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Nos EUA, uma patente só pode ser concedida se um humano fizer uma “contribuição significativa” - Foto: Freekpik/Creative Commons

Proibição de IA registrar patentes abre debate sobre seus limites criativos

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No dia 13, o Gabinete de Marcas e Patentes dos Estados Unidos determinou que patentes não podem ser registradas em nome de plataformas de inteligência artificial, apenas por pessoas. Essa tecnologia pode, entretanto, ser usada intensamente no desenvolvimento de invenções: basta seres humanos terem feito uma “contribuição significativa” para que a patente possa ser concedida.

A questão que salta aos olhos é: quem é o verdadeiro inventor nesse caso?

Apesar de bem-intencionada, a determinação possui falhas conceituais. A proposta de garantir que a propriedade intelectual continue sob domínio de pessoas é bem-vinda. Mas ao permitir que a IA seja usada na pesquisa (e não faz sentido proibir isso hoje), cria-se uma brecha para que ela seja vista como coautora do processo.

Como a tal contribuição humana não precisa ser comprovada, pode acontecer ainda de a IA fazer todo o trabalho e depois não ser “reconhecida” pelos pesquisadores. O aspecto tecnológico então dá lugar a outros, éticos e filosóficos: a máquina trabalha para nós ou o contrário, quando lhe fornecemos comandos e ela se torna coautora?

Como diz o ditado, “é nos detalhes que mora o diabo”.


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A inteligência artificial não é verdadeiramente criativa, pelo menos, não ainda. Ela é capaz de trazer grandes ideias ao processo por analisar e encontrar padrões que respondam a questionamentos ao analisar uma quantidade gigantesca de informações, de uma maneira que nem o melhor cientista conseguiria. Mas por enquanto ela precisa que alguém lhe faça as perguntas corretas, porque, se para os humanos, suas experiências pessoais lhes permitem transcender para novas ideias, para as máquinas, seu arcabouço de conhecimento funciona como um limitador.

“A máquina fica como um apêndice seu, porque é você que está no comando do diálogo”, explica Lucia Santaella, professora da PUC-SP e autoridade global em semiótica. “Mas se você não sabe o que procura, se você não exercita a sua vida intelectual, você vira um apêndice da máquina”, provoca.

“Independentemente de quão avançada seja a IA, você precisa de algum humano para falar o que tem que inventar: aí que eu vejo uma ‘contribuição significativa’”, afirma Matheus Puppe, sócio especialista em novas tecnologias do Maneira Advogados. Para ele, essas brechas na decisão do Gabinete de Marcas e Patentes podem funcionar até como um freio ao progresso. “Essa decisão mostra que eles estão reagindo apenas, e não pensaram muito bem sobre os detalhes de como isso seria aplicável”, acrescenta.

A característica essencial da IA de extrair informações de grandes massas de dados traz uma preocupação em registro de patentes, pois, no processo, ela pode infringir outras existentes, de onde aprendeu algo. Tanto que diversas empresas de comunicação e produtores de conteúdo estão processando desenvolvedores dessas plataformas por infração de direitos autorais. Mas Puppe acredita que, em nome do progresso tecnológico e dos benefícios derivados da IA, o uso de fragmentos anonimizados de informações devem ser flexibilizados para o treinamento da IA.

Tudo ficará diferentes se (ou quando) chegarmos à chamada “inteligência artificial geral”, que se parece muito mais com o cérebro humano, deixando de ser especialista em apenas um tema e até possuindo iniciativa para tomar ações. Nesse caso, a máquina dispensaria os humanos e suas “contribuições significativas”.

Para Puppe, nesse caso, talvez tenha que ser criada uma personalidade jurídica de uma “pessoa digital”, que poderia ser detentora de direitos específicos, inclusive monetários. Enquanto isso não chega, ele sugere que patentes criadas com apoio de IA tenha a tecnologia (e seus desenvolvedores) como coautores, ou pelo menos que exista uma copropriedade, com pagamentos de royalties por isso.

 

A “sociedade do prompt

Ainda que imprecisa, a decisão do Gabinete de Marcas e Patentes reflete uma profunda mudança social que a IA vem impondo desde o ano passado. Cada vez mais, muitas tarefas passam a se resumir à criação de um prompt, um comando eficiente para a inteligência artificial realizar a tarefa com precisão.

Ela não substituirá as pessoas, mas elas poderão ser gradativamente substituídas por quem a use. Isso aumenta o abismo profissional entre os que têm acesso e dominam a tecnologia e os que não têm, pois o robô assumirá não apenas tarefas braçais, como processará grandes volumes de dados, com uma percepção sobre-humana, melhorando as entregas desses profissionais.

A IA também é capaz de realizar produções de conteúdo, incluindo obras artísticas. E isso tem desafiado a sociedade a redefinir o papel tanto de um cientista, quanto o de um artista. “O que define um escritor, um músico é a criatividade da ideia”, sugere Puppe. “Isso é o importante, e não a sua habilidade de executá-la”, conclui.

O grande risco dessa capacidade de produção e de simular a realidade que a IA oferece é que não consigamos mais distinguir o que é real. Somos uma civilização que aprendeu a confiar no que vemos, mas agora somos desafiados continuamente a duvidar de nossos olhos pelas diferentes telas, vivendo em uma insustentável “incerteza perceptiva”.

“O que nos constitui é a linguagem, e ela está crescendo”, afirma Santaella. “Com a IA generativa, produzimos imagens, vídeo, sons, essa tecnologia simula o humano!”

Temos que nos apropriar de todo esse poder com consciência e ética! Não devemos temer a IA, nem tampouco nos deslumbrarmos com ela! Sempre a máquina deve trabalhar para nós, e não nós para ela ou para seus desenvolvedores.

Por isso, talvez até seja justo que eles sejam remunerados por uma patente ou qualquer outra produção comercial criada com forte apoio da IA. Mas não podem ser classificados como coautores, pois isso implica uma responsabilidade que a máquina não tem (e que essas empresas não querem ter), especialmente no caso de algo dar errado.

Nessa “sociedade do prompt”, devemos sempre recordar que nós estamos no controle, e que a máquina é apenas uma ferramenta. E por mais fabulosa que seja, ela não deve ser usada de uma maneira que nos torne intelectualmente preguiçosos.

“Eu só acredito na educação e no crescimento através da aprendizagem”, afirma Santaella.” Não a educação no sentido formal, mas a educação no sentido de não deixar morrer a curiosidade pelo conhecimento!”

Afinal, a nossa humanidade é o nosso grande diferencial para não sermos substituídos de vez por um robô. Precisamos continuar cultivando tudo que a faz ser o que é.

 

A ignorância é o único caminho para sermos felizes nas redes sociais?

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Faça como Neo, do filme Matrix: escolha a pílula vermelha e abrace a realidade ao invés de prazeres ilusórios - Foto: divulgação

Faça como Neo, do filme Matrix: escolha a pílula vermelha e abrace a realidade ao invés de prazeres ilusórios

“Fake news” em todo lugar. Usuários parando de usar plataformas. Grandes anunciantes ameaçando abandonar o barco. Empresas descontentes com os resultados de suas páginas. As redes sociais, aquelas em que passamos horas e horas todos os dias e que mudaram as nossas vidas, estão sob fogo cruzado. Até ontem, usávamos esses produtos alegremente. Agora parece que tudo ficou sombrio. Mas será que a coisa é mesmo tão ruim ou que essa aparente ruptura foi assim de repente? Faço uma provocação: nas redes sociais, só podemos ser felizes se não levarmos as coisas muito a sério?

Esse questionamento surgiu nessa semana no meu mestrado na PUC, enquanto discutíamos o filme Matrix (1999). Quem assistiu a esse clássico da ficção científica deve se lembrar que o protagonista Neo (Keanu Reeves), em determinado momento, precisa decidir se toma uma pílula azul e continua a sua vidinha, ou uma vermelha e descobre como a realidade de fato era: humanos escravizados por uma gigantesca máquina, sendo que a vida que pensavam viver não passada de uma ilusão implantada diretamente em seus cérebros. Essa monstruosidade tecnológica, a Matrix, mantinha os humanos felizes nessa mentira, enquanto, na realidade, sugava a energia produzida pelos seus corpos inertes, cultivados como se fossem plantas.

Neo escolhe a pílula vermelha, e troca os prazeres da vida ilusória por uma realidade dura, porém libertadora.


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Guardadas as devidas proporções e certamente com um tom muito menos apocalíptico, poderíamos dizer que nossa relação com as redes sociais, mais notoriamente com o Facebook, segue a mesma lógica. Os algoritmos de relevância nos dizem o que devemos ver, seguindo a ideia de sempre nos apresentar coisas de que supostamente gostamos, de modo que usemos cada vez mais seus produtos e lhe entreguemos nossos dados. Eles são a “energia” que alimenta o poderoso sistema publicitário, fonte de renda da empresa. São conteúdos que nos fazem “felizes”, mas que não são necessariamente bons ou aqueles que precisaríamos ver para nosso bom desenvolvimento.

Mas não foi sempre assim? O que mudou agora?

 

A mentira tem perna curta

Esse debate ganhou força ao longo do ano passado, quando as infames “fake news”, as notícias falsas, caíram na boca do povo. De repente, as pessoas começaram a se sentir enganadas pelas redes sociais (apesar de muitas continuarem compartilhando todo tipo de porcaria sem se preocupar se aquilo era verdade). O Facebook chegou a ser acusado de ter ajudado Donald Trump a se eleger à Casa Branca! Isso forçou a empresa a abandonar sua tradicional postura contemplativa diante do problema, para se engajar publicamente na sua solução.

Para engrossar o caldo da polêmica, ex-funcionários dessas empresas lançaram recentemente campanhas contra as redes sociais, e até mesmo afirmaram categoricamente que elas estão destruindo a sociedade. Segundo eles, os algoritmos prejudicariam nossa capacidade de escolha, senso crítico e até mesmo provocariam depressão em crianças.

No dia 25 de janeiro, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), o megainvestidor George Soros taxou o Facebook e o Google de “ameaças à democracia” pelo seu “comportamento monopolístico”. Segundo o bilionário húngaro, a abrangência e os algoritmos dessas empresas provocariam dependência nos usuários e comprometeriam sua capacidade de escolha, representando até mesmo obstáculos à inovação.

Tudo isso pode ter componentes de verdade. Mas ficaram de fora dessas análises um item crucial: o usuário.

 

A decisão é sua

Assim como na Matrix, esses sistemas são feitos para serem sedutores. Afinal, se não nos entregarem algo que achemos divertido, agradável ou útil, usaremos menos o produto, o que seria péssimo para os negócios. Ou seja, em última instância, o poder de decisão continua sendo de cada um de nós.

É aí que a porca torce o rabo.

Na história criada pelas irmãs Wachowski, o personagem Cypher (Joe Pantoliano), um dos “humanos libertados” da Matrix, decide trair seus companheiros de luta enquanto saboreia um bife que ele sabe ser uma ilusão. Ou seja, o personagem decidiu que o engano da Matrix era muito melhor que a realidade e conscientemente abriu mão dessa última.

Não estou dizendo que usar redes sociais nos tiram da realidade. Mas a essência das “fake news” recai sobre a ação do usuário de compartilhar algo que ele acredite ser verdadeiro (ou pior, que deseje ser verdade). Os criadores desses conteúdos sabem disso. Por isso, eles são produzidos para falar diretamente ao coração das pessoas, que passam a espalhar as mentiras a seus contatos. A partir daí, os algoritmos de relevância fazem o trabalho sujo.

É como diz o ditado: me engana que eu gosto!

O grande dilema em que todos nós fomos enfiados é que o algoritmo dessas plataformas ficou tão eficiente em identificar o que nos dá prazer, que se tornaram a ferramenta perfeita para quem quiser espalhar a sua versão de qualquer fato, para atingir seus objetivos, muitas vezes criminosos ou nefastos. O cidadão, por sua vez, vivendo uma vida cada vez mais acelerada e com uma crescente busca pelo prazer (em grande parte, influenciada pelas próprias redes), “baixa as suas defesas” e cai como um pato nesse jogo de poder.

E não pense que isso aí só se aplica a questões políticas, apesar de esse ser o terreno que em que essa combinação de “fake news” e algoritmos azeitados tem feito mais barulho.

 

Não seja ignorante!

Quer ver outro lugar onde isso acontece de montão? Esses malfadados testes do tipo “com qual celebridade eu me pareço”, que tem encharcado o Facebook recentemente. O pessoal adora aquilo! Se eu jogasse, certamente diriam que eu me pareço com o Tom Cruise.

Claro… Claro… Como poderia ser diferente? Nunca notaram a semelhança gritante?

Mas eu não jogo! Primeiro porque sei que não me pareço com ele. Depois porque esses infames testes não passam de sistemas para sequestrar nossos dados, que graciosamente entregamos de bandeja quando autorizamos o Facebook a compartilhá-los com o fabricante da picaretagem. Em alguns casos mais graves, autorizamos que eles façam publicações em nosso nome. Em outras palavras, entregamos a eles o poder de usar nossa conta do Facebook para espalhar a nossos amigos desde notícias falsas a vírus.

Sempre digo às pessoas que resistam a esse prazer instantâneo e fugaz oferecido por esses sisteminhas. Já me chamaram de chato de galochas por isso. Tudo bem, cada um é dono da sua vida. Mas não podemos ser tão inocentes assim em achar que vivemos em um mundo de pessoas boas, que só querem nosso bem, acima de tudo.

Não vivemos!

E não podemos achar que o Facebook fará uma mudança mágica em seus algoritmos ou políticas que nos livrará do mal, amém. Pois isso também não vai acontecer! Seu algoritmo continuará tentando nos seduzir, como o Don Juan perfeito, pois isso é a essência do seu negócio. Ele não cria os “fake news” ou os sequestradores de dados, mas a combinação de seus algoritmos com a nossa busca inconsequente pelo prazer é o vetor perfeito para sua disseminação.

Não proponho, de forma alguma, que deixemos de usar redes sociais, buscadores e toda a gama de recursos digitais que transformaram nossa vida em algo muito melhor, mais poderoso e mais divertido. Isso é impensável! Apenas precisamos ser mais conscientes do que estamos fazendo, para não sermos feitos de trouxas. Em outras palavras, seremos muito mais felizes se não ficarmos na ignorância, se não nos enganarmos pelos prazeres baratos e ilusórios.

Sejamos mais Neo e menos Cypher. Escolha a pílula vermelha! Sempre.


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