populismo

Esse foi o ano do “ciberpopulismo”

By | Jornalismo | No Comments

Nos meses de novembro, os principais dicionários do mundo elegem suas “palavras do ano”, verbetes que, mesmo não sendo necessariamente novos, refletem fatos de grande impacto no período. Com a globalização, muitas dessas palavras valem para o mundo todo, mas as escolhas desse ano se demonstraram muito regionalizadas. Por isso, decidi, de maneira pessoal, escolher uma palavra que representasse bem algo que moveu decisivamente o Brasil em 2022: “ciberpopulismo”.

Esse neologismo une a palavra em inglês “cyber” (em referência ao que se dá no mundo digital) a “populismo”. Ele procura definir como as redes sociais passaram a atuar decisivamente na política nos últimos anos. No populismo, cria-se a figura de um líder capaz de “salvar” o povo dos interesses de uma “elite” ou das ações de um “inimigo comum a todos”. Por depender de um conjunto de narrativas bem arquitetadas, o meio digital surgiu como a ferramenta perfeita de convencimento das massas, amplificando as ideias do populista.

O “ciberpopulismo” vem sendo amplamente usado no Brasil há pelo menos seis anos, mas atingiu a sua maturidade em 2020, com a pandemia de Covid-19. As suas fórmulas usadas durante a crise sanitária pavimentaram o caminho para as eleições de 2022, criando um cenário de polarização política inédito em nossa história, que rachou o país e que continua incendiando corações, mesmo dois meses após o fim do pleito. Daí essa minha escolha.


Veja esse artigo em vídeo:


O populismo não é um conceito novo. O termo surgiu no século XIX, na Rússia czarista, e propunha dar mais poder político a camponeses com uma grande reforma agrária. De lá para cá, tem sido usado por diferentes grupos, ganhando definições bem variadas, de acordo com o pensamento do autor. Por isso, não há um consenso definitivo sobre ele, e há até uma discussão se o populismo seria, afinal, bom ou ruim: um meio para melhorar a vida do povo ou uma ferramenta para sua manipulação pelos poderosos.

Nas últimas décadas, consolidou-se no Ocidente uma definição do populismo como um conjunto de práticas políticas para obtenção e manutenção do poder, sendo igualmente usado por governantes conservadores ou progressistas em todo mundo, indo do nazismo de Hitler ao chavismo venezuelano. Via de regra, todos eles têm alguns pontos em comum: um povo que se sente oprimido por algum tipo de elite ou agente externo, um inimigo em comum (verdadeiro ou na maioria das vezes imaginário) e um líder apresentado como o único capaz de conduzir a sociedade a sua “salvação”.

Como o populismo depende necessariamente da criação de uma narrativa que legitime a figura e as ideias do seu “líder ungido”, os meios de comunicação acabam sendo peça-chave no processo. Para a cristalização de um pensamento único, os veículos simpáticos à “causa” devem ser promovidos, enquanto os demais devem ser silenciados. E, nos últimos anos, as redes sociais ocuparam esse espaço. Elas diminuíram o poder de mediação da imprensa (que filtra extremismos) e deram voz a todos, especialmente ao “cidadão comum” que antes não se sentia representado pela mídia.

Grupos de poder com valores semelhantes a esses indivíduos perceberam isso e aprenderam a usar, antes dos outros, os recursos digitais, apostando nos extremos e dando origem a esse movimento. Essa dinâmica é bem explicada no livro “Ciberpopulismo” (editora Contexto), lançado no ano passado pelo filósofo e comunicador Andrés Bruzzone. Para ele, nesse cenário, “quem tenta pensar fora dos polos dificilmente será ouvido e certamente não terá espaço nos grandes debates.”

“A combinação eficiente de técnicas de propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia no século XXI já mostrou sua capacidade de causar alterações estruturais nos países e na geopolítica”, escreveu. E, de fato, observa-se esse fenômeno em países muito diferentes pelo mundo.

 

Aldeia global em chamas

O “ciberpopulismo” vem legitimando barbaridades em muitos países há anos, e não foi diferente em 2022.

A mais grave delas é a guerra na Ucrânia. Com o pretexto de salvar russos que lá viviam de “perseguições nazistas”, o presidente russo, Vladimir Putin, invadiu o vizinho. O mandatário diz abertamente que pretende anexar a Ucrânia como seu território, não reconhecendo sua soberania. Os “inimigos do povo” seriam a União Europeia, a OTAN e –diante do inesperado e decisivo apoio militar dos EUA– todo o “Ocidente”. E com uma fortíssima censura local da imprensa e das redes sociais, a maioria da população acredita nisso tudo e que a Rússia estaria vencendo o conflito.

Os EUA também têm suas assombrações. Ao longo desse ano e do anterior, tiveram que lidar com as consequências do bizarro ataque ao Congresso no dia 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump, inconformados com sua derrota na tentativa de reeleição, tentaram impedir a confirmação da vitória de seu opositor, Joe Biden. Foi o maior ataque da história à democracia do país. Vale dizer que Trump é o maior expoente global do “ciberpopulismo”.

Em outro exemplo, no dia 7, o governo alemão deflagrou a maior operação de contraterrorismo em 70 anos. O alvo foi um grupo que cresceu nas redes sociais e pretendia derrubar a república e reinstalar a monarquia, que vigorou até 1918 no país. Eles pretendiam ainda matar 18 pessoas, incluindo o chanceler, Olaf Scholz.

Nossos vizinhos também sofrem com isso. A Argentina tem uma política e uma economia em frangalhos há décadas. No Peru, o presidente Pedro Castillo foi destituído do cargo e preso no mesmo dia 7, depois de tentar um autogolpe. A vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu como sexto presidente do país em seis anos.

Como se pode ver, o “ciberpopulismo” atende bem a interesses da “direita” e da “esquerda”. As aspas são propositais, pois ambas são mais parecidas que diferentes quando se trata de manipulação online. De toda forma, a segunda só agora está aprendendo a jogar a versão digital desse jogo e, para isso, está sujando as mãos também.

Receio que tenhamos que ver ainda mais crescimento do populismo anabolizado pelas redes sociais antes de experimentarmos o seu recuo, com a sociedade regressando aos trilhos de uma vida harmônica e colaborativa, em que ideias divergentes levem à evolução e não a um conflito beligerante. Precisamos voltar a ter apenas adversários para contrapor, ao invés de inimigos a eliminar.

Como Bruzzone explica em seu livro, o contrário do populismo é o pluralismo: a crença de que não há duas visões únicas do mundo. “Pluralista é quem entende que a verdade não se obtém derrotando um inimigo, mas que é o resultado de um processo construído a muitas vozes”, escreveu.

Adoraria voltar a esse espaço no fim de 2023 e dizer que a minha “palavra do ano” seria então “ciberpluralismo”. Mas sinto que teremos que descer ainda mais fundo nessa fossa política antes que as massas entendam a importância dessa diversidade. Nas últimas duas décadas, o populismo, e nos últimos anos o “ciberpopulismo” criaram raízes profundas em nossa sociedade.

Por isso mesmo, está em nossas mãos –e não nas de qualquer “líder”– o poder de diminuirmos a fervura nas redes sociais e reencontrarmos esse bom caminho.

 

Somos todos jornalistas?

By | Jornalismo | 2 Comments
Dilbert e o negócio de notícias na Internet - Imagem: reprodução

No Dia do Jornalista, vale discutir o papel do jornalista na sociedade

Hoje, 7 de abril, é Dia do Jornalista. Resgatei a tirinha acima porque ela me parece muito representativa do momento em que “nossa categoria” está passando. Entendo que os jornalistas –e o jornalismo, pois deles é feito– vêm passando por um “ponto de inflexão estratégico”, como diria Andrew Grove, um dos fundadores da Intel, atualmente seu conselheiro-sênior. Estamos em um momento em que somos forçados a abandonar velhos conceitos e modelos: se formos bem sucedidos, passaremos a um novo e promissor patamar de qualidade e produtividade; se fracassarmos, o futuro será sombrio.

Encaro três principais “forças” que empurram os jornalistas a essa situação. Primeiramente, a Internet esmagando os modelos de negócios das empresas de comunicação, exemplificado na tirinha. Há também os governos populistas que, nunca antes na história desse continente, se organizaram de maneira tão sistemática para se opor à imprensa. E, por fim, a discussão nacional em torno da malfadada obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão de jornalista.

Afinal, somos todos jornalistas? Qualquer um pode ser jornalista? Do meu ponto de vista, a reposta é: claro que não! Mas, com igual certeza, não é o diploma que separa os “bons” dos “maus”. Foram colegas diplomados que perpetraram as barbaridades na cobertura do caso da menina Isabella Nardoni, do assassinato ao julgamento.

Tive a oportunidade de levantar a questão do diploma em conversa com Alberto Dines, José Maria Mayrink e Pedro Ortiz, no último dia 25. Eles defendem a formação de jornalistas nas faculdades. Concordo com eles: a boa formação é essencial para se ter um bom profissional de qualquer área. Mas isso é muito diferente de defender o diploma, justamente porque as faculdades infelizmente não vêm cumprindo o papel de formar jornalistas de qualidade. Por conta disso, vemos coisas grotescas como a cobertura do caso Nardoni e tantos outros, produzidas por coleguinhas despreparados, dirigidos por editores sem escrúpulos ou ética.

Se esse antijornalismo já não fosse muito ruim por si só, colocando em cheque o bem mais precioso do ofício –a credibilidade–, com isso, os jornalistas deixam a bola quicando na área para a segunda “força contrária”: a campanha de desmoralização da mídia pelo governo, que se fortalece com essas mancadas. Esse movimento tem no fanfarrão bolivariano, Hugo Chávez, seu principal expoente. Na republiqueta em que ele está transformando a Venezuela, nasceu o conceito do “terrorismo midiático”, que prega que a imprensa é nociva ao povo por lhe fazer oposição (leia-se: oposição ao governo estabelecido). O conceito do “terrorismo midiático” é bem estruturado, para que se possa apoiar racionalmente as suas besteiras. Tanto é assim que, em maior ou menor grau, vem sendo amplamente adotado por patéticos governantes dos vizinhos da Venezuela, e isso inclui o presidente Lula, que não mede esforços para sistematicamente jogar a opinião pública contra a imprensa.

E tem ainda a Internet, que está longe de ser uma “inimiga” do jornalismo ou dos jornalistas, mas que oferece as ferramentas para a maior mudança nas formas de trabalho e dos produtos jornalísticos desde o surgimento da transmissão via satélite ou talvez até mesmo do telex. Minha carreira começou poucos anos antes da liberação da Internet comercial, então posso afirmar categoricamente que ela é uma benção ao nosso trabalho: permite produzir mais e melhor, com menos esforço e mais rapidamente. Por outro lado, do pronto de vista das empresas de comunicação, seus modelos de negócios foram para o ralo com a explosão da Web. Às que quiserem sobreviver, não lhes basta simplesmente transpor para a nova mídia aquilo que já conhecem, pois isso não funciona mais. Já era! É preciso criar algo realmente novo. Mas não vou entrar nesse mérito aqui, pois isso é amplamente discutido neste blog (como aqui, aqui e aqui).

Por tudo isso, a melhor maneira de se comemorar este Dia do Jornalista é fazendo bom jornalismo. Isso não é para qualquer um: é para jornalistas (com ou sem diploma). E isso, ao contrário do que andam dizendo por aí, é absolutamente crucial para o fortalecimento da sociedade. Nas minhas andanças pela América Latina, vi claramente que, quanto mais enfraquecida a sociedade local, pior a sua imprensa (ou será que a relação é inversa?).

Como escreveu Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura e jornalista (não formado), “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir em um ofício tão incompreensível e voraz, cuja obra acaba depois de cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não volte a começar com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Feliz Dia do Jornalista aos coleguinhas e a toda a sociedade.

Afinal, de onde vem a imprensa livre?

By | Jornalismo | 2 Comments
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=8ZpyBkln0ew]

Hoje comecei o dia lendo um artigo de Emir Sader, no Comunique-se, que propõe discutir se é possível existir imprensa livre feita por empresas privadas. O sociólogo argumenta que, como qualquer empresa, as de comunicação são movidas pela busca do lucro e que, portanto, estariam vinculadas aos interesses das elites econômicas e de seus anunciantes, o que inviabilizaria a liberdade de imprensa em suas fileiras.

É um bom ponto, e bem exposto. Mas terminei de ler o artigo com uma pergunta que o autor não discutiu convincentemente: afinal, então de onde viria a assim chamada imprensa livre? O máximo que Sader disse foi, no penúltimo parágrafo, que ela “tem que ser pública, de propriedade social e não privada”.

Respeitosamente discordo. Iniciei a minha carreira há 16 anos na Folha de S.Paulo, que hoje passa, junto com outros nomões da imprensa, por uma vergonhosa crise de credibilidade (o que estaria de acordo com o proposto por Sader). Mas foi interessante trabalhar lá no momento em que ainda existia alguma inocência do “foca”, para poder ver, por baixo de toda a sujeirada, como é possível fazer jornalismo sério e –sim– livre em uma empresa privada, se assim você se propuser.

Ao contrário do que sugeriu Sader, o último lugar onde a imprensa será livre é nas mãos do poder público. Pode até ser de qualidade: a TV Cultura de São Paulo é um bom exemplo que se mantém há décadas, apesar de ter agonizado por falta de verbas há alguns anos. Mais recentemente, vemos a TV Brasil, outra boa iniciativa. Mas obviamente elas não são livres.

Uma alternativa interessante é a da britânica BBC: apesar de possuir 12 superdiretores indicados pelo governo, eles não têm função executiva, atuando como uma espécie de board. A empresa é comandada de fato por outros diretores, executivos, e é financiada por uma espécie de imposto pago por todos os domicílios do Reino Unido que possuem televisão, o que lhe garantiu polpudos 3 bilhões de libras em 2005, fora qualquer outra renda que tenha obtido.

Mas o ponto é: não há interferência governamental na programação da BBC, condição crítica para sua qualidade e independência, que se tornaram referência internacional. Quando essa ingerência acontece, a imprensa vira joguete político e peça de campanha, confundindo-se com publicidade oficial, como a que foi parodiada no vídeo acima, do governo da Bahia.

Uma imprensa apenas do governo ou submissa a ele consegue ser pior que uma imprensa em que isso seja equilibrado por uma versão privada, mesmo que, no meio dela, apareçam veículos vergonhosos, como a Veja. Pois, em repúblicas de bananas como as nossas, um governo sem limites se deteriora em ditaduras chavistas, destruindo o país aos poucos. Já andei por vários países da América Latina, e a relação entre uma imprensa frágil, governo forte (e populista) e país depauperado é gritante.

Existe ainda uma terceira via, que sequer foi cogitada por Sader, e que pode ser a resposta à pergunta que dá o título a esse post: o jornalismo-cidadão, que floresce cada vez mais na Internet. Só não o coloco ainda como A resposta, pois, como seria de se esperar, misturam-se na Grande Rede jornalismo de primeiríssima qualidade com iniciativas antijornalísticas. Afinal, qualquer um pode escrever nela o que bem entender, sem se preocupar com a seriedade da apuração ou da produção do material. E também aí existem interesses, como no caso das empresas e do governo. Mas nessa (imensa) pluralidade pode-se encontrar a verdade. E ferramentas como o Google News ou Wikinews podem servir para colocar ordem na “bagunça”. Sader passou longe disso.