No dia 24 de novembro, “A Estrada do Futuro”, primeiro livro de Bill Gates, completará 20 anos. Como todo exercício de futurologia, apenas algumas de suas previsões se concretizaram, e nem sempre como se esperava. Mas uma delas está colocando em xeque algo que faz parte de nossas vidas há mais de meio século: a televisão.
Gates antecipou em seu livro o surgimento do vídeo sob demanda, termo técnico que define serviços online em que o consumidor assiste à programação que quiser, na hora que quiser, cujos dois maiores expoentes são o YouTube e o Netflix. Mas talvez ele não tenha imaginado que a popularização desse recurso ameaçaria o modelo de negócio das emissoras e redefiniriam o uso do aparelho de TV como se vê hoje.
O fato é que a tecnologia mudou a maneira de nos relacionarmos com qualquer tipo de conteúdo, e as empresas de comunicação demoraram muito a perceber a chegada desse tsunami. Agora que a onda as atingiu, estão se debatendo em uma tentativa atabalhoada de se salvar.
A primeira e decisiva mudança é que, com um smartphone, o cidadão comum abandonou a sua condição milenar de consumidor de mídia para se tornar produtor. Não chega a surpreender, portanto, que a câmera seja um dos recursos mais usados dos celulares: fotografamos compulsivamente tudo (inclusive nós mesmos, o fenômeno das selfies) e criamos nossos próprios programas, que compartilhamos não apenas com nossos amigos, mas com o mundo todo. E, quando alguém deixa de assistir à Globo para ver nossas produções, passamos a ser concorrentes da Vênus Platinada.
Aliado a isso, o vídeo sob demanda acabou de vez com o monopólio das emissoras sobre o que vemos. Por que eu tenho que assistir a uma novela só porque “é o que está passando agora”? Eu quero ver um filme nesse momento! Ou uma série ou desenho animado. Ah, eu também quero ver a novela, mas na hora que eu quiser! E tem mais: quero ver três capítulos na sequência.
Trocando em miúdos, a grade de programação, algo essencial no modelo de negócios das emissoras, está com os dias contados. Graças a ela, os executivos criam os espaços para a publicidade e controlam a liberação dos conteúdos seguindo seus interesses. Por isso, o novo consumidor ameaça não apenas a TV aberta, mas também a TV por assinatura.
Os números são impactantes e ilustrativos. Estudo recente do ConsumerLab, divisão da Ericsson que estuda o comportamento dos consumidores, feito com 22.500 pessoas de 20 países, indica que 36% do tempo diário em que os brasileiros assistem a vídeos é destinado a conteúdo sob demanda, 1% a mais que média mundial. E 66% dos brasileiros entrevistados afirmaram que não encontram nada interessante para assistir na TV tradicional, o que justifica o crescimento dos serviços de vídeo sob demanda.
O consumidor paga pelo conteúdo que lhe interessa
Engana-se quem acha que esse fenômeno é motivado pelo desejo de se consumir conteúdo de graça. Essa premissa, usada por executivos das mais diferentes “mídias tradicionais” (música, imprensa, TV, entre outros) é absolutamente falsa! O consumidor paga, sim, por conteúdo de toda natureza, desde que esse produto lhe traga um benefício claro. De fato, a pesquisa do ConsumerLab mostra também que 22% dos consumidores que nunca pagaram por uma TV por assinatura já estão pagando por serviço de vídeo sob demanda. E aí o Netflix mostra o caminho a ser seguido.
Apesar de a empresa não divulgar a quantidade de assinantes no Brasil (são 65 milhões no mundo), o mercado estima que esse número deve variar entre 2,5 milhões e 4 milhões. Colocando isso em dinheiros, a receita da empresa para esse ano por aqui deve variar entre R$ 500 milhões e R$ 1 bilhão. Na hipótese mais conservadora, o Netflix faturaria mais que a Band e a Rede TV!, quarta e quinta maiores emissoras nacionais; na mais arrojada, empataria com o SBT. Os números foram debatidos no congresso da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), no início de agosto, cujos membros afirmam que o Netflix é um concorrente desleal.
Não precisa ser gênio para juntar os números do Netflix e de outros serviços com conclusões de estudos como o do ConsumerLab e entender o que está acontecendo. A tecnologia deu ao consumidor o poder de escolha, abrindo-lhe os olhos para perceber que não é obrigado a consumir uma programação de qualidade rasteira em um formato que não lhe convém.
O aparelho de TV cada vez mais é um poderoso computador conectado à Internet (e os fabricantes estão investindo nisso), diminuindo a importância de sua histórica função de receptor de imagens empurradas goela abaixo do telespectador. Permite que a escolha do usuário agora vá muito além dos canais acionados pelo controle remoto.
Além disso, a TV não é mais o único equipamento para se assistir a vídeos: ela ocupa apenas uma fatia do tempo do consumidor para esse fim. Uma fatia cada vez menor, diga-se de passagem, que vem sendo substituída pelo crescente uso dos dispositivos móveis, especialmente os smartphones. No caso de conteúdo sob demanda, 61% do total já é consumido nas pequenas telas, segundo o ConsumerLab.
Observem as crianças
É muito interessante observar as crianças, pois elas entendem e se apropriam de novas tecnologias com grande facilidade e velocidade. Por isso, são excelentes indicadores de como será o futuro breve. E, no assunto que aqui discutimos, elas têm um comportamento muito interessante: quando querem assistir sozinhas a um vídeo, fazem isso no seu smartphone, mesmo que estejam em casa. Por outro lado, quando se trata de uma experiência com outras pessoas, como a família, o melhor lugar para o YouTube e o Netflix é a smart TV da sala. Claro, faz todo o sentido!
Pago mensalmente um adicional de R$ 30 para ter os canais da HBO no meu plano de TV por assinatura. Quis usar o aplicativo de vídeo sob demanda HBO GO, incessante promovido em seus comerciais, mas não consegui, pois a minha operadora de TV a cabo não permite. Devo dizer que fiquei com uma vontade enorme de pagar os R$ 30 mensais diretamente à HBO, e não à operadora, que deixou de ser uma facilitadora para se tornar uma dificultadora.
Essa empresa e seus pares precisam urgentemente repensar seus modelos, assim como as emissoras precisam melhorar sua programação. Ou, em muito pouco tempo, as crianças de hoje enterrarão a TV como a conhecemos, transformando sua tela em uma ferramenta de liberdade e qualidade em que nenhuma dessas empresas fará parte.
[…] Estamos vendo o fim da TV, pelo menos como a conhecemos […]
[…] quiser, pode assistir a todos na sequência. Pode parecer uma bobagem, mas essa possibilidade coloca em xeque o conceito de grade de programação, algo sobre o qual se monta os modelos de negócios das emissoras de TV abertas e por […]