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Uma década de Tinder: o digital mudou nossos relacionamentos

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Onde é mais fácil conhecer alguém hoje: em uma festa ou em um aplicativo?

O Tinder, que acaba de completar uma década de “pegação”, não foi o primeiro e está muito longe de ser o único sistema para pessoas encontrarem parceiros. Ainda assim, ele se tornou referência na categoria e é o maior deles, tendo sido baixado mais de 530 milhões de vezes e viabilizado mais de 75 bilhões de “matches” nesses dez anos.

O sucesso dessas plataformas é inegável, desde que o pioneiro Match.com foi lançado em 1995. A chance de “atingir” uma enorme quantidade de pretendentes ao mesmo tempo e as ferramentas para se combinar interesses são vantagens claras. De uns anos para cá, a inteligência artificial e a geolocalização tornaram essas buscas ainda mais eficientes. Mas isso também desperta alguns questionamentos.

Esses recursos digitais teoricamente aprendem nossos gostos, para fazer ofertas cada vez mais assertivas. Nós, por outro lado, confiamos no julgamento da máquina. Mas qual a garantia de ela está certa? Além disso, estamos entregando a escolha de nossa “alma gêmea” a um software, abrindo mão de uma característica essencial de nossa humanidade.

Tudo isso “queima etapas” no jogo da sedução. Mas, ao fazermos isso, não estamos justamente perdendo tudo de bom que a sedução oferece?


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Nem sempre foi assim! Lá pelos idos de 1996, quando eu fazia parte do grupo pioneiro do UOL, lançamos as salas de bate-papo, uma grande inovação para a época. Não demorou para que casais começassem a se formar entre os usuários. Até que, naquele ano ainda, aconteceu o primeiro casamento no Brasil de pessoas que se conheceram online, algo que virou notícia nos jornais!

Esses sistemas na época não iam além de combinar características e preferências. Mas isso está longe de ser suficiente para uma pessoa se apaixonar por outra. Em muitos casos, relacionamentos em que ambos gostam das mesmas coisas simplesmente não evoluem por isso mesmo! A “química” entre duas pessoas surge de fatores muitas vezes improváveis.

A inteligência artificial das plataformas atuais tenta solucionar isso, mas acaba tendo alcance limitado, pois ela depende das escolhas dos usuários no “cardápio de gente” em que elas se transformaram. Como essas decisões são tomadas a partir de um punhado de fotos e informações oferecidas por cada um, acabam sendo deficientes.

O sucesso dessas plataformas passa pela sua interface minimalista, que agiliza o processo. No caso do Tinder, ao se deslizar para a direita uma foto, o usuário demonstra interesse naquele perfil. Se o outro lado fizer o mesmo, as partes podem conversar, e o que vier depois fica por conta e risco de cada um. Para quem não quiser investir muito tempo e energia e estiver disposto a experimentações, essa simplicidade atrai.

Por isso, o “algoritmo perfeito” seria a coisa mais importante para qualquer um desses serviços, pois aumentaria a satisfação (e o prazer) de seus usuários. Infelizmente isso não é simples de se obter, tendo até inspirado a ficção, no episódio “Hang the DJ”, o quarto da quarta temporada da série “Black Mirror”, que demonstra o funcionamento surpreendente das entranhas de um aplicativo de namoro.

 

Administrando as frustrações

As plataformas de encontros têm outro apelo inegável: o controle das frustrações. Nem sempre as paqueras dão certo, e as rejeições podem ser desagradáveis. Mas isso faz parte do jogo!

É curioso que, com esses aplicativos, as negativas continuam acontecendo e até em quantidade maior. Mas, como não se investe tempo e energia em cada tentativa e elas acontecem às dezenas (às vezes às centenas), a enorme quantidade de rejeições não chega a doer. Até mesmo porque estar por trás de uma tela supostamente nos “protege’ e, pelo volume, sempre haverá alguém que diga “sim”.

Não quer dizer que a experiência seja sempre agradável. O estudo “As virtudes e desvantagens do namoro online”, publicado em fevereiro de 2020 pelo instituto Pew Research Center, indica que 30% dos americanos já usaram uma dessas plataformas, mas 42% deles não tiveram uma boa experiência. A situação é pior para as mulheres, com 48% delas sendo abordadas mesmo depois de dizer que não tinham interesse, 46% recebendo mensagens ou imagens explícitas sem ter pedido, 33% sendo xingadas e 11% sendo ameaçadas fisicamente.

É inevitável pensar no “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman (editora Zahar, 2004). Para o filósofo e sociólogo polonês, falecido em 2017, a ampla queda da qualidade das relações é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. “Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar”, escreveu.

Com isso, a relação social construída com uma responsabilidade mútua é substituída pelo que ele chamou de “conexão”. Para o filósofo, o grande apelo desses sistemas está na facilidade de se esquecer o outro, de se “desconectar”: troca-se, sem qualquer remorso, os parceiros que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Outra estudiosa da área é Sherry Turkle, professora de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e autora dos livros “Alone Together” (“Sozinhos Juntos”, em uma tradução livre, Basic Books, 2017) e “Life On The Screen” (ou “A Vida na Tela”, Simon & Schuster, 2011). Ela afirma que, com o aumento da conexão digital das pessoas, suas vidas emocionais diminuem. Para a pesquisadora, apesar de estarmos constantemente nos comunicando com os outros pelas redes sociais, essas trocas acabam não sendo autênticas e nos levam à solidão.

Se for realmente assim, essas plataformas digitais podem ser um incrível serviço para se conseguir parceiros em quantidade, mas a qualidade continuará dependendo de nos expormos, demonstrando nossa realidade e entrando em contato com o outro. Para Bauman, apenas quando nos damos conta de que nossa voz é ouvida e de que nossa presença é sentida, entendemos que somos únicos e dignos de amor. E precisamos do outro em um contato de qualidade para nos fazer perceber isso.

Devemos, portanto, usar esses aplicativos como poderosas ferramentas de “pesquisa”, mas não podemos entregar a eles nossa capacidade de nos apaixonar. Nosso senso crítico não pode ser achatado a ponto de nos relacionarmos apenas com quem os algoritmos nos indicam.

Ainda citando Bauman, “amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama.” E continua: “no amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo.”

Que não percamos a capacidade de contribuir assim, que nos torna tão humanos.