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Theodore e Samantha (o sistema operacional do celular em seu bolso), em cena do filme “Ela” (2013) Foto: reprodução

Empresas querem que acreditemos que a inteligência artificial é humana

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A nossa interação com diferentes plataformas de inteligência artificial fica cada vez mais parecida com conversas que temos com outras pessoas. Em alguns casos, nossos cérebros podem ser enganados para crer que estão interagindo com outros indivíduos, por mais que saibam que não é verdade. Não é por acaso: as big techs querem que nos relacionemos com esses produtos de maneira mais “humana” possível. Mas longe de ser apenas um recurso para melhorar sua usabilidade, isso levanta questionamentos éticos e até de produtividade.

Ao longo da nossa evolução, aprimoramos a capacidade de atribuirmos características humanas ao que não é. Fazemos isso com animais de estimação, objetos, fenômenos da natureza e até a deuses. É o que chamamos de antropomorfismo. Por exemplo, dizemos que “o cachorro é muito inteligente”, “o carro está nervoso”, “a chuva está chorando” e representamos divindades com corpos e emoções humanas.

Isso é importante, porque facilita a nossa compreensão e interação, especialmente com aquilo com que não somos familiarizados. Além disso, com essa prática, criamos vínculos e até sentimos empatia pelo que não é humano.

Isso explica, pelo menos parcialmente, o ChatGPT ter atingido 100 milhões de usuários em apenas dois meses, o que o tornou o produto de mais rápida adoção da história. Antropomorfizar a inteligência artificial nos deixa à vontade para usá-la intensamente e para acreditar em suas respostas, às vezes além do que deveríamos.

Porém atribuir capacidades que esses sistemas não têm pode atrapalhar a nossa compreensão sobre o que realmente eles são e o que podemos fazer com a inteligência artificial. Corremos o risco de acabar atribuindo responsabilidades que as máquinas não possuem, enquanto ignoramos quem fizer usos indevidos de todo esse poder. Por isso, precisamos usar a IA como ela realmente é.


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Para deixar mais claros os efeitos do antropomorfismo, podemos comparar como nos relacionamos com a IA com o que sempre fizemos com os buscadores, que existem há quase três décadas. O Google, maior exemplo deles, tenta responder a todas as nossas perguntas desde 1998, quando foi lançado. E faz isso com uma eficiência incrível, sendo mais confiável que qualquer plataforma de inteligência artificial generativa do momento. Nem por isso, nós atribuímos características humanas a ele.

Como já debati nesse espaço, o mais incrível da inteligência artificial generativa não é o que ela nos diz, mas o simples fato de ser capaz de conversar conosco, como se fosse outra pessoa! Isso facilita o seu uso e amenta a credibilidade de suas respostas, mesmo quando ela nos diz alguma bobagem, as chamadas “alucinações” da IA.

Quando lançou o GPT-4o, no dia 13, a OpenAI dobrou essa aposta! Essa nova versão do “cérebro” do ChatGPT fala conosco com uma fluidez ainda mais impressionante, e é capaz de analisar, ao mesmo tempo, texto, voz, áudios e imagens, em tempo real, “enxergando” (olha a antropomorfização!) e analisando o que filmamos como celular.

Para reforçar ainda mais essa projeção, a empresa sugeriu que estaríamos nos aproximando do visto no filme “Ela” (2013), dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson. Na história, Theodore (Phoenix) se apaixona por Samantha (a voz de Johansson), o sistema operacional de seu computador e smartphone, movido por uma aparente inteligência artificial geral.

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse que “Ela” é seu filme preferido. Ele tentou contratar Johansson para dar voz ao GPT-4o, mas ela recusou a oferta. Não satisfeito, ele lançou o produto com uma voz muito parecida com a dela, o que lhe rendeu um processo da atriz. Aquela voz deixou de ser oferecida na plataforma.

Se tudo isso parece ficção científica demais, uma pesquisa publicada no ano passado na JAMA, a revista da Associação Médica Americana, indicou que pacientes consideraram empáticas quase dez vezes mais respostas dadas por um chatbot em relação às de médicos humanos. Na verdade, os pacientes sentiram alguma empatia do médico em apenas 5% das consultas, o que não deixa de ser uma informação importante por si só.

As pessoas querem se sentir acolhidas! Será que chegamos a um ponto em que as máquinas serão mais eficientes que humanos nessa tarefa?

 

A máquina perfeita de convencimento

O filósofo italiano e professor de Oxford Luciano Floridi, considerado uma das maiores autoridades nos campos da filosofia e da ética da informação, publicou um artigo nesse ano em que afirma que a inteligência artificial cria os mecanismos do que ele chama de “hiperpersuasão”. Resumidamente, essas plataformas ofereceriam um enorme poder para se convencer qualquer pessoa sobre qualquer coisa.

Segundo o pesquisador, isso se dá graças à já incrível e crescente capacidade de a máquina coletar e processar dados dos indivíduos, identificando padrões de comportamentos, preferências e vulnerabilidades, para manipular opiniões e comportamentos. Além disso, a inteligência artificial generativa pode produzir todo tipo de conteúdo com alta qualidade e cada vez mais parecida ao gerado por humanos.

Para ele, tecnologias persuasivas são tecnologias de poder. Já experimentamos isso com as redes sociais, e a esse processo deve se intensificar muito com a IA, não apenas pela tecnologia em si, mas por usos indevidos de grupos políticos e econômicos.

Para minimizar esses riscos, Floridi afirma que é necessária uma melhor proteção legal e ética da privacidade, contra os usos persuasivos da IA. E curiosamente, diante do fato de que esses usos nocivos acontecerão, ele sugere que a “hiperpersuasão” seja pluralista. Em outras palavras, usos positivos desse recurso poderão “compensar” os maus usos, trazendo também visões complementares do mundo. É mais ou menos o que acontece desde sempre com a mídia, mas agora aplicado à inteligência artificial.

Uma população em que todos os membros fossem muito educados e engajados ajudaria a resolver esse problema. Devemos perseguir sempre isso, mas entendo que seja uma utopia.

Isso nos leva então de volta ao antropomorfismo. Precisamos usar a IA como ela realmente é. Ela certamente atua como um agente social, no sentido em que promove transformações em nosso mundo, mas não é um agente moral, pois não tem autonomia e capacidade de escolher o que fará. Atribuir característica humanas à máquina pode distorcer essa realidade, isentando criminosos que fazem maus usos dela, e responsabilizando a máquina.

E isso não faz sentido algum!

 

Tomamos decisões racionais o tempo todo, mas elas são fortemente influenciadas por emoções, como sugere a animação “Divertida Mente”

Somos escravos de nossos desejos e medos

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Passamos pela eleição mais tensa de nossa história, com uma polarização radical que fraturou a sociedade brasileira. Apoiadores de ambos os lados ainda se perguntam como alguns de seus familiares, amigos e colegas, que “consideravam razoáveis”, defendem ideias “do outro lado”. Mas tentar entender isso com argumentos racionais é uma tarefa inglória, pois esses alinhamentos são emocionais, por mais que os próprios indivíduos não tenham consciência disso.

Somos guiados pelos nossos sentimentos! Estudo da Faculdade de Psicologia da Universidade da California em Berkeley (EUA) sugere que temos 27 tipos deles. Entre emoções dessa lista, como alegria, ansiedade, empatia, tédio e excitação, duas são fundamentais para compreender esses tempos complexos: o desejo e o medo.

Desejar não é apenas querer algo ou alguém. É algo muito mais intenso e visceral! É um sentimento extremamente poderoso, que nos impulsiona e nos faz tomar decisões. Já o medo funciona em sentido contrário. Ele nos paralisa e impede de fazer escolhas.

Políticos sempre tentaram manipular as populações para conseguir votos. Entretanto, de uns anos para cá, descobriram que, se conseguissem se concentrar nesses dois sentimentos, trocariam eleitores por soldados dispostos a defender seus ideais contra tudo e todos. Essa é uma prática extremamente perigosa, pois pode estraçalhar o tecido social. Ainda assim, fizeram isso sem pestanejar! E o resultado é o que vivemos hoje e ainda viveremos por muitos anos.


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Em 2015, a Pixar lançou sua memorável animação “Divertida Mente”, construída sobre esse conceito. Na história, todos os seres vivos teriam, em seus cérebros, cinco “pequenos indivíduos”, cada um deles representando uma emoção: a Alegria, a Tristeza, o Medo, a Raiva e o Nojo. Lá, teriam acesso a um “painel de comando”, que determinava como cada pessoa agia.

Nosso cérebro é fabuloso! Com ele, tomamos nossas decisões. Entretanto, por mais racional que uma escolha seja, ela pode ser profundamente influenciada por emoções, como se os sentimentos fossem ingredientes dela. Esse é, aliás, o princípio dos “gatilhos mentais”, recursos dos quais equipes de marketing vêm abusando nos últimos anos, para que consumidores “escolham racionalmente” produtos a partir de emoções “plantadas” em suas cabeças pelas campanhas publicitárias.

De volta à realidade um tanto distópica em que estamos imersos, as redes sociais desempenham papéis fundamentais para que os políticos manipulem as massas. O primeiro deles é ajudá-los a descobrir o que as pessoas desejam e do que elas têm medo em dado momento. Afinal, não é possível construir qualquer narrativa visando o controle de mentes se não souberem isso.

A outra função dessas plataformas é servir de veículo para disseminar, em gigantesca quantidade, suas mensagens. Elas são cuidadosamente produzidas para que as pessoas vejam, em determinado candidato, aquele que viabilizará seus desejos e os protegerá de seus medos. E seus algoritmos de relevância se prestam cinicamente a esse serviço sujo, pois as redes sociais lucram com a polarização.

Logo, quem domina o meio digital tem mais chance de transformar suas ideias em “verdades”.

 

O campo de batalha online

Faz todo sentido, portanto, que “pós-verdade” tenha sido escolhida como a palavra do ano de 2016 pelo renomado Dicionário Oxford. Pela sua definição, o termo é “relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”. Ou seja, as pessoas hoje preferem acreditar naquilo que esteja em linha com seus desejos, por mais que seja uma invenção escandalosa.

Disso vêm as fake news. Elas deliberadamente mentem para que determinado grupo atinja seus objetivos, manipulando as emoções da população. E não se trata de simples boatos, pois são produzidas com método, impactando primeiro aqueles que gostariam que aquilo fosse verdade: isso aumenta seu engajamento inicial, o que leva os algoritmos das redes sociais a distribuir a mentira em grande quantidade.

A série “The Boys”, da Amazon Prime Video, ilustra isso muito bem. Nessa paródia das histórias de super-heróis, superseres fazem ações heroicas midiáticas nas redes sociais apenas para que a população os ame e, assim, compre todo tipo de produtos com suas marcas. Mas, em sua segunda temporada, surge uma personagem que percebe que obter o amor das massas é cada vez mais difícil e pouco produtivo. Ao invés disso, descobre que é mais eficiente manipular o ódio da sociedade. Para ela, é muito melhor ter soldados que fãs, e que cinco milhões de pessoas movidas pelo ódio são mais efetivas que cinquenta milhões com amor. Ela entendeu que não vivemos mais no mundo da cultura de massas, e sim da “viralização”.

Políticos que usam esse método trabalham com o medo da população, pois ele é capaz de travar as pessoas e deixá-las cegas. E, uma vez que elas ultrapassem determinado limiar de ódio e de medo, são facilmente controláveis, até mesmo pelo mecanismo do “apito do cachorro”: comandos que as demais pessoas não percebem, mas que são eficientes para agitar os “comandados” para executar as ordens de seus líderes. Basta observar como costumam seguir ações de maneira coordenada.

Dessa forma, chegamos ao atual cenário de uma nação devastada pelo ódio. Mas há esperança, e ela vem dos mais jovens. O estudo internacional “A nova dinâmica da influência”, divulgado em 22 de setembro pela consultoria americana Edelman, mostra que a Geração Z (pessoas hoje entre 14 e 26 anos de idade) é movida –e não paralisada– pelo medo. Isso demonstra uma percepção mais madura sobre essa poderosa emoção, que existe para nossa autopreservação. Por isso, 70% deles estão envolvidos em causas sociais ou políticas.

Os mais jovens querem resgatar a política como uma ferramenta de transformação social para um mundo mais justo e igualitário, com relações mais transparentes e honestas. Segundo o estudo, eles se preocupam com temas ligados à natureza, saúde, direitos humanos, justiça racial e igualdade de gênero. Esperam ainda que as empresas atuem como parceiras para que esses objetivos sejam atingidos.

Costumo dizer que a melhor maneira de anteciparmos o futuro é olhando para os jovens. Nesse sentido, é reconfortante observar esse comportamento da Geração Z.

Nossas emoções nos definem! Precisamos ter consciência de nossos sentimentos para aprender e crescer com eles, e não ser dominados a partir deles. Os mais jovens já estão fazendo isso. Você consegue também?

 

Quantos cartões de Natal você recebeu neste ano?

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Composição de fotos: dodô (BazzaDaRambler) e cartão (Viscious-Speed)/Creative Commons

O dodô e o cartão de Natal: extintos?

Os cartões de Natal, um dos símbolos dessa época do ano, caminham para se juntar ao dodô no rol das coisas extintas. As pessoas naturalmente continuam desejando boas festas, mas algo mudou, e não é apenas a troca do papel e selos pela Internet: há um componente comportamental interessante.

Até há poucos anos, eu recebia cartões suficientes para forrar a minha árvore de Natal. Eles vinham de familiares, de amigos, de empresas com as quais eu tinha alguma relação. O volume em todo país era tão grande, que as entregas dos Correios sempre atrasavam nessa época do ano. Hoje não chega nenhum, nem para remédio! Aliás, nem vi para comprar.

Lá pelos idos de 1997, começaram a surgir os primeiros sistemas de “cartões virtuais”. A ideia era simples: ao invés de se mandar um cartão pelo correio, criava-se um na Web, e o sistema o entregava ao destinatário por e-mail. Prático e de graça, o que era um apelo interessante. Ainda assim, tratava-se de um cartão composto pelo remetente para cada um dos seus destinatários para desejar-lhe o tradicional “feliz Natal e próspero ano novo”.

Isso certamente representou o início do fim dos cartões em papel, mas nunca acabou com eles, nem de longe. Além do mais, de um jeito ou de outro, as pessoas continuavam mandando essas mensagens.

A digitalização do “feliz Natal” ganhou uma nova escala com as redes sociais e os smartphones. Agora é possível enviar os mesmos votos a várias pessoas individualmente. Mais fácil que isso: basta mandar para meia dúzia de grupos do WhatsApp que englobem quase todos os conhecidos. Ou ainda escrever os votos na linha do tempo do Facebook e esperar que ele entregue o desejo de boas festas.

Ou torcer. Pois, nesse caso, a rede social é quem decidirá quem será “merecedor” para receber os votos, seguindo seu critério de relevância.

 

Digitalizando lembranças e emoções

Não estou pregando aqui qualquer tipo do moralismo ou defendendo os fabricantes de desejos natalinos impressos. Acho apenas que é interessante ver como a oferta tecnológica, de certa forma, transformou o significado do envio de cartões de Natal.

Peguemos um outro exemplo: aniversários. Admito: eu hoje me lembro do aniversário de muito mais gente! Quer dizer, quem se lembra é o Facebook, que gentilmente cria uma lista diária de aniversariantes que devo cumprimentar. Antes disso, muitos deles passavam em branco, inclusive de algumas pessoas relativamente próximas a mim, assim como eu também era muito menos lembrado pelo meu dia.

Isso não quer dizer que saio mandando parabéns para todo mundo. Talvez eu seja bobo, mas não vejo muito sentindo em mandar um “post de aniversário” para um amigo da minha primeira infância que é meu “amigo” no Facebook, mas com quem, de verdade, não falo há uns 30 anos.

Mas fico feliz que o Facebook sirva como meu elefante particular, que não me deixa esquecer de (quase) nada. Entretanto, eu me reservo o direito de decidir o que fazer com essa informação. Mais que isso, usarei Facebook, WhatsApp e o que mais tiver disponível para enviar, do jeito que eu quiser, meus votos de aniversário, Natal ou Star Wars Day.

Apenas me decepciono quando vejo as pessoas operando no piloto automático na hora de fazer isso. A tecnologia existe para nos atender, deixar nossa vida mais produtiva e mais divertida. Ela trabalha para nós, e não o contrário.

Dessa forma, não temos que sair dizendo “feliz aniversário” só porque o Facebook nos avisou, ou delegar às redes sociais o trabalho de criar e enviar cartões de Natal às pessoas que ela mesma escolher. Os recursos estão aí e eles são fascinantes! Devemos usá-los, porém precisamos parar, pelo menos por um minutinho, para entender qual é o significado dessas funcionalidades e dos gestos que elas estão captando. Eles não devem ser banalizados.

Pois, por mais irônico que possa parecer, mesmo a mais sofisticada tecnologia tem o poder de nos tornar mais humanos. Basta usá-la com sentimento.

 

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