PNLD

Crianças leem livros entregues pelo Programa Nacional do Livro Didático ¬ Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Tirar livros de escolas paulistas representa enorme retrocesso disfarçado de modernidade

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Na semana passada, uma decisão do governo do Estado de São Paulo causou revolta em educadores: o secretário da Educação, Renato Feder, determinou que, a partir do ano que vem, os alunos da rede estadual no Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano) e no Ensino Médio não usarão mais livros impressos. Ao invés disso, os professores ministrarão as aulas com slides criados pela equipe da Secretaria de Educação, projetados em telas.

Um outro aspecto da medida igualmente problemático é a decisão do governo paulista de abandonar o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) nessas faixas etárias. Por esse mecanismo, há mais de 80 anos o Governo Federal compra e entrega os livros para todos os alunos das escolas públicas do país, depois de os professores de cada instituição ou rede escolherem os títulos que preferem.

Feder disse que o conteúdo dos livros do PNLD estão “rasos e superficiais”, uma afirmação leviana e questionável. Para ele, o material digital do governo paulista é “mais assertivo”.

Dificilmente uma decisão poderia estar mais errada e desagradar tanta gente. Ela contraria as pesquisas de ponta em educação e as práticas adotadas em países com os melhores sistemas de ensino do mundo.

Tanto que, depois dos protestos dos educadores, o governo de São Paulo recuou e disse, no sábado, que também oferecerá seu material digital impresso em apostilas. Isso só demonstra que eles ainda não entenderam onde está o gritante retrocesso na “modernidade” que estão impondo.


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A simples digitalização do material didático é um erro por diferentes motivos. O primeiro é que, contrariando o que muitos pensam, crianças necessariamente não sabem estudar em telas. Por mais que sejam nativos digitais e usem computadores e celulares em seu cotidiano, estudar em uma tela é muito diferente de usar uma rede social ali. Além disso, o estudo em meios digitais exige uma disciplina que crianças e adolescentes não têm, o que ficou evidente durante a pandemia.

Diversos relatórios internacionais atestam que o uso intensivo de tecnologia piora o processo de aprendizagem, ao invés de melhorá-lo. Com base nisso, estudo recente da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) recomenda seu uso moderado, sempre como complemento, nunca como substituição a outras estratégias em sala de aula.

No Pisa, avaliação internacional de desempenho escolar organizado pela OCDE, entre os 79 países participantes, os melhores resultados vêm daqueles que usam moderadamente a tecnologia em sala de aula. Entre os que fazem uso mais intensivo, os resultados pioraram.

Isso é tão verdadeiro que os países com melhor educação no mundo vêm diminuindo a adoção de material didático digital, que passa a ser apenas um complemento. Vale dizer que, nesses países, essa adoção foi feita de maneira gradual, sem eliminar livros e com a participação dos professores, bem diferente da decisão paulista, abrupta e tomada no gabinete do secretário.

“Nessa era digital, o que a gente mais precisa recuperar no estudante é a capacidade de concentração”, afirma Ana Lúcia de Souza Lopes, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em tecnologia na educação. “A escola ainda é um lugar para isso.”

 

E o professor?

Se a intensa digitalização da sala de aula é ruim para o aluno, precisamos também considerar o professor. Ele foi formado sem esses recursos, portanto, em primeiro lugar, precisa aprender a ensinar com eles. Não se trata de mera transposição de conteúdo entre mídias. E ele não foi consultado se esse material atende a suas necessidades e às de seus alunos, que variam muito de escola para escola.

Esse é mais um prego no caixão da autonomia e do reconhecimento social desses profissionais. Suas funções e sua liberdade vêm sendo tolhidas há muitos anos e, com a decisão do governo paulista, ele parece ficar reduzido a um mero aplicador de apostila digital, que pode até melhorar os indicadores da prova que os alunos de São Paulo fazem, mas que piora sua formação.

É de se perguntar que tipo de professores que desejamos: o que resulta desse achatamento profissional ou um verdadeiro educador? Da mesma forma, que escola desejamos: uma que se concentra em “passar a matéria” ou aquela que, além disso, forma cidadãos preparados para usar esse conhecimento e transformar o mundo?

Tenho debatido longamente nesse espaço o impacto da inteligência artificial no mercado de trabalho. Fica cada vez mais claro que as máquinas substituirão os profissionais mais operacionais, enquanto darão mais poder àqueles com uma visão ampla da sociedade. Se a escola se limita a aspectos técnicos, está formando pessoas que, em breve, não terão mais espaço no mundo.

Nesse sentido, o abandono do PNLD por São Paulo é emblemático. Apesar do desdém do secretário, as obras oferecidas pelo programa seguem rigorosos padrões para serem produzidas e aprovadas. Tanto que também são usadas pelas melhores escolas particulares do país, inclusive em São Paulo. Além disso, elas oferecem algo que a “obra única” do governo local não tem: diversidade e validação de sua qualidade por pares.

Isso não quer dizer que o PNLD seja perfeito: há controvérsias em torno dele, e isso faz parte de uma democracia. “Se por acaso não considera o PNLD adequado, São Paulo tem que contribuir para melhorá-lo, e não se retirar”, sugere Lopes. Para ela, o maior risco disso tudo é querer uniformizar a educação, pois ela não é assim, inevitavelmente são realidades diferentes em cada caso e isso precisa ser respeitado.

Ainda há tempo para o governo paulista reverter essa insanidade arbitrária. Quando se fala de educação, os professores continuam sendo os principais atores, e precisam ser ouvidos. A simples digitalização de processos jamais garantiu sua melhora, em nenhuma área. Uma transformação digital só faz sentido se solucionar os verdadeiros problemas dos clientes, que precisam ser conhecidos e considerados.

Nesse caso, os clientes são os alunos e os professores. Mas a proposta do governo paulista ignora a realidade dos primeiros e passa ao largo dos reais desafios que os últimos enfrentam, como salários indecentes, enorme desprestígio social, formação limitada, infraestrutura pedagógica ruim e políticas educacionais ultrapassadas.

Nada disso está sendo sequer tocado! Esse “verniz digital” não serve nem para deixar os problemas mais bonitos.

 

Palavrões… didaticamente

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Além dos palavrões e das frases de cunho sexual, a obra também menciona o PCC mais de uma vez

Além dos palavrões e das frases de cunho sexual, a obra também menciona o PCC mais de uma vez

“Chupava ela todinha!” Isso pode não causar a você repúdio, mas faz parte de um livro que o Governo do Estado de São Paulo distribuiu às escolas de sua rede para ser usado por alunos de nove anos de idade, no terceiro ano do Ensino Fundamental. Ao todo, foram comprados 1.216 exemplares de “Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol” (da Via Lettera), uma coletânea de quadrinhos para o público adolescente e adulto que tem o futebol como pano de fundo.

Além do uso recorrente de palavrões e expressões de cunho sexual e de duplo sentido, a grupo criminoso PCC também é mencionado em histórias, o que deixaria José Serra de cabelos em pé, se ele tivesse para tanto. Mas o governador estrilou, disse que essa compra era “um horror”, prometeu punir os responsáveis pela escolha. Classificou essa mancada como mais grave que o material recheado de erros distribuído a toda a rede no início do ano, cujo mais notório foi um mapa da América do Sul com dois Paraguais (e os dois em posições erradas). Pela completa inadequação à faixa etária, diria que é mesmo! E olha que os Paraguais custaram a cabeça da ex-secretária Maria Helena Guimarães de Castro, que caiu no dia 27 de março, sendo substituída pelo Paulo Renato. Apesar disso e das ameaças do tucano, a secretaria se resumiu a emitir uma notinha burocrática, onde prometia apenas recolher os livros (que custaram aos cofres estaduais R$ 35 mil) e abrir sindicância interna.

Como disse Caco Galhardo, um dos autores do livro, à Folha, “o cara que escolheu não leu o livro”. Realmente é uma das poucas explicações plausíveis para uma coisa dessas ter passado. Ou então é sabotagem! As editoras de livros riem quietinhas de novo, pois, apesar de o Governo Federal continuar comprando seus livros didáticos a todos os alunos do país anualmente, elas não nutrem exatamente simpatia pela iniciativa do Governo de São Paulo de distribuir material complementar, especialmente o que o próprio governo produz (como no caso das obras com os Paraguais). Agora, interesses econômicos à parte, elas têm razão, pois produzir material didático não é para qualquer um: é um trabalho extremamente detalhado e exaustivo, que envolve grandes equipes e muito tempo e dinheiro. E, mesmo com todo o investimento das editoras, muitas obras são recusadas ano após ano pelas comissões avaliadoras. Ver essas mancadas grotescas depois de tudo isso é de lascar!

Onde fica o Paraguai?

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Material complementar do Governo do Estado de São Paulo não sabe bem onde ficam nossos vizinhos

Material complementar do Governo do Estado de São Paulo não sabe bem onde ficam nossos vizinhos

Você sabe onde fica o Paraguai? Se não souber, NÃO consulte o material complementar ao livro didático que o Governo de São Paulo distribuiu aos alunos do 6º ano da rede estadual. Ele traz um mapa em que o nome do vizinho aparece em dois países. Detalhe: errado nos dois casos! No primeiro, aparece sobre a região da Bolívia; no segundo, sobre o Uruguai. No que deveria ser o Paraguai, aparece Uruguai. E tem mais: o Equador sumiu!

A Secretaria da Educação joga a culpa na Fundação Vanzolini, que produziu o material. Essa se defende dizendo que o material foi criado por professores indicados pelo governo e que o erro atingiu “apenas” 1,55% dos cadernos impressos. Ou seja, 7.750 dos 500 mil exemplares, número de alunos do 6º ano da rede estadual. Pode parecer percentualmente pouco, mas em termos absolutos é muito! E o Serra: “não é um erro grave, mas é um erro”. O que seria grave? Talvez dizer que Buenos Aires é capital do Brasil. Na dúvida, o governador mandou recolher os 500 mil exemplares e que todo o custo de substituição ficará por conta da Fundação.

Não bastasse a falta de respeito com alunos e professores, uma coisa dessas é uma ofensa às editoras de livros didáticos, que se submetem a regras draconianas do Governo Federal para entrar no páreo do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e do PNLEM (Programa Nacional do Livro do Ensino Médio). As normas desses dois programas, que distribuem milhões de livros às escolas do Brasil inteiro todos os anos, tratam até do entrelinhamento: que dizer então do conteúdo? E, se um livro for reprovado (sem direito a contestação), só poderá tentar de novo depois de três anos. Não questiono que as editoras não devam ter todos os cuidados na produção de seus livros, mas um caso como esse manda todo esse esforço por água abaixo. Afinal, os dois materiais chegarão juntos às mãos dos alunos de São Paulo.