à porte do fórum de Santana… Os mesmos que avançaram sobre os camburões que conduziram os já condenados a presídios em Tremenbé e –pasmem!– sobre o carro de familiares dos condenados.

Quem são essas pessoas e por que elas estão se prestando a isso? Por que Veja e os demais veículos não respondem isso e explicam também o seu papel na redução da nossa sociedade à barbárie? Em nome da liberdade de imprensa e do direito à informação, valores que –sim– devem ser preservados, transformam cidadãos em animais para vender mais exemplares.

Capa do Notícias Populares em que chama a Escola Base (inocentada pela Justiça) de "escolinha do sexo" - Imagem: reprodução

Capa do Notícias Populares em que chama a Escola Base (inocentada pela Justiça) de "escolinha do sexo"

Seria menos pior se algo assim nunca tivesse acontecido antes. Mas infelizmente não é a primeira, nem a segunda (nem a décima) vez que isso acontece. Pelo jeito, os coleguinhas não aprendem com os seus erros, nem mesmo os mais bizarros, como o do caso da Escola Base, que aconteceu a exatos 16 anos. Assim como agora, todos os veículos (exceto o extinto Diário Popular, justiça seja feita) noticiaram, julgaram e condenaram seis pessoas por suposto abuso sexual de crianças que estudavam na escolinha de classe média do bairro da Aclimação (São Paulo), que chegou a ser chamada, em manchete do finado Notícias Populares, de “escolinha do sexo” (reproduzida acima). Assim como agora, a fonte da imprensa foi a polícia. Mas, diferentemente de agora, os acusados foram inocentados: as fissuras anais infantis não foram causadas por abuso sexual, e sim por diarréia. Exatamente o que meus coleguinhas repetiram de novo nesse caso: uma grande cagada!