
A inteligência artificial colocou as empresas em uma encruzilhada digital histórica. Extrair valor real dessa tecnologia exige mais que investimentos em sistemas e servidores. Para isso, as lideranças precisam também gerenciar expectativas e cuidar do preparo humano das equipes.
Até hoje, apenas 20% dos projetos de IA alcançaram retorno financeiro, e míseros 2% promoveram uma transformação real nos negócios, onde reside o seu grande potencial. As empresas que encontram, capturam e sustentam ganhos com a IA são as que se afastam da descrença exagerada, que impede qualquer ação, e do deslumbramento inconsequente, que leva a investimentos sem foco.
Essas foram algumas das principais mensagens da Conferência Gartner CIO & IT Executive, que aconteceu em São Paulo entre 22 e 24 de setembro. O problema muitas vezes vem do desalinhamento de expectativas, com as companhias investindo apenas em projetos de produtividade, mas esperando grande geração de receita.
Atravessar esse “vale da desilusão” pede líderes que enfrentem ceticismo, calibrem metas e sustentem investimentos, mesmo sem resultados imediatos. Isso fica mais desafiador quando, segundo o Gartner, 95% dos latino-americanos querem usar IA, mas só 40% confiam que seus gestores farão os movimentos de forma responsável.
Isso explica por que as empresas já percorreram quase metade do caminho da prontidão tecnológica para o uso da IA, mas esse avanço mal chega a um quarto no preparo humano. O medo de perder o emprego, a curva de aprendizagem íngreme e sobretudo a falta de confiança na chefia explicam essa diferença.
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A maturidade tecnológica também atrapalha. A IA generativa ainda erra em até 25% em certos casos, inaceitável para setores que exigem precisão. Por isso, as empresas precisam criar métricas formais de checagem cruzada entre modelos e definição de níveis aceitáveis de erro. Além disso, se 88% dos líderes globais já focam em agentes conversacionais, o grande poder está em agentes capazes de tomar decisões, mas eles ainda não estão prontos para processos complexos de ponta a ponta.
O investimento inicial em IA médio em grandes empresas alcança R$ 10 milhões reais, mas gastos contínuos com treinamento, mudanças e modelos múltiplos podem dobrar ou triplicar esse valor. Por isso, o Gartner considera a escolha de fornecedores uma “decisão de soberania”, pois as big techs comportam-se como “nações digitais”, capazes de influenciar regras e infraestruturas.
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Segundo a consultoria, o próximo salto na IA promoverá a migração do modelo de negócios digitais para o de negócios autônomos. Esse modelo prevê tecnologias que aprendem e se aperfeiçoam sozinhas entregando valor com mínima supervisão humana.
“Embora o nome possa sugerir algo nada humano, o negócio autônomo, de várias maneiras, é profundamente humano”, provocou Frank Buytendijk, vice-presidente analista do Gartner. Para ele, enquanto os sistemas funcionam e inovam sozinhos, as pessoas assumem papéis de supervisão, coordenação e criação. Até mesmo os clientes passam a gerenciar sua experiência com apoio da IA.
O ano que vem deve marcar um ponto de inflexão, com a IA permeando todas as frentes do negócio. “Os líderes de tecnologia terão que ser super-heróis para lidar com tudo isso ao mesmo tempo”, sugeriu Soyeb Barot, também vice-presidente analista. Ele explica que os líderes de TI precisarão assumir três papéis estratégicos para enfrentar a disrupção: o “arquiteto”, que desenha estruturas sólidas, o “sintetizador”, que conecta dados e contextos, e o “vanguardista”, que ousa no risco calculado.
Medo do desemprego
O avanço dos negócios autônomos desperta temores legítimos de desemprego. Apesar do impacto, apenas 1% das demissões recentes decorreu diretamente da IA. Para o Gartner, o maior desafio está na queda de contratações em posições iniciais e na necessidade de requalificação de quem já está no mercado.
“Hoje 81% do trabalho de TI é feito por humanos sem IA, mas, até 2030, 75% será realizado por humanos ajudados pela IA e 25% pela IA sozinha”, afirmou Gabriela Vogel, vice-presidente analista. “Ou seja, 0% do trabalho será feito sem IA”, conclui.
A automação é inevitável para sustentar produtividade em um planeta que envelhece e perde força de trabalho. Nesse quadro, o papel humano migra da execução para a supervisão. Até 2030, o Gartner prevê mais empregos criados do que eliminados, com 20 milhões de brasileiros usando IA de forma significativa. E já em 2028, o país deve gerar mais vagas ligadas à IA do que extinguir.
Diante de tudo isso, os gerentes deixam de ser apenas chefes e se tornam mentores. Cabe a eles agora ajudar suas equipes a se desenvolver e a enfrentar a “atrofia de habilidades”, ou seja, a perda de competências críticas, como segurança e pensamento analítico por um uso inadequado da inteligência artificial.
Devemos também começar a ver “profissionais canivetes suíços”, capazes de aplicar IA em qualquer contexto. Além deles, surgem os “engenheiros de contexto”, que superam o foco limitado dos “engenheiros de prompt” na adoção da tecnologia.
Como se pode ver, a transformação para se apropriar do mais nobre que a IA tem a oferecer não é apenas técnica. O propósito organizacional precisa ser revisitado para não fazer “apenas o que o mercado pede”, mas, sim, alinhar essas mudanças a um propósito humano e social. O negócio autônomo precisa tornar as organizações mais humanas, liberando as pessoas para funções criativas, de supervisão e de decisão estratégica, enquanto as máquinas cuidam do trabalho repetitivo e invisível.
Não basta acompanhar a evolução da tecnologia. A verdadeira disrupção acontece na interseção entre algoritmos e valores humanos, como identidade, confiança e tomada de decisão. O “caminho dourado do valor”, como foi descrito na conferência, não é uma corrida por máquinas mais poderosas, e sim a construção de um futuro em que tecnologia e humanidade avancem lado a lado.