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As crianças enterraram a TV. E daí?

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A youtuber Kéfera Buchmann, do canal 5incominutos, que faz gigantesco sucesso  entre as adolescentes – Imagem: divulgação

A youtuber Kéfera Buchmann, do canal 5incominutos, que faz gigantesco sucesso entre as adolescentes

Nunca as crianças consumiram tanto vídeo quanto agora. O formato está cada vez mais consolidado, valendo também para os adultos. Só que, ao contrário do que acontece com eles, para os pequenos, ver vídeo virou sinônimo de YouTube. E, longe de ser apenas uma questão de mídia, isso é algo que também deve preocupar pais, educadores e profissionais de marketing e de negócios, pois traz questionamentos muito sérios e diversos.

Afinal, tanto YouTube pode alienar ou viciar as crianças? É a nova “babá eletrônica”? O serviço pode ameaçar as emissoras ou até mesmo os fabricantes de TV? Isso pode disfarçar publicidade infantil?

O fato é que, até setembro, crianças de zero a 12 anos brasileiras viram impressionantes 52,2 bilhões de vídeos no YouTube, considerando-se os 230 canais mais populares nessa faixa etária. Os números foram revelados pela segunda edição da pesquisa “Geração YouTube”, divulgada no dia 5 pelo ESPM Média Lab. Desde a sua primeira edição, publicada em novembro passado, o aumento nessas visualizações foi de 184%. Isso em um espaço de menos de um ano!

Nesta sexta, participei do JC Debate, da TV Cultura, onde pude conversar sobre isso com a jornalista Andresa Boni e com o advogado Márcio Mello Chaves. A íntegra do programa (30 minutos) pode ser vista abaixo:


Vídeo relacionado:


Além da audiência e do seu crescimento espantosos, o fenômeno inclui outra característica muito relevante: apesar de as crianças adorarem vídeos, elas simplesmente não os assistem no aparelho de televisão. Aquela tela enorme, normalmente na sala ou no quarto, não faz muito sentido para elas. E o mesmo vale para as emissoras.

Para as crianças, vídeo é vídeo, seja ele da TV aberta, da TV por assinatura ou de qualquer serviço digital. Mas todos eles, qualquer que seja sua origem, são vistos no YouTube. E o equipamento preferido é, de longe, o smartphone.

Isso explica em parte esse crescimento explosivo: as crianças, cada vez mais, têm acesso a esse aparelho, muitas vezes de sua propriedade (e não mais dos pais). Dessa forma, carregam o dito cujo para todo lugar e a todo momento, inclusive longe da supervisão paterna. E ver os vídeos passa a ser uma atividade constante, especialmente diante do aumento e da profissionalização dos tipos de canais preferidos: games, youtubers mirins  e youtubers teens.

É tudo uma questão de identificação!

 

“Eu falo como você fala!”

Todos nós consumimos conteúdos com os quais nos identificamos. Com as crianças funciona do mesmo jeito.

No caso dos canais de games, as crianças querem ver como outras crianças jogam os seus títulos preferidos, seja como um passatempo, seja para aprender a jogá-los melhor ou superar fases difíceis. E nada melhor que outra criança para explicar isso.

A identificação de linguagem e assunto é o que impulsiona os canais dos youtubers mirins e teens. Essa turma grava vídeos aparentemente sem uma pauta muito clara: falam para a câmera sobre suas experiências pessoais, alegrias, angústias, dúvidas relativas à idade. Sem filtros e, muitas vezes, até sem planejamento. Esse estilo despojado e natural, e os temas que também fazem parte das vidas do público são o segredo do sucesso. Alguns youtubers teens nem pertencem mais a essa faixa etária, mas continuam se relacionando muito bem com adolescentes, pois sabem como e o que falar com eles.

Portanto essa identificação confere a esses youtubers uma credibilidade que pais e educadores simplesmente não conseguem ter, o que muitas vezes deixa esses adultos de cabelo em pé, por desaprovarem o linguajar e o conteúdo dos vídeos.

E essa credibilidade pode ser usada também para objetivos questionáveis.

 

Publicidade eficiente e polêmica

A pesquisa do ESPM Media Lab também indicou um surreal crescimento de 975% nos canais da categoria “unboxing” desde a última pesquisa, de longe a que mais evoluiu. Para quem não sabe do que isso trata, são canais em que crianças e adolescentes, acompanhadas ou não por adultos, tiram produtos (normalmente brinquedos) das suas caixas diante das câmeras (daí o nome em inglês).

A atividade surgiu em canais estrangeiros de tecnologia, em que youtubers faziam análises técnicas de produtos, orientando compras de seu público. Mas rapidamente caiu no gosto das crianças, pois mostrar seus brinquedos aos amigos é uma atividade que os pequenos fazem naturalmente, desde sempre. A diferença é que, se antes a audiência dessas demonstrações ficava restrita a coleguinhas em casa ou na escola, com os vídeos digitais ela passa a ser potencialmente global.

Até aí, nenhum problema. Mas a coisa começou a complicar quando algumas empresas começaram a perceber que poderiam começar a “presentear” os youtubers mirins com seus produtos, para que eles fizessem seu “unboxing”. Trocando em miúdos, as crianças, que são formadoras de opinião nesse meio, passaram a fazer uma eficientíssima propaganda, o que caiu como uma luva para as companhias, especialmente em tempos de grande restrição à publicidade direcionada a crianças.

Isso tem gerado um caloroso debate. Apesar de alguns desses canais serem obviamente patrocinados, dada a incrível qualidade na sua produção, como diferenciar uma criança que está legitimamente exercendo seu direito de mostrar brinquedos de outra que está sendo usada como ferramenta de marketing? A BBC fez uma ótima reportagem sobre isso há alguns meses, para a qual fui entrevistado.

As crianças estão rompendo paradigmas. E a TV pode ser a próxima vítima.


Vídeo relacionado:


Adeus TV! Olá YouTube!

Nessa combinação incrível de YouTube com smartphones, a antiga dupla dinâmica formada pelas emissoras e pelos aparelhos de TV pode estar com os dias contados. Pois os adolescentes e especialmente as crianças, que deveriam ser seus futuros consumidores, simplesmente as ignoram. Para eles, aquilo é uma caixa anacrônica e pouco atraente.

O principal desalinhamento acontece em um ponto central do modelo de negócio das emissoras: a grade de programação. Os jovens não conseguem entender porque têm que esperar o “horário certo” para assistir um determinado programa. Para eles, o horário certo é aquele em que eles querem ver o programa, qualquer que seja.

As emissoras estão se mexendo, ainda que muito tardiamente, só porque sentiram a água gelada em seus fundilhos. A maioria delas já tem aplicativos para computadores e dispositivos móveis em que se pode ver a programação a qualquer momento. Mas é uma solução mambembe, pois o programa só é liberado online depois de ter passado na telona. Ou seja, não resolve o problema da grade. Por que preciso esperar uma semana para, por exemplo, assistir a um novo episódio de Game of Thrones no HBO Go, se a temporada inteira já está pronta?

Sei que não dá para fazer isso com uma novela, que chega a ter 200 capítulos, e o nível de liberação dos novos acontece apenas poucos dias após sua gravação. Mas para, por exemplo, séries de 10 ou 20 episódios, não faz o menor sentido. E justiça seja feita, a Globo tem feito alguns experimentos interessantes com o seu aplicativo Globo Play, mas ainda insuficientes para atender às demandas de um público cada vez mais exigente.

Outro ponto de discórdia entre a TV e os jovens é a interrupção dos programas para comerciais. Eles estão acostumados a novas formas de monetização, inclusive com um controle enorme sobre os próprios comerciais. E esse é outro ponto que bate de frente com o modelo de negócios cristalizado das emissoras.

Por fim, há ainda a questão da privacidade. Crianças e adolescentes querem assistir a seus vídeos em paz. Leia-se: sem que seus pais fiquem controlando o que consomem. Os smartphones são perfeitos para isso. Já as TVs, que estão, aliás, cada vez maiores, se tornam inadequadas.

Como se pode ver, é uma situação delicadíssima e muito difícil de ser resolvida, pois a TV atender essas demandas significaria matar um negócio que, a despeito de uma contínua queda na audiência, ainda vai muito bem, abocanhando mais de metade de todo o bolo publicitário entre todas as mídias.

Mas um dia essas crianças crescerão. E seus pais não estarão mais aqui para continuar vendo TV. Para elas, quem está mandando muito bem e indicando o caminho a seguir, desde já, é o YouTube.

E é como eu sempre digo: quer prever o futuro? Olhe para as crianças agora.


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Estamos vendo o fim da TV, pelo menos como a conhecemos

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Wagner Moura como Pablo Escobar, na série "Narcos", lançada recentemente pelo Netflix - Foto: divulgação

Wagner Moura como Pablo Escobar, na série “Narcos”, lançada recentemente pelo Netflix

No dia 24 de novembro, “A Estrada do Futuro”, primeiro livro de Bill Gates, completará 20 anos. Como todo exercício de futurologia, apenas algumas de suas previsões se concretizaram, e nem sempre como se esperava. Mas uma delas está colocando em xeque algo que faz parte de nossas vidas há mais de meio século: a televisão.

Gates antecipou em seu livro o surgimento do vídeo sob demanda, termo técnico que define serviços online em que o consumidor assiste à programação que quiser, na hora que quiser, cujos dois maiores expoentes são o YouTube e o Netflix. Mas talvez ele não tenha imaginado que a popularização desse recurso ameaçaria o modelo de negócio das emissoras e redefiniriam o uso do aparelho de TV como se vê hoje.

O fato é que a tecnologia mudou a maneira de nos relacionarmos com qualquer tipo de conteúdo, e as empresas de comunicação demoraram muito a perceber a chegada desse tsunami. Agora que a onda as atingiu, estão se debatendo em uma tentativa atabalhoada de se salvar.

A primeira e decisiva mudança é que, com um smartphone, o cidadão comum abandonou a sua condição milenar de consumidor de mídia para se tornar produtor. Não chega a surpreender, portanto, que a câmera seja um dos recursos mais usados dos celulares: fotografamos compulsivamente tudo (inclusive nós mesmos, o fenômeno das selfies) e criamos nossos próprios programas, que compartilhamos não apenas com nossos amigos, mas com o mundo todo. E, quando alguém deixa de assistir à Globo para ver nossas produções, passamos a ser concorrentes da Vênus Platinada.

Aliado a isso, o vídeo sob demanda acabou de vez com o monopólio das emissoras sobre o que vemos. Por que eu tenho que assistir a uma novela só porque “é o que está passando agora”? Eu quero ver um filme nesse momento! Ou uma série ou desenho animado. Ah, eu também quero ver a novela, mas na hora que eu quiser! E tem mais: quero ver três capítulos na sequência.

Trocando em miúdos, a grade de programação, algo essencial no modelo de negócios das emissoras, está com os dias contados. Graças a ela, os executivos criam os espaços para a publicidade e controlam a liberação dos conteúdos seguindo seus interesses. Por isso, o novo consumidor ameaça não apenas a TV aberta, mas também a TV por assinatura.

Os números são impactantes e ilustrativos. Estudo recente do ConsumerLab, divisão da Ericsson que estuda o comportamento dos consumidores, feito com 22.500 pessoas de 20 países, indica que 36% do tempo diário em que os brasileiros assistem a vídeos é destinado a conteúdo sob demanda, 1% a mais que média mundial. E 66% dos brasileiros entrevistados afirmaram que não encontram nada interessante para assistir na TV tradicional, o que justifica o crescimento dos serviços de vídeo sob demanda.

 

O consumidor paga pelo conteúdo que lhe interessa

Engana-se quem acha que esse fenômeno é motivado pelo desejo de se consumir conteúdo de graça. Essa premissa, usada por executivos das mais diferentes “mídias tradicionais” (música, imprensa, TV, entre outros) é absolutamente falsa! O consumidor paga, sim, por conteúdo de toda natureza, desde que esse produto lhe traga um benefício claro. De fato, a pesquisa do ConsumerLab mostra também que 22% dos consumidores que nunca pagaram por uma TV por assinatura já estão pagando por serviço de vídeo sob demanda. E aí o Netflix mostra o caminho a ser seguido.

Apesar de a empresa não divulgar a quantidade de assinantes no Brasil (são 65 milhões no mundo), o mercado estima que esse número deve variar entre 2,5 milhões e 4 milhões. Colocando isso em dinheiros, a receita da empresa para esse ano por aqui deve variar entre R$ 500 milhões e R$ 1 bilhão. Na hipótese mais conservadora, o Netflix faturaria mais que a Band e a Rede TV!, quarta e quinta maiores emissoras nacionais; na mais arrojada, empataria com o SBT. Os números foram debatidos no congresso da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), no início de agosto, cujos membros afirmam que o Netflix é um concorrente desleal.

Não precisa ser gênio para juntar os números do Netflix e de outros serviços com conclusões de estudos como o do ConsumerLab e entender o que está acontecendo. A tecnologia deu ao consumidor o poder de escolha, abrindo-lhe os olhos para perceber que não é obrigado a consumir uma programação de qualidade rasteira em um formato que não lhe convém.

O aparelho de TV cada vez mais é um poderoso computador conectado à Internet (e os fabricantes estão investindo nisso), diminuindo a importância de sua histórica função de receptor de imagens empurradas goela abaixo do telespectador. Permite que a escolha do usuário agora vá muito além dos canais acionados pelo controle remoto.

Além disso, a TV não é mais o único equipamento para se assistir a vídeos: ela ocupa apenas uma fatia do tempo do consumidor para esse fim. Uma fatia cada vez menor, diga-se de passagem, que vem sendo substituída pelo crescente uso dos dispositivos móveis, especialmente os smartphones. No caso de conteúdo sob demanda, 61% do total já é consumido nas pequenas telas, segundo o ConsumerLab.

 

Observem as crianças

É muito interessante observar as crianças, pois elas entendem e se apropriam de novas tecnologias com grande facilidade e velocidade. Por isso, são excelentes indicadores de como será o futuro breve. E, no assunto que aqui discutimos, elas têm um comportamento muito interessante: quando querem assistir sozinhas a um vídeo, fazem isso no seu smartphone, mesmo que estejam em casa. Por outro lado, quando se trata de uma experiência com outras pessoas, como a família, o melhor lugar para o YouTube e o Netflix é a smart TV da sala. Claro, faz todo o sentido!

Pago mensalmente um adicional de R$ 30 para ter os canais da HBO no meu plano de TV por assinatura. Quis usar o aplicativo de vídeo sob demanda HBO GO, incessante promovido em seus comerciais, mas não consegui, pois a minha operadora de TV a cabo não permite. Devo dizer que fiquei com uma vontade enorme de pagar os R$ 30 mensais diretamente à HBO, e não à operadora, que deixou de ser uma facilitadora para se tornar uma dificultadora.

Essa empresa e seus pares precisam urgentemente repensar seus modelos, assim como as emissoras precisam melhorar sua programação. Ou, em muito pouco tempo, as crianças de hoje enterrarão a TV como a conhecemos, transformando sua tela em uma ferramenta de liberdade e qualidade em que nenhuma dessas empresas fará parte.

Os problemas de forçar um conteúdo nacional

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Frank Underwood (Kevin Spacey), o anti-herói da série House of Cards, um dos símbolos do Netflix

Frank Underwood (Kevin Spacey), o anti-herói da série House of Cards, um dos símbolos do Netflix

A Ancine (Agência Nacional do Cinema) está tramando a exigência de uma cota mínima de filmes e séries brasileiras em serviços de vídeo sob demanda, como o Netflix e o HBO Go. Com o argumento de fomentar as produções nacionais, esse tipo de intervenção pode matar a vaca para acabar com o carrapato.

Essa regra já funciona para os canais de TV paga, que são obrigados a dedicar pelo menos 30% de sua grade a programas brasileiros. De fato, temos hoje produção nacional de ótima qualidade, mesmo em canais internacionais, como a série O Negócio, na HBO. Mas esse alto nível está longe de ser padrão, com alguns conteúdos de interesse e qualidade limitados, sem falar na enxurrada de programas de culinária que criam variações sobre o mesmo tema nem sempre tão criativas.

O grande problema desse tipo de regra é tirar do consumidor o seu direito de escolher o que assistir. Quem paga por um serviço de TV por assinatura quer justamente fugir da qualidade rasteira da programação dos canais abertos. Ao forçar que um terço da grade de um canal pago seja preenchido com qualquer conteúdo local, apenas por ser brasileiro, esse direito de escolha é prejudicado.

Os serviços de vídeo sob demanda representam a maximização da escolha do consumidor, que agora não precisa sequer se ater às grades de programação: assiste o quiser, quando e onde quiser, uma liberdade inédita que está redefinindo o próprio jeito de se ver televisão.

No Brasil, o Netflix oferece cerca de 4.000 filmes e séries em seu acervo. Desse total, cerca de 5% é composto por produções brasileiras. Se a Ancine emplacar a mesma exigência feita aos canais de TV por assinatura, o Netflix precisaria ampliar o seu acervo -o que pode encarecer o produto- ou reduzir o volume de conteúdo internacional oferecido. Nas duas situações, quem perde é o consumidor.

Até a minha adolescência, o cinema brasileiro era desprezível, dominado pelas pornochanchadas e pelos filmes dos Trapalhões. Até que Carlota Joaquina, Princesa do Brazil estreou em 1995, seguido no mesmo ano por O Quatrilho e outras grandes produções, que inauguraram uma nova fase do cinema nacional, de alta qualidade. Disso surgiram obras-primas, como Central do Brasil, e Tropa de Elite. Entretanto, de uns anos para cá, as salas têm sido invadidas por uma enorme quantidade de comédias, muitas delas de gosto bastante duvidoso e pouco originais, mas todas com o logo da Ancine na abertura.

Por isso, sou favorável à constante ampliação da oferta de produções nacionais de qualidade. Mas isso não pode ser feito por decreto, principalmente quando contraria os interesses e fere os direitos do cidadão, que é, afinal, o cliente de tudo isso, pagando pelo cinema, pela TV por assinatura e pelo Netflix. Não abro mão do meu direito de assistir a House of Cards, Game of Thrones e afins em favor de programas de culinária fofinhos ou de comédias caça-niqueis.

Em terra de cego, quem é tolo é rei

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Precisamos de mais tolos. De idealistas. De jornalistas. Arrisco a dizer que uma pessoa desprovida de idealismo jamais será um jornalista. E a sociedade depende dessas pessoas.

Nesta semana, a série da HBO The Newsroom (sem título em português) chegou ao final de sua primeira temporada com o episódio “The Greater Fool”. Não pretendendo fazer uma sinopse do capítulo, o tolo em questão seria o protagonista Will McAvoy, âncora do telejornal News Night, que, na ficção, foi capa da New York Magazine com essa alcunha.

“Greater fool” é o nome de uma teoria econômica que diz que alguém pode lucrar com algo por que pagou caro, desde que ache um tolo maior (daí o nome) para vender por ainda mais dinheiro. Ou seja, não haveria problema em pagar mais que o devido por algo, desde que se lucrasse em cima de um otário depois. Por conta disso, McAvoy, que lutou uma guerra pessoal ao longo da temporada para fazer jornalismo de qualidade, fica deprimido com a reportagem, pois entende que sua cruzada não foi convincente.

Mas há outra interpretação dessa teoria: o maior tolo seria alguém que equilibre idealismo e confiança para ter sucesso onde outros falharam. Ele percebe então que, de fato é o “greater fool”, mas não como pensava.

Felizmente. Em sua quixotesca jornada, ele não foi perfeito. Mas persistiu com o que acreditava, por mais que aparecessem obstáculos, muitos deles plantados pela própria empresa para a qual trabalha. Ganhou o jornalismo, seu público e seu país. Afinal, como lhe diz sua repórter de economia, “esse país foi criado por ‘maiores tolos’.”

É para se pensar. Há exatos dois meses, também falei da série, na sua estreia, propondo um debate sobre como se pode fazer jornalismo sério e de qualidade mesmo em um momento em que tudo parece jogar contra. Mas não dá para fazer isso ser sem idealista, sem ser tolo, sem insistir em algo em que ninguém mais aposta.

Imagino que esse sentimento impulsione pelo menos parte dos jovens que ainda buscam a faculdade de Jornalismo, mesmo com a queda da exigência do diploma para exercer a profissão. É a tal “síndrome de Clark Kent”. Pena que boa parte deles perde essa chama primordial ainda antes de se formar. Deveriam fazer um favor a si mesmos e à sociedade e procurar outra carreira.

Não quero menos jornalistas: quero mais! Essa é uma profissão apaixonante e que nos consome com nosso consentimento.

Não sou o único a pensar assim: Gabriel García Márquez fez um famoso discurso na 52ª assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa, em 1996, onde descreve aquele que chama de “melhor ofício do mundo” com sua maestria peculiar. Assim conclui:

“O jornalismo é uma paixão insaciável que só pode se digerir e se humanizar pelo seu confronto gritante com a realidade. Ninguém que não o tenha experimentado pode imaginar essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida. Ninguém que o não tenha vivido pode sequer conceber o que é a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo da primeira página, a demolição moral do fracasso. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir em um ofício tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não dá um momento de paz até que comece novamente com mais ardor que nunca no minuto seguinte”.

García Márquez estava certo. E McAvoy também.

Jornalismo de verdade na ficção

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[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=9gwSjAWhwqc]

Nesta semana, a série The Newsroom (sem título em português) estreou na HBO. Fiquei bem impressionado com o que vi: uma pequena aula de jornalismo sério em meio à dramaturgia de um seriado que pretende mostrar as histórias e as pessoas por trás de um telejornal. Se você perdeu o primeiro episódio, pode assisti-lo na íntegra online.

Não pretendo fazer aqui uma sinopse, mas devo dizer que, assim como a série In Treatment tinha um óbvio apelo a um público formado por psicólogos, The Newsroom deve agradar em cheio a jornalistas e a qualquer pessoa que se interesse pela indústria da notícia. E isso porque ela desmitifica a imagem criada em torno dos jornais e das pessoas. Mostra que a coisa vai muito além daquela piadinha dos coleguinhas que sugere que o William Bonner fica de cueca por trás da bancada do Jornal Nacional.

A primeira cena da série, reproduzida acima, já é um tapa na cara dado pelo ranzinza âncora Will McAvoy, protagonista da série. Mas o episódio fica bom mesmo a partir do meio, quando Jim, um produtor recém-chegado, recebe uma notícia bombástica de duas fontes. E, apesar da resistência explícita de Don, o produtor executivo que estava deixando o programa, ele vende a pauta para McAvoy, totalmente calcado em fatos. E o âncora compra a ideia e a matéria vai ao ar.

Don representa o que se vê por aí nas redações –de todas as mídias– ultimamente: um profissional acomodado em realizar o seu trabalho com o uso da tecnologia e outros facilitadores, e acovardado de apostar em uma pauta grandiosa. Seu faro jornalístico é limitado por uma forma de atuação aplaudida pelas empresas de mídia preocupadas em cortar custos, em que repórteres ficam presos nas redações, fazendo entrevistas por telefone ou –pior ainda– por e-mail. Mais que isso: amedrontados que um eventual erro lhes custe o pescoço e, dessa forma, preferem a segurança da mesmice e do óbvio. Não é de se admirar que os furos jornalísticos estejam cada vez mais raros e sem graça.

Jornalismo não é isso! Jornalismo é a combinação de inteligência, perspicácia, trabalho duro, relacionamento e –sempre– coragem. Jim Harper e Will McAvoy demonstraram isso no episódio. Isso deveria ser ensinado nas faculdades de jornalismo.

Na verdade, o episódio me lembrou uma aula específica de Ética há uns dez anos, ministrada por Jorge Tarquini (@JorgeTarquini), um dos melhores professores que eu tive (considerando as faculdades de Engenharia e de Jornalismo). Em determinado momento da aula, um colega se posicionou dizendo que “jornalista que quer manter o emprego” escreve apenas e sempre e do jeito que a chefia manda, que a liberdade de imprensa só funciona para o dono do jornal. Essa frase, digna de Assis Chateaubriand, não me passou pela garganta. Afinal, eu já estava no mercado há dez anos, e já tinha passado pela Folha, que os colegas adoram criticar por supostamente ter um jornalismo “pasteurizado”. E nunca fiz isso.

Seguiu-se um acalorado debate na aula. Não sei se consegui convencer o colega que o que ele tinha dito era uma tremenda bobagem: essa visão derrotista infelizmente se espalha como um vírus já entre os alunos de jornalismo. Quase sempre, o vírus mata o jornalista que cada um poderia se tornar. Felizmente, a ética, a moral e a coragem de alguns liquidam o vírus.

As faculdades de jornalismo, que sofrem com o fim da obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão, deveriam criar cadeiras de “coragem jornalística”. É possível –sim– fazer excelente jornalismo mesmo em ambientes hostis e competitivos. Precisamos de mais Jim Harpers.