Independência digital ou morte social

By 5 de setembro de 2022 Tecnologia No Comments
Montagem sobre recorte da tela “A Proclamação da Independência”, pintada pelo artista francês François-René Moreaux em 1844

Estamos na semana da Pátria. E não é qualquer uma: nesse 7 de Setembro, comemoramos 200 anos da independência do país. O Brasil merecia estar em melhor forma para uma data tão emblemática. Mas chegamos aqui com nossa sociedade rachada ao meio porque nossas paixões foram exacerbadas pelo meio digital, para o bem e para o mal. A quem isso interessa?

Não se trata de um fenômeno visto apenas no Brasil. A polarização social pelas redes floresceu nos Estados Unidos e se espalhou como uma erva daninha pelo mundo. Mas, por aqui, ela encontrou terreno fértil, pois adoramos redes sociais.

Não há nada de errado nisso, a princípio. Eu mesmo atuo fortemente nessas plataformas. O risco surge quando passamos a depender do que vemos nelas para tomarmos decisões cotidianas, terceirizando nosso senso crítico. É nessa hora, quando rebaixamos nossas defesas, que os oportunistas usam esses recursos digitais para nos manipular. E o resultado é um país que parece ter perdido sua capacidade de construir seu futuro de maneira unificada, como se, para um grupo satisfazer seus desejos, precisasse eliminar aqueles que pensam de maneira divergente.

Só que essa é a receita para o desastre!


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O poder de convencimento das redes sociais é tão fabuloso, que fica muito difícil escapar dele, por mais esclarecidos que sejamos sobre o problema. Afinal, elas trabalham com características essenciais de nossa psique. Em primeiro lugar, conseguem identificar do que gostamos e do que não gostamos, por mais que tentemos “furar a bolha”, seguindo pessoas e fontes de informação diversas.

Partindo dessa informação valiosíssima, elas privilegiam publicações que reforcem esses nossos desejos e medos, oferecendo elementos para se obter ou confirmar os primeiros e para fugir dos segundos. E isso é tudo que nosso instinto de autopreservação deseja. Por isso, acabamos confiando no que nos é jogado na cara.

Isso foi brilhantemente descrito no documentário “O Dilema das Redes” (Netflix, 2020). O mecanismo foi criado para nos vender todo tipo de produto, base do modelo de negócios dessas empresas. O problema é que tudo pode ser empacotado como um produto, até mesmo uma ideologia.

Políticos sempre mentiram e atacaram seus adversários. É como se não fosse possível fazer política sem lançar mão desses recursos. Mas, quando isso passa pelo efeito multiplicador das redes, as pessoas acreditam mais nas mentiras e muitas passam a encarar os adversários como verdadeiros inimigos. E isso não é debate político: é o império do ódio.

Podemos fazer um exercício e lembrar de como agíamos não muito tempo atrás. Tínhamos nossas preferências políticas, de quem gostávamos e de quem não gostávamos. Ainda assim, éramos capazes de conviver pacificamente com quem pensasse de maneira diferente de nós, e até trabalhar alegremente com essas pessoas. Hoje todo mundo conhece casos de familiares, amigos e colegas que cortam laços por esse motivo. Talvez nós mesmos já tenhamos feito isso!

Nessas horas, as redes sociais deixam de ser uma atividade divertida e se tornam um risco para a própria democracia. Nossa enorme dependência dessas plataformas promove a morte da sociedade.

 

Para onde caminhamos?

Afinal, estamos evoluindo ou regredindo como sociedade e como indivíduos?

A despeito de momentos sombrios como esse, que sempre permearam nossa história, entendo que a humanidade, na média, caminha para frente. Às vezes, voltamos um passo para depois avançarmos dois. E, em cada recorte, sempre haverá pontos em que avançamos e os que retrocedemos.

Temos as evoluções científicas, que crescem de maneira exponencial. Apenas para pegar um exemplo claro, basta ver a diferença de tratamentos e cuidados entre duas devastadoras pandemias, a da Gripe Espanhola e a da Covid-19, separadas por um século. Sem a tecnologia desenvolvida nesse intervalo, o novo coronavírus teria matado muitíssimo mais!

Avançamos também –e muito– em aspectos sociais. Nesse caso, as principais ferramentas são o debate e a informação de qualidade. Apesar de imperfeições, a mídia desempenha um papel crucial nesse sentido, informando a população sobre o que acontece tanto no seu bairro, quanto no mundo, apresentando novidades, apontando problemas, indicando caminhos.  Podemos usar o mesmo exemplo anterior, a pandemia de Covid-19: se não fossem os esclarecimentos feitos pela mídia, o total de mortos teriam sido terrivelmente maior.

Esse caso ilustra, de maneira bastante didática, porque não se deve acreditar no que chega até nós pelas redes sociais. As infames fake news são apenas uma ferramenta de um processo maior de desinformação que vem carcomendo nossa sociedade por dentro há muitos anos. Ainda em 2016, o Dicionário de Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano, definindo-a como “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

Às vezes, estar certo é quase uma maldição. Os editores da obra anteciparam o cenário em que vivemos hoje, descrevendo o funcionamento dos algoritmos de relevância das redes sociais e sua usurpação por diferentes grupos de poder.

“Desde a era da pedra, mitos foram reforçados a serviço da união da coletividade humana.” A afirmação é do historiador israelense Yuval Noah Harari, em seu livro “21 Lições para o Século 21” (2018). Ele continua: “O Homo sapiens conquistou esse planeta graças, sobretudo à habilidade humana única de criar e disseminar ficções.”

Em outras palavras, somos os únicos com a capacidade de acreditar em desconhecidos para construir algo com eles. A isso, damos o nome de sociedade! Dessa forma, se perdermos a capacidade de acreditar no próximo, deixaremos de fazer algo juntos, colocando a própria sociedade em risco!

A tomada de assalto das plataformas digitais pela política as transformou nas ferramentas perfeitas para que esses grupos atinjam e se mantenham no poder. A mecânica é elevar irresponsavelmente a polarização, a intolerância, o ódio a patamares perigosíssimos. Não é à toa que brasileiros estão literalmente resolvendo até pequenas diferenças a bala, nas ruas, no trânsito, em shows, em igrejas e até em festas de aniversário! Nesse ano, isso aconteceu assustadoramente em todos esses lugares, em diferentes regiões do país.

Isso não é democracia, não é independência. Precisamos resgatar nossa capacidade de pensar com um cérebro livre e sentir com um coração leve, ou teremos o triunfo da morte. E não era essa a proposta do aclamado “Grito do Ipiranga”.