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Na batalha da desinformação, a verdade foi a primeira vítima e agora todos sofremos

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Na primeira semana do novo governo, uma das ações mais polêmicas foi a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, vinculada à AGU (Advocacia-Geral da União). Polêmica que ficou nanica diante do violento ataque à democracia cometido neste domingo, em Brasília. Mas justamente por esses atos antes impensáveis, essa análise ganha ainda mais importância, pois o problema não está distante, e sim algo que toca todos nós, em nossas telas de smartphones e computadores.

A polêmica em torno da criação da nova Procuradoria, que tem como um dos objetivos o combate à desinformação, gira, entre outras coisas, pela definição apresentada para o próprio termo, o que, argumentam alguns, poderia transformá-lo em um instrumento de censura.

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Isso acontece porque, qualquer que seja o lado do conflito, seus cidadãos nunca têm acesso ao ponto de vista e a informações do inimigo. Assim, seus governantes podem manipular os fatos e usá-los como uma “verdade” para seu benefício próprio. É o que se observa hoje claramente na guerra da Ucrânia.

Mas em tempos de redes sociais onipresentes e onipotentes, todos nós sofremos os efeitos de outro tipo de guerra inescapável, que culminou na destruição generalizada na praça dos Três Poderes neste domingo: a da dita desinformação, que tem nas fake news sua maior arma.

Na desinformação, apesar de estarmos todos “do mesmo lado”, cada pessoa recebe informações filtradas pelos algoritmos que a ajudam a reforçar pontos de vista existentes, incluindo preconceitos e mentiras. E, também nesse caso, os grupos de poder manipulam os fatos, para criar “suas verdades”.

Por tudo isso, ninguém questiona a necessidade de se combater a desinformação, que rachou a sociedade brasileira e a levou à beira desse precipício político nunca visto desde a redemocratização.


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O ponto central da polêmica no combate à desinformação foi como ela foi definida pelo novo órgão: “mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”.

Em tese, essa definição é válida. O problema é que não deveria dar espaço a interpretações livres dos envolvidos, mas acaba abrindo brechas para isso com adjetivos, advérbios ou pontos que dependem de comprovação.

A preocupação é legítima pelo histórico de governos de diferentes ideologias de usarem a musculatura estatal e brechas da legislação para legitimar atos questionáveis de aliados e questionar ações legítimas de opositores ou de quem simplesmente os critique. A imprensa é vítima costumaz desse mecanismo, com censuras judiciais e, em anos mais recentes, com a perseguição violenta e até a desumanização de jornalistas por iniciativa de governantes. E, graças ao enorme poder de convencimento das redes sociais, uma parcela significativa da população comprou essa ideia e a pratica.

A AGU declarou, em nota, que “desinformação e mentira são diferentes do sagrado benefício da liberdade de expressão” e que “não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa”.

“A gente precisa compreender que, quando se fala em desinformação, precisamos partir de um conceito mais amplo para ‘dar um norte’ sobre o que a gente está conversando”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Mas também é importante entender que esse conceito mais amplo não pode ser o que vai definir o resultado de uma ação contra a desinformação.”

Ele lembra que a AGU não é uma instituição de governo, é sim de Estado. Dessa forma, não faz parte de suas atribuições defender governantes, apesar de ser responsável pela orientação jurídica do Poder Executivo.

Assim a instituição não poderia censurar ou punir ninguém, um papel do Judiciário. O risco recai no histórico de governos de extrapolar esses limites e, de certa forma, usurpar suas atribuições em anos anteriores.

 

A maltratada liberdade de expressão

Nada disso seria necessário se a sociedade não tivesse descambado nesse vale-tudo em que se incite ou efetivamente se pratique diversos crimes e que, depois, isso seja “desculpado” com uma “aparentemente magia” chamada liberdade de expressão.

“O que aconteceu nesses últimos anos é que discursos golpistas, autoritários, desinformativos foram propagados sob uma chancela de que se estava praticando liberdade de expressão”, explica Crespo. “Como isso foi feito durante muitos anos, em sequência, por muitas pessoas de diferentes instituições, ficou parecendo que liberdade de expressão é isso”.

Mas ela não determina tudo o que pode ser dito. Pelo contrário, em tese, pode-se falar qualquer coisa, desde que isso não configure um crime, contravenção, invada a liberdade de outra pessoa ou a coloque em algum tipo de risco, por exemplo.

Nesse sentido, a iniciativa da AGU pode ser muito positiva, desde que seja bem executada e respeitada pelo próprio governo, pois, em empresas e na sociedade, as pessoas seguem o exemplo de seus líderes. “Quando os nossos dirigentes políticos adotam comportamento violadores da ética, dos bons costumes, das boas práticas, das boas maneiras, da inclusão, da diversidade, do respeito, é muito mais fácil insuflar a população a ir contra isso tudo também”, sugere Crespo.

Em outras palavras, a guerra conta a desinformação tem diversas frentes. Oferecer uma boa definição, que não crie mais dúvidas que certezas, é uma delas. Precisamos também que os órgãos dos três Poderes da República executem adequadamente suas funções, deixando ao Judiciário o papel de proibir ou punir.

Sobre isso tudo, precisamos de bons exemplos de expoentes diversos de nossa sociedade, figurando, em primeiríssimo lugar, nossos governantes. A situação dramática em que estamos vivendo, com nosso tecido social feito trapo e a democracia sob ataque, resulta de um consistente processo destrutivo dos últimos anos.

Resta saber se o novo governo resistirá ao apelo fácil de fazer o mesmo com a desinformação, apenas com outra ideologia. Torço para que resista a isso e tenha sucesso na reconstrução de nossa sociedade, sem fazer mais vítimas nessa guerra contra a desinformação.

 

Tomamos decisões racionais o tempo todo, mas elas são fortemente influenciadas por emoções, como sugere a animação “Divertida Mente”

Somos escravos de nossos desejos e medos

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Passamos pela eleição mais tensa de nossa história, com uma polarização radical que fraturou a sociedade brasileira. Apoiadores de ambos os lados ainda se perguntam como alguns de seus familiares, amigos e colegas, que “consideravam razoáveis”, defendem ideias “do outro lado”. Mas tentar entender isso com argumentos racionais é uma tarefa inglória, pois esses alinhamentos são emocionais, por mais que os próprios indivíduos não tenham consciência disso.

Somos guiados pelos nossos sentimentos! Estudo da Faculdade de Psicologia da Universidade da California em Berkeley (EUA) sugere que temos 27 tipos deles. Entre emoções dessa lista, como alegria, ansiedade, empatia, tédio e excitação, duas são fundamentais para compreender esses tempos complexos: o desejo e o medo.

Desejar não é apenas querer algo ou alguém. É algo muito mais intenso e visceral! É um sentimento extremamente poderoso, que nos impulsiona e nos faz tomar decisões. Já o medo funciona em sentido contrário. Ele nos paralisa e impede de fazer escolhas.

Políticos sempre tentaram manipular as populações para conseguir votos. Entretanto, de uns anos para cá, descobriram que, se conseguissem se concentrar nesses dois sentimentos, trocariam eleitores por soldados dispostos a defender seus ideais contra tudo e todos. Essa é uma prática extremamente perigosa, pois pode estraçalhar o tecido social. Ainda assim, fizeram isso sem pestanejar! E o resultado é o que vivemos hoje e ainda viveremos por muitos anos.


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Em 2015, a Pixar lançou sua memorável animação “Divertida Mente”, construída sobre esse conceito. Na história, todos os seres vivos teriam, em seus cérebros, cinco “pequenos indivíduos”, cada um deles representando uma emoção: a Alegria, a Tristeza, o Medo, a Raiva e o Nojo. Lá, teriam acesso a um “painel de comando”, que determinava como cada pessoa agia.

Nosso cérebro é fabuloso! Com ele, tomamos nossas decisões. Entretanto, por mais racional que uma escolha seja, ela pode ser profundamente influenciada por emoções, como se os sentimentos fossem ingredientes dela. Esse é, aliás, o princípio dos “gatilhos mentais”, recursos dos quais equipes de marketing vêm abusando nos últimos anos, para que consumidores “escolham racionalmente” produtos a partir de emoções “plantadas” em suas cabeças pelas campanhas publicitárias.

De volta à realidade um tanto distópica em que estamos imersos, as redes sociais desempenham papéis fundamentais para que os políticos manipulem as massas. O primeiro deles é ajudá-los a descobrir o que as pessoas desejam e do que elas têm medo em dado momento. Afinal, não é possível construir qualquer narrativa visando o controle de mentes se não souberem isso.

A outra função dessas plataformas é servir de veículo para disseminar, em gigantesca quantidade, suas mensagens. Elas são cuidadosamente produzidas para que as pessoas vejam, em determinado candidato, aquele que viabilizará seus desejos e os protegerá de seus medos. E seus algoritmos de relevância se prestam cinicamente a esse serviço sujo, pois as redes sociais lucram com a polarização.

Logo, quem domina o meio digital tem mais chance de transformar suas ideias em “verdades”.

 

O campo de batalha online

Faz todo sentido, portanto, que “pós-verdade” tenha sido escolhida como a palavra do ano de 2016 pelo renomado Dicionário Oxford. Pela sua definição, o termo é “relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”. Ou seja, as pessoas hoje preferem acreditar naquilo que esteja em linha com seus desejos, por mais que seja uma invenção escandalosa.

Disso vêm as fake news. Elas deliberadamente mentem para que determinado grupo atinja seus objetivos, manipulando as emoções da população. E não se trata de simples boatos, pois são produzidas com método, impactando primeiro aqueles que gostariam que aquilo fosse verdade: isso aumenta seu engajamento inicial, o que leva os algoritmos das redes sociais a distribuir a mentira em grande quantidade.

A série “The Boys”, da Amazon Prime Video, ilustra isso muito bem. Nessa paródia das histórias de super-heróis, superseres fazem ações heroicas midiáticas nas redes sociais apenas para que a população os ame e, assim, compre todo tipo de produtos com suas marcas. Mas, em sua segunda temporada, surge uma personagem que percebe que obter o amor das massas é cada vez mais difícil e pouco produtivo. Ao invés disso, descobre que é mais eficiente manipular o ódio da sociedade. Para ela, é muito melhor ter soldados que fãs, e que cinco milhões de pessoas movidas pelo ódio são mais efetivas que cinquenta milhões com amor. Ela entendeu que não vivemos mais no mundo da cultura de massas, e sim da “viralização”.

Políticos que usam esse método trabalham com o medo da população, pois ele é capaz de travar as pessoas e deixá-las cegas. E, uma vez que elas ultrapassem determinado limiar de ódio e de medo, são facilmente controláveis, até mesmo pelo mecanismo do “apito do cachorro”: comandos que as demais pessoas não percebem, mas que são eficientes para agitar os “comandados” para executar as ordens de seus líderes. Basta observar como costumam seguir ações de maneira coordenada.

Dessa forma, chegamos ao atual cenário de uma nação devastada pelo ódio. Mas há esperança, e ela vem dos mais jovens. O estudo internacional “A nova dinâmica da influência”, divulgado em 22 de setembro pela consultoria americana Edelman, mostra que a Geração Z (pessoas hoje entre 14 e 26 anos de idade) é movida –e não paralisada– pelo medo. Isso demonstra uma percepção mais madura sobre essa poderosa emoção, que existe para nossa autopreservação. Por isso, 70% deles estão envolvidos em causas sociais ou políticas.

Os mais jovens querem resgatar a política como uma ferramenta de transformação social para um mundo mais justo e igualitário, com relações mais transparentes e honestas. Segundo o estudo, eles se preocupam com temas ligados à natureza, saúde, direitos humanos, justiça racial e igualdade de gênero. Esperam ainda que as empresas atuem como parceiras para que esses objetivos sejam atingidos.

Costumo dizer que a melhor maneira de anteciparmos o futuro é olhando para os jovens. Nesse sentido, é reconfortante observar esse comportamento da Geração Z.

Nossas emoções nos definem! Precisamos ter consciência de nossos sentimentos para aprender e crescer com eles, e não ser dominados a partir deles. Os mais jovens já estão fazendo isso. Você consegue também?

 

Montagem sobre recorte da tela “A Proclamação da Independência”, pintada pelo artista francês François-René Moreaux em 1844

Independência digital ou morte social

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Estamos na semana da Pátria. E não é qualquer uma: nesse 7 de Setembro, comemoramos 200 anos da independência do país. O Brasil merecia estar em melhor forma para uma data tão emblemática. Mas chegamos aqui com nossa sociedade rachada ao meio porque nossas paixões foram exacerbadas pelo meio digital, para o bem e para o mal. A quem isso interessa?

Não se trata de um fenômeno visto apenas no Brasil. A polarização social pelas redes floresceu nos Estados Unidos e se espalhou como uma erva daninha pelo mundo. Mas, por aqui, ela encontrou terreno fértil, pois adoramos redes sociais.

Não há nada de errado nisso, a princípio. Eu mesmo atuo fortemente nessas plataformas. O risco surge quando passamos a depender do que vemos nelas para tomarmos decisões cotidianas, terceirizando nosso senso crítico. É nessa hora, quando rebaixamos nossas defesas, que os oportunistas usam esses recursos digitais para nos manipular. E o resultado é um país que parece ter perdido sua capacidade de construir seu futuro de maneira unificada, como se, para um grupo satisfazer seus desejos, precisasse eliminar aqueles que pensam de maneira divergente.

Só que essa é a receita para o desastre!


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O poder de convencimento das redes sociais é tão fabuloso, que fica muito difícil escapar dele, por mais esclarecidos que sejamos sobre o problema. Afinal, elas trabalham com características essenciais de nossa psique. Em primeiro lugar, conseguem identificar do que gostamos e do que não gostamos, por mais que tentemos “furar a bolha”, seguindo pessoas e fontes de informação diversas.

Partindo dessa informação valiosíssima, elas privilegiam publicações que reforcem esses nossos desejos e medos, oferecendo elementos para se obter ou confirmar os primeiros e para fugir dos segundos. E isso é tudo que nosso instinto de autopreservação deseja. Por isso, acabamos confiando no que nos é jogado na cara.

Isso foi brilhantemente descrito no documentário “O Dilema das Redes” (Netflix, 2020). O mecanismo foi criado para nos vender todo tipo de produto, base do modelo de negócios dessas empresas. O problema é que tudo pode ser empacotado como um produto, até mesmo uma ideologia.

Políticos sempre mentiram e atacaram seus adversários. É como se não fosse possível fazer política sem lançar mão desses recursos. Mas, quando isso passa pelo efeito multiplicador das redes, as pessoas acreditam mais nas mentiras e muitas passam a encarar os adversários como verdadeiros inimigos. E isso não é debate político: é o império do ódio.

Podemos fazer um exercício e lembrar de como agíamos não muito tempo atrás. Tínhamos nossas preferências políticas, de quem gostávamos e de quem não gostávamos. Ainda assim, éramos capazes de conviver pacificamente com quem pensasse de maneira diferente de nós, e até trabalhar alegremente com essas pessoas. Hoje todo mundo conhece casos de familiares, amigos e colegas que cortam laços por esse motivo. Talvez nós mesmos já tenhamos feito isso!

Nessas horas, as redes sociais deixam de ser uma atividade divertida e se tornam um risco para a própria democracia. Nossa enorme dependência dessas plataformas promove a morte da sociedade.

 

Para onde caminhamos?

Afinal, estamos evoluindo ou regredindo como sociedade e como indivíduos?

A despeito de momentos sombrios como esse, que sempre permearam nossa história, entendo que a humanidade, na média, caminha para frente. Às vezes, voltamos um passo para depois avançarmos dois. E, em cada recorte, sempre haverá pontos em que avançamos e os que retrocedemos.

Temos as evoluções científicas, que crescem de maneira exponencial. Apenas para pegar um exemplo claro, basta ver a diferença de tratamentos e cuidados entre duas devastadoras pandemias, a da Gripe Espanhola e a da Covid-19, separadas por um século. Sem a tecnologia desenvolvida nesse intervalo, o novo coronavírus teria matado muitíssimo mais!

Avançamos também –e muito– em aspectos sociais. Nesse caso, as principais ferramentas são o debate e a informação de qualidade. Apesar de imperfeições, a mídia desempenha um papel crucial nesse sentido, informando a população sobre o que acontece tanto no seu bairro, quanto no mundo, apresentando novidades, apontando problemas, indicando caminhos.  Podemos usar o mesmo exemplo anterior, a pandemia de Covid-19: se não fossem os esclarecimentos feitos pela mídia, o total de mortos teriam sido terrivelmente maior.

Esse caso ilustra, de maneira bastante didática, porque não se deve acreditar no que chega até nós pelas redes sociais. As infames fake news são apenas uma ferramenta de um processo maior de desinformação que vem carcomendo nossa sociedade por dentro há muitos anos. Ainda em 2016, o Dicionário de Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano, definindo-a como “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

Às vezes, estar certo é quase uma maldição. Os editores da obra anteciparam o cenário em que vivemos hoje, descrevendo o funcionamento dos algoritmos de relevância das redes sociais e sua usurpação por diferentes grupos de poder.

“Desde a era da pedra, mitos foram reforçados a serviço da união da coletividade humana.” A afirmação é do historiador israelense Yuval Noah Harari, em seu livro “21 Lições para o Século 21” (2018). Ele continua: “O Homo sapiens conquistou esse planeta graças, sobretudo à habilidade humana única de criar e disseminar ficções.”

Em outras palavras, somos os únicos com a capacidade de acreditar em desconhecidos para construir algo com eles. A isso, damos o nome de sociedade! Dessa forma, se perdermos a capacidade de acreditar no próximo, deixaremos de fazer algo juntos, colocando a própria sociedade em risco!

A tomada de assalto das plataformas digitais pela política as transformou nas ferramentas perfeitas para que esses grupos atinjam e se mantenham no poder. A mecânica é elevar irresponsavelmente a polarização, a intolerância, o ódio a patamares perigosíssimos. Não é à toa que brasileiros estão literalmente resolvendo até pequenas diferenças a bala, nas ruas, no trânsito, em shows, em igrejas e até em festas de aniversário! Nesse ano, isso aconteceu assustadoramente em todos esses lugares, em diferentes regiões do país.

Isso não é democracia, não é independência. Precisamos resgatar nossa capacidade de pensar com um cérebro livre e sentir com um coração leve, ou teremos o triunfo da morte. E não era essa a proposta do aclamado “Grito do Ipiranga”.

 

Mark Zuckerberg, CEO da Meta, controladora do Facebook, do Instagram e do WhatsApp

Zuckerberg tornou-se o cabo eleitoral mais cobiçado do mundo

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Com a campanha eleitoral oficialmente na rua, a temperatura nos caldeirões políticos aumentou. E, assim como aconteceu em 2018, o vencedor para o cargo de presidente da República será decidido, em grande parte, com o apoio das redes sociais. A diferença é que, nesses quatro anos, os principais atores dessa disputa aprenderam a manipular ainda mais esse recurso, para que suas mensagens cheguem aos eleitores de maneira contundente.

Resta saber se o resto da sociedade consegue lidar com as consequências disso.

As plataformas digitais também entenderam seu papel determinante nesse cenário, tanto pela sua capacidade de influenciar os eleitores, quanto pelos efeitos que têm nisso. A última eleição presidencial americana escancarou o problema, deixando os Estados Unidos rachados ao meio até hoje, 19 meses após a catastrófica invasão do Congresso americano por seguidores do ex-presidente Donald Trump. Graças à incapacidade das plataformas digitais de lidar com as fake news e o discurso de ódio, aquelas pessoas ainda acreditam que Trump teve sua reeleição roubada, a ponto de tentar impedir à força a confirmação da vitória de Joe Biden.

Agora, a menos de dois meses do primeiro turno das eleições brasileiras, é legítimo questionar se as redes sociais aprenderam algo com isso, e o que nós podemos aproveitar da experiência americana.


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Essas empresas parecem estar dispostas a colaborar para que o cenário americano não se repita por aqui. Tanto que a Meta (controladora do Facebook, do Instagram e do WhatsApp), o Google (dono do YouTube), o TikTok, o Twitter e o Kwai firmaram um acordo de colaboração com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em fevereiro. O LinkedIn (pertencente à Microsoft) se juntou a eles em março e o Spotify fez o mesmo em maio. O Telegram veio na sequência, após ser ameaçado de ser banido do país, por não combater notícias falsas e discurso de ódio.

Os acordos não garantem, entretanto, o fim desse conteúdo. “É muito mais uma boa vontade de dizer que estarão mais a postos para tentar cumprir rapidamente as decisões judiciais”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “A legislação eleitoral tem prazos muito curtos, alguns até em horas, justamente pela importância e urgência do tema”, explica.

O TSE não tem como verificar ativamente se as plataformas estão cumprindo o acordo, e nem é assim que funciona. A Justiça, por padrão, age após ser acionada por outros agentes da sociedade, como a polícia, advogados e até cidadãos. “Se tiver uma situação em que o acordo escandalosamente está sendo descumprido –e a mídia acaba repercutindo isso– isso chega ao conhecimento Tribunal, e aí existe esse tipo de ação”, explica Crespo. Ainda assim, isso se limita basicamente a pedidos de colaboração às plataformas, por exemplo para removerem rapidamente conteúdos comprovadamente nocivos.

De toda forma, criou-se uma expectativa de que as plataformas digitais atuassem fortemente para combater tais publicações. Mas não é o que está acontecendo.

As empresas se esquivam de detalhar o investimento em equipes e tecnologias (especialmente inteligência artificial) adotadas para essa finalidade. Devido ao enorme volume de conteúdo publicado pelos seus usuários, os algoritmos fazem a primeira filtragem do que é inapropriado, mas pessoas são necessárias para verificar casos duvidosos e calibrar o sistema. Ambos são necessários para um combate eficiente.

Relatório divulgado recentemente por pesquisadores do INCT.DD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital), da UFBA (Universidade Federal da Bahia), demonstra que, apesar do memorando entre essas empresas e o TSE, seus sistemas ainda apresentam muitas brechas que são exploradas pelos propagadores de notícias falsas. Além disso, em muitos casos, esses conteúdos, mesmo identificados, não são removidos, tendo apenas o seu alcance restringido.

Aí reside uma das grandes críticas internacionais a essas plataformas. Por piores que sejam, esses conteúdos geram enorme audiência, o que é bom para seu negócio. Logo, se eles fossem todos eliminados, isso iria contra seus interesses comerciais.

 

O “ouro do bandido”

Frances Haugen confirma isso. A ex-gerente da equipe de integridade cívica do Facebook ficou famosa em outubro, ao dizer que a empresa conscientemente coloca seus lucros à frente do bem-estar de seus usuários, no escândalo conhecido por “Facebook Papers”. “Quando recompensamos o engajamento ao invés de comunicação construtiva, ao invés de colaboração, acabamos dando mais alcance às ideias mais extremas”, disse.

Em julho, ela participou de uma audiência pública da Câmara dos Deputados sobre o tema. Lá explicou que, por isso, essas empresas não são tão transparentes. Haugen acusou a Meta de se empenhar mais no combate a conteúdos nocivos onde sofre mais risco de ser regulamentada, como os Estados Unidos. Por isso, depois da eleição americana, teria sobrado pouco daquela estrutura de combate à desinformação para o Brasil. Explicou ainda que os sistemas de inteligência artificial são menos eficientes para idiomas que não o inglês.

Tudo isso facilita a vida de quem se beneficia das fake news. Para tornar o cenário ainda mais desafiador, eles usam plataformas de uma empresa para promover conteúdos em serviços de concorrentes, como destacar no Telegram vídeos com desinformação no YouTube. Como são concorrentes, eles não trabalham juntos nesse combate, e a Justiça não tem mecanismos para fazer tal verificação cruzada.

Quero crer que Mark Zuckerberg não pensava em nada disso quando criou o Facebook em seu dormitório estudantil de Harvard, em 2004. Mas é inegável o poder de convencimento que essas empresas têm sobre bilhões de usuários. Ainda que elas não atuem politicamente, suas ferramentas se prestam a pessoas inescrupulosas, criando uma máquina de mentiras quase perfeita, sem precedentes na humanidade.

De certa forma, essas empresas se tornaram muito mais poderosas que os países onde atuam. “Eu acredito que tamanho poder precisa, de alguma forma, ser regulado”, afirma Crespo. Mas o professor explica que isso não pode ser feito de modo a censurar ou a coibir a inovação. Além disso, ele lembra que leis que tentam regular tecnologias de maneira muito detalhada acabam ficando obsoletas rapidamente.

Por tudo isso, a menos de dois meses das eleições, a colaboração entre as big techs e o TSE não está conseguindo conter o esperado aumento do discurso de ódio, da intolerância e de todo tipo de notícias falsas nas plataformas digitais. Parte da sociedade assiste atônita à escalada da violência explícita e até de discursos a favor de um golpe militar.

Que saudades dos tempos em que as redes sociais eram usadas apenas para atividades saudáveis, como encontrar amigos. Só espero que elas não levem o Brasil ao mesmo abismo em que jogaram a sociedade americana.

 

Levantamento global demonstra que países cujos governos negaram a ciência tiveram proporcionalmente mais casos e mortes por Covid-19

A verdade não pode perder o seu valor ou todos pereceremos

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Nessa semana, conversava com uma pessoa que disse que o meu “problema” é que eu vendo um “produto” que anda em baixa no mercado: no caso, a verdade. Mas quando as pessoas perdem seu apreço pela verdade, uma série de aspectos civilizatórios vão para o ralo com ela, abrindo caminho para todo tipo de mazelas.

Nesse sentido, foi emblemático um acontecimento neste sábado, durante o Brazil Forum UK, realizado em Oxford (Inglaterra). Enquanto defendia o sistema eleitoral brasileiro, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e ex-presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Luís Roberto Barroso foi interrompido e chamado de “mentiroso” por duas pessoas na plateia.

Barroso parou sua fala para explicar que “esse é um dos problemas que nós estamos enfrentando no Brasil, um déficit imenso de civilidade”. E, de fato, é uma pena ver parte da população querer “ganhar no grito” quando lhe faltam argumentos diante dos fatos. Quanto mais rumamos para esse caminho da barbárie, mais a democracia e a própria sociedade se esfacelam. E isso não se dá apenas por uma inconsequente batalha de narrativas.


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Daqui a cem anos, talvez os historiadores olhem para essa época como nós olhamos para os anos após a Primeira Guerra Mundial. Eles produziram os elementos para o surgimento do fascismo italiano e do nazismo alemão, que culminaram na Segunda Guerra e no Holocausto.

A despeito da grotesca invasão da Ucrânia pelo presidente russo, Vladimir Putin, quero crer que não estejamos caminhando para a Terceira Guerra Mundial. Mas essa época ficará marcada por algo de enorme dramaticidade social, que é a substituição da verdade por narrativas falaciosas, para atender a interesses de grupos políticos que aprenderam a usar os meios digitais para manipular as massas com enorme eficiência.

Não se trata apenas de narrativas inofensivas. Por exemplo, o estudo “Estimando Infecções Diárias e Cumulativas Globais, Regionais e Nacionais com SARS-CoV-2”, recém publicado na prestigiosa revista médica “The Lancet”, escancara como países cujos governos negaram ou postergaram as indicações científicas contra a doença, como vacinação, uso de máscaras e distanciamento social, e abraçaram teorias conspiratórias e medidas inócuas de combate ao vírus tiveram proporcionalmente muito mais infectados e mortos que aqueles que se valeram da verdade.

Isso pode parecer óbvio, mas o óbvio precisa ser dito, especialmente quando a Covid-19 continua vitimando pessoas por esses motivos.

Outro indicador de que a verdade vai muito mal em nosso país pode ser visto no também recém-publicado “Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2022”. O levantamento é feito anualmente pela instituição Americas Society/Council of the Americas e pela consultoria Control Risks, e avalia 14 critérios, como a independência das instituições judiciais, o combate a desvios de recursos e a força do jornalismo.

O Brasil infelizmente está em queda livre. Em um ano, caímos da sexta para a décima posição, de um total de 15 países, ficando atrás do líder Uruguai e de vizinhos como Peru, Argentina e Colômbia. Na primeira edição, realizada em 2019, o Brasil era o segundo no ranking, atrás apenas do Chile, que aparece em terceiro agora.

Segundo o relatório, o Brasil piorou com os ataques à independência e à eficiência das agências anticorrupção, mas destaca positivamente a resiliência do STF e do TSE ao processo de desgaste junto à população com fake news. Dos 14 critérios, a pior nota (de 0 a 10) do Brasil ficou em “processos legislativos e normativos”, com mísero 1,3, bem abaixo da média regional.

Há, entretanto, esperança para a verdade no estudo: nossa melhor nota ficou em “qualidade da imprensa e jornalismo investigativo”, onde cravamos 7,5, acima da média dos países avaliados.

 

Fato ou versão?

A desmoralização da verdade não vem de hoje. Esse processo ganhou força há cerca de uma década, como ferramenta de ascensão ao poder. Tanto que o mecanismo foi destacado em 2016 pelo renomado Dicionário Oxford. Naquela edição, seus organizadores elegeram “pós-verdade” como a “palavra do ano”. Na sua definição, ela é “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

A mentira sempre foi uma poderosa ferramenta na mão de pessoas inescrupulosas para atingir seus objetivos controlando as massas. Basta lembrar da máxima forjada por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolph Hitler, para legitimar suas atrocidades: “uma mentira dita uma vez é apenas uma mentira; já uma mentira dita mil vezes se torna verdade”.

Para conseguir o que queria, o Fürher destruiu os mecanismos de controle do governo e submeteu a imprensa. Com um discurso nacionalista, pôde escolher os “inimigos do povo alemão”, que o abraçou cegamente em sua jornada de horrores. Quem discordasse era sumariamente eliminado.

A diferença é que, de uma década para cá, populistas do mundo todo descobriram nas redes sociais a ferramenta perfeita para dizerem uma mentira não apenas mil vezes, mas um milhão de vezes! Em linha com a definição de pós-verdade do Dicionário Oxford, manipulam a emoção de milhões de pessoas, que os defendem mesmo diante de fatos inegáveis e amplamente conhecidos, mesmo diante da barbárie e da ausência de civilidade.

Nesse aspecto, retrocedemos quatro décadas. As instituições democráticas continuam sendo alvejadas e muitas já estão em ruínas. Ainda assim, por mais que tenhamos “voltado muitas casas no Jogo da Vida” com as mentiras, sempre podemos dar novos passos para a frente com a verdade. Assim o ser humano evolui.

A verdade é o que é, mesmo quando ela nos desagrada. As pessoas precisam parar de acreditar em quem distorce a realidade para que ela fique mais palatável a seus desejos e crenças. Por mais que isso possa trazer um conforto momentâneo, no final das contas, os únicos beneficiados serão aqueles que plantam as mentiras.

“Precisamos resgatar a civilidade, que é a capacidade de divergir com respeito e consideração pelo outro”, disse Barroso em Oxford, no sábado. Para o ministro do STF, “nós viramos um país de ofensas”.

Precisamos mesmo! Sem civilidade, sem verdade, não há esperança. Como diz o ditado, “o pior cego é o que não quer ver”. Pior ainda é quem se faz de cego por conveniência.

 

Elon Musk, que decidiu suspender temporariamente a compra do Twitter para saber quantos usuários falsos existem na plataforma

Por que usuários falsos incomodam Elon Musk e atrapalham nossas vidas

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Elon Musk, o homem mais rico do mundo, adora aparecer na mídia. Desde o dia 25 de abril, quando formalizou sua proposta de compra do Twitter por US$ 44 bilhões, ele não sai do noticiário. No dia 13, ele acrescentou mais um capítulo nessa novela, dizendo que havia suspendido temporariamente o negócio, até ter certeza sobre a quantidade de usuários falsos na plataforma. Muita gente não vê problemas nisso, mas esses perfis atrapalham os negócios de qualquer rede social e pioram muito a vida de todos nós.

Longe de ser um problema restrito a essas plataformas digitais, os usuários falsos se transformaram em um câncer social, justamente pelo poder de convencimento que elas têm sobre bilhões de pessoas. Suas ações podem literalmente distorcer a realidade, legitimando verdadeiros absurdos.

Portanto, goste-se ou não das ideias de Musk por trás de sua compra do Twitter, esse recuo do bilionário no negócio pode ser educativo.


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“O acordo com o Twitter está suspenso temporariamente aguardando detalhes que sustentem o cálculo de que spams/contas falsas de fato representam menos de 5% dos usuários”, disse Musk em um tuíte.

Essa estimativa é do próprio Twitter, mas especialistas acreditam que essas contas falsas possam chegar a 30% do total da base. O próprio Musk ventilou recentemente a possibilidade de que mais de 90% dos usuários do Twitter sejam contas falsas. Isso seria uma tragédia, mas demonstraria o tamanho do problema.

No primeiro trimestre, o Twitter reportou 229 milhões de usuários ativos diariamente, 15,9% a mais que há um ano. Só que, quanto maior a porcentagem de contas falsas, menos atraente a plataforma fica para anunciantes. Por isso, Musk quer mais detalhes desses números da plataforma. Analistas acreditam que ele possa até pedir um desconto sobre o valor oferecido pela compra.

Por trás dessa preocupação de Musk, existe uma indústria que polui as conversas e atrapalha a vida de quem busca um engajamento honesto nas redes sociais. Ela se divide entre bots (sistemas que controlam perfis como se fossem pessoas) e trabalhadores reais que controlam centenas de contas falsas. As duas modalidades têm o mesmo objetivo: gerar artificialmente uma enorme quantidade de interações para quem os contrata.

Isso é resultado dos algoritmos das redes sociais. Nada faz um assunto, pessoa ou empresa ficar tão popular quanto um alto engajamento (seguir perfis, curtir ou comentar publicações). Por isso, algumas empresas descobriram que poderiam oferecer esse serviço àqueles que desejassem colher frutos de grandes exposições digitais.

A prática é proibida por todas as redes sociais. Elas possuem algoritmos para identificar esses perfis inautênticos, eliminando sumariamente todos que encontra. Até os perfis de quem contrata esses serviços podem ser penalizados, com perda de relevância, suspensão e até bloqueio definitivo.

É por isso que contas falsas controladas por pessoas são mais valorizadas que as por bots. Ainda assim, como esses trabalhadores ganham das “fazendas de cliques” que os contratam apenas milésimos de real por cada interação, eles se veem forçados a operar centenas de contas e automatizar as tarefas, para que tenham um ganho razoável. Isso acaba aumentando o risco para eles mesmos e para quem os contrata.

Portanto, o sucesso desse trabalho passa por criar contas e interações que se pareçam legítimas. Nas próprias redes, há muitas dicas para isso. Existe até um negócio derivado dele, que são empresas dedicadas a criar perfis que se pareçam legítimos.

Uma das dicas que circulam por aí é não usar fotos de pessoas reais, e sim imagens geradas por inteligência artificial, evitando o crime de falsa identidade. Os defensores da prática dizem que assim os perfis não seriam falsos. Mas isso é como dizer que uma nota de R$ 300 é legítima só porque foi impressa em casa, depois de ter sido criada no Photoshop.

 

Distorção da realidade

As redes sociais combatem essa prática porque contraria os interesses de seu negócio. Todas elas faturam milhões entregando publicidade a quem têm grande chance de comprar o produto anunciado. Sua assertividade depende da coleta de informações de cada um de seus usuários, o que é feito pelas interações de todos e pelo cruzamento de dados de usuários.

As contas falsas atrapalham isso porque podem confundir os algoritmos nessa coleta, diminuindo a efetividade dos anúncios. Além disso, contas falsas e bots não compram nada! Por isso, ambos tornam as plataformas menos atraentes para os anunciantes.

Para os usuários, essa turma também provoca pesados prejuízos. Na semana passada, em uma aula sobre fake news que ministrei na pós-graduação em Direito Digital e Compliance da Damásio Educacional, expliquei que os algoritmos das redes sociais tentam nos mostrar conteúdos que consideremos interessantes, para que continuemos usando a plataforma. Mas a ação desses fakes faz com que deixemos de ver aquilo que nos interessaria para ver o que desejam políticos, empresas e qualquer um que queira nos convencer de algo.

Isso é um grande negócio para eles! As plataformas digitais ocupam hoje um espaço tão central em nossas vidas, que a massificação de qualquer ideia em suas páginas transforma em uma aparente verdade mesmo uma completa bobagem. E assim as massas são manipuladas de maneira sem precedentes, colocando em risco a democracia e até a sociedade organizada.

Isso não é pouca coisa, nem algo que possamos ignorar candidamente. Os fakes estão efetivamente tornando nossa vida pior!

Combater isso é, portanto, papel de todos. As redes sociais já fazem isso, até mesmo porque seu negócio está em jogo. Mas elas precisam se esforçar ainda mais!

Por outro lado, quem contrata esses serviços deveria parar de fazer isso. Sim, eu sei que isso seria pedir demais deles! Afinal, entre os principais apoiadores dessa indústria, estão políticos, celebridades, influenciadores digitais e até pequenas empresas. Todos querem aumentar seus negócios pela exposição artificial nas redes. Mas, ao fomentar essa prática, pervertem o próprio funcionamento das plataformas, prejudicando a sociedade.

As agências que contratam influenciadores também têm um papel importante na solução do problema. Hoje privilegiam pessoas com grande quantidade de seguidores e curtidas, ignorando a qualidade não só do que se publica, mas das conversas que podem ser geradas a partir disso. Quase como uma regra, quanto maiores essas “métricas vazias”, piores as conversas e vice-versa. E, para uma marca que busca construir uma boa reputação, boas conversas com seu público são essenciais.

Quanto a nós, os usuários, também podemos colaborar para a construção de uma vida digital melhor para todos. Em primeiro lugar, devemos desenvolver uma desconfiança saudável sobre o que consumimos nas redes.

Se algo lhe provoca emoções muito intensas, verifique se aquilo é verdade antes de curtir e principalmente de compartilhar. Denuncie conteúdos e perfis falsos. Por outro lado, valorize aqueles que se esforçam para construir uma presença verdadeira e propositiva nas redes: esses são os verdadeiros influenciadores!

Ao formalizar seu desejo de comprar o Twitter, Musk disse que a rede seria “a praça digital em que tudo que importa para a humanidade é debatido”. Isso é parcialmente verdade. Do jeito que está, o que aparece ali é movido pelo que importa a uns poucos, que manipulam milhões!

Precisamos resgatar essa “praça”, para voltar a ser um espaço saudável de trocas legítimas, deixando de lado o atual espaço para carnificinas digitais.

 

O Brasil sentou-se em uma bomba chamada WhatsApp

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Lá pelos idos do ano 2000, quando eu era gerente de produtos da AOL (America Online) e tinha sob minha responsabilidade as versões brasileiras do Instant Messenger e do ICQ, percebi que a empresa que oferecesse o melhor aplicativo de mensagens conquistaria o coração dos internautas. Duas décadas depois, essa empresa é a Meta, com seu Facebook Messenger e principalmente seu WhatsApp.

Isso é tão verdade que hoje um presidente compra briga com outro poder da República por causa desses programas. Na mais recente bravata, nesse sábado, Jair Bolsonaro disse que não aceitará o acordo da Meta com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que fará com que novos recursos sejam incorporados ao WhatsApp apenas após a eleição desse ano.

Mas, afinal, o que há de tão especial nesse programa a ponto de provocar essa balbúrdia toda?


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O WhatsApp hoje é usado por 120 milhões de brasileiros, o que o coloca muito à frente de qualquer outra forma de comunicação por aqui. Estima-se que esteja instalado em 99% dos smartphones no país. Por isso, as mensagens distribuídas pelas plataformas têm uma incrível capacidade de se disseminar rapidamente.

O comunicador da Meta teve um papel importante nos resultados das eleições de 2018 e 2020: os candidatos que melhor dominaram a plataforma conseguiram muitos votos assim, não raro valendo-se de farta distribuição de notícias falsas. Por isso, o TSE firmou um acordo com as principais plataformas digitais para minimizar o problema com ações em conjunto na campanha desse ano, tentando “desarmar essa bomba” que o aplicativo se tornou. Participam da iniciativa a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), o Google (dono do YouTube), o Twitter, o TikTok e o Kwai.

A confusão começou na quinta, quando a Meta anunciou novos recursos do WhatsApp, que serão liberados gradativamente para usuários do mundo todo a partir das próximas semanas. Mas, pelo acordo com o TSE, eles chegarão aos smartphones brasileiros apenas após o segundo turno das eleições.

A principal novidade é o recurso de “comunidades”, que permitirão a união de até dez grupos em um único espaço. Como cada grupo permite hoje até 256 usuários, uma mensagem publicada em uma comunidade poderia atingir imediatamente até 2.560 usuários. A Meta ainda estuda dobrar a capacidade de cada grupo para 512 usuários. No Telegram, concorrente direto do WhatsApp, os grupos podem conter 200 mil usuários.

Outros recursos do pacote de melhorias são a possibilidade de se realizar chamadas de voz com até 32 pessoas simultaneamente e a transferência de arquivos com até 2 GB. Atualmente esse limite é de 16 MB para arquivos no celular e 64 MB no WhatsApp Web.

Todos esses recursos seriam muito úteis em uma campanha eleitoral, sem dúvida. Postergar seu lançamento para depois da eleição é um grande revés para candidatos que usam muito essas plataformas. Isso explica a reação de Bolsonaro, que chamou a decisão de “inadmissível”.

A Meta reforçou que o WhatsApp não deve ser usado para atividade política, mas obviamente nenhum candidato ou seus apoiadores deve respeitar isso.

 

Baixando a guarda

Existem várias explicações para essa incrível capacidade de convencimento pelos aplicativos de mensagens instantâneas. Ao contrário de e-mails, que trazem blocos inteiros de conversas, desestimulando os interlocutores a fazer muitas trocas, os programas como o WhatsApp, com suas mensagens curtas, informais e divertidas, favorecem isso. Essa mistura de serviço de mensagens com rede social torna a comunicação mais fluida, o que é positivo para a troca de ideias, mas faz com que os usuários “baixem a guarda” e acreditem muito mais facilmente no que chega por ali.

Esse é o motivo pelo que o WhatsApp se tornou o canal preferido por criminosos para aplicar diferentes tipos de golpes digitais. Não se trata de falhas técnicas da plataforma: os bandidos se valem justamente dessa vulnerabilidade das pessoas para enganá-las, às vezes com mentiras em que raramente cairiam em outros casos.

Os políticos usam exatamente a mesma estratégia, porém de maneira orquestrada e em escala industrial.

A criação de suas mensagens agrada a sua base de eleitores, essência, aliás, do jogo político. A diferença é que, com as plataformas digitais, essas ideias são distribuídas com uma velocidade avassaladora, inicialmente por robôs, e depois pelos próprios usuários, que gostariam que aquela informação acontecesse, mesmo que seja uma mentira deslavada. Com os aplicativos de mensagens, elas se espalham de maneira exponencial, podendo atingir rapidamente uma porcentagem muito expressiva do eleitorado.

Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolph Hitler, disse que “uma mentira dita uma vez é apenas uma mentira; já uma mentira dita mil vezes se torna verdade”. Foi assim que convenceu os alemães na década de 1930 a apoiarem seu Fürher contra os “inimigos do povo”, levando à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto.

Hoje a mentira é dita aos milhões, e esse recurso é usado por políticos no mundo todo! No ano passado, a Universidade de Oxford (Reino Unido) divulgou um estudo que indica a disseminação dessas táticas. Segundo os autores, no Brasil, as “tropas cibernéticas” se dedicam principalmente a atacar opositores e aumentar a polarização na sociedade, que lhes é benéfica.

Os aplicativos de mensagens se constituíram na ferramenta perfeita de disseminação de mentira, mas um ponto que não pode ser desprezado é que as pessoas acreditam no que lhes for mais conveniente.

Outro estudo demonstra isso claramente. Publicado na capa da revista Science, a mais importante publicação científica do mundo, no dia 9 de março de 2018, ele mostra que, a despeito das ações de robôs, são as pessoas as grandes responsáveis pela disseminação das fake news. Isso acontece, em parte, porque a desinformação dispara mecanismos emocionais que induzem ao engajamento com esse material.

Bons tempos aqueles do AIM, do ICQ e do MSN Messenger, em que esses aplicativos de mensagens eram usados apenas por pessoas querendo conversar alegremente com seus amigos. A inclusão desses recursos de disseminação em massa de mensagens, ainda que bem intencionada, transformou essas plataformas em “bombas” que colocam em risco o próprio conceito de sociedade organizada.

Como nós, os usuários, somos o elo frágil nessa corrente, acreditando em muito do que nos chega por esse canal, cabe à Justiça e aos próprios desenvolvedores desses produtos cuidarem desse incrível espaço de comunicação. Não se pode encarar inocentemente todo esse poder de convencimento, ou a população corre o risco de ser convertida em um bando de robôs teleguiados.

 

O rapper americano Bandman Kevo, que alia sua carreira musical com a de palestrante motivacional e guru online

Rapper ganha US$ 1 milhão por mês falando de investimentos em site de conteúdo adulto

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O rapper americano Kevin Ford, mais conhecido como Bandman Kevo, reúne 20 mil assinantes que pagam US$ 50 por mês pelo seu conteúdo online. Ele não fala sobre música, mas sobre investimentos, o que chega a ser inusitado. Mas o que torna a história mais curiosa é que seus vídeos estão no OnlyFans, famoso por hospedar conteúdo adulto explícito de seus usuários.

Por que tanta gente paga para ouvir um músico falando de dinheiro em uma plataforma de pornografia? A resposta: porque isso faz sentido para essas pessoas! E isso é a cara da cultura de criação de conteúdo em que vivemos.

Hoje qualquer um pode fazer publicações para alavancar o seu negócio ou até fazer disso o próprio negócio! Mas esse oceano de posts, cuja maioria tem qualidade no máximo questionável, dilui o valor da informação. Para piorar, as plataformas digitais destacam o que é ruim (mas popular), jogando para escanteio quem faz um bom trabalho.


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Os fãs de Ford afirmam que o conteúdo de seu canal no OnlyFans é valioso, ajudando-os a ganhar dinheiro. De fato, não é fácil fazer alguém pagar US$ 50 por mês para ouvir dicas de investimentos, especialmente para pessoas mais jovens, que compõem a maioria do público do rapper. Se fazem isso, algo que consideram valioso deve estar sendo entregue a elas.

Vale notar que o Ford não tem formação acadêmica na área. Na verdade, ele falsificou seu certificado do equivalente ao Ensino Médio. Em 2014, quando tinha 24 anos, foi preso por fraudes com cartões de crédito que passaram de US$ 600 mil. Quando foi solto, em 2019, decidiu aliar sua carreira musical com a de palestrante motivacional e guru online.

Deu certo!

Os puristas podem torcer o nariz para seu sucesso. Mas o rapper fez uma leitura correta de conteúdo, linguagem e recursos digitais, criando um produto consistente para um público específico. Até a escolha do OnlyFans demonstra ousadia. Por isso, seus ganhos estão muito além dos auferidos pela imensa maioria dos economistas, que fazem seu trabalho da maneira como aprenderam nas faculdades. E, por isso, não conseguem se diferenciar um do outro.

Ford surfa em um fenômeno derivado da chamada “economia criativa”, em que o valor econômico vem de ações criativas, culturais e intelectuais. Quem atua no setor sabe as necessidades dos consumidores, onde eles estão, o que eles pensam e suas características. Por isso, agradar o cliente é uma busca constante, promovendo mudanças permanentes no produto, que geram benefícios reconhecidos pela sociedade.

Apesar de as origens da economia criativa remontarem à década de 1980, ela floresceu com o poder que a tecnologia digital concedeu às pessoas, facilitando e barateando enormemente a criação de novos produtos. Com as redes sociais, isso atingiu um patamar incrível, permitindo que produtos intelectuais rentáveis fossem criados praticamente sem investimento. É o caso do canal de Ford no OnlyFans.

Graças a essa facilidade, a produção de conteúdo de qualquer natureza se tornou o trabalho de muita gente. Com a pandemia e o distanciamento social que ela provocou, a prática se tornou essencial para muitos profissionais e muitas empresas continuarem operando no momento de restrições mais severas. Após o fim do distanciamento, essa prática se perpetuou.

Infelizmente a esmagadora maioria desses produtores não tem os elementos necessários para criar um bom produto. Tampouco possui a capacidade de Ford, de fazer uma leitura assertiva do mercado, para entregar algo que atenda a demandas específicas. O resultado é muito ruído, que acaba “escondendo” dos usuários conteúdos que realmente poderiam lhes ser úteis.

 

Sensacionalismo

Há um outro aspecto importante a ser considerado nessa cacofonia informacional. Grandes empresas de comunicação competem hoje com ilustres desconhecidos pela atenção do público nas plataformas digitais. Aprecem mais aqueles que entendem as regras de promoção dessas plataformas, criando conteúdos que atraem não só as pessoas, mas também seus algoritmos.

Como resultado, no Brasil e no mundo, sites sensacionalistas ou que promovem explicitamente a desinformação chegam a superar em audiência veículos de comunicação sérios. Isso gera um preocupante círculo vicioso: como as pessoas clicam muito em títulos escandalosamente apelativos, eles são muito promovidos pelo Google e pelo Facebook, o que faz com que mais pessoas ainda cliquem neles. Chega-se a um ponto em que esses sites inundam as plataformas digitais, enquanto o jornalismo sério fica praticamente escondido.

Isso enche os cofres desses sites com conteúdo no mínimo questionável, enquanto esvazia os dos veículos que investem tempo e dinheiro na produção de bom conteúdo. E as mesmas plataformas digitais que despejam hordas de usuários nos sites apelativos são as mesmas que lhes remuneram pela alta audiência, pois seus anúncios acabam sendo veiculados ali.

O assunto ganhou destaque no Brasil nos últimos dias, com as discussões em torno do projeto de lei 2.630, conhecido como “lei das fake news”, que tramita na Câmara dos Deputados. Ele determina que as plataformas digitais remunerem empresas jornalísticas, em uma tentativa de incentivar quem produz conteúdo de qualidade para fazer frente à desinformação.

Entretanto, o texto, na forma atual, falha ao definir, de maneira clara, o que seria conteúdo jornalístico. Por isso, os sites de fofocas, os sensacionalistas e até alguns que escandalosamente copiam conteúdos alheios sem sequer dar crédito ao autor que investiu tempo e dinheiro na apuração poderão, em tese, ser classificados como “jornalísticos” e, dessa forma, serem remunerados pelas plataformas digitais.

Quem faz conteúdo sério –sejam empresas de comunicação, sejam profissionais autônomos– podem aprender algo com Ford: é preciso entregar um produto em que o público veja valor. Em um mundo em que a realidade se tornou um constante espetáculo, quem trabalha com jornalismo tem aí uma tarefa ingrata, pois dispõe “apenas” da verdade para trabalhar, e ela nem sempre é sedutora. Por outro lado, os sensacionalistas e os que vivem de “fake news” podem distorcer os fatos alegremente, para que se tornem mais atraentes para as pessoas.

Mas há esperança. The New York Times, um dos jornais mais tradicionais e importantes do mundo, com 171 anos de estrada, acaba de atingir a impressionante marca de 10 milhões de assinantes, somando impresso e digital, algo inédito. A empresa esperava atingir essa marca apenas em 2025, mas ela chegou antes em parte graças à aquisição de publicações de segmentos específicos e diversos serviços, inclusive jogos online. Talvez muitos assinem The New York Times por causa desses “agregados”, mas a alta qualidade de tudo que a empresa oferece e esse modelo de negócios moderno abrem espaço para um futuro promissor, enquanto a maioria de seus concorrentes se debate para continuar respirando.

Lição para a vida de todo mundo: não adianta querer continuar fazendo algo de um jeito só porque sempre deu certo assim anteriormente. Como muitos dizem na indústria de mídia, “o conteúdo é rei”, mas não mais como eles pensam. No atual momento da economia criativa, ele tem um valor inestimável como um produto em si ou para atrair pessoas para outros negócios da empresa. Mas só trará resultados se estiver alinhado a necessidades reais do público, e não ao desejo de seus editores.

Fazer alguém colocar a mão no bolso para comprar nosso produto nunca foi tão complicado, pois hoje tudo concorre com tudo. E o bolso do consumidor é um só.

 

O Congresso Nacional, onde está sendo tramitado o projeto de lei 2.630, conhecido como “Lei das Fake News”

Ninguém vigia o vigilante na guerra pela “verdade”

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Em um mundo em que a verdade é relativizada e distorcida escandalosamente, sucumbimos diante de mentiras bem contadas que moldam a sociedade pelos interesses de uns poucos. Com isso, até iniciativas bem intencionadas podem ser pervertidas. É o caso do projeto de lei 2.630, conhecido como “Lei das Fake News”, que já foi aprovado pelo Senado e pode ser votado na Câmara dos Deputados a qualquer momento.

Criado com o louvável objetivo de combater a desinformação no meio digital, o texto possui falhas críticas, como não definir, de maneira inequívoca, o que seria uma “notícia falsa” e inocentar previamente alguns dos maiores agentes da desinformação no país. Se aprovado dessa forma, corre o risco de se transformar em um mecanismo de controle e de censura.


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Definir o que é verdadeiro nem sempre é uma tarefa trivial. Em muitas ocasiões, depende da combinação de elementos a que nem todos têm acesso. Consequentemente, definir o que é falso padece do mesmo dilema. Ainda assim, seria de se esperar que um projeto de lei que se presta exatamente a isso se esforçasse mais que o visto no texto em tramitação.

O projeto ainda aborda dois outros conceitos fundamentais na guerra pela “verdade”. O primeiro é o de “conteúdo jornalístico”, também apresentado sem qualquer definição mais precisa, que supostamente indicaria algo produzido com rigor na apuração e promoção. O outro é a “liberdade de expressão”, direito constitucional preferido entre os disseminadores de “fake news”, que se valem dela para tentar justificar todo tipo de mentira ou crime, como se aquilo fosse apenas uma inocente opinião pessoal.

Para um projeto que se propõe a criar a chamada Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, falhar em algo tão básico abre espaço para enormes preocupações. Com nossas vidas altamente interligadas e dependentes das mais diversas ferramentas digitais, uma legislação como essa tem o potencial não apenas de piorar os serviços online, como ainda de criar uma nefasta ferramenta de controle do cidadão, das plataformas digitais e da imprensa.

Quanto mais brechas uma lei deixa, mais as “autoridades” (ou seja, qualquer um investido de algum poder) se sentirão à vontade para interpretar suas regras para fazer valer seus interesses. O cidadão fica indefeso diante de ataques daqueles que o deveriam defender, um caso clássico de “quis custodiet ipsos custodes?” A frase em latim, atribuída a Juvenal, um poeta romano do início da era cristã, é normalmente traduzida como “quem vigia os vigilantes” e se refere à dificuldade de controle das ações de quem está no poder.

Essa é exatamente a situação que pode estar sendo construída aqui. O que nos leva a uma outra grande lacuna do projeto, que vem sendo bem mais discutida nos últimos dias: um verdadeiro salvo-conduto para que parlamentares disseminem “fake news”.

 

Imunidade parlamentar

O PL 2.630 é de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE). Seu texto-base foi aprovado pelo Senado em junho de 2020. O deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) é o relator da nova redação do texto, que pode ser votado em breve na Câmara dos Deputados.

Nessa nova versão, um singelo trecho incluído vem causando grande tumulto. Trata-se do parágrafo 5º do inciso VII do artigo 22, que diz: “A imunidade parlamentar material estende-se às plataformas mantidas pelos provedores de aplicação de redes sociais.”

Em outras palavras, qualquer “fake news”, por mais grotesca que seja, estará protegida, se for distribuída por um senador, deputado federal ou estadual ou vereador. O problema é que esses servidores públicos estão entre os mais conhecidos agentes da desinformação do país, nas esferas federal, estadual e municipal.

Na prática, cria-se um escudo que impediria as redes sociais de eliminar (ou pelo menos limitar) conteúdos notoriamente nocivos, como aqueles que incitam o ódio ou combatem vacinas, temas infelizmente comuns nos perfis de muitos parlamentares.

As plataformas digitais vêm refinando esse mecanismo de gestão de conteúdo com a Justiça há anos. Se ainda não é perfeito, já apresenta alguns resultados bem interessantes.

Orlando Silva afirma que esse parágrafo é inofensivo, pois a imunidade parlamentar está prevista na Constituição, e isso seria suficiente para proteger as ideias dos parlamentares, mesmo as mais bizarras e condenáveis. Mas não é bem assim!

A imunidade protegeria falas e opiniões, mas a Constituição não podia prever, em 1988, um mecanismo digital que amplificasse (inclusive mediante pagamento) manifestações de quem quer que fosse. Ademais, ao tornar explícita essa prerrogativa para qualquer parlamentar distribuir “fake news”, o projeto joga luz sobre o tema, praticamente inviabilizando os controles construídos pelas plataformas com a Justiça. Dessa forma, sempre que for necessário remover um desses conteúdos, a Corte Constitucional do país –ou seja, o Supremo Tribunal Federal– precisará ser acionado, o que é inviável dado o volume de porcaria dessa natureza que já transita nas redes.

A manchete do Estadão desse domingo trouxe uma reportagem sobre como, apesar de alguns avanços bem-vindos no combate à desinformação, o acordo firmado em fevereiro entre o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e as plataformas digitais ainda deixa muitas brechas. Isso quer dizer que políticos e seus apoiadores conseguirão transformar as redes sociais em um verdadeiro inferno desinformacional nesse ano de eleições.

Nós, os eleitores, somos os principais prejudicados com isso. Diante de uma enxurrada de mentiras incrivelmente bem contadas e de um verdadeiro banho de sangue entre candidatos, ficará muito difícil separar a verdade da mentira, para que possamos fazer uma escolha consciente dos melhores para governar o país pelos próximos quatro anos.

As plataformas digitais entenderam que são essenciais em qualquer processo eleitoral no mundo. Abandonaram o discurso de que eram meros veículos das opiniões de seus usuários, e entenderam que seus algoritmos podem convencer qualquer um sobre qualquer coisa. Dessa forma, precisam estreitar ainda mais os laços com a Justiça.

O projeto de lei 2.630 pode ser um grande aliado nessa tarefa fundamental para a manutenção da democracia. Mas isso jamais acontecerá enquanto criar uma categoria de cidadãos capazes de mentir deliberada e livremente. Da mesma forma, precisa definir, sem sombra de dúvidas, o que é conteúdo jornalístico, até mesmo para que jornalismo verdadeiro não seja rotulado como “fake news”, com o único objetivo de ser retirado do ar a mando de “autoridades”. Além disso, a liberdade de expressão precisa ser claramente separada de mentiras, crimes e desinformação. E isso tem que valer para todos!

Para um projeto que visa criar uma lei com a palavra “transparência” em seu nome, esses pontos obscuros precisam ser eliminados!

 

O russo Pavel Durov, fundador do Telegram, que vem ignorando todas as tentativas de contato do TSE

A afronta do Telegram cria uma armadilha para todos

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A indiferença olímpica que os gestores do Telegram vêm demonstrando às insistentes tentativas de contato do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para se firmar uma parceria contra a desinformação armou uma bomba que pode explodir no nosso colo a qualquer momento. Ao se colocar acima da lei, a empresa criou uma situação em que os únicos beneficiados são ela mesma e aqueles que usam o aplicativo de mensagens para cometer crimes.

Qualquer movimento para desatar esse nó górdio pode criar prejuízos aos brasileiros. Como a empresa já deu todos os sinais de que não colaborará com a Justiça para tornar seu espaço mais saudável, novas tentativas de contato e até atitudes mais enérgicas, como aplicação de multas, devem continuar sendo solenemente ignoradas por ela.

Isso deve tornar o já tóxico ambiente da plataforma ainda pior. Por outro lado, uma decisão mais drástica para se evitar um mal maior, como banir o serviço, prejudicará aqueles que fazem um uso ético e legal de seus recursos.

Empresas são integrantes da sociedade e, como tal, devem fazer de tudo para garantir sua boa operação. Em um ano eleitoral em que se teme uma campanha de baixíssimo nível entre candidatos e seus apoiadores, as plataformas digitais têm papel central para combater práticas que ameacem a própria democracia. Por isso, ao contrário da disposição de seus concorrentes, a indiferença do Telegram surge como uma verdadeira afronta.


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Esse assunto esquentou nos últimos dias quando o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, levantou a possibilidade de o Telegram ser banido do Brasil pela sua postura. Em nota, ele disse que “nenhum ator relevante no processo eleitoral de 2022 pode operar no Brasil sem representação jurídica adequada”.

Apesar de o aplicativo ser russo, a atual sede da empresa fica em Dubai (Emirados Árabes Unidos). Barroso pretende levar o tema do bloqueio para debate com os demais ministros do Tribunal no início de fevereiro, com a volta do recesso do Judiciário.

A tentativa de contato mais recente aconteceu no dia 16 de dezembro, quando o TSE enviou um ofício à empresa por e-mail, solicitando uma audiência com Pavel Durov, fundador do Telegram. O objetivo era discutir uma cooperação contra a desinformação e o discurso de ódio nas conversas pelo aplicativo, que podem afetar profundamente o bom andamento das eleições brasileiras, como aconteceu nos últimos pleitos. Pelo menos outras quatro tentativas de contato já haviam sido feitas antes, todas elas sem qualquer resposta.

Ironicamente o Telegram começou a ficar famoso no Brasil diante de breves bloqueios do WhatsApp por decisões da Justiça, em 2015 e 2016. Na época, juízes de primeira instância fizeram isso para pressionar o Facebook (hoje Meta), dono do WhatsApp, a entregar informações de usuários para investigações em curso. Em todas as ocasiões, o serviço foi restabelecido em algumas horas, por esferas superiores do Judiciário, que alegaram que todos os usuários do país não poderiam ser penalizados com a sua indisponibilidade.

Agora a situação é bem mais grave. Se o WhatsApp vem criando recursos para combater a desinformação e para limitar o compartilhamento em massa de mensagens, como restringir grupos a 256 pessoas, o Telegram se notabiliza por permitir grupos de até 200 mil usuários e uma completa falta de monitoramento ou restrição a qualquer conteúdo. Assim, o problema impacta decisivamente toda a sociedade. Além disso, a empresa não tem representação no país e vem ignorando todos os pedidos de comunicação de um tribunal superior.

O aplicativo russo vem crescendo rapidamente no país, e já está presente em 53% dos smartphones por aqui. Ele ficou particularmente popular entre grupos e usuários que vêm sendo banidos de outras plataformas, justamente por disseminarem fake news e o discurso de ódio.

Se a atitude extrema for tomada, o Brasil não seria o primeiro país a bloquear o Telegram: isso já foi feito em outras 11 nações, inclusive na própria Rússia, sua terra natal, onde foi proibido entre 2018 e 2020. A Alemanha também estuda banir o aplicativo por conta da ausência de qualquer controle na desinformação e no discurso de ódio.

Ainda assim, um bloqueio do Telegram durante o processo eleitoral (ou definitivamente) gera muitas controvérsias. A constitucionalidade desses bloqueios está em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal).

É inevitável perguntar se isso não seria um exagero, prejudicando mais que ajudando a sociedade. Afinal, é de se supor que a maioria dos usuários ali realiza atividades lícitas e éticas. Além disso, não há garantias que um bloqueio resolva o grave problema da desinformação e do discurso de ódio.

 

Possíveis caminhos

“O grande problema do Brasil não é a falta de lei: é o excesso de leis que não são cumpridas”, explica Marcelo Crespo, advogado especialista em direito e inovação e sócio do Peck Advogados. “Isso que gera a sensação da impunidade.”

Para ele, não existe “bala de prata” para a solução do problema. “O que o TSE precisa fazer é ser bastante objetivo naquilo que será aceito”, afirma. Assim, o Marco Civil da Internet e as regras eleitorais, atualizadas a cada pleito, deveriam dar conta disso.

O primeiro determina, por exemplo, que qualquer empresa que preste serviços ou venda produtos a brasileiros, mesmo não tendo escritório no país, deve se submeter às leis brasileiras. Já as regras eleitorais desse ano certamente enfrentarão com força as fake news e o discurso de ódio.

Desde a eleição de 2020, o TSE vem fazendo parcerias com as principais plataformas digitais, como o WhatsApp, o Facebook, o Instagram, o Twitter e o TikTok, para combater o problema em junto com elas. O ministro Barroso explicou, em nota, que “muitas dessas iniciativas se juntaram ao Tribunal em sua missão de garantir que os eleitores tenham acesso a informações verdadeiras sobre o processo eleitoral, para que possam exercer o seu direito de voto de forma consciente e informada.”

“As Big Techs estão conversando com o TSE, porque não interessa a essas empresas ter a operação suspensa”, explica Crespo. Para ele, essas companhias ganham muito dinheiro com o que fazem, “então é razoável darem uma contrapartida para não deixar que vire uma terra sem lei.”

Outra coisa que se discute é punir os candidatos que espalhem notícias falsas ou discurso de ódio, ou cujos apoiadores façam isso em seu nome. O problema é que, nesse caso, aliados de um candidato podem se infiltrar nas campanhas adversárias para prejudicá-las, com disparos desse tipo.

Como se pode ver, qualquer possível solução parece esbarrar em algo que prejudicará alguém ou que embutirá um risco de injustiça. Por isso, a solução não deve ser simples e nem vir de uma única fonte.

“Precisa o TSE trazer todas essas regras, precisam as plataformas fazerem as partes delas, mas a democracia não é feita só das instituições: é feita pelas pessoas”, lembra Crespo. “Então as pessoas e as empresas precisam fazer a parte delas”, conclui.

A grande ironia é que as instituições democráticas estão sendo atacadas graças às liberdades que elas oferecem. Toda essa confusão que está sendo gerada pelo Telegram só existe porque a liberdade de expressão está sendo garantida. “Se estivessem em um regime autoritário, talvez essas empresas fossem proibidas de operar”, explica.

É sempre bom lembrar que a liberdade de expressão não representa um passe-livre para se cometer crimes. Sim, pode-se dizer o que quiser, mas o cidadão responderá pelo que disse, quando isso infringir a lei. É por isso que a Constituição assegura a liberdade de manifestação do pensamento, mas veda o anonimato.

Sei que é uma visão romântica esperar que todos os candidatos e os usuários se comportem adequadamente nas redes sociais, ainda mais nesse ano. Isso não vai acontecer! E, ao que tudo indica, o Telegram tampouco colaborará. Isso tudo abre terreno para uma verdadeira carnificina digital, que pode colocar a própria democracia em risco.

Por isso, não será surpresa ver o aplicativo banido do Brasil, mesmo com o prejuízo que isso possa causar a muitos que usam a plataforma honestamente. E aí, uma vez mais, os maus hábitos de poucos prejudicarão muitos.

Entramos no ano mais digital de nossas vidas

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Este promete ser o ano mais digital de nossas vidas. Por isso, entender o que aconteceu nesse setor em 2021 pode nos ajudar a aproveitar melhor o que a tecnologia tem de bom a nos oferecer e a fugir de enormes arapucas que já armaram para todos nós. E a maioria das pessoas não tem esse conhecimento.

Por exemplo, no final de novembro, o dicionário Collins escolheu NFT como a “palavra do ano”. Como toda seleção assim, ela é controversa, mas essa representa bem os efeitos da digitalização galopante de nossas vidas, dando o tom do ano que começa. Essa sigla indica um conceito que poucos conhecem e que, mesmo entre os que já ouviram falar dele, muitos não entendem. E há ainda uma multidão completamente de fora, por não ser tão digital assim.

A pandemia acelerou incrivelmente esse processo, abrindo oportunidades para empresas e indivíduos, mas aumentando o risco de se criar “cidadãos de segunda categoria” entre os “menos digitalizados”. Governos, instituições e companhias precisam ajudar para que isso não ocorra, e cada um de nós deve abraçar o digital com consciência, evitando, de um lado, o deslumbramento e, do outro, o medo.


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Para quem nunca ouviu falar, NFT é a sigla em inglês para “tokens não-fungíveis”, uma comercialização de arte digital que combina tecnologia e mudança cultural. Com ela, ao comprar uma obra, a pessoa passa a ser sua legítima dona, mas isso não lhe garante nenhum controle ou remuneração por qualquer reprodução do material. Além disso, os direitos autorais continuam sendo do autor da obra.

É como o Museu do Louvre ser dono da Mona Lisa, mas ele não tem como impedir que as pessoas fotografem o quadro, e usem isso como quiserem. Mas, se algum dia quiser vender o original, o Louvre receberá uma fortuna.

O que dificulta o entendimento do NFT é que o original pode ser algo simplório como um meme famoso, facilmente reprodutível com um clique do mouse. Ainda assim, em maio, o meme “Disaster Girl” foi vendido por incríveis R$ 2,5 milhões.

NFT venceu, entre os pesquisadores do Collins, a palavra metaverso, outro conceito digital que certamente impactará muito mais nossas vidas em breve. Se bem usado, esse mundo virtual abrirá uma infinidade de oportunidades de trabalho, aprendizagem e diversão. Trata-se de um ambiente digital em que as pessoas entrarão com seus avatares para interagir mesmo com quem estiver do outro lado do mundo e com ferramentas que só existem ali.

Apesar de não ser algo novo, o metaverso ganhou holofotes em 2021 pela disposição do Facebook de investir pesadamente nessa tecnologia. Mas o que a torna tão incrível também inspira muitos cuidados. Por ser um ambiente completamente imersivo, há um enorme risco de manipulação dos usuários, muito maior que o já visto nas redes sociais. Além disso, por exigir equipamentos poderosos para ser usado, ele pode ampliar o abismo digital entre os mais ricos e os mais pobres.

Mas a virtualização de nossas vidas já acontece com força de outras formas. Desde que a Internet comercial foi lançada, em 1994, realizamos cada vez mais atividades de nosso cotidiano pelo meio online. A popularização dos smartphones, há uma década, acelerou muito esse processo.

Mas foi a pandemia que definiu um novo patamar aí.

 

Tudo de casa

Possivelmente a mudança mais profunda e permanente que o vírus nos apresentou foi o home office. Antes do lockdown (aliás, a palavra de 2020 para o mesmo dicionário Collins), trabalhar de casa era algo inimaginável ou pelo menos visto com enorme desconfiança por gestores de empresas de todo tipo. Mas hoje isso se tornou tão aceito, que muitas empresas adotaram, mesmo com a retomada das atividades nos escritórios, o trabalho híbrido, em que os profissionais desempenham suas tarefas de casa em alguns dias da semana. Há casos em que o trabalho remoto se tornou definitivo. Dessa forma, os escritórios ficaram menores ou simplesmente desapareceram.

Primo dessa mudança é o crescimento explosivo do ensino a distância. O tempo em casa permitiu que as pessoas experimentassem e gostassem desse jeito de aprender, vencendo muitos preconceitos contra o EAD. Agora, muita gente faz cursos que antes eram inacessíveis pela distância ou por horários inflexíveis.

Mas tanto o home office quanto o EAD reforçam as diferenças entre a população digitalizada e a “nem tanto assim”. Afinal, para participar dessas atividades é preciso ter uma boa conexão com a Internet e um computador, pois a experiência pelo celular acaba sendo de pior qualidade. E nem todos têm isso.

O e-commerce também se enquadra nessa mudança de comportamento. Apesar de crescer consistentemente na casa dos dois dígitos percentuais desde que surgiu, as vendas online praticamente dobraram seu faturamento nos primeiros 12 meses da pandemia. Com a reabertura das lojas físicas, esse crescimento perdeu um pouco de fôlego, mas o e-commerce permaneceu em um patamar muito superior ao que tinha antes da Covid-19. Graças a isso, muitas entregas, que antes levariam dias para serem feitas, passaram a acontecer em algumas horas.

O e-commerce pelo menos é um pouco mais democrático: funciona bem em praticamente qualquer smartphone.

 

Virtualização de valores

O Pix, sistema de transferências e pagamentos instantâneos do Banco Central, também poderia concorrer à palavra do ano, se não fosse restrito ao Brasil. Ele já é usado por 71% dos brasileiros, com aprovação de 85% deles, segundo a Febraban (Federação Brasileira de Bancos). Já há mais Pix que TED, DOC e cheque juntos! Entre os jovens de 18 a 24 anos, a aprovação chega a 99%, semelhante aos 96% da faixa seguinte (de 25 a 44 anos). A maior resistência fica entre as pessoas de baixa renda e os de menor escolaridade, mas ainda com adesão superior a 50%.

Muita gente tem medo do Pix devido aos incontáveis golpes que usam essa tecnologia. Essa, aliás, é outra coisa que explodiu nesses dois anos e que infelizmente deve se ampliar em 2022. Vale lembrar que o ano passado começou com o maior vazamento de dados da história do Brasil e terminou com um suspeito “ataque hacker” aos sistemas do Ministério da Saúde que gerenciam os dados relativos à Covid-19 e à vacinação, que demoraram semanas para serem restabelecidos.

As pessoas precisam de orientação para escapar desses problemas, que acabam atingindo mais os de renda inferior ou os menos informados. O que nos leva a um último flagelo digital que vem crescendo com força nos últimos anos e deve chegar às raias da loucura em 2022: a desinformação. O que me faz lembrar que, em 2016, outro importante dicionário, o de Oxford, elegeu pós-verdade como a palavra daquele ano.

Ela explica que importam menos os fatos e mais as versões construídas a partir deles (ou da ausência deles). Assim, quem elaborar as versões mais “palatáveis” para o público convencerá as pessoas com suas ideias, por mais bizarras que sejam.

Isso fica particularmente mais grave em anos de eleições, como esse que estamos começando. Políticos sempre mentiram, mas a combinação da pós-verdade com as redes sociais criou as fake news, que se tornaram a ferramenta suprema de manipulação da sociedade. E políticos que mais dominam esse recurso vêm se elegendo.

Por isso, se puder desejar algo a todos nesse ano que se inicia, minha escolha é conhecimento e informação, para que possamos usar o mundo digital que tivermos a nossa disposição –seja muito, seja pouco– da melhor maneira possível. Ele deve ser usado para melhorarmos (e muito) nossa vida, e não para sermos controlados por quem quer que seja.

 

Para falar, basta ter boca, mas falar algo que preste é outra história

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O vídeo abaixo é a minha “Pílula de Cultura Digital” de número 300 e esse artigo é o de número 416 no “Macaco Elétrico”, meu espaço no Portal Estadão há mais de uma década. No caso do vídeo, que publico semanalmente, ele resulta de um enorme poder de comunicar ideias que as redes sociais concederam a qualquer pessoa. E isso é incrível, mas também pode ser uma maldição!

Depois que palavras são proferidas, não podem ser “desditas”, ainda mais em uma sociedade altamente digitalizada como a nossa. Aproveitamos alegremente esse “paraíso de liberdade de expressão”, sem perceber que falar é fácil, mas que precisamos cuidar do que falamos. Entre os resultados desse despreparo e dessa inconsequência no discurso online, vejo, a todo momento, pessoas destruindo sua reputação, profissionais perdendo o emprego e empresas sendo duramente questionadas por seus clientes.


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Não estou sugerindo que usemos menos essa capacidade de comunicação, muito pelo contrário! Mas o que eu vejo nas redes, e não é de hoje, é o domínio do discurso vazio, superficial, de “autopromoção a qualquer custo” ou de polarização política. E isso tem um impacto tão grande, que os valores de nossa sociedade e a nosso desenvolvimento como nação estão indo pelo ralo.

Sim, as redes sociais têm um papel decisivo nessa piora do tecido social. Mas, em última instância, são as pessoas, com mais ou menos consciência, que se deixam levar por esse frenesi. Por exemplo, no dia 21, o Estadão divulgou uma pesquisa interna do Facebook de 2018, que apontava como um grupo proporcionalmente pequeno de usuários brasileiros, chamados de “superprodutores”, criaram uma quantidade gigantesca de publicações de cunho político na rede, e isso teria afetado o engajamento em torno de alguns assuntos, podendo até ter influenciado o resultado das eleições.

Em um famoso discurso em junho de 2015, quando recebeu o título de doutor honoris causa em Comunicação e Cultura na Universidade de Turim (Itália), Umberto Eco disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, antes restrita a “um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade.” Afirmou ainda que “eles eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra que um Prêmio Nobel” e que “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Eu me lembro que, na época, discordei publicamente do escritor e filósofo italiano. Achei que havia, em suas palavras, uma certa intolerância e até soberba. Na minha filosofia, em que todos devem ter o direito de falar e que crescemos justamente ao contrapor discordâncias, aquilo estava errado.

Hoje percebo que Umberto Eco viu, lá atrás, o cenário em que vivemos. Parece que fosse em outra vida, mas não faz muito mais que cinco anos: até então, as redes sociais eram um espaço muito mais livre, em que as pessoas se encontravam para troca de amenidades ao invés de ofensas, e em que os algoritmos não eram manipulados para convencer a população a comprar produto ou até uma ideia.

O que nos leva ao tema central dessa conversa: para falar, basta ter boca, mas falar algo que preste é outra história.

 

A necessidade de aparecer

Nesse meio tempo, as redes sociais se tornaram peça fundamental para o sucesso de qualquer negócio e de qualquer carreira. Um exército de “gurus” surgiu dizendo o que as pessoas deveriam fazer, onde clicar, quem seguir, com o que se engajar. Mas eles não são capazes de explicar como fazer isso de uma maneira positiva e construtiva, mesmo por que a maioria não passa de “apertadores de botões”, que não tem muito a dizer.

Some-se a isso a percepção que as pessoas têm sobre o incrível sucesso que as publicações apelativas e polarizadas alcançam nas diferentes redes sociais. Diante de não saber o que falar e desses atalhos aparentemente fáceis, os usuários criaram um círculo vicioso no uso das redes, abandonando o debate de alto nível.

É uma pena, pois eu defendo que todos têm algo construtivo a compartilhar nas plataformas digitais, seja com um vídeo, seja com um singelo post. E, como sempre digo, o nosso cotidiano pode ser a nossa maior fonte de inspiração.

Sempre acontecem coisas em nosso dia a dia que poderiam ser usadas para ensinar algo ao outro. Apenas não estamos preparados para transformar essas ocorrências em ideias inspiradoras e transformadoras. E isso os “gurus” não explicam, porque a maioria deles não sabe como.

Precisamos romper essa necessidade de “aparecer a qualquer custo”, em que as pessoas são levadas a replicar ideias de fácil aceitação que não são delas. Elas vêm sendo enganadas pela manipulação dos algoritmos por alguns grupos, para que seus interesses se tornem dominantes com a ajuda de uma massa incauta.

A valiosíssima oportunidade que temos de expor nossas ideias ao mundo não deve continuar sendo usada para ampliar o ódio e o discurso de segregação ou, pior que isso, praticar crimes e contravenções escudados pelo direito inalienável da liberdade de expressão, que anda muito distorcido nesses tempos sombrios. Isso é um seríssimo risco a uma sociedade organizada que deseja se desenvolver de maneira sustentável!

Quando a massa ganha um poder enorme e inconsequente para expor suas insatisfações, sejam legítimas ou não, pode ser levada a praticar condenações e execuções sumárias, escudadas pelo “efeito manada” do meio digital. E isso é fascismo do século XXI! Mas esses indivíduos se esquecem que os que hoje condenam injustamente amanhã podem morrer do mesmo veneno.

É hora de pararem de usar o meio digital para confirmar que suas ideias são as “certas” e de achar que podem silenciar quem pensa de maneira diferente. A sensação pode parecer muito boa na hora, mas ela envenena a alma.

No lugar disso, precisamos desenvolver a nossa capacidade de unir pelo compartilhamento de ideias positivas, que todos nós somos capazes de desenvolver. É hora de parar de “falar só porque se tem boca” e deixar que o mundo perceba nosso valor pelas nossas virtudes e generosidade.

Quem se atreve a embarcar nisso?

 

Frances Haugen, ex-gerente de integridade cívica do Facebook, depõe no Senada americano sobre acusações nos “Facebook Papers”

A solução para o lixo nas redes passa por cada um de nós

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O Estadão destacou, em sua primeira página nesse sábado, novas informações retiradas dos “Facebook Papers”, como estão sendo chamados os milhares de documentos internos da empresa vazados pela sua ex-gerente Frances Haugen. E essas impactam particularmente os brasileiros: levantamento da plataforma concluiu que o discurso de ódio, a desinformação, a violência explícita e o desencorajamento cívico em suas páginas são bem altos no nosso país.

Qualquer um que navegue pelas redes sociais –e não apenas as de Mark Zuckerberg– sabe disso. Entretanto, o mesmo levantamento demonstra que os brasileiros são os que mais se sentem mal ao se deparar com esses conteúdos tóxicos.

Isso é um aparente paradoxo, pois o sucesso desses conteúdos ruins na rede está intimamente ligado às ações desses mesmos usuários. Por isso, não podemos apenas assumir uma postura passiva ou de vítima diante do problema. Sua solução depende necessariamente de cada um de nós.


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O Facebook fez a pesquisa entre março e abril de 2020 no Brasil, Colômbia, Estados Unidos, Índia, Indonésia, Japão e Reino Unido, com amostras de 5.000 pessoas de cada país. Ela visava saber se seus produtos conseguem manter sua “integridade”, ou seja, evitar conteúdos que violem suas regras. Essas violações são conteúdo cívico inflamatório, desencorajamento cívico, inautenticidade cívica, bullying cívico, conteúdo cívico falso ou enganoso, bullying, desinformação, contas falsas, roubo de identidade, violência explícita, discurso de ódio, nudez, terrorismo, exposição infantil indevida, venda de animais e venda de drogas e profanidade.

O levantamento indica que 37% dos brasileiros entrevistados identificaram publicações assim no Facebook. Nos Estados Unidos, isso chegou a 46%. Já no WhatsApp, esse índice bateu 30% no Brasil, o mais alto entre os países avaliados; nos EUA, foi sentido por apenas 13%. Mas é preciso considerar que apenas 30% dos americanos estão no aplicativo, enquanto, no Brasil, ele é usado por praticamente todas as pessoas online. Também foram analisados o Instagram, o Twitter, o Snapchat, o TikTok e o Line.

Entre os países verificados, os brasileiros são os que consistentemente se sentem pior quando veem esse tipo de conteúdo. Considerando Facebook e WhatsApp, os temas mais sensíveis para os brasileiros são exposição infantil indevida, terrorismo, violência explícita, discurso cívico inflamatório e discurso de ódio. A desinformação é um dos tópicos que menos choca os usuários por aqui.

Todas essas categorias são terríveis, mas o fato de a desinformação se classificar tão mal entre o que causa desconforto entre os brasileiros é emblemático. Isso está associado a aspectos culturais e a uma educação historicamente de baixa qualidade.

Por conta disso, o brasileiro já era proporcionalmente pouco acostumado a investir em informações de fontes de boa reputação. O fortalecimento das redes sociais agravou esse quadro, pois criou-se uma percepção que não era mais preciso pagar para se ter acesso a informações. Isso pode até ser verdade: o problema é o nível do que se encontra nas redes, majoritariamente muito baixo.

E os indivíduos consomem isso alegremente. Pior: divulgam esse material!

As pessoas acreditam no que elas quiserem, e isso é uma característica da nossa humanidade. Tentamos encontrar argumentos para validar aquilo que nos interessa.

Alguns não demoraram a perceber que poderiam combinar isso com os algoritmos das redes sociais, que nos colocam em contato com quem pensa da mesma forma que nós, para obter uma incrível máquina de convencimento para quaisquer que fossem seus objetivos. Assim surgiu uma minoria organizada e extremamente barulhenta no meio digital, que usa a desinformação como ferramenta.

Por exemplo, fiquei estarrecido ao ver publicações que sugerem que o trágico acidente que vitimou a cantora Marília Mendonça e os demais ocupantes do avião na sexta-feira teria sido causado por um mal súbito do piloto, que seria resultado de uma reação à vacina contra Cvoid-19.

Como alguém pode se aproveitar de uma tragédia que comoveu o país para fazer valer uma monstruosa teoria de que o imunizante é prejudicial à saúde?

O cérebro tem mecanismos curiosos. Graças a eles, essa teoria atingirá seu objetivo de desacreditar a vacina com uma quantidade considerável de pessoas, que estão enlutados pela cantora e buscam explicações para sua morte. Essas pessoas, por diferentes motivos, também têm suas próprias reservas à imunização e assim buscam argumentos para não se vacinar. A junção das duas coisas em uma única ideia, por mais bizarra que seja, dispara a sua aceitação.

É como se o indivíduo estivesse à beira do precipício, e precisasse apenas de um empurrãozinho…

 

Trabalho profissional

Isso não é uma molecagem, como alguns poderiam pensar. A desinformação se transformou em uma indústria milionária que move a política mundial.

Diversos estudos ajudam a explicar isso. Por exemplo, a pesquisa destacada na capa da revista Science, a mais importante publicação científica do mundo, no dia 9 de março de 2018, demonstra como, a despeito das ações de robôs, são as pessoas as grandes responsáveis pela disseminação das fake news. Isso acontece, em parte, porque a desinformação dispara mecanismos emocionais que induzem ao engajamento com esse material.

Em janeiro, a Universidade de Oxford (Reino Unido) divulgou o estudo “Desinformação industrializada: inventário global de manipulação de mídia social organizada”, que demonstra que essas táticas vêm sendo usadas por cada vez mais governos: em 2020, foram vistas em 81 países! Segundo os autores, no Brasil, as “tropas cibernéticas” (como eles chamam os apoiadores dos governos nas redes) se dedicam principalmente a atacar opositores e aumentar a polarização na sociedade.

Vale notar que os países onde a democracia aparece mais atacada pelas “tropas” são os mesmos em que a população acredita pouco na imprensa, como visto no relatório “Trust Barometer”, publicado em março pela consultoria Edelman. A China é uma exceção: 70% da população acredita na mídia por lá, mas ela é dominada pelo governo, o que reforça a tese de Oxford de que os governos autoritários combatem a imprensa livre.

A essa altura, dizer que a população se tornou massa de manobra dos poderosos graças a essa dominação digital se tornou uma obviedade. Mas precisamos insistir nesse debate, pois a solução do problema passa por rompermos esse quadro!

O Facebook nega oficialmente as acusações feitas a partir dos “Facebook Papers” e afirma que investe bilhões de dólares no combate ao conteúdo tóxico, inclusive a desinformação. O próprio estudo sugere uma preocupação em mapear o problema, colocando o Brasil como um “país de risco”, em que a população é fortemente impactada por esse material, e que precisa ser monitorado com prioridade, com “ações de integridade mais agressivas”.

Melhorar os algoritmos e ampliar equipes treinadas para reduzir ao máximo esses conteúdos são iniciativas fundamentais, mas é preciso investir na educação midiática da sociedade. As pessoas precisam aprender a separar a verdade de absurdos.

Essa não é uma tarefa trivial, e depende fortemente dos veículos de comunicação profissionais, mas também das escolas e até da Justiça. E as plataformas digitais desempenham um papel crítico nisso, pois é graças a elas que a mentira chega à população como uma “versão dos fatos” muito mais suculenta, pronta para ser consumida ser raciocinar.

É difícil resistir e até identificar as fake news. Aos olhos do brasileiro, elas nem encabeçam a lista de preocupações, como indica essa pesquisa do Facebook agora revelada. Perdem até da nudez!

Mas a nudez não pode destruir a sociedade. A desinformação pode, e já fez um estrago enorme.

O poder do gado pode massacrar nossas convicções

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Somos seres únicos e, como tal, temos a capacidade de ter ideias próprias. Combinamos conhecimento para criar conclusões que nos ajudam a crescer como pessoas e a desenvolver a sociedade. Mas a digitalização de nossas vidas vem tornando essa tarefa mais complicada. Ter autonomia e manter convicções exige cada vez mais energia.

Acontece que também somos seres gregários. Precisamos conviver com outras pessoas para benefício mútuo. Precisamos nos sentir aceitos! O custo disso é ajustar eventualmente o que pensamos ao grupo, para uma convivência harmoniosa e construtiva. No final, esse confronto com pensamentos diferentes acaba nos ajudando a refinar nossa visão de mundo.

O problema é que a pressão do grupo cresce exponencialmente com a exposição às onipresentes redes sociais. Para integrarmos a manada, o gado nos impõe sua visão de mundo, que, em muitos casos, contraria o bom senso, a ciência e pode ameaçar a vida dos membros do rebanho. E, como seus algoritmos insistem em nos manter dentro de “bolhas”, perdemos as referências com a realidade.


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Isso pode parecer exagero, mas não é!

Entre os dias 20 e 27 de abril, o Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação entrevistou 2.031 pessoas para a sua pesquisa “A Cara da Democracia”. Além de conclusões políticas muito interessantes, o estudo demonstrou que 22,2% dos brasileiros acreditam que a Terra é plana. Isso dá quase 50 milhões de pessoas que deliberadamente rejeitam um fato científico largamente explicado e observado.

Anteriormente, em julho de 2019, outro levantamento indicava que “apenas” 7% dos brasileiros então acreditavam nessa barbaridade e outros 3% diziam não saber qual era a forma do mundo. Ou seja, em quase dois anos, a quantidade de brasileiros que cometem esse atentado científico, que já era gigantesco, triplicou!

A pesquisa “A Cara da Democracia” traz ainda outras informações muito preocupantes, e que impactam de maneira mais decisiva nossa vida. Por exemplo, 50,7% dos brasileiros acreditam que o novo coronavírus foi criado pelo governo chinês e 56,4% acreditam que os hospitais são pagos para inflar o número de pacientes mortos pela Covid-19.

Esses últimos dados são gravíssimos pois estão associados à crença em notícias falsas que efetivamente colocam a vida das pessoas em risco, como se recusar a se vacinar, usar máscaras, praticar o distanciamento social, ou acreditar que drogas como cloroquina e ivermectina combatem a Covid-19.

Segundo o instituto, isso escancara como a desinformação cresce de forma galopante no Brasil, especialmente entre aqueles que se informam por redes sociais, mais notadamente Facebook, WhatsApp, Instagram e YouTube. A situação é ainda mais grave entre eleitores de Bolsonaro, pois o presidente é um notório detrator da ciência e de fontes confiáveis de informação, fazendo uso das redes sociais para disseminar todo tipo de notícia errada e teorias da conspiração.

 

A desinformação não escolhe vítimas

Muitos podem argumentar que apenas pessoas ignorantes, com baixa escolaridade acreditam e vivem de acordo com essas coisas estúpidas. Mas não é o caso: entre os negacionistas e os conspiradores contra a ciência, há de tudo, inclusive gente muito estudada. E é por isso que a situação é dramática!

Conheço profissionais da saúde que, a despeito de todas as indicações da comunidade científica e até de fabricantes, continuam acreditando na cloroquina como remédio contra a Covid-19. Outros se negam a se vacinar, afirmando que os imunizantes não funcionam ou até são perigosos! Por outro lado, médicos contrários a esse uso da droga entram na Justiça contra colegas e associações de classe.

Esse “racha” entre os profissionais da saúde piora ainda mais a situação das pessoas, que não sabem em quem acreditar. Nessa semana mesmo, uma amiga, que trabalha em um hospital, me disse que se recusou a tomar a vacina a que tinha direito. Outra, que contraiu a doença, me perguntou se deveria tomar cloroquina ou ivermectina.

É de se perguntar como profissionais da saúde, que deveriam ser os primeiros a abraçar o que a ciência diz, se deixam levar por essas aberrações que apenas atendem a interesses políticos. Não são culpados: é aí que entram as redes sociais, que dão voz tanto a quem constrói o discurso negacionista, quanto ao “gado” que o distribui.

Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha Nazista de Hitler, dizia que uma mentira dita uma vez é apenas uma mentira; já uma mentira dita mil vezes se torna verdade. Mas hoje, com as redes sociais, as mentiras são ditas não mil, mas milhões de vezes!

 

O risco da conformidade

Em uma das cenas mais emblemática do filme “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989), o professor Keating, vivido por Robin Williams, faz um interessante exercício com seus alunos para ilustrar os perigos da conformidade, ou seja, os riscos envolvidos quando abandonamos nossas convicções ou até a ciência para fazer parte do grupo.

Ele fez três alunos darem voltas ao redor do pátio. No começo, cada um andava à sua maneira, mas rapidamente todos alinharam seus passos e o estilo. Mais que isso: os demais alunos, que assistiam, começaram a espontaneamente bater palmas, marcando o ritmo das passadas. Ninguém determinou aquilo: aconteceu naturalmente.

Apesar de ser um exercício singelo, ele explica muito bem o que vivemos hoje. Todos querem voltar a ter uma vida “normal”, a trabalhar ou estudar sem medo, a se encontrar com os amigos e a família, a se divertir. Mas a pandemia continua a todo vapor, com números de novos casos e óbitos altíssimos!

Como não temos como controlar o incontrolável, abraçamos qualquer coisa que nos aqueça o coração e justifique fazermos o que quisermos. Infelizmente essa fórmula mágica não virá de cientistas, de profissionais da saúde ou de professores sérios, pois simplesmente não existe. Mas virá de um presidente ou de um tio negacionista no grupo da família no WhatsApp, o que já basta, porque as pessoas acreditam no que elas quiserem ou no que lhes convier.

Elas querem uma saída rápida para seus problemas. Abraçarão tudo e todos que lhes acenarem um caminho e combaterão qualquer um que irritantemente insista na verdade. O problema é que, como vemos diariamente, a saída mágica pode levar o indivíduo ao caixão.

Quando vejo que 50 milhões de brasileiros acreditam que a Terra é plana, temo que estejamos rumando para uma nova Idade das Trevas, em que a verdade será combatida sistematicamente por grupos que se alimentam de mentiras e por uma massa controlada, cuja única preocupação é um ‘”lugar no céu quando morrer”.

Temos que ser “renascentistas” que lutam contra esse mal supremo! Não podemos render nossas convicções, nossa inteligência e nosso senso crítico a quem nega os fatos, a ciência, a vida para garantir seus interesses. E devemos ajudar quem estiver a nossa volta a não cair nesse poço sem fundo.

Caso contrário, se os negacionistas vencerem, jogarão a humanidade para um novo período de obscurantismo e de retrocesso. E já tivemos mil anos disso na Idade Média.

 

Estamos nos aproximando de “The Walking Dead”

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Na noite desse domingo, foi ao ar o último episódio da décima temporada da série “The Walking Dead”, a mais vista na TV aberta americana. Apesar de ser uma obra ficção, ela assustadoramente guarda algumas semelhanças com a nossa situação atual, e podemos aprender algo com isso.

A realidade dos episódios é determinada por um vírus que transforma pessoas em zumbis, que coloca a humanidade de joelhos. Mas, assim como se observa em nossos atuais dias sombrios, na história, o que mais assusta não é a doença, e sim a desunião entre os sobreviventes, que pode representar uma ameaça à humanidade ainda maior.

Concordo que um mundo dominado por mortos-vivos comedores de gente pode parecer ainda mais dramático que a destruição real provocada pela Covid-19. Mas, na série, os sobreviventes se organizam em clãs para garantir recursos em detrimento de outros humanos. Por outro lado, o que vivemos é potencialmente muito mais perigoso, com uma determinação crescente de muitos em negar o conhecimento e a verdade para alguns poucos serem beneficiadas às custas das demais.

As narrativas negacionistas começaram com temas que pareciam fanfarronices de um bando de paspalhos, como acreditar piamente que a Terra é plana no século XXI. Mas ela evoluiu para absurdos como pessoas que se negam a tomar qualquer tipo de vacina, por acreditar que fazem mal à saúde. Esse caso específico se tornou dramático diante da pandemia, ao ser cruzado com interesses políticos de grupos no poder, que incendeiam seus seguidores contra o imunizante para atacar adversários e até tentar um desequilíbrio geopolítico mundial.

E as pessoas acreditam neles!


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Em “The Walking Dead”, alguns humanos não veem nenhum problema em matar outros sobreviventes para se apropriar de seus recursos. Diante de uma situação de crise extrema, a sociedade e qualquer senso de civismo desaparecem, dando lugar à completa barbárie.

Guardadas as devidas proporções, isso não é muito diferente do que vivemos hoje. Quando um líder ataca vacinas, combate o uso de máscaras e critica abertamente medidas de distanciamento social, ele efetivamente manda milhares de pessoas à morte para garantir seus interesses mesquinhos. E quem acredita nele segue suas ordens, feito zumbis que precisam satisfazer uma necessidade única.

Como se pode ver, isso não se trata de um mero exercício mental.

Há alguns dias, tive acesso ao estudo “Enfrentando as ameaças à tomada de decisão com base em informações em sociedades democráticas”, do grupo de pesquisadores liderado por Elizabeth Seger, da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Organizado pelo Programa de Defesa e Segurança do Instituto Alan Turing, o órgão de ciência de dados e inteligência artificial do Reino Unido, o documento demonstra o mecanismo de ataque deliberado à capacidade da população de adquirir conhecimento.

“A pandemia de Covid-19 deixou uma coisa clara: é muito difícil coordenar o comportamento de uma sociedade inteira, mesmo quando se trata de uma questão de vida ou morte”, explicou Seger em artigo publicado na BBC. Ela cita justamente a recusa de uma parte considerável da população a se vacinar como algo que coloca em risco a vida até dos vacinados e a própria manutenção da sociedade.

Segundo ela, “mesmo que estivesse claro como salvar o mundo, um ecossistema de informações degradado e não confiável poderia impedir que isso acontecesse”. A equipe de pesquisadores usou o termo “segurança epistêmica” para definir a capacidade não apenas de garantir a segurança do conhecimento, mas também de adquirir informações de qualidade.

 

Os ataques ao conhecimento

A equipe liderada por Seger definiu quatro principais ameaças à segurança epistêmica. E nenhum deles pode ser creditada ao acaso.

A primeira é a ação das pessoas a que chamaram de “adversários” e “trapalhões”. Eles podem interferir nos processos de tomada de decisão pela desinformação ou outras ações. Os primeiros são indivíduos que deliberadamente manipulam informações, promovem ataques ou incitam seus seguidores para confundir ou enganar a população para atingir seus objetivos. Já os “trapalhões” são aqueles que, de maneira inocente e até bem-intencionada, espalham essas bobagens, como aquela turma no grupo da família no WhatsApp.

Outro problema é o excesso de informação a que somos submetidos, nem todas elas confiáveis. Essa abundância faz com que nossa atenção fique dispersa, tornando mais difícil garantir que as informações essenciais cheguem a quem precisa. O modelo de negócios da “economia da atenção”, usado pelas redes sociais, que direcionam nosso olhar ao que lhes interessa, torna isso ainda mais dramático. Nossa capacidade limitada de concentração dificulta separar uma verdade de uma porcaria. E os produtores de fake news se valem disso.

As pessoas também se acostumaram a rejeitar informações que desafiam seus pontos de vista. E, se houver uma forte identidade no grupo, ela leva a uma maior polarização e negacionismo. Diante da sobrecarga de informações, prestamos mais atenção a quem pensa igual a nós. Isso cria o que os pesquisadores chamaram de “racionalidade limitada”, pois só crescemos quando somos expostos justamente a pensamentos conflitantes.

Por fim, as tecnologias de mediação e produção de informação tornam mais difícil avaliar a confiabilidade das fontes. Tendemos a confiar mais em alguém da nossa comunidade ou em quem muitas pessoas confiam. Com as redes sociais, esses mecanismos perdem força diante das manipulações dos algoritmos feitos por grupos de poder.

 

Resgatando a verdade

Os pesquisadores afirmam que os ataques à segurança epistêmica não podem ser combatidos com iniciativas pontuais, pois as causas estão disseminadas pelas mentes da população. Por isso, esse esforço precisa ser multidisciplinar e ter um caráter “holístico”, totalmente abrangente e interligado.

Para eles, esse resgate passa por desenvolver métodos para dificultar as ações de “adversários” e de “trapalhões”, enquanto se ajuda as pessoas a identificar mais facilmente fontes de informação confiáveis. Da mesma forma, essas boas fontes devem receber apoio da comunidade.

O documento explica que os “adversários” são capazes de mudar suas estratégias rapidamente e que, por isso, devem estar sempre sendo monitorados e combatidos com iniciativas atualizadas contra suas ações nocivas. Elas precisam necessariamente ser conduzidas por profissionais de diferentes áreas do conhecimento.

Há alguns dias, enquanto revia a montagem de Andrew Lloyd Webber de “O Fantasma da Ópera”, alguns versos da canção “A música da noite” me saltaram aos ouvidos. Neles, o personagem do Fantasma dizia o seguinte:


Feche seus olhos
Pois seus olhos só dirão a verdade
E a verdade não é o que você quer ver.
No escuro é fácil fingir
Que a verdade é o que deveria ser.

Sinto que essa é a realidade que grande parte de nossa sociedade vive. Precisamos lutar pela segurança epistêmica de todos nós, com todos os recursos que tivermos.

Como estão os seus olhos: abertos ou fechados?