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IA pode ampliar capacidades de profissionais de diversas áreas, mas apenas 21% dos brasileiros a usam - Foto: Freepik/Creative Commons

Inteligência artificial pode ampliar abismo social no Brasil

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Cresce o consenso de que a inteligência artificial pode oferecer um grande salto de produtividade para profissionais das mais diferentes áreas. Ironicamente isso pode ampliar o abismo social no Brasil. Somos um país em que pouca gente tem acesso a essa tecnologia, o que pode fazer com que a produtividade dos profissionais mais bem preparados se distancie ainda mais da dos menos capacitados.

Uma pesquisa da Genial/Quaest, divulgada na semana passada, indica que apenas 21% dos brasileiros já usaram alguma ferramenta de inteligência artificial. A grande maioria deles está entre pessoas com curso superior e em classes sociais mais altas.

São os mesmos indivíduos que já têm um acesso mais amplo e de melhor qualidade a equipamentos eletrônicos e à Internet. Em um mundo profundamente digital, isso representa um inegável ganho competitivo.

Ainda há muita gente sem acesso a elementos essenciais de bem-estar no Brasil, como saneamento básico e eletricidade. Assim, preocupar-se com isso pode parecer luxo e até futilidade. Mas se encararmos a Internet e a inteligência artificial como as ferramentas de transformação social que são, entenderemos por que devem ser incluídas no pacote civilizatório que precisa ser oferecido a todos os cidadãos.

O abismo digital que reforça o social é um problema de décadas em nosso país, que não dá sinais de melhoria. A popularização dos smartphones, que poderia indicar um aspecto positivo, não resolve verdadeiramente o déficit digital da população.


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“A desigualdade social no Brasil se revela na diferença entre escolas públicas e privadas no acesso a computadores e Internet, por exemplo, e saltou aos olhos na pandemia, quando as crianças e jovens mais pobres não tinham como ter aulas online, por não terem computador ou acesso à internet em casa”, explica Felipe Nunes, fundador da Quaest. “O resultado da pesquisa é mais um dado dessa desigualdade.”

De fato, quando as escolas estavam fechadas por conta do Covid-19, mesmo as públicas ofereciam aulas online. Mas muitos alunos não conseguiam aproveitar bem esse recurso, porque não tinham computador em casa, e a experiência na tela pequena dos smartphones não era tão boa. Outros problemas enfrentados eram os pacotes de dados limitados e a residência ter apenas um aparelho, que precisava ser compartilhado entre todos os membros, para suas atividades diárias.

A pesquisa da Genial/Quaest também indica forte correlação do uso da IA com as faixas etárias, pendendo para os mais jovens: 33% dos brasileiros entre 16 e 34 anos já usaram a inteligência artificial, contra 19% entre 35 e 59 anos, e apenas 6% entre os que tem 60 ou mais.

A criação de textos é, de longe, a aplicação mais conhecida, tendo sido usada por 48% dos brasileiros que já aproveitaram a IA, seguido pela organização de arquivos (18%) e geração de imagens (16%). Sobre a percepção sobre os resultados, 76% dos usuários acharam a experiência positiva, 19% disseram que foi regular, e apenas 3% não gostaram.

Entre os usuários, 46% acharam que a IA é uma oportunidade para a humanidade, enquanto 37% a viram como uma ameaça e 17% não souberam o que dizer sobre isso. Há também medos em relação à IA, como ela ser usada para aumentar a desinformação (apontado por 82% das pessoas), para tornar grupos perigosos mais poderosos (81%), controle da população por governos autoritários (80%), manipulação da opinião pública (76%) e justamente piora na desigualdade social (76%).

Esses números sobre medos são expressivos, ainda mais se considerarmos que a maioria acha a IA uma oportunidade, com ampla vantagem para os que a veem como positiva. Mas uma coisa é sentir os benefícios da tecnologia em seu cotidiano, outra é entender os riscos que ela oferece.

“A IA é um campo imenso de possibilidades, que ainda estamos longe de compreender inteiramente”, explica Nunes. “Acredito que todo mundo tem atualmente apenas uma pequena ideia do que está por vir”, afirma.

 

Inclusão digital

Segundo a edição mais recente da TIC Domicílios, pesquisa sobre o uso de tecnologia nas residências no país, divulgada em agosto de 2023 pelo Cetic.br, 29,4 milhões de brasileiros não têm acesso à Internet, sendo 17,2 milhões deles das classes DE e 10,3 milhões na classe C.

O acesso feito exclusivamente pelo smartphone acontece em 58% da população conectada, mas esse número chega a 87% no caso da classe DE. Isso impacta diretamente as habilidades digitais dos usuários. Por exemplo, 71% das pessoas que estão online pelo computador e pelo smartphone verificam se uma informação que receberam é verdadeira, contra apenas 37% das conectadas apenas pelos celulares.

Dar acesso à Internet e à inteligência artificial é, portanto, cada vez mais crítico para o desenvolvimento pessoal e profissional do indivíduo. Mas é preciso também melhorar o nível do letramento digital das pessoas, para que façam um uso verdadeiramente positivo desses recursos tão poderosos.

Isso está se tornando um direito humano, considerando a digitalização galopante de nossas vidas e como esses recursos melhoram praticamente todas as atividades em que são usados. Governos, escolas, empresas e outros membros da sociedade civil precisam se engajar para a oferta de acesso à tecnologia, mas também para sua compreensão e domínio consciente e ético.

Caso contrário, veremos a inteligência artificial empurrando ainda mais para o fundo aqueles que já ocupam uma posição mais baixa na sociedade. Afinal, não é essa tecnologia que roubará seus empregos, e sim aquelas pessoas que estiverem se apropriando e usando melhor seus recursos.

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, líder global no desenvolvimento da inteligência artificial, no Fórum Econômico Mundial – Foto: reprodução

Sociedade exige da IA uma transparência que ela mesmo não pratica

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Muito além do aquecido debate sobre legislações que organizem o uso da inteligência artificial, começa a se formar um consenso sobre alguns valores em torno dessa tecnologia, como uso e desenvolvimento responsáveis, decisões rastreáveis e dois conceitos que se confundem e são pouco conhecidos: transparência e explicabilidade. Todos são essenciais para que os impactos da IA sejam positivos. Mas a sociedade está exigindo algo dessas plataformas que ela mesma não pratica.

Se fizermos uma autoanálise, perceberemos que conscientemente não somos transparentes em muitas coisas de nosso cotidiano, assim como tampouco são empresas e instituições. Como exemplo, uma das maiores falhas das redes sociais, que levou à insana polarização da sociedade e a problemas de saúde mental de seus usuários, é a completa falta de transparência das decisões de seus algoritmos.

Diante disso, alguns especialistas afirmam que exigir esse nível de responsabilidade e transparência das plataformas de IA é um exagero e até, de certa forma, hipocrisia.

Talvez… Mas o fato de cultivarmos esses maus hábitos não pode ser usado para desestimular a busca desses objetivos nessa tecnologia com potencial de ofuscar a transformação que as redes sociais fizeram, que, por sua vez, deixou pequena as mudanças promovidas pela mídia tradicional anteriormente.

Se não tomarmos as devidas precauções, a inteligência artificial pode causar graves consequências para a humanidade pelas ações de grupos que buscam o poder de forma inconsequente. Por isso, ela precisa ser organizada para florescer como uma tecnologia que ampliará nossas capacidades criativas e de produção.

Sem esses pilares éticos, sequer confiaremos no que a IA nos disser, e então tudo irá por água abaixo.


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No momento, as plataformas de inteligência artificial funcionam como caixas pretas: colocamos nossos dados e fazemos nossos pedidos de um lado, e nos deslumbramos com os resultados do outro, sem saber como aquela “mágica” foi feita. Apenas quem está dentro das big techs que produzem esses sistemas sabe como aquilo funciona, mas até eles se surpreendem com alguns resultados das suas criaturas, como quando desenvolvem sozinhas habilidades para as quais não foram programadas.

Quando se cria algo que promove profundas mudanças na sociedade, mas não se conhecem seu funcionamento e objetivos, isso pode colocar em risco a própria democracia, não porque exista algo maquiavélico na sua confecção, mas justamente por esse desconhecimento. Não é à toa que legislações para a inteligência artificial ao redor do mundo, com o brasileiro Projeto de Lei 2338/23 e a europeia Lei da Inteligência Artificial, tentem definir rastreabilidade, transparência e explicabilidade.

A rastreabilidade é a capacidade de identificar e acompanhar as ações de um sistema de IA, saber quais dados foram usados para treiná-lo e seus algoritmos, manter registros sobre como chegou a uma determinada decisão e qual foi seu impacto. Isso permite que suas escolhas sejam auditadas e que vieses sejam corrigidos.

Já a transparência se refere às pessoas poderem ser capazes de entender como o sistema de IA funciona, quais dados ele usa e como ele toma decisões. Isso visa garantir que ele seja usado de forma justa e ética, aumentando sua aceitação pública.

Por fim, a explicabilidade se traduz na capacidade de um ser humano compreender as razões complexas pelas quais um sistema de IA toma uma determinada decisão, que fatores contribuíram e como foram ponderados. Ela é importante para identificar erros, prever resultados e garantir a conformidade com padrões éticos e legais.

Se não é fácil entender, mais difícil ainda é entregar esses valores. Os algoritmos mais eficientes são justamente os mais complexos, e uma simples documentação pode não ser suficiente. Ainda assim, o desafio dessa conformidade permanece.

 

Temos que entender

Como exemplo da importância de se entender essas plataformas, podemos pensar na exigência do artigo 20 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que determina que o cidadão pode “solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses”. Mas como ele fará isso se nem compreende como a decisão foi tomada? Da mesma forma, como a empresa revisará a decisão, se tampouco a compreende?

Considerando que a IA estará cada vez mais presente e determinante em nossas vidas, sua compreensão deve ser ensinada até nas escolas, desde a infância, de maneira crescente. Não quer dizer que todos precisem dominar plenamente seu funcionamento: apenas o suficiente para suas necessidades. Fazendo uma comparação com um carro, existe sobre ele os conhecimentos de um projetista, de um mecânico, de um motorista e de um passageiro. E todos usam o carro à sua maneira!

Ao contrário do que alguns dizem, a exigência de que plataformas de inteligência artificial sigam esses preceitos éticos não pode ser visto como ameaça ao seu desenvolvimento e inovação. Pelo contrário, são condições que devem integrar sua própria concepção. A população precisa disso para confiar na inteligência artificial, ou, passada essa fase inicial de deslumbramento, ela poderá deixar de ser considerada como a incrível ferramenta de produtividade que é.

Entendo que as dificuldades para isso sejam imensas. Sei também que nós mesmos não somos transparentes em nosso cotidiano, como já disse. Mas nada disso pode servir como desculpa para se esquivar dessa tarefa. Tampouco é hipocrisia exigir que os desenvolvedores se esmerem para cumprir essas determinações.

Não podemos incorrer no mesmo erro cometido com as redes sociais, que até hoje atuam de maneira inconsequente e sem responsabilidade pelos eventuais efeitos muito nocivos de suas ações. A inteligência artificial já está transformando a sociedade de maneira determinante.

Seríamos inocentes se acreditássemos que essas empresas se autorregularão: seus interesses sempre falarão mais alto nesse caso. Precisamos de regulamentações claras, não para coibir o progresso, mas para dar um norte de bons princípios, para que a inteligência artificial beneficie a todos, e não apenas grupos tecnocratas.

 

Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, que acaba de aprovar a Lei da Inteligência Artificial - Foto: PE/Creative Commons

Europa regulamenta a IA protegendo a sociedade e sem ameaçar a inovação

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O Parlamento Europeu aprovou, na quarta passada (13), a Lei da Inteligência Artificial, uma legislação pioneira que visa a proteção da democracia, do meio ambiente e dos direitos fundamentais, enquanto promove o desenvolvimento dessa tecnologia. As novas regras, que devem entrar em vigor ao longo dos próximos dois anos, estabelecem obrigações para desenvolvedores, autoridades e usuários da IA, de acordo com potenciais riscos e impacto de cada aplicação.

Na semana anterior, a Europa já havia aprovado uma lei que regula a atuação das gigantes da tecnologia, favorecendo a competição. Tudo isso consolida a vanguarda do continente na organização do uso do mundo digital para proteger e beneficiar a sociedade, inspirando leis pelo mundo. O maior exemplo é a GDPR, para proteção de dados, que no Brasil inspirou a LGPD, nossa Lei Geral de Proteção de Dados.

Legislações assim se tornam necessárias à medida que a digitalização ocupa espaço central em nossas vidas, transformando profundamente a sociedade. Isso acontece desde o surgimento da Internet comercial, na década de 1990. De lá para cá, cresceu com as redes sociais, com os smartphones e agora com a inteligência artificial.

O grande debate em torno dessas regras é se elas podem prejudicar a sociedade, ao atrapalhar o desenvolvimento tecnológico. A preocupação é legítima, mas ganha uma dimensão muito maior que a real por influência dessas empresas, que se tornaram impérios por atuarem quase sem regras até agora, e gostariam de continuar assim.

Infelizmente essas big techs abusaram dessa liberdade, sufocando a concorrência e criando recursos que, na prática, podem prejudicar severamente seus usuários. Portanto, essas leis não devem ser vistas como ameaças à inovação (que continuará existindo), e sim como necessárias orientações sociais para o uso da tecnologia.


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A nova lei proíbe algumas aplicações da IA. Por exemplo, o uso de câmeras fica restrito, sendo proibido o “policiamento preditivo”, em que a IA tenta antecipar um crime por características e ações das pessoas. Também são proibidos a categorização biométrica e a captação de imagens da Internet ou câmeras para criar bases de reconhecimento facial. A identificação de emoções em locais públicos, a manipulação de comportamentos e a exploração de vulnerabilidades tampouco são permitidos.

“O desafio é garantir que tecnologias de vigilância contribuam para a segurança e bem-estar da sociedade, sem prejuízo das liberdades civis e direitos individuais”, explica Paulo Henrique Fernandes, Legal Ops Manager no Viseu Advogados. “Isso requer um diálogo contínuo para aprimoramento de práticas e regulamentações que reflitam valores democráticos e éticos”, acrescenta.

A lei também disciplina outros sistemas de alto risco, como usos da IA em educação, formação profissional, emprego, infraestruturas críticas, serviços essenciais, migração e Justiça. Esses sistemas devem reduzir os riscos, manter registros de uso, ser transparentes e ter supervisão humana. As decisões da IA deverão ser explicadas aos cidadãos, que poderão recorrer delas. Além disso, imagens, áudios e vídeo sintetizados (os deep fakes) devem ser claramente rotulados como tal.

A inovação não fica ameaçada pela lei europeia, porque ela não proíbe a tecnologia em si, concentrando-se em responsabilidades sobre aplicações que criem riscos à sociedade claramente identificados. Como a lei prevê um diálogo constante entre autoridades, desenvolvedores, universidades e outros membros da sociedade civil, esse ambiente pode até mesmo favorecer um desenvolvimento sustentável da IA, ao criar segurança jurídica a todos os envolvidos.

A nova legislação também aborda um dos temas mais polêmicos do momento, que é o uso de conteúdos de terceiros para treinar as plataformas de IA. Os donos desses sistemas vêm usando tudo que podem coletar na Internet para essa finalidade, sem qualquer compensação aos autores. A lei aprovada pelo Parlamento Europeu determina que os direitos autorias sejam respeitados e que os dados usados nesse treinamento sejam identificados.

 

Evitando Estados policialescos

Um grande ganho da nova lei europeia é a proteção do cidadão contra o próprio Estado e seus agentes. A tecnologia digital vem sendo usada, em várias partes do mundo, para monitorar pessoas e grupos cujas ideias e valores sejam contrárias às do governo da vez, uma violação inaceitável a direitos fundamentais, além de criar riscos enormes de injustiças por decisões erradas das máquinas.

Em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, muitas pessoas foram presas por terem sido confundidas pelos sistemas com criminosos. Em São Paulo, a primeira proposta do programa Smart Sampa, implantado em 2023 pela Prefeitura e que monitora os cidadãos com milhares de câmeras, previa que o sistema indicasse à polícia pessoas “em situação de vadiagem”, seja lá o que isso significasse.

A ficção nos alerta há muito tempo sobre os problemas desses abusos. O filme “Minority Report” (2002), por exemplo, mostra que mesmo objetivos nobres (como impedir assassinatos, nessa história) podem causar graves danos sociais e injustiças com a tecnologia. E há ainda os casos em que as autoridades deliberadamente a usam para controlar os cidadãos, como no clássico livro “1984”, publicado por George Orwell em 1949.

O Congresso brasileiro também estuda projetos para regulamentar a inteligência artificial. O mais abrangente é o Projeto de Lei 2.338/2023, que propõe o Marco Legal da Inteligência Artificial. “Enquanto a União Europeia estabeleceu um quadro regulatório detalhado e abrangente, focando na gestão de riscos associados a diferentes usos da IA, o Brasil ainda está definindo seu caminho regulatório, com um enfoque aparentemente mais flexível e menos prescritivo”, explica Fernandes.

É inevitável a profunda transformação que a inteligência artificial já promove em nossa sociedade, um movimento que crescerá de maneira exponencial. Os benefícios que ela traz são imensos, mas isso embute também muitos riscos, especialmente porque nem os próprios desenvolvedores entendem tudo que ela vem entregando.

Precisamos estar atentos também porque muitos desses problemas podem derivar de maus usos da IA, feito de maneira consciente ou não. Por isso, leis que regulamentem claramente suas utilizações sem impedir o desenvolvimento são essenciais nesse momento em que a colaboração entre pessoas e máquinas ganha um novo e desconhecido patamar. Mais que aspectos tecnológicos ou de mercado, essas legislações se tornam assim verdadeiros marcos civilizatórios, críticos para a manutenção da sociedade.

 

Criada por IA, Ren Xiaorong é a âncora do telejornal “Diário do Povo”, controlado pelo governo chinês - Foto: reprodução

IA agora produz e publica notícias, aumentando os riscos de desinformação

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O que você sentiria se o presidente da República telefonasse a você para lhe convencer de algo? Ou se alguém bem próximo, como um sobrinho ou até um filho, enviasse um áudio pedindo dinheiro? Muita gente desconfiaria que se trata de um golpe. Mas o rápido avanço da inteligência artificial está tornando esse tipo de engodo cada vez mais crível, fazendo vítimas em todos os estratos sociais.

Portanto, cuidado ao gritar que jamais cairá em algo assim. Por muito menos, todo mundo já acreditou em alguma fake news!

A ameaça cresce quando se observa que o uso da IA vai muito além da produção de textos, áudios e vídeos bem-feitos. Os robôs agora constroem sequências de notícias falsas sobre temas que lhes forem solicitados. Além disso, eles as distribuem de maneiras cada vez mais criativas, até como se fossem jornalistas humanos.

Não por acaso, em janeiro, o Fórum Econômico Mundial apontou a desinformação potencializada pela inteligência artificial como o maior risco que a humanidade enfrentará nos próximos anos.

As big techs, responsáveis pela criação dessas plataformas, estão se mexendo. No mesmo Fórum, Nick Clegg, presidente de assuntos globais da Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), anunciou que a empresa está trabalhando com os principais nomes do setor para criar mecanismos que identifiquem claramente que um conteúdo foi sintetizado por IA. O executivo classificou a iniciativa como “a tarefa mais urgente” da indústria tecnológica atualmente.

Já passamos há anos do ponto em que as versões ficaram mais “importantes” para o público que os fatos, e falhamos miseravelmente no combate a isso, com consequências desastrosas. Nesse ano, com mais de 2 bilhões de pessoas votando em 58 países, o desafio de todos passa a ser não apenas resgatar o valor da verdade, como também serem capazes de identificá-la.


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Isso já acontece, inclusive onde estão as sedes das big techs: os EUA. O país começou 2024 com a polarização nas alturas pela eleição presidencial em novembro, que deve colocar novamente o atual presidente, Joe Biden, frente a seu antecessor, Donald Trump. O primeiro já vem sendo vítima de vídeos falsos desde o ano passado.

Recentemente, eleitores do Estado de New Hampshire receberam telefonemas com a voz de Biden enganando-os para não votarem na eleição primária local. Isso fez com que o governo proibisse o uso de IA para simular vozes em ligações automáticas no país.

Legislações costumam chegar atrasadas e muitas vezes são ineficientes, diante da velocidade da inovação. O debate sobre regulamentar redes sociais e agora a inteligência artificial vem deixando claro que se focar nas tecnologias é infrutífero, devendo se concentrar na responsabilização dos desenvolvedores e dos usuários que usam esses recursos indevidamente.

O grande problema é que, com ou sem regras claras, os vilões –sejam empresas ou usuários– continuam fazendo o que bem entendem para garantir seus lucros ou outros objetivos. A IA deve facilitar esse processo ainda mais, e eles sabem disso.

A imprensa historicamente desempenha o papel de proteger a sociedade desse tipo de abuso, mas ela própria vem sendo impactada pela inteligência artificial, seja em seus próprios processos, seja na concorrência de “pseudojornalistas digitais” que tentam enganar o público.

O Reuters Institute divulgou em janeiro um detalhado estudo sobre as perspectivas para esse ano sobre jornalismo, mídia e tecnologia. O documento reconhece esses desafios, destacando que a maioria do conteúdo na Internet será produzido por IA já em 2026. Segundo os pesquisadores, isso exige que jornalistas e empresas noticiosas repensem seu papel e propósito urgentemente.

 

“Jornalistas sintéticos”

Essas empresas já observam queda na sua audiência vinda de redes sociais, que passaram a privilegiar criadores no estilo TikTok ao invés de jornalismo, pois isso lhes favorece. O desafio do jornalismo aumenta com o crescimento das “Experiências Generativas de Busca”, um recurso de buscadores como Google e Bing, em que a IA generativa redige parágrafos que explicam brevemente o que o usuário procura. Com isso, ele não precisa mais visitar as páginas de onde as informações foram tiradas.

Em outras palavras, os veículos de comunicação alimentam essas plataformas e não ganham nem mesmo a visita do usuário em troca. É quase como se cada um de nós agora tivesse um “jornalista sintético” a nossa disposição para nos explicar qualquer assunto.

Parece ótimo, mas isso embute um risco enorme: esses parágrafos podem misturar alegremente informações jornalísticas de qualidade com fake news bizarras. Portanto, podem se converter em poderosas ferramentas de desinformação, além de achatar a audiência dos veículos de comunicação.

Pesquisadores acreditam que, nesse ano, plataformas de inteligência artificial também passem a produzir grandes volumes de desinformação, não mais dependendo de comando individuais, mas seguindo diretrizes mais amplas. Como a publicação é automática, isso pode inundar as redes sociais com informações falsas, que soterrariam o conteúdo jornalístico diante dos algoritmos. Além disso, países como China e até Venezuela já usam avatares ultrarrealistas que se passam por jornalistas humanos e despudoradamente leem notícias que lhes forem ordenadas.

O relatório do Reuters Institute indica que as empresas de comunicação pretendem reforçar o contato direto com seu público, em detrimento das plataformas digitais. Mas isso pode afastá-las ainda mais de sua audiência mais jovem e menos instruída, que se sente satisfeita com as notícias geradas por IA.

A inteligência artificial é uma ferramenta fabulosa e estamos em um caminho sem volta para sua adoção em todos os setores da economia, inclusive na comunicação. Apesar de todos esses desafios, ela também oferece muitos ganhos ao jornalismo, se bem usada.

O risco a que todos nós –e não apenas jornalistas– temos que estar atentos é a possibilidade de decisões básicas da sociedade civil, como em quem votar, sejam sequestradas por robôs sem ética. As empresas de comunicação não podem repetir com a IA o erro que cometeram ao desprezar o poder das redes sociais, quando ainda estavam começando. Precisam compreender e se apropriar dessa tecnologia, e ajudar toda a sociedade a fazer o mesmo.

Caso contrário, seremos cada vez mais cidadãos teleguiados.

 

Para Salvador Dalí, “você tem que criar a confusão sistematicamente; isso liberta a criatividade” - Foto: Allan Warren/Creative Commons

Não “terceirize” sua criatividade para as máquinas!

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Quando o ChatGPT foi lançado, em 30 de novembro de 2022, muita gente disse que, com ele, as pessoas começariam a ficar “intelectualmente preguiçosas”, pois entregariam à inteligência artificial até tarefas que poderiam fazer sem dificuldade. De lá para cá, observamos mesmo muitos casos assim, inclusive com resultados desastrosos. Mas o que também tenho observado é algo mais grave, ainda que mais sutil: indivíduos “terceirizando” a sua criatividade para as máquinas.

Quando fazemos um desenho, tiramos uma foto, compomos uma música ou escrevemos um texto, que pode ser um singelo post para redes sociais, exercitamos habilidades e ativamos conexões neurológicas essenciais para o nosso desenvolvimento. Ao entregar essas atividades à máquina, essas pessoas não percebem o risco que correm por realizarem menos essas ações.

Há um outro aspecto que não pode ser ignorado: a nossa criatividade nos define como seres humanos e como indivíduos. Por isso, adolescentes exercitam intensamente sua criatividade para encontrar seu lugar no mundo e definir seus grupos sociais.

A inteligência artificial generativa é uma ferramenta fabulosa que está apenas dando seus passos iniciais. Por mais que melhore no futuro breve (e melhorará exponencialmente), suas produções resultam do que essas plataformas aprendem de uma base gigantesca que representa a média do que a humanidade sabe.

Ao entregarmos aos robôs não apenas nossas tarefas, mas também nossa criatividade, ameaçamos nossa identidade e a nossa humanidade. Esse é um ótimo exemplo de como usar muito mal uma boa tecnologia. E infelizmente as pessoas não estão percebendo isso.


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Assim como nossa carga genética, algo que nos diferencia dos outros indivíduos são nossas ideias. Apesar de fazermos isso naturalmente, ter uma ideia original é um processo complexo, que combina tudo que aprendemos em nossa vida com os estímulos que estivermos recebendo no momento. Além disso, ela é moldada por nossos valores, que são alinhados com os grupos sociais a que pertencemos. E nossa subjetividade ainda refina tudo isso.

Mesmo a mais fabulosa inteligência artificial possui apenas a primeira dessas etapas para suas produções, que é o que aprendeu de sua enorme base de informações coletadas das mais diferentes fontes. É por isso que a qualidade do que produz depende implicitamente da qualidade dessas fontes.

Alguns argumentam que a inteligência artificial também pode desenvolver valores a partir de sua programação, dos dados que consome e da própria interação com os usuários. De fato, um dos maiores problemas dessa tecnologia são os vieses que acaba desenvolvendo, o que piora suas entregas.

Com valores, a máquina se aproxima mais do processo criativo humano. Mas a inteligência artificial ainda não pode ser chamada de criativa, justamente pela etapa final, conduzida pela nossa subjetividade. Os padrões que aprendemos em nossa história de vida única nos permitem ir além de simples deduções lógicas no processo criativo. Para as máquinas, por outro lado, esses mesmos padrões tornam-se limitadores.

Gosto de pensar que o processo criativo é algo que nos conecta com algo sublime, alguns diriam com algo divino. Quando escrevo, por exemplo, um artigo como esse, combino grande quantidade de informações que coletei para essa tarefa com o que aprendi ao longo da minha vida. Mas a fagulha criativa que faz com que isso não seja uma composição burocrática e chata (assim espero) só acontece ao me abrir intensamente para minha sensibilidade.

Jamais entregaria isso a uma máquina, pois isso me define e me dá grande prazer!

 

Nós nos tornaremos máquinas?

Em seu livro “Tecnologia Versus Humanidade” (The Futures Agency, 2017), Gerd Leonhard questiona, anos antes do ChatGPT vir ao sol, como devemos abraçar a tecnologia sem nos tornarmos parte dela. Para o futurólogo alemão, precisamos definir quais valores morais devemos defender, antes que o ser humano altere o seu próprio significado pela interação com as máquinas.

Essas não são palavras vazias. Basta olhar nosso passado recente para ver como a nossa interação incrivelmente intensa com a tecnologia digital nos transformou nos últimos anos, a começar pela polarização irracional que fraturou a sociedade.

O mais terrível disso tudo é que as ideias que nos levaram a isso não são nossas, e sim de grupos que se beneficiam desse caos. Eles souberam manipular os algoritmos das redes sociais para disseminar suas visões, não de maneira óbvia e explícita, mas distribuindo elementos aparentemente não-relacionados (mas cuidadosamente escolhidos) para que as pessoas concluíssem coisas que interessavam a esses poderosos. E uma vez que essa conclusão acontece, fica muito difícil retirar essa ideia da cabeça do indivíduo, pois ele pensa que ela é genuinamente dele.

Se as redes sociais se prestam até hoje a distorcer o processo de nascimento de ideias, a inteligência artificial pode agravar esse quadro na etapa seguinte, que é a nutrição dessas mesmas ideias. Como uma plantinha, elas precisam ser regadas para que cresçam com força.

Em um artigo publicado na semana passada, a professora da PUC-SP Lucia Santaella, autoridade global em semiótica, argumenta que o nosso uso da inteligência artificial generativa criou um novo tipo de leitor, que ela batizou de “leitor iterativo”. Afinal, não lemos apenas palavras: lemos imagens, gráficos, cores, símbolos e a própria natureza.

Com a IA generativa, entramos em um processo cognitivo inédito pelas conversas com essas plataformas. Segundo Santaella, o processo iterativo avança por refinamentos sucessivos, e os chatbots respondem tanto pelo que sabem, quanto pelos estímulos que recebem. Dessa forma, quanto mais iterativo for o usuário sobre o que deseja, melhores serão as respostas.

Isso reforça a minha proposta original de que não podemos “terceirizar” nossa criatividade para a inteligência artificial. Até mesmo a qualidade do que ela nos entrega depende do nível de como nos relacionamos com ela.

Temos que nos apropriar das incríveis possibilidades da inteligência artificial, uma ferramenta que provavelmente potencializará pessoas e empresas que se destacarão nos próximos anos. Mas não podemos abandonar nossa criatividade nesse processo. Pelo contrário: aqueles que mais se beneficiarão das máquinas são justamente os que maximizarem a sua humanidade.

 

Ilustração: Creative Commons

Esse será de novo o ano da inteligência artificial, mas de uma forma diferente

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Quando 2022 começou, o mundo da tecnologia só falava de metaverso, grande promessa incensada por Mark Zuckerberg, que até trocou o nome de sua empresa de Facebook para Meta. Mas, passados 12 meses, nada verdadeiramente útil aconteceu em torno dele. Já 2023 começou com a inteligência artificial ocupando os grandes debates tecnológicos, e, ao final do ano, ela superou todas as expectativas. Agora, que estamos começando 2024, ressurge a pergunta: esse será o ano do que, no cenário tecnológico?

Conversei com diferentes especialistas e executivos e a resposta passa novamente pela inteligência artificial. Mas nada será como era antes! O que aconteceu em 2023 e deixou o mundo de queixo caído ficará para trás como iniciativas embrionárias, quase protótipos. Os entrevistados foram unânimes em afirmar que o ano que passou foi de aprendizado e que agora, em 2024, o mundo deve começar a ver a inteligência artificial movendo produtos realmente profissionais.

Outras mudanças em curso se consolidarão a reboque disso. O mercado de trabalho continuará sendo impactado, com oportunidades para profissionais mais atualizados e ameaças para quem permanece em tarefas repetitivas. Além disso, a liderança de TI ocupará cada vez mais o espaço de decisão de negócios, e questões éticas do uso da tecnologia ganharão destaque no cotidiano empresarial.

Esse será o ano em que a inteligência artificial se tornará verdadeiramente produtiva!


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“Quando eu olho 2024, continua sendo um ano de inteligência artificial, mas será um ano de muito mais inteligência de transformar o caso de uso em realidade”, afirma Thiago Viola, diretor de Inteligência Artificial e Dados da IBM Brasil. “As empresas vão começar a amadurecer, para garantir que as soluções funcionarão, que não vão ‘alucinar’, que não vão dar nenhum problema.”

“Em 2023, a gente teve alguns ‘brinquedinhos’, não eram ainda algo que se pudesse chamar de uma aplicação corporativa”, explica Cassio Dreyfuss, vice-presidente de análise e pesquisa do Gartner Brasil. “Em 2024, isso vai decolar e você tem que estar preparado para isso!”

Essa também é a percepção de Marcelo Ciasca, CEO da Stefanini. Para ele, “apesar de em 2023 a inteligência artificial ter sido a pauta principal em termos de tecnologia, ninguém sabia exatamente ainda como aplicá-la efetivamente.”

“’Automação’ é uma palavra importante para o ano”, sugere Gilson Magalhães, presidente da Red Hat Brasil. Apesar do deslumbramento que a IA provocou em 2023, as empresas passam a entender que ela é uma ferramenta para processos mais robustos e poderosos. “A automação vai entrar mais nas casas, melhorar nossa percepção de temas pessoais, mas a gente vai ver também automação industrial, no campo, fabril, a automação entrando como uma grande meta”, acrescenta.

A OpenAI, criadora do afamado ChatGPT, deu um passo importante nessa direção no final de 2023, ao liberar a possibilidade de seus usuários pagantes criarem os seus próprios assistentes virtuais, especializados em um tema e alimentados com dados próprios. Esse é o prelúdio de inteligências artificiais capazes de realizar tarefas mais amplas a partir de comandos complexos, conectando-se a diferentes serviços e até tomando decisões em nome do usuário.

A primeira vez que vi isso foi ainda em novembro de 2019, em uma demonstração da Microsoft, Adobe, Accenture e Avanade. Em uma época que o ChatGPT parecia uma miragem, um sistema controlado por voz em frases muito simples comprava passagens aéreas, reservava hotéis e até pedia comida para o usuário. Mas o que mais me chamou a atenção foi que ele tomava decisões comerciais com base no que sabia do usuário, sem o consultar, como por exemplo, escolher em qual hotel faria a reserva e até pedir um sanduíche sem queijo, pois a pessoa era intolerante à lactose.

Perguntei na época qual a garantia que eu, como usuário, teria que essas decisões seriam as melhores para mim, e não para as empresas envolvidas. E isso toca em um ponto que deve nortear os sistemas com IA nos próximos anos: a ética! Questionei também quando poderíamos ter algo como aquilo disponível.

A resposta: por volta de 2024!

 

Máquinas éticas

“Haverá um encapsulado de gestão e governança muito mais forte do que vimos em 2023”, afirma Viola. Segundo o executivo, “será um ano que vai ter que realizar se preocupando com fatores éticos, de governança, de proteção da IA como um todo”.

Esse debate ganhou força em 2023 e deve se cristalizar em 2024. Não se quer uma tecnologia incrível que, para ser assim, passe por cima da privacidade ou ameace direitos e até o bem-estar das pessoas. A regulamentação da IA é um grande desafio, pois ela não deve coibir seu desenvolvimento, mas precisa encontrar maneiras de responsabilizar empresas e usuários por maus usos e descuidos na sua criação.

Esse cenário abre ótimas oportunidades a empresas e profissionais. “TI se transformou no grande divisor de águas de diferenciação das empresas”, explica Magalhães. “Se você tem uma boa TI, você se diferencia”, conclui.

Em uma vida cada vez mais digitalizada e dependente da IA para decisões pessoais e empresariais, essas equipes ficam ainda mais importantes. “A TI muda de papel: ao invés de receber requisitos para gerar soluções, vai fornecer, de uma maneira consultiva, recursos nas áreas de clientes”, explica Dreyfuss. Ciasca corrobora essa ideia: “isso não vai eliminar o emprego das pessoas, mas vai redirecionar muitos para que as pessoas tenham a capacidade de fazer isso de forma adequada.”

Não há dúvida de que será um ano estimulante e de desenvolvimentos exponenciais. Precisamos apenas nos manter atentos porque todas essas novidades galopantes, que tanto nos impressionam, acabam sendo difíceis de assimilar pela nossa humanidade (o que não deixa de ser emblemático). Não podemos achar que o fim justifica os meios e partir em uma corrida irresponsável, mas tampouco podemos ficar travados por temores de máquinas que nos dominem (ou coisas piores).

Cada vez mais, a inteligência artificial será nossa parceira pessoal e de negócios, e isso ficará mais consolidado e profissional em 2024. É hora de nos apropriarmos de todo esse poder, para nos beneficiarmos adequadamente do que bate a nossa porta!

 

Geoffrey Hinton, o “padrinho da IA”, que se demitiu do Google em maio para poder criticar livremente os rumos da IA - Foto: reprodução

Entusiastas da IA querem acelerar sem parar, mas isso pode fazê-la derrapar

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Nesse ano, a inteligência artificial deixou de ser um interesse da elite tecnológica e conquistou o cidadão comum, virando tema até de conversas de bar. Muita gente agora a usa intensamente, criando tanto coisas incríveis, quanto enormes bobagens. Isso gerou uma excitação em torno da tecnologia, com grupos que propõem que seja desenvolvida sem nenhuma restrição ou controle, acelerando o máximo que se puder.

Isso pode parecer emocionante, mas esconde um tipo de deslumbramento quase religioso que de vez em quando brota no Vale do Silício, a meca das big techs, nos EUA. Um movimento especificamente vem fazendo bastante barulho com essa ideia. Batizado de “Aceleracionismo Efetivo” (ou “e/acc”, como se autodenominam), ele defende que a inteligência artificial e outras tecnologias emergentes possam avançar o mais rapidamente possível, sem restrições ou regulamentações.

Mas quem acelera demais em qualquer coisa pode acabar saindo da pista!

Eles desprezam pessoas que chamam de “decels” e “doomers”, aquelas preocupadas com riscos de segurança vindos de uma IA muito poderosa ou reguladores que querem desacelerar seu desenvolvimento. Entre eles, está Geoffrey Hinton, conhecido como o “padrinho da IA”, que no dia 1º de maio se demitiu do Google, para poder criticar livremente os caminhos que essa tecnologia está tomando e a disputa sem limites entre as big techs, o que poderia, segundo ele, criar “algo realmente perigoso”.

Como de costume, radicalismos de qualquer lado tendem a dar muito errado. A verdade costuma estar em algum ponto no meio de caminho, por isso todos precisam ser ouvidos. Então, no caso da IA, ela deve ser regulada ou seu desenvolvimento deve ser liberado de uma forma quase anárquica?


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O Aceleracionismo Efetivo surgiu nas redes sociais no ano passado, como uma resposta a outro movimento: o “Altruísmo Eficaz”, que se tornou uma força importante no mundo da IA. Esse último começou promovendo filantropia otimizada a partir de dados, mas nos últimos anos tem se preocupado com a segurança da sociedade, propondo a ideia de que uma IA poderosa demais poderia destruir a humanidade.

Já o aceleracionistas efetivos acham que o melhor é sair da frente e deixar a inteligência artificial crescer livre e descontroladamente, pois seus benefícios superariam muito seus eventuais riscos, por isso jamais deveria ser vista como uma ameaça. Para eles, as plataformas devem ser desenvolvidas com software open source, livre do controle das grandes empresas.

Em um manifesto publicado no ano passado, os aceleracionistas efetivos descreveram seus objetivos como uma forma de “inaugurar a próxima evolução da consciência, criando formas de vida impensáveis da próxima geração”. De certa forma, eles até aceitam a ideia de que uma “super IA” poderia ameaçar a raça humana, mas a defendem assim mesmo, pois seria “o próximo passo da evolução”.

Para muita gente, como Hinton, isso já é demais! Em entrevista ao New York Times na época em que deixou o Google, o pioneiro da IA disse que se arrependia de ter contribuído para seu avanço. “Quando você vê algo que é tecnicamente atraente, você vai em frente e faz”, justificando seu papel nessas pesquisas. Agora ele teria percebido que essa visão era muito inconsequente.

Portanto é um debate em torno da ética do desenvolvimento tecnológico e das suas consequências. Conversei na época sobre aquela entrevista de Hinton com Lucia Santaella, professora-titular da PUC-SP. E para ela, “a ética da inteligência artificial tem que funcionar mais ou menos como a da biologia, tem que ter uma trava! Se não, os filmes de ficção científica vão acabar se realizando.”

 

A dificuldade de se regular

Além da questão ética, outro ponto que contrapõe aceleracionistas efetivos e altruístas eficazes é a necessidade de se regular a inteligência artificial. Mas verdade seja dita, essa tecnologia está dando um banho nos legisladores. Isso porque ela evolui muito mais rapidamente do que eles são capazes de propor leis.

Podemos pegar, como exemplo, a União Europeia, que legisla de forma rápida e eficiente temas ligados à tecnologia. Em abril de 2021, ela apresentou um projeto de 125 páginas como “referência” na regulação da IA. Fruto de três anos de debates com especialistas de diferentes setores associados ao tema, Margrethe Vestager, chefe da política digital do bloco, disse que o documento estava “preparado para o futuro”.

Parecia ser isso mesmo, até que, em novembro do ano passado, a OpenAI lançou o ChatGPT e criou uma corrida frenética para se incluir a inteligência artificial generativa em todo tipo de sistema. E isso nem era citado na proposta europeia!

O processo de criação de uma nova lei de qualidade é naturalmente lento, pois exige muita pesquisa e debate. Mas se as coisas acontecerem como propõem os e/accs, os legisladores estarão sempre muito atrás dos desenvolvedores. Os primeiros não conseguem sequer entender a tempo o que os segundos estão criando e, justiça seja feita, mesmo esses não têm total certeza do que fazem.

Enquanto isso, Microsoft, Google, Meta, OpenAI e outras gigantes da tecnologia correm soltas para criar sistemas que lhes concederão muito poder e dinheiro. A verdade é que quem dominar a IA dominará o mundo nos próximos anos.

Os aceleracionistas efetivos afirmam que eles são o antídoto contra o pessimismo dos que querem regular a inteligência artificial, algo que diminuiria o ritmo da inovação, o que, para eles, seria o equivalente a um pecado. Mas quanto disso é real e quanto é apenas uma “atitude de manada” inconsequente?

Sou favorável que a IA se desenvolva ainda mais. Porém, se nenhum limite for imposto, ainda que de responsabilização quando algo der errado, as big techs farão o mesmo que fizeram com as redes sociais. E vejam onde isso nos levou!

Não podemos perder o foco em nossa humanidade, que nos permite distinguir verdade de mentira, certo de errado! Só assim continuaremos desenvolvendo novas e incríveis tecnologias, sem ameaçar a sociedade.

Afinal, a ética consciente é o que nos diferencia dos animais, e agora, pelo jeito, também das máquinas!


Antes de encerrar, gostaria de fazer uma nota pessoal. Ainda que discorde filosoficamente dos aceleracionistas efetivos, acho o debate válido, se feito de forma construtiva. Pessoas com pontos de vista diferentes encontram juntas boas soluções que talvez não conseguiriam sozinhas, justamente por terem visões parciais de um tema. Para isso, necessitamos de conhecimento e de vontade de fazer o bem. Esse é um dos motivos para eu iniciar em 2024 meu doutorado na PUC-SP, sob orientação de Lucia Santaella, para pesquisar o impacto da inteligência artificial na “guerra” pelo que as pessoas entendem como “verdade”, algo determinante em suas vidas.

 

Um dos problemas derivados da queda na confiança na imprensa é a crescente agressão a jornalistas – Foto: reprodução

As razões para mordermos a mão que nos alimenta

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Um dos sinais da falência de uma sociedade é quando as pessoas deixam de acreditar nas instituições democráticas. Quando não se confia em nada ou em ninguém, perde-se a capacidade essencial de se buscar o bem comum com o outro. Por isso, pesquisas recentes do prestigioso instituto Pew Research Center, que demonstram a baixa confiança da população na imprensa, me impactam, mas não me surpreendem. E isso é um sintoma que deveria preocupar todo mundo.

Segundo os levantamentos, apenas 38% dos americanos adultos se informam “o tempo todo ou quase o tempo todo”. Além disso, só 15% acreditam “muito” e 46% “um pouco” nos veículos jornalísticos nacionais. Em compensação, 14% buscam notícias no TikTok (32% entre os que têm de 18 a 29 anos), que ainda fica atrás do Instagram (16%), do YouTube (26%) e do Facebook (30%).

O mesmo instituto já havia indicado que o aumento de informações nas redes sociais é inversamente proporcional a sua qualidade, e que o público que as utiliza como principal fonte de informação é menos engajado, informado e capaz de demonstrar bom discernimento, se comparado a quem se informa pela imprensa.

Pelas minhas observações, arriscaria dizer que temos números semelhantes no Brasil.

Todos perdem muito com esse divórcio entre a imprensa e seu público, e cada um tem seu papel e razões. Mas isso precisa ser revertido! As bolhas de pensamento único, que nos maltratam diariamente, impedem que vivamos em uma sociedade com cidadãos mais conscientes e capazes de se desenvolver.


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Há mau jornalismo hoje, como sempre houve, porém, há mais bom jornalismo que mau na mídia profissional. Entretanto parte da população aprendeu a ver só o que a desagrada, generalizando como se toda a imprensa fosse pouco confiável.

Vale notar que, até o início do século, não se questionava a importância do jornalismo para o desenvolvimento pessoal. Uma boa informação era um diferencial que resultava em melhores empregos e outras oportunidades na vida. Ler jornais era sinônimo de pertencer à elite intelectual, mesmo que não fosse da elite econômica. E ser jornalista era uma das profissões mais desejadas pelos jovens.

A grande diferença é que, com a ascensão das redes sociais, os veículos de comunicação deixaram de ser os únicos capazes de trazer notícias. Todos nós nos tornamos mídia e somos capazes de produzir enormes quantidades de informação (o que é muito diferente de notícia). Diante disso, muitos grupos de poder descobriram uma nova maneira de dominar as massas, mas, para isso, precisavam usar o meio digital para desacreditar a imprensa, que teima em lhes fiscalizar.

O combate à mídia pelos poderosos não é algo novo: apenas ganhou escala com o meio digital. Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, foi essencial para seu poder, ao criar uma máquina de silenciar a imprensa e vozes dissonantes. Décadas depois, o venezuelano Hugo Chávez contribuiu com o processo, criando a ideia de que, se a mídia fosse contra ele, seria “contra o povo”. E demonstrando que o combate à imprensa não segue ideologia, Donald Trump se notabilizou por ignorar solenemente a verdade e usar o meio digital para impor seus interesses como fatos.

O Brasil também deu suas contribuições. Lula, desde seu primeiro mandato, desqualifica a imprensa e tenta lhe impor seu “controle social”. Jair Bolsonaro, por sua vez, instituiu ataques explícitos a jornais e jornalistas, especialmente mulheres, incendiando a população contra a mídia.

Como resultado, as pessoas só querem ver conteúdos que afaguem seu ego e concordem com seus pensamentos. E essa é uma perigosa zona de conforto.

 

Desagradando seu público

Mas o jornalismo não é feito para agradar. Na verdade, se estiver desagradando alguém, deve estar fazendo um bom trabalho.

Todo governo gostaria de ter uma imprensa dócil. Mas, se fizer isso, não é jornalismo: é relações públicas. Ela deve informar e formar o cidadão e protegê-lo dos interesses de grupos políticos, econômicos ou ideológicos, fiscalizando o poder.

Como disse certa vez o grande cartunista e jornalista Millôr Fernandes, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados.”

Às vezes, o jornalismo deve desagradar até seu próprio público, para forçá-lo a sair daquela zona de conforto perversa. Mas quando tudo vira “pão e circo”, isso coloca os veículos em uma situação delicada: como fazer isso se as pessoas –cada vez mais intransigentes– já estão “com um pé para fora” do jornalismo?

Os veículos têm sua culpa, ao se desconectar dos anseios e da linguagem do público. A distribuição e até seu modelo de negócios também estão ultrapassados. Diante disso, não é de se estranhar que tão pouca gente confie no jornalismo e menos ainda esteja disposto a pagar por ele. Os veículos de comunicação e seu público não conseguem mais ler os sinais uns dos outros.

Permitam-me aqui uma analogia abusada: um animal de estimação amoroso pode morder quem o alimenta como forma extrema de comunicar seu descontentamento. Um dos principais motivos é o animal não entender os sinais do tutor. Nesse caso, fica difícil saber quem é o cachorro e quem é o tutor, pois público e imprensa dependem um do outro, e nenhum está conseguindo entender os sinais alheios.

Mas em tempos tão sombrios e confusos, ambos precisam reaprender isso. Como qualquer atividade humana, o jornalismo é imperfeito, e essa atual situação faz com que sua margem de erro esteja reduzidíssima. Ele precisa ouvir novamente as demandas e falar a linguagem do público.

As pessoas, por sua vez, precisam colaborar, reconhecendo que, sem jornalismo profissional, perderiam elementos essenciais no seu cotidiano. Não saberiam, por exemplo, dos escândalos do governo atual, do anterior e de qualquer outro, ou as diferentes perspectivas sobre a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e o Hamas. Não teriam se vacinado contra a Covid-19 (e muitíssimo mais gente teria morrido), e não conheceriam as potencialidades da inteligência artificial ou os riscos das redes sociais. Não saberiam dos bastidores dos filmes importantes, e nem compreenderiam a crise da Seleção Brasileira. Tudo isso se fala nas redes sociais, mas é o jornalismo que descobre, noticia e explica.

Não há atalho: a imprensa precisa se reconectar com o seu público e vice-versa. É preciso reconquistar a confiança perdida! Isso não se faz com “caça-cliques”, mas com seriedade e transparência.

O jornalismo não pode se render à lógica perversa das redes sociais, que disseminam ódio, intransigência e o pensamento único. A confiança é uma via de mão dupla e benéfica para toda sociedade. Mas ela só existe quando todos estiverem dispostos a falar e ouvir civilizadamente, sem morder a mão um do outro.

 

Alunos precisam de 20 minutos para se reconectar ao estudo depois de usar smartphones para outras coisas - Foto: RDNE/Creative Commons

Pais e educadores devem “fazer as pazes com o não” para combater excesso de telas

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Ganha força a tese de que crianças e adolescentes fazem um uso excessivo de telas na escola e em casa, e que isso provoca grandes prejuízos ao seu desenvolvimento. No dia 26 de julho, um relatório da Unesco (a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) destacou pela primeira vez o problema e como um quarto dos países já faz alguma restrição de celulares em sala de aula. Mas ainda se fala pouco sobre como professores sem autoridade e até coibidos por pais de alunos podem ser levados a contribuir com essa situação.

Isso aparece no recém-lançado estudo “Educando na era digital”, da consultoria educacional OPEE. Ele indica que 97% dos educadores brasileiros concordam que há “uso excessivo de telas sem acompanhamento”, mas paradoxalmente apenas 9,7% deles acham que elas devem ser proibidas na sala de aula.

O exagero digital dos jovens vai além da escola. Outra pesquisa, a TIC Kids Online Brasil, divulgada no dia 25 de outubro pelo Cetic.br (órgão de pesquisa ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil), indica que 95% dos brasileiros entre 9 e 17 anos estão online, e que isso acontece cada vez mais cedo: no ano passado, 24% tiveram seu primeiro acesso até os seis anos de idade; em 2015, eram 11% nessa faixa etária.

Todos esses fatos estão interligados e se retroalimentam. Enquanto pais e educadores não resgatarem a consciência de sua autoridade para impor limites aos mais jovens, esse quadro tende a se agravar. É impensável negar o acesso à tecnologia digital no nosso mundo hiperconectado, mas é preciso ensinar crianças e adolescentes a usarem-na de maneira construtiva e responsável.


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“Muitos educadores nem podem dizer ‘não’, porque a escola está muito refém da ‘carteirada’, no caso da escola particular, e até da agressão ou da humilhação, na escola pública”, afirma Leo Fraiman, mestre em psicologia educacional e autor da metodologia OPEE. “O professor hoje é tido, por muitas famílias, como um funcionário, um empregado seu, e não mais como uma autoridade.”

Segundo o psicoterapeuta, existe uma esquizofrenia entre famílias e escolas. As primeiras exigem das segundas o ensino de limites, de valores, de humanidade. Mas quando surge algum limite, até em uma simples nota baixa, os pais reagem negativamente.

“Viemos de um modelo mais rígido, de onde muitos adultos saíram ressentidos, até machucados emocionalmente”, explica o pesquisador. “E hoje, como pais, é como se quisessem se vingar das suas próprias feridas, superprotegendo os filhos.”

As telas de crianças e adolescentes são subprodutos dessa cultura. Muitos pais argumentam que elas desenvolvem, nos mais jovens, necessárias habilidades digitais, o que não deixa de ser verdade, desde que feito com orientação. Entretanto, o que se observa é que principalmente o celular se tornou um “companheiro” que ocupa o tempo dos pequenos, uma “babá eletrônica” (posto que foi ocupado pela TV há 30 anos) que falsamente desobriga os pais de dar mais atenção aos filhos.

Isso se reflete na escola, com pais exigindo a possibilidade de falar com seus filhos a qualquer momento, mesmo nas horas em que estiverem em aula. Com o smartphone, os alunos acabam impactados pelas incontáveis notificações, além da sedução das redes sociais, destacadas pela Unesco como fortes fatores de distração. E os alunos podem levar até 20 minutos para se concentrar novamente no que estavam aprendendo depois de usarem o smartphone para atividades não-educacionais.

É importante que fique claro que ninguém está dizendo que os jovens não devem usar a tecnologia, e sim que façam isso de forma comedida e sob orientação de adultos. A Unesco aponta que o excesso e a falta de critérios podem levar ao surgimento de problemas de alimentação, sono, saúde mental e saúde ocular.

 

Cyberbullying e outras agressões digitais

Outro estudo do Cetic.br, o TIC Educação, divulgado em 25 de setembro, indica que um terço dos professores brasileiros disseram que seus alunos pediram ajuda após terem sofrido assédio ou agressões pelo meio digital, ou terem suas fotos publicadas sem consentimento. Em um ano, os casos de vazamento de fotos saltaram de 12% para 26% e os de cyberbullying passaram de 22% para 34% dos estudantes. Esses números estão em linha com as observações dos educadores ouvidos pela pesquisa da OPEE: 80,9% deles acreditam que o acesso às telas favorece o cyberbullying.

É muito bom observar que os alunos recorrem a seus professores para lidar com problemas gravíssimos criados ou agravados pelo meio digital. Isso demonstra uma relação de confiança diante de algumas das maiores agressões que eles podem sofrer. Entretanto os professores precisam ter autonomia para atuar como necessário, até mesmo limitando o uso das telas e das redes sociais. A escola ganha também um novo papel, que é o de educar os pais no convívio digital, uma habilidade que possivelmente eles mesmos não dominem.

Fraiman alerta que estamos “contraindo uma dívida enorme para as próximas gerações” ao não as educar para um uso construtivo do meio digital, abrindo brechas para o surgimento de todos esses problemas educacionais e emocionais. E provoca: “diante de um mundo que vai ser cada vez mais competitivo, exigente, caro, acelerado, complexo, qual é a chance de uma criança, de um adolescente realmente se tornar ativo e inserido na sociedade e no mercado de trabalho, se ele for uma pessoa rasa, individualista, narcisista, acomodada e amedrontada?”

Isso vem de quebras de paradigmas sociais que a tecnologia continuamente nos impõe. As potencialidades oferecidas são fabulosas e surgem em escala exponencial, assim como problemas da nossa inadequação a tantas novidades. Começou com o surgimento da Internet comercial, foi seguida pela explosão das redes sociais e posteriormente dos smartphones. Agora a inteligência artificial é a bola da vez. É muito difícil absorver adequadamente tanta mudança!

A Unesco defende o uso de telas nas escolas, desde que claramente destinadas ao apoio ao ensino, e não como distração dos alunos. Além disso, nunca podem substituir o papel dos professores. Esses, por sua vez, precisam ter sua autonomia e autoridade resgatadas por boas políticas educacionais e pelas próprias instituições de ensino. Quanto às famílias, cabe a elas trabalharem em parceria com as escolas para a criação de limites a seus filhos, respeitando e valorizando os educadores.

A escola é um espaço de aquisição de conhecimento, mas também de respeito a diferenças e de fortalecimento de uma cidadania inclusiva, com um uso inteligente de todos os recursos disponíveis. Isso só acontecerá com a colaboração de todos os envolvidos, e nossos jovens precisam desesperadamente disso.

 

Metrô de São Paulo lotado após fracasso de “big techs” que revolucionariam a mobilidade urbana - Foto: Wilfredor / Creative Commons

Como as big techs querem substituir instituições da sociedade por tecnologia

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Todos nós usamos produtos do Google, da Meta, da Apple e de outras “big techs”. De fato, eles facilitam enormemente a nossa vida e ainda são rotulados como “grátis”.

Sabemos que não há nada de graça nisso. A explicação tradicional é que pagamos por eles com nossos dados, que permitem que essas empresas ganhem dinheiro, por exemplo, nos entregando anúncios hiperpersonalizados. É o chamado “capitalismo de vigilância”.

Mas a ascensão da inteligência artificial e a guerra aberta que as “big techs” travam contra qualquer forma de limitação de suas atividades, como estamos vendo no Brasil no embate contra o “PL das Fake News”, revela que esse controle que elas têm sobre nós é muito mais complexo, a ponto de que muita gente as defende nesses casos. E a tentativa de regulação da inteligência artificial fará nosso fracasso em impor limites razoáveis às redes sociais parecer algo pífio.

O que essas empresas realmente desejam é uma liberdade não-regulada para, entre outras coisas, substituir instituições da sociedade em áreas como saúde, educação, transporte ou segurança por soluções tecnológicas que, segundo elas, superariam a “ineficiência” do que temos hoje. Ao ocupar um espaço tradicionalmente sob cuidados do Estado, alcançariam um poder inimaginável, muito maior que o atual.

Eles só não dizem que tudo nessa vida tem um custo. Esse não será pago com publicidade em nossos celulares. Então “como essa conta fecha”?


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O avanço da inteligência artificial é inevitável e muito bem-vindo: ela tem o potencial de oferecer à sociedade benefícios até então inimagináveis. Mas isso significará que entregaremos muitas de nossas escolhas às máquinas, que decidirão o que elas acreditam ser o melhor para cada um de nós.

Em uma sociedade já encharcada de algoritmos, eles passam a controlar muito de nossa vida, de maneiras que nem percebemos. Nós não temos a menor ideia de quais são suas regras que decidem cada vez mais por nós. Diante de tanto poder, a falta de transparência das “big techs” e de explicabilidade de seus produtos se torna inaceitável e perigoso para nossas vidas e para a democracia. É justamente isso que essas empresas lutam para manter, pois, se soubermos detalhadamente o funcionamento de seus algoritmos, elas perdem o poder que têm sobre os cidadãos.

Tudo isso vale para os algoritmos atuais, bem conhecidos e controlados pelas “big techs”. A inteligência artificial torna esse debate ainda mais importante, pois nem seus criadores entendem completamente as novas estratégias criadas pelas máquinas para solucionar problemas.

Se essas companhias lograrem criar a chamada “inteligência artificial geral”, aquela que não se limita mais a tarefas específicas e passa a se comportar de maneira semelhante à mente humana, tomando decisões sobre qualquer assunto, a situação pode ficar realmente dramática.

Imagine um sistema como esse que tenha assumido, com nosso consentimento, decisões críticas sobre a saúde pública. Em nome de deixar todo o sistema mais “eficiente”, ele pode passar a privilegiar cirurgias com mais chance de sucesso ou lucrativas, em detrimento das mais difíceis ou com menos ganhos. Mas todos merecem a chance de serem tratados, mesmo quem tem baixa possibilidade de sucesso. Essa é a visão humana de um médico, que uma máquina que acha que o fim justifica os meios pode ignorar.

Agora multiplique esses riscos acrescentando, na equação, segurança pública, educação e até economia de um país.

 

Nem sempre dá certo

O discurso do Vale do Silício enaltece o inegável poder transformador da tecnologia. É praticamente impossível viver hoje sem smartphones, buscadores ou redes sociais. Mas seus gurus adoram perpetuar as histórias de sucesso, enquanto ignoram os fracassos. E eles muitas vezes acontecem quando se tenta substituir uma instituição social por uma tecnologia.

Podemos pensar, como exemplo, no caso da Uber. Conceitualmente acho sua proposta muito interessante, mas ela parece “estar fazendo água”, particularmente no Brasil. Vocês devem se lembrar como a empresa chegou prometendo revolucionar a mobilidade urbana, como um substituto vantajoso ao transporte público, com suas corridas baratas e a possibilidade de se ganhar dinheiro dirigindo.

Foi um sucesso instantâneo: muita gente chegou a vender seu carro! Mas, para aquilo ser possível, a empresa queimava milhões de dólares em subsídios. Quando os investidores se cansaram de perder dinheiro e exigiram lucros, o modelo ruiu, com a consequente queda enorme na qualidade do serviço, que agora sentimos.

Porém o mais educativo desse exemplo é mostrar que nunca se propôs resolver o verdadeiro problema social, no caso as deficiências no transporte público. Substituía-se uma “gestão governamental ineficiente” por uma “solução tecnológica mágica”, cujo verdadeiro objetivo era sedimentar a dominância da empresa em seu setor. Quando a realidade bateu à porta, ficamos sem nada!

O grande desafio da nossa geração é tomar consciência de que somos cada vez mais dependentes da tecnologia e das empresas que as criam. Elas têm suas próprias agendas e narrativas de como estão melhorando e até “salvando” o mundo com seus produtos. Mas às vezes a sua necessidade de lucrar chega antes de salvarem qualquer coisa.

Não nos enganemos: como qualquer outra empresa, seu objetivo real é aumentar seus lucros, e, a princípio, não há nada de errado nisso. Mas esse objetivo não pode ser atingido às custas do desmantelamento das instituições da sociedade e dos mecanismos de proteção dos interesses da população.

Não estou propondo a interrupção do avanço tecnológico: ele é essencial para melhorarmos nossas vidas. Mas precisamos parar de acreditar candidamente que a tecnologia resolverá todos nossos problemas e melhorará magicamente a sociedade. Temos que ter consciência de como isso será feito e qual será o verdadeiro o custo social que pagaremos.

Tudo isso deve acontecer preservando os legítimos interesses das pessoas, o que muitas vezes conflitam com os dessas empresas. É por essas e outras que elas precisam ser reguladas. Elas não podem ser mais poderosas que os governos eleitos no mundo todo, nem mesmo substituir suas instituições.

 

Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura e jornalista, que chamou o jornalismo “o melhor ofício do mundo” - Foto: reprodução

Por que a imprensa e a sua liberdade deveriam interessar a você

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Na quarta (7), comemora-se o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. O tema está “na boca do povo”, junto com a afamada liberdade de expressão. Ainda assim, pouca gente sabe o que é de fato ou para que serve, especialmente porque, de uns anos para cá, parte da população perdeu sua fé no jornalismo. Isso traz um enorme risco à sociedade! Por isso, aproveito a data para tentar explicar por que um bom relacionamento entre a imprensa e seu público é essencial para todos.

Em primeiro lugar, é preciso definir para quem o jornalista trabalha. Não é para nenhum governo, nem empresas, nem mesmo anunciantes: é para seu público! Ficar sem anunciantes pode quebrar um veículo, especialmente quem ainda adota um modelo de negócios “mais tradicional”. Entretanto, ficar sem público é a sentença de morte para qualquer veículo. Ele é a sua razão de existência!

Como pretendo demonstrar, uma imprensa livre, vigorosa e comprometida é condição para uma sociedade vibrante e próspera. Aí mora nosso problema! Parte dessa desconexão atual se deve a alguns profissionais e veículos de comunicação esquecerem para quem trabalham.

Isso me leva a outro tema que se popularizou recentemente em meio a muita desinformação: a busca pela objetividade. Diante da confusão que muitos colegas fazem em torno dela, seus detratores aproveitam para exigir algo que, se fosse possível alcançar daquela forma, seria um grande desserviço à população.


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De uns anos para cá, muitos colegas abraçaram a ideia de que, pela sua própria humanidade, é impossível ser totalmente isento e objetivo. Isso é verdade: todas a pessoas são movidas por paixões e, portanto, sempre teremos nossas preferências em qualquer tema. Mas, no jornalismo, isso não pode servir para afrouxar a busca da verdade incluindo pontos de vista conflitantes com os seus. Ao fazer isso, muitos jornalistas caem em uma militância, seja real ou apenas aparente.

Isso dá munição àqueles que se beneficiam com o enfraquecimento da imprensa, pois vivem da mentira e da desinformação. Eles propagam a ideia de que o jornalismo deveria se limitar a “contar os fatos”, deixando que as pessoas tirassem suas conclusões. Na verdade, só querem a liberdade para distorcer esses fatos brutos para criarem narrativas que lhes sejam favoráveis.

É nessa hora que o bom jornalismo brilha e protege a sociedade! Ele não pode se limitar a “contar os fatos”: ele precisa explicá-los, contextualizá-los, sempre norteado pelo interesse do público e pela “verdade possível”. A combalida objetividade é sua ferramenta! Não aquela utópica, que só existiria em uma máquina, mas a melhor imparcialidade dentro das limitações humanas e de esforços sinceros.

Isso cria uma armadilha. Na ânsia de apresentar todos os lados de um tema com igual peso, jornalistas podem ironicamente criar visões distorcidas da realidade, colocando, lado a lado, completos absurdos e fatos comprovados. A imprensa pode mencionar as bobagens se também explicar, de maneira equilibrada, porque aquilo não deve ser considerado. Não podem cair na arapuca da falsa equivalência!

Quando falha nessa tarefa, permite o florescimento de teorias da conspiração, que podem ser catastróficas para a humanidade. Um exemplo é a de que vacinas seriam ineficazes e até perigosas, que recebeu um espaço muito maior que o devido na imprensa em nome de “ouvir o outro lado”. Por isso, muita gente acredita nessa aberração, e alguns grupos políticos até se beneficiaram disso.

A pandemia de Covid-19 foi uma dolorosa lição. Um enorme contingente desinformado deixou de se vacinar e, por conta disso, morreu. A situação só não foi mais dramática porque, diante da tragédia em curso, a maioria dos jornalistas e veículos assumiu seu papel e informou corretamente a população para que se vacinasse.

 

Fazendo as perguntas certas

Podemos, nesse ponto, aprender algo com o afamado ChatGPT. Afinal, obtemos boas respostas dele se fizermos boas perguntas, e vice-versa.

Bons jornalistas são justamente treinados para fazer as perguntas certas. Por isso, o valor da reportagem precisa ser resgatado. Uma boa entrevista é uma ótima conversa; uma ótima entrevista é uma sedução em busca da verdade. Deve existir uma ânsia genuína de querer aprender algo, com a mente aberta.

Jornalistas são contadores de histórias da vida real. Isso não quer dizer que têm que agradar alguém, pois o mundo nem sempre é bonito. Mas uma verdade feia é melhor que uma mentira agradável! Costumo dizer que, se fossem contos de fadas, jornalistas os contariam como os Irmãos Grimm, e não como as adaptações fáceis da Disney.

Vivemos em um mundo de obviedades e mesmice. Elas nos embrutecem, eliminam nossas individualidades e nos transformam em massa de manobra. O jornalismo protege a sociedade ao romper esse ciclo, contando as “histórias por trás das histórias”. Como escreveu em 1851 o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), “importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê.”

Ao contrário do que muitos imaginam, não é um trabalho fácil de um bando “apenas contando o que viu e dando sua opinião”. Em 1996, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Nobel de Literatura e também jornalista, disse, sobre o jornalismo, que chamou de “o melhor ofício do mundo”, que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver apenas para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cujo trabalho se encerra a cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede um momento de paz até recomeçar com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Por isso, a liberdade de imprensa é um mecanismo celebrado em todas as democracias. Os jornalistas não são perfeitos (como ninguém é), mas são a última frente de resistência da sociedade contra os diferentes abusos de poder e, por isso, precisam ser protegidos.

Na verdade, precisamos ir além. Mais que “contar fatos”, esse trabalho deve ser encharcado de inteligência e de boa vontade, vibrando com as pessoas que formam o público. Elas, por sua vez, devem apoiar esses profissionais, em uma bem-vinda simbiose.

Fora disso, não há jornalismo: resta apenas a barbárie das redes sociais. E aí salve-se quem puder!

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse estar “um pouco assustado” com a inteligência artificial – Foto: Steve Jennings / Creative Commons

Como lidar com os algoritmos que se sobrepõem à verdade

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Três acontecimentos da semana passada, que provavelmente passaram despercebidos da maioria da população, envolvem tecnologias de enorme impacto em nossas vidas. O primeiro foi uma audiência no STF (Supremo Tribunal Federal) que debateu, na terça, o Marco Civil da Internet. Na quarta, mais de mil pesquisadores, executivos e especialistas publicaram um manifesto solicitando que pesquisas de inteligência artificial diminuam o ritmo, por representarem “grandes riscos para a humanidade”. Por fim, na sexta, a Itália determinou que o ChatGPT, plataforma de produção de textos por inteligência artificial da OpenAI, fosse bloqueado no país.

Em comum, os três tratam de tecnologias existentes há anos, mas com as quais paradoxalmente ainda temos dificuldade de lidar: as redes sociais e a inteligência artificial. E ambas vêm se desenvolvendo exponencialmente em seu poder para distorcer a realidade a nossa volta, muitas vezes contra nossos interesses e a favor dos das empresas que criam essas plataformas.

Não é um exagero! As redes sociais, usadas por quase 5 bilhões de pessoas, definem como nos relacionamos, nos divertimos, conversamos e nos informamos, manipulando-nos para consumirmos o que os algoritmos consideram melhor (mesmo não sendo). A “inteligência artificial generativa”, que ganhou os holofotes no ano passado e tem no ChatGPT sua estrela, produz conteúdos incríveis, mas que podem embutir grandes imprecisões que as pessoas aceitam alegremente como fatos.

As preocupações que se impõem são como podemos aproveitar o lado bom desses serviços, enquanto nos protegemos de potenciais efeitos nocivos, além de como responsabilizar seus produtores, algo que não acontece hoje!


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As redes sociais já são nossas velhas conhecidas. Segundo o relatório “Digital 2023 Global Overview Report”, da consultoria americana We Are Social, os brasileiros passam uma média de 9 horas e 32 minutos na Internet por dia, das quais 3 horas e 46 minutos são em redes sociais. Nos dois casos, somos os vice-campeões mundiais.

Não é surpresa para ninguém que sejamos manipulados por elas, em maior ou menor escala. Segundo a mesma pesquisa, 65,2% dos brasileiros se dizem preocupados se o que veem na Internet é real ou falso. Nesse quesito, somos o quinto país no mundo.

Agora a inteligência artificial ganha um destaque sem precedentes nas discussões tecnológicas, pelo poder criativo das plataformas que elaboram conteúdo. Algumas pessoas acham isso a aurora de uma nova colaboração entre nós e as máquinas; outros veem como um risco considerável para a própria humanidade.

Mas ela já faz parte do nosso cotidiano profundamente. Basta ver que os principais recursos de nossos smartphones dependem da inteligência artificial. As próprias redes sociais fazem uso intensivo dela para nos convencer. E se considerarmos que isso provocou uma polarização social inédita, colocando em risco a própria sociedade, os temores dos pessimistas fazem algum sentido.

Essa amálgama de euforia e paranoia provoca decisões às vezes precipitadas, mesmo de pessoas qualificadas. Países do mundo todo, inclusive o Brasil, se debruçam sobre o tema, tentando encontrar mecanismos legais para organizá-lo.

 

Regular ou não regular?

No Brasil, o uso das redes é disciplinado pelo Marco Civil da Internet, de 2014. “Ele entrou em vigor quando discurso de ódio e fake news estavam em outro patamar”, afirma Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Acredito que a revisão seja necessária, mas não com a simples declaração de inconstitucionalidade do artigo 19, e sim a partir de sistemas mais efetivos e transparentes de como as big techs fazem a gestão dos próprios termos de uso quando violados.”

“Hoje temos interações mais rápidas e intensas, que mudam a forma como vivemos em sociedade”, explica Carolina Giovanini, advogada especialista em direito digital do Prado Vidigal Advogados. “Porém isso não significa que o Marco Civil da Internet esteja ‘ultrapassado’, pelo contrário: é uma legislação que foi pensada levando em consideração o futuro da rede.”

O referido artigo 19 está no centro dessa discussão porque protege as plataformas digitais de serem responsabilizadas pelo conteúdo que os usuários publicam em suas páginas. Segundo o texto, elas só poderiam ser penalizadas se deixassem de retirar algo do ar após uma ordem judicial.

Como a Justiça não consegue analisar tudo que se publica nas redes, especialistas defendem que as plataformas sejam obrigadas a fazer isso por sua conta. A inteligência artificial seria fundamental para decidir o que seria apagado, mas a subjetividade de muitos conteúdos dificulta a definição inequívoca do que é desinformação, o que poderia levar a censura por falsos positivos.

“A própria ideia das redes sociais é ser um portal descentralizado, sem ‘pauta editorial’ ou viés socioeconômico, para que a sociedade pulverizada ganhe voz”, sugere Matheus Puppe, sócio da área de TMT, privacidade e proteção de dados do Maneira Advogados. “Responsabilizando as plataformas, todo o modelo de negócios e o propósito da informação descentralizada vai por água abaixo.”

Na prática, isso vem permitindo que as empresas que produzem essas tecnologias gozem de uma prerrogativa rara, que é responder pouco ou nada por danos que provoquem. Não se pode imaginar um mundo sem elas, mas o crescimento explosivo da desinformação e a consequente polarização social não podem ser vistos como meros “efeitos colaterais”. É como “perdoar” um remédio que mate 5.000 pessoas para curar outras 10.000: a cura é bem-vinda, mas não se pode tolerar tantas mortes.

“O ponto é que um novo regime de responsabilidade não é desejado pelas big techs”, afirma Crespo. “Elas têm até bons argumentos para manter como está, na medida em que elas mesmas removem alguns conteúdos ilícitos por vontade própria.”

Estamos em um impasse! Como canta Ney Matogrosso, “se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come!” As redes sociais estão no centro da nossa vida. A inteligência artificial abre possibilidade incríveis e necessárias. Eliminá-las é impossível, desacelerá-las é improvável. Mas esses problemas aparecem cada vez com mais força.

Qualquer que seja o futuro, ele precisa ser criado com a participação ativa de todos os agentes da sociedade. Essas empresas não podem continuar dando as cartas baseadas apenas na sua busca pelo lucro, pois seus produtos estão muito além de qualquer outra coisa já feita, do ponto de vista de transformação social.

Os benefícios devem ser distribuídos para todos, assim como as responsabilidades e os riscos. O futuro não pode ser distópico!

 

Na batalha da desinformação, a verdade foi a primeira vítima e agora todos sofremos

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Na primeira semana do novo governo, uma das ações mais polêmicas foi a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, vinculada à AGU (Advocacia-Geral da União). Polêmica que ficou nanica diante do violento ataque à democracia cometido neste domingo, em Brasília. Mas justamente por esses atos antes impensáveis, essa análise ganha ainda mais importância, pois o problema não está distante, e sim algo que toca todos nós, em nossas telas de smartphones e computadores.

A polêmica em torno da criação da nova Procuradoria, que tem como um dos objetivos o combate à desinformação, gira, entre outras coisas, pela definição apresentada para o próprio termo, o que, argumentam alguns, poderia transformá-lo em um instrumento de censura.

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Isso acontece porque, qualquer que seja o lado do conflito, seus cidadãos nunca têm acesso ao ponto de vista e a informações do inimigo. Assim, seus governantes podem manipular os fatos e usá-los como uma “verdade” para seu benefício próprio. É o que se observa hoje claramente na guerra da Ucrânia.

Mas em tempos de redes sociais onipresentes e onipotentes, todos nós sofremos os efeitos de outro tipo de guerra inescapável, que culminou na destruição generalizada na praça dos Três Poderes neste domingo: a da dita desinformação, que tem nas fake news sua maior arma.

Na desinformação, apesar de estarmos todos “do mesmo lado”, cada pessoa recebe informações filtradas pelos algoritmos que a ajudam a reforçar pontos de vista existentes, incluindo preconceitos e mentiras. E, também nesse caso, os grupos de poder manipulam os fatos, para criar “suas verdades”.

Por tudo isso, ninguém questiona a necessidade de se combater a desinformação, que rachou a sociedade brasileira e a levou à beira desse precipício político nunca visto desde a redemocratização.


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O ponto central da polêmica no combate à desinformação foi como ela foi definida pelo novo órgão: “mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”.

Em tese, essa definição é válida. O problema é que não deveria dar espaço a interpretações livres dos envolvidos, mas acaba abrindo brechas para isso com adjetivos, advérbios ou pontos que dependem de comprovação.

A preocupação é legítima pelo histórico de governos de diferentes ideologias de usarem a musculatura estatal e brechas da legislação para legitimar atos questionáveis de aliados e questionar ações legítimas de opositores ou de quem simplesmente os critique. A imprensa é vítima costumaz desse mecanismo, com censuras judiciais e, em anos mais recentes, com a perseguição violenta e até a desumanização de jornalistas por iniciativa de governantes. E, graças ao enorme poder de convencimento das redes sociais, uma parcela significativa da população comprou essa ideia e a pratica.

A AGU declarou, em nota, que “desinformação e mentira são diferentes do sagrado benefício da liberdade de expressão” e que “não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa”.

“A gente precisa compreender que, quando se fala em desinformação, precisamos partir de um conceito mais amplo para ‘dar um norte’ sobre o que a gente está conversando”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Mas também é importante entender que esse conceito mais amplo não pode ser o que vai definir o resultado de uma ação contra a desinformação.”

Ele lembra que a AGU não é uma instituição de governo, é sim de Estado. Dessa forma, não faz parte de suas atribuições defender governantes, apesar de ser responsável pela orientação jurídica do Poder Executivo.

Assim a instituição não poderia censurar ou punir ninguém, um papel do Judiciário. O risco recai no histórico de governos de extrapolar esses limites e, de certa forma, usurpar suas atribuições em anos anteriores.

 

A maltratada liberdade de expressão

Nada disso seria necessário se a sociedade não tivesse descambado nesse vale-tudo em que se incite ou efetivamente se pratique diversos crimes e que, depois, isso seja “desculpado” com uma “aparentemente magia” chamada liberdade de expressão.

“O que aconteceu nesses últimos anos é que discursos golpistas, autoritários, desinformativos foram propagados sob uma chancela de que se estava praticando liberdade de expressão”, explica Crespo. “Como isso foi feito durante muitos anos, em sequência, por muitas pessoas de diferentes instituições, ficou parecendo que liberdade de expressão é isso”.

Mas ela não determina tudo o que pode ser dito. Pelo contrário, em tese, pode-se falar qualquer coisa, desde que isso não configure um crime, contravenção, invada a liberdade de outra pessoa ou a coloque em algum tipo de risco, por exemplo.

Nesse sentido, a iniciativa da AGU pode ser muito positiva, desde que seja bem executada e respeitada pelo próprio governo, pois, em empresas e na sociedade, as pessoas seguem o exemplo de seus líderes. “Quando os nossos dirigentes políticos adotam comportamento violadores da ética, dos bons costumes, das boas práticas, das boas maneiras, da inclusão, da diversidade, do respeito, é muito mais fácil insuflar a população a ir contra isso tudo também”, sugere Crespo.

Em outras palavras, a guerra conta a desinformação tem diversas frentes. Oferecer uma boa definição, que não crie mais dúvidas que certezas, é uma delas. Precisamos também que os órgãos dos três Poderes da República executem adequadamente suas funções, deixando ao Judiciário o papel de proibir ou punir.

Sobre isso tudo, precisamos de bons exemplos de expoentes diversos de nossa sociedade, figurando, em primeiríssimo lugar, nossos governantes. A situação dramática em que estamos vivendo, com nosso tecido social feito trapo e a democracia sob ataque, resulta de um consistente processo destrutivo dos últimos anos.

Resta saber se o novo governo resistirá ao apelo fácil de fazer o mesmo com a desinformação, apenas com outra ideologia. Torço para que resista a isso e tenha sucesso na reconstrução de nossa sociedade, sem fazer mais vítimas nessa guerra contra a desinformação.

 

Jovens esperam que empresas resolvam problemas da sociedade

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Costumo dizer que a melhor maneira de se “prever o futuro” é observando os mais jovens, em suas crenças e atitudes. Afinal, daqui a poucos anos, serão eles que conduzirão a sociedade. E esses jovens –representados agora pela Geração Z– desejam uma sociedade mais igualitária, diversa, preocupada com a natureza, e com relações mais transparentes entre pessoas e entre pessoas e empresas.

É um prognóstico animador. Esse pessoal, hoje entre seus 14 e 26 anos, traz também uma visão interessante sobre como chegar a isso: eles esperam que as empresas assumam um protagonismo na solução de problemas sociais, e estão dispostos a premiar com compras e fidelidade aquelas que adotem esse posicionamento.

Não se trata de um modismo e não é pouca coisa. O estudo internacional “A nova dinâmica da influência”, recém-divulgado pela consultoria americana Edelman, mostra que as pessoas estão tão preocupadas com seu país quanto com seu futuro pessoal, e os brasileiros lideram esse ranking, muito à frente da média global.

Além disso, na era da “economia da experiência”, em que estamos permanentemente online e com um acesso sem precedentes à informação, influenciamos e somos influenciados até por quem não conhecemos. E ninguém hoje tem um poder de influência sobre o que compramos e como nos posicionamos tão poderoso quanto a Geração Z.


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As empresas simplesmente não podem se dar ao luxo de ignorar isso!

No Brasil, 72% dos entrevistados afirmaram que compram de marcas em que confiam, mesmo se não forem as mais baratas, e 78% se disseram fiéis a essas marcas, até se algo der errado. Por outro lado, 59% dos brasileiros deixam de comprar de empresas em quem não confiam. Além disso, por aqui, 77% são mais propensos a comprar de marcas que se posicionam em temas ligados à saúde, 76% a direitos humanos e a justiça racial, 75% a mudanças climáticas e 64% a igualdade de gênero.

Na Geração Z, esses índices de compra e fidelidade são ainda maiores: 78% e 83% respectivamente. E os brasileiros premiam muito mais as marcas em quem confiam que os cidadãos dos outros países: essas médias globais são de apenas 58% e 67%.

O estudo da Edelman entrevistou pessoas de 14 países, incluindo o Brasil. Foram mais de 13.700 adultos com mais de 18 anos e mais de 6.700 adolescentes entre 14 e 17 anos, ouvidos entre maio e junho.

Outro aspecto apresentado pelo estudo é que os mais jovens influenciam fortemente como as famílias compram, como geram mudanças, sua cultura de trabalho e até suas finanças. Mas é interessante notar que essa influência também é muito grande sobre aqueles que não tem filhos.

De cada 10 brasileiros, 6 praticam ativismo ao escolher as marcas, chegando a 67% entre os membros da Geração Z. Por isso, 63% afirmam que as empresas devem facilitar que suas posições sobre esses temas relevantes sejam identificadas.

No final das contas, 6 em cada 10 brasileiros, especialmente entre 14 e 41 anos, veem as empresas como mais eficientes que o próprio governo para solucionar os problemas da sociedade.

 

Posicionamento nas redes

Quando uma parcela considerável da população passa horas nas redes sociais todos os dias, era de se esperar um papel crítico dessas plataformas em como as pessoas se posicionam. Assim, 74% dos brasileiros entendem que suas publicações podem mudar o mundo. E nós postamos muito! No Brasil, 74% dos integrantes da Geração Z fazem isso uma ou mais vezes por semana; 40%, uma ou mais vezes por dia!

Em seu livro “Marketing 4.0” (2017), Philip Kotler referiu-se a essas pessoas como netizens, um neologismo formado pelas palavras em inglês “net” (rede) e “citizen” (cidadão). O guru do marketing moderno os considera como “conectores sociais” e, segundo ele, “como netizens são mais visíveis do que outros usuários da Internet, exercem uma influência enorme”.

Atrair esse público torna-se, portanto, essencial para as empresas. A dificuldade é chamar sua atenção em um mundo inundado de informações que competem pelo nosso tempo. Para isso, muitas companhias já descobriram o papel dos influenciadores digitais e criadores de conteúdo. Mas a Geração Z está demonstrando que o que menos interessa nisso é a quantidade de seguidores ou de curtidas: o que lhes importa é a transparência, a sinceridade e o domínio do assunto.

Esses jovens podem até ser fãs, mas não colocam seus ídolos em pedestais. Pelo contrário, como conhecem o cotidiano desses criadores de conteúdo, percebem facilmente quando a mensagem tenta apenas promover um produto. Eles esperam que os influenciadores sejam especialistas no assunto e alguém que efetivamente use o produto. Por isso, esperam que suas recomendações sejam baseadas em experiências reais e que esses criadores de conteúdo lhes ensinem algo novo.

As marcas devem, portanto, escolher muito bem quem contratarão como influenciadores, pois a pressão aumenta à medida que se tornam mais transparentes na sua comunicação. Pode parecer contraditório, mas isso faz todo sentido quando se está querendo construir uma relação de mais qualidade. Os negócios bem-sucedidos nisso avançam na inovação e estabelecem a cada vez mais necessária confiança.

Os consumidores, com destaque aos da Geração Z, devem ser convidados a participar da criação de sua experiência com as marcas. Isso não quer dizer necessariamente trazê-los para o processo de produção: basta ouvir genuinamente o que têm a dizer. E, a partir dessa informação, os gestores devem ajustar seus produtos, seus modelos de negócios, sua comunicação e seu posicionamento social, indo muito além das próprias entregas, cuidando da sociedade.

No mesmo dia em que o estudo da Edelman foi publicado, o historiador israelense Yuval Noah Harari concedeu uma entrevista ao Estadão, por causa de seu mais recente livro, “Implacáveis: Como Nós Dominamos o Mundo”, curiosamente voltado para leitores a partir dos 9 anos. Em determinado momento, ele afirma que “se alguém realmente vai mudar o mundo, não são as pessoas que agora têm 50 anos, são as que agora têm 10”.

Ele está certíssimo! Os mais velhos estão “batendo cabeça” com temas desgastados, muitas vezes egoistamente manipulando as massas pelas redes sociais, apenas para ampliar seu poder, sem querer verdadeiramente melhorar a sociedade. Basta olhar a nossa volta no Brasil e no mundo.

Enquanto isso, os mais jovens querem propor mudanças tangíveis para problemas que realmente impactam nosso cotidiano e o futuro. E, como os governos (de qualquer ideologia) andam falhando miseravelmente nesses seus papeis, a Geração Z está dando às empresas a oportunidade de ocuparem um novo e valioso espaço.

Há esperança para um futuro melhor, afinal!

 

Para a sociedade dar certo, precisamos acreditar em algo

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A vida tem um jeito especial de eventualmente nos jogar em um turbilhão de fatos e tarefas que nos tiram a perspectiva de qual é nosso lugar no mundo. Passamos a viver um dia após o outro sem refletir sobre o que poderíamos fazer para melhorar. Quando isso acontece, para reconstruirmos nosso caminho, às vezes temos que primeiramente chegar ao fundo do poço.

É o caso da falta de confiança generalizada em nossa sociedade. Ela deriva de uma crise política e econômica que já dura sete anos, e que só vem piorando. A pandemia, que nos apresentou desafios nunca antes enfrentados, nos tirou ainda mais do nosso eixo. É o que demonstram os recentes estudos globais Digital News Report, do Instituto Reuters e da Universidade de Oxford, e o Trust Barometer, da consultoria Edelman.

O fato é que, se não confiamos em mais nada, ou quando apenas as nossas convicções pessoais guiam nossos atos, a sociedade se dissolve. Passamos a viver dentro de um eterno “diálogo de surdos”, em que ninguém mais constrói nada com o outro, indo cada vez mais para o fundo.

Temos que romper esse círculo vicioso!


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A desconfiança é um sentimento natural diante do desconhecido ou de alguém que dá mostras de praticar atos questionáveis. É um sentimento de autopreservação legítimo contra quem potencialmente pode nos fazer algum mal. Mas ela não pode crescer sem limites. Caso contrário, chegamos no ponto em que estamos, com uma polarização irracional, o que afeta nosso próprio desenvolvimento ao excluirmos possibilidades sociais.

Por exemplo, será que só podemos comprar de quem pensa igual a nós? Se a pessoa tiver outras ideias, será que tudo que ela faz é necessariamente ruim? Por outro lado, será que tudo feito por quem pensa como nós é bom? Contratar pessoas que são diferentes de nós seria uma ameaça ao nosso estilo de vida?

Claro que nenhuma dessas ideias extremistas é verdadeira! Mas pensamentos como esses estão guiando a nossa vida.

As pessoas acreditam no que elas quiserem, no que lhes for mais conveniente. Sempre foi assim! Mas algo mudou em nossos cérebros há alguns anos, com o apoio das redes sociais.

Para nos vender todo tipo de coisa, seus algoritmos nos mantêm enjaulados em uma zona de conforto de pensamento único. Qualquer ideia que tivermos parece ser corroborada pelo mundo, quando, na verdade, é apenas um recorte da sociedade filtrado pelo sistema, escondendo de nós pensamentos divergentes. Trata-se do que o ativista digital americano Eli Pariser chamou, há uma década, de “filtro bolha”.

Tanto é assim que, em 2016, o renomado Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a “palavra do ano”. Na sua definição, ela é “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

Eu me pergunto se os organizadores da obra imaginavam quão proféticos estavam sendo ao escolher essa palavra.

 

O papel do jornalismo

Os veículos de informação têm um papel decisivo nesse resgate da verdade e da confiança. E, se alguém tinha alguma dúvida, isso ficou claro durante a pandemia: quando a situação ficou realmente crítica, a população correu para eles em busca de notícias confiáveis. Ou seja, apesar de toda a campanha de difamação que sofrem, eles conseguem manter uma boa reputação, especialmente quando as fontes “alternativas” de conteúdo carregam demais na pós-verdade.

O Digital News Report demostrou que a confiança aumentou em plena pandemia. Com informações de 46 países, que representam metade da população global, o relatório indica que a confiança no jornalismo cresceu seis pontos percentuais em 2021, chegando a 44%, mesmo índice de 2018. Além disso, aumenta a distância entre a confiança em veículos jornalísticos e em conteúdos nas redes sociais, que estacionaram em 24%.

O Brasil ficou em sétimo lugar entre esses países na confiança da população na imprensa, com 54%, empatado com Bélgica e Nigéria. O país em que a população mais acredita no jornalismo é a Finlândia, com 65%. Já nos Estados Unidos, que têm uma das melhores imprensas do mundo, apenas 29% da população acredita nos veículos de comunicação.

Isso é explicado pelos dados do Trust Barometer, que indica que eleitores de políticos conservadores e que abusam da pós-verdade confiam pouco na imprensa. A péssima colocação dos EUA deriva, portanto, da cruzada do ex-presidente Donald Trump contra o jornalismo.

Pela metodologia desse relatório, a confiança global na imprensa chegou a 51%, 2% a mais que em 2020. No Brasil, a confiança é de 48%, 4% a mais que no ano anterior.

 

Linguagem e formato

O levantamento do Instituto Reuters e da Universidade de Oxford traz duas coisas importantes. A primeira é que alguns grupos sociais não se sentem bem representados pelos veículos jornalísticos, como negros, mulheres e eleitores conservadores. A outra é que apenas 18% dos jovens se informam assim, enquanto 60% fazem isso nas redes sociais, sendo cada vez mais atraídos por redes visuais, como Instagram e TikTok.

Muitos veículos tradicionais ensaiam distribuir seus conteúdos nessas plataformas, até mesmo no TikTok. Mas como passar a informação necessária e não perder sua credibilidade nesses formatos? O tradicional Washington Post, com 143 anos, contratou Dave Jorgenson como editor dedicado ao TikTok. Ele consegue um bom engajamento, mas não dá notícias na plataforma.

Os veículos precisam encontrar o caminho para se reconectar com o público. Eles não podem esquecer seus valores, que os tornaram respeitados, mas talvez tenham que abandonar boa parte do seu formato e da sua linguagem.

O jornalismo só é viável se estiver representando o público! Caso contrário, a pós-verdade de políticos mequetrefes manipulará ainda mais as massas, destruindo a confiança das pessoas em todas as instituições, o que, a médio prazo, colocará em risco a própria existência da democracia.

O historiador israelense Yuval Noah Harari afirma que o ser humano só alcançou a dominância do planeta por ser o único ser vivo com a capacidade de acreditar em desconhecidos para construir algo com eles. A isso, damos o nome de “sociedade”. Não podemos perder esse recurso essencial de construir algo em grupo.

Será que chegamos ao fundo do poço da confiança para começar a reconstruí-la? Eu espero que sim, ou o que será do Brasil e do mundo daqui a 20 anos? Os que hoje são jovens precisam aprender o valor do bom jornalismo, tornando-se melhores cidadãos. Já os veículos de informação precisam reassumir seu protagonismo. Para isso, devem lembrar para quem trabalham, que é o público, e não seus acionistas, nem os anunciantes e muito menos os grupos de poder.

Como disse certa vez o jornalista e artista Millôr Fernandes, “jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados.”

Quanto a nós, todos nós, temos que reaprender a confiar no outro, mesmo em quem pensa diferentemente de nós. Só assim tiraremos nossa sociedade desse atoleiro em que está metida.