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Ian Wilmut, biólogo do Instituto Roslin (Escócia), e a ovelha Dolly, primeiro clone bem-sucedido de um mamífero - Foto: divulgação

Corrida pela inteligência artificial não pode driblar leis ou ética

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Diante do acalorado debate em torno do “PL das Fake News”, muita gente nem percebeu que outro projeto de lei, possivelmente tão importante quanto, foi apresentado no dia 3 pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG): o PL 2338/23, que propõe a regulação da inteligência artificial. Resta saber se uma lei conseguirá conter abusos dessa corrida tecnológica ou sucumbirá à pressão das empresas, como tem acontecido no combate às fake news.

Talvez um caminho melhor seria submeter o desenvolvimento da IA aos limites da ética, mas, para isso, os envolvidos precisariam guiar-se por ela. Nesse sentido, outro acontecimento da semana passada foi emblemático: a saída do Google de Geoffrey Hinton, conhecido como o “padrinho da IA”. Ele disse que fez isso para poder falar criticamente sobre os caminhos que essa tecnologia está tomando e a disputa sem limites que Google, Microsoft e outras companhias estão travando, o que poderia, segundo ele, criar algo realmente perigoso.

Em entrevista ao The New York Times, o pioneiro da IA chegou a dizer que se arrepende de ter contribuído para esse avanço. “Quando você vê algo que é tecnicamente atraente, você vai em frente e faz”, justificando seu papel nessas pesquisas. Hoje ele percebe que essa visão pode ser um tanto inconsequente.

Mas quantos cientistas e principalmente homens de negócios da “big techs” também têm essa consciência?


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Isso me lembrou do início da minha carreira, como repórter de ciência, quando o mundo foi sacudido, em fevereiro de 1997, pelo anúncio da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado com sucesso. Apesar de sua origem incomum, ela viveu uma vida normal por seis anos, tendo até dado à luz seis filhotes. Depois dela, outros mamíferos foram clonados, como porcos, veados, cavalos, touros e até macacos.

Não demorou para que fosse levantada a questão se seria possível clonar seres humanos. Ela rendeu até a novela global “O Clone”, de Glória Perez, em 2001. Em 2007, Ian Wilmut, biólogo do Instituto Roslin (Escócia) que liderou a equipe que criou Dolly, chegou a dizer que a técnica usada com ela talvez nunca fosse eficiente para uso em humanos.

Muitas teorias da conspiração sugerem que clones humanos chegaram a ser criados, mas nunca revelados. Isso estaria em linha com a ideia de Hinton da execução pelo prazer do desafio técnico.

Ainda que tenha se materializado, a pesquisa de clones humanos não foi para frente. E o que impediu não foi qualquer legislação: foi a ética! A sociedade simplesmente não aceitava aquilo.

“A ética da inteligência artificial tem que funcionar mais ou menos como a da biologia, tem que ter uma trava”, afirma Lucia Santaella, professora-titular da PUC-SP. “Se não os filmes de ficção científica vão acabar se realizando.”

 

A verdade irrelevante

Outro ponto destacado por Hinton que me chamou a atenção é sua preocupação com que a inteligência artificial passe a produzir conteúdos tão críveis, que as pessoas não sejam mais capazes de distinguir entre o que é real e o que é falso.

Ela é legítima! Já em 2016, o Dicionário Oxford escolheu “pós-verdade” como sua “palavra do ano”. Muito antes da IA generativa e quando as fake news ainda engatinhavam, esse verbete da renomada publicação alertava para “circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”. De lá para cá, isso se intensificou exponencialmente: as pessoas acreditam naquilo que lhes for mais conveniente e confortável. As redes sociais levaram isso às raias da loucura e a IA generativa pode complicar ainda mais esse quadro.

“Não é que a verdade não exista: é que a verdade não mais importa”, acrescenta Santaella. “Esse é o grande problema!”

Ter ferramentas como essas abre incríveis possibilidades, mas também exige um uso responsável e consciente, que muitos não têm. Seu uso descuidado e malicioso pode ofuscar os benefícios da inteligência artificial, transformando-a em um mecanismo nefasto de controle e de desinformação, a exemplo do que foi feito com as redes sociais. E vejam como isso está destruindo a sociedade!

Se nenhum limite for imposto, as empresas desenvolvedoras da IA farão o mesmo que fizeram com as redes sociais. É uma corrida em que ninguém quer ficar para trás, pois o vencedor dominará o mundo! Para tornar a situação mais dramática, não se trata apenas de uma disputa entre companhias, mas entre nações. Ou alguém acha que a China está parada diante disso tudo?

Eu jamais serei contra o desenvolvimento de novas tecnologias. Vejo a inteligência artificial como uma ferramenta fabulosa, que pode trazer benefícios imensos. Da mesma forma, sou um entusiasta do meio digital, incluindo nele as redes sociais.

Ainda assim, não podemos viver um vale-tudo em nenhuma delas, seja clonagem, IA ou plataformas digitais. Apesar das críticas ao “PL das Fake News” criadas e popularizadas pela desinformação política e resistência feroz das “big techs” (as verdadeiras prejudicadas pela proposta), ele oferece uma visão equilibrada de como usar bem as redes sociais. Mas para isso, essas empresas precisam se empenhar muito mais, inclusive agindo de forma ética com o negócio que elas mesmas criaram.

Não percamos o foco no que nos torna humanos, nem a capacidade de distinguir verdade de mentira. Só assim continuaremos evoluindo como sociedade e desenvolveremos novas e incríveis tecnologias.

Nesse sentido, o antigo lema do Google era ótimo: “don’t be evil” (“não seja mal”). Mas em 2015, a Alphabet, conglomerado que incorporou o Google, trocou o mote por “faça a coisa certa”, bem mais genérico.

Bem, a coisa certa é justamente não ser mal.

 

Chacrinha, dono de bordões memoráveis, como “quem não comunica se trumbica” - Foto: divulgação

Precisamos resgatar a arte de conversar

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O brasileiro moderno e digital poderia aprender algo com o Chacrinha. Abelardo Barbosa foi um dos maiores comunicadores do país entre as décadas de 1950 a 1980 por conseguir se conectar com o seu público e por saber fazer boas leituras de cada momento da sociedade. Com isso, ajustava seus programas e suas falas. E dentre seus memoráveis bordões, um sempre captou minha atenção: “quem não comunica se trumbica!” Ou seja, a arte de conversar é essencial para termos sucesso no que for.

Na sociedade polarizada, egoísta e impaciente das redes sociais, muitos parecem estar esquecendo de como fazer isso. Todos querem falar, mas poucos aceitam ouvir. Porém uma conversa exige, por definição, trocas entre pessoas. Para que seja boa, os interlocutores precisam estar dispostos a ouvir genuinamente o que o outro tem a dizer e demonstrar empatia. E –claro– ter algo útil a compartilhar ajuda nessa atividade.

Quando isso não é observado, tudo piora. Um exemplo emblemático aconteceu há duas semanas, na tentativa do Governo Federal de taxar compras em sites asiáticos, como a Shein, Aliexpress e Shopee. A medida é inescapavelmente impopular, pois deixará mais caras transações adoradas pela classe média. Mas uma comunicação falha e até arrogante tornou tudo mais confuso, gerando uma crise desnecessária.


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Entre idas e vindas, pessoas do governo dando declarações descontextualizadas e distantes do público, e a tradicional enxurrada de desinformação das redes sociais, muita gente continua sem entender como ficarão suas compras vindas do outro lado do mundo. Isso dói no bolso da população.

Ignorar isso nas comunicações é ignorar as necessidades do interlocutor, no caso, o povo. Por isso, a declaração do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de que não conhecia a Shein, só a Amazon “onde compra todo dia um livro, pelo menos”, foi entendida como elitista e arrogante. Graças a tudo isso, levantamento da consultoria Quaest mostrou que, naqueles dias, 83% das menções ao tema nas redes sociais foram negativas para o governo. A oposição tripudiou!

Mesmo sendo impopular, a comunicação poderia ter seguido outro caminho. Como os produtos ficarão mesmo mais caros, o governo deveria reforçar o discurso de que esse dinheiro extra será revertido para a própria população, melhorando a saúde e a educação, por exemplo. Além disso, precisa explicar por que a evasão de impostos dos portais asiáticos prejudica seriamente varejistas brasileiros, que pagam corretamente seus impostos e empregam muita gente.

Para se ter uma ideia da magnitude da “invasão asiática” no comércio de vestuário, levantamento do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV) mostra que, em 2019, a Shein nem aparecia entre os principais nomes do setor. Dois anos depois, já abocanhava 16,1% do mercado, muito mais que marcas brasileiras tradicionais, que não param de cair. Por isso, elas apoiam a ideia de taxação das asiáticas.

Toda a gritaria resultante dessa falha de comunicação fez o governo recuar na proposta de eliminar o imposto de importação de produtos até US$ 50 entre indivíduos, mecanismo que as asiáticas usam para escapar da taxação (como empresas, não poderiam aproveitar isso). A ideia agora é forçar essas empresas a cobrar os impostos já na compra, o que a encarecerá do mesmo jeito. Mas nem isso foi bem comunicado à população.

O que não dá é insistir no discurso de que “nada mudou, pois o imposto sempre existiu, apenas era ignorado”. Na visão do consumidor, continua a sensação de que comprar da China é mais barato que do Brasil, e que a iniciativa do governo tornará isso mais caro e sua vida mais difícil.

 

Fazendo concessões

Uma boa conversa também implica em fazer concessões. Quem tenta impor seu ponto de vista, acaba ficando sozinho.

Em muitos casos, há interesses conflitantes no debate, mas isso não quer dizer que não se possa chegar a um consenso. No exemplo acima, a inabilidade na comunicação colocou os consumidores do lado dos portais asiáticos e contra os varejistas brasileiros e o próprio governo.

Poderia ter sido diferente!

Não dá para agradar todo mundo! Insistir nisso é um erro de muitas pessoas e empresas. Todos precisam conhecer quem forma seu público, pois as pessoas têm gostos, valores e visões de mundo diferentes. Ao se tentar abarcar muita gente, o que acontece é que se cria uma comunicação genérica e sem graça, que não agrada verdadeiramente ninguém.

Isso não quer dizer que devamos sair por aí cometendo “suicídios de imagem” ao dizer, sem nenhum cuidado, o que precisa ser dito. Precisamos expor as ideias e as informações necessárias, mas levando em consideração as necessidades de todos os envolvidos, negociando o que pode ser concedido em cada caso, sem que isso desfigure o objetivo original.

Sobre isso tudo, precisamos exercitar nossa sensibilidade e nossa empatia. Demonstrar esses sentimentos genuinamente pode pelo menos suavizar uma má notícia.

É uma pena que, em tempos de redes sociais, que criam bolhas que reforçam nossos pontos de vista (mesmo os piores), a empatia se tornou artigo de luxo. Isso acontece porque ela exige tempo e energia, duas coisas que as pessoas não querem conceder.

Em uma situação complexa como essa da taxação das compras nos portais asiáticos, em que há interesses diametralmente opostos, a empatia fica ainda mais importante. O governo precisa trazer a população para o seu lado, ao invés de afastá-la. Não é uma tarefa simples, pois a medida dói no bolso das pessoas, que ainda são incendiadas pela oposição.

Ainda assim, é possível, pelo menos, melhorar um pouco esse quadro. Mas, para isso, é preciso de conversa e de empatia.

Afinal, como diz a sabedoria popular, “é conversando que se entende”. Isso vale para o governo, para empresas e para cada um de nós.

Chacrinha que o diga!

 

Imagem artística de Tiradentes, criada por Oscar Pereira da Silva - Foto: Acervo do Museu Paulista da USP / Creative Commons

Se fosse hoje, Tiradentes teria ficado famoso no TikTok

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Quanto tempo é necessário para se criar um herói?

Na sexta, comemoramos o Dia de Tiradentes. Aproveitamos o feriado em nome do maior herói da história do país, mas são pouquíssimos os brasileiros que sabem qualquer coisa sobre ele, além de uma história rasa e totalmente fantasiosa que aprendem na escola.

A sua imagem amplamente difundida foi criada por positivistas no momento da fundação da República. Em um país carente de heróis, precisavam de uma figura para personificar os ideais republicanos. Isso foi conseguido com um discurso único e ufanista sobre um homem esquecido durante todo o Império. A imprensa e o sistema educacional foram os veículos desse processo, que levou décadas para se consolidar.

Hoje, talvez isso acontecesse em poucos meses, algumas semanas até. Os ideólogos modernos fazem isso com o apoio das redes sociais, capazes de criar mitos e de destruir reputações consolidadas com incrível eficiência. A ideia simples dá lugar à disseminação ampla e orquestrada de uma enxurrada de informações que permitem a construção de ideias que se enraízam na mente de grande parte da população.

O Brasil está em pleno debate sobre a responsabilidade das redes sociais no processo de desinformação, que vem carcomendo a sociedade. Nessa semana, deve ser votado na Câmara dos Deputados o chamado “Projeto de Lei das Fake News”, que visa disciplinar o tema. Mas um grupo de mais de cem deputados, com o apoio das big techs, tenta impedir essa votação.


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É de se perguntar por que a resistência a esse projeto de lei, e como tanta gente compra essa ideia. De certa forma, a resposta é justamente o motivo que faz a legislação tão necessária: a capacidade de alguns grupos de disseminar facilmente informações falsas ou distorcidas para atingirem seus objetivos. Esse mecanismo sempre existiu, mas ganhou uma força descomunal com as redes sociais.

Isso nos remete de novo a Tiradentes. A imagem que nos vem à mente é a de um homem de barbas e cabelos longos, junto ao cadafalso. Mas Joaquim José da Silva Xavier, nome do herói, era um alferes e, como militar, o máximo que se permitia era um discreto bigode. Na prisão em que passou seus últimos três anos, era obrigado a raspar o cabelo e a barba, para se evitar piolhos.

Todas as representações conhecidas de Tiradentes são criações livres de artistas que nunca o viram. A mais famosa delas, com longa barba e cabeleira, surgiu sob medida para remeter à imagem de Jesus Cristo, reforçando o aspecto messiânico do personagem que se desejava criar. Ironicamente a própria imagem dominante de Cristo, com um aspecto e vestes europeias da Idade Média, não deve representar em nada um homem que nasceu e viveu no Oriente Médio há 2.000 anos, sendo ela própria fruto de manipulação.

A apresentação de Tiradentes como líder da Inconfidência Mineira tampouco faz jus aos fatos. Ele foi o único enforcado do grupo não por ser uma liderança, mas por ser o “menos rico” de todos e o único que confessou a participação, servindo de exemplo à população. Seus companheiros endinheirados foram condenados ao exílio. De qualquer forma, seu martírio caiu como uma luva para a construção de sua imagem heroica.

Nos dias atuais, ninguém precisa morrer para se tornar um símbolo nacional. Basta saber como usar as redes sociais para captar as insatisfações da população e construir narrativas eficientes que o apresentem como a solução para essas mazelas.

 

“Libertas quæ sera tamen”

Podemos argumentar que o texto “Libertas quæ sera tamen”, tradicionalmente traduzido como “Liberdade ainda que tardia”, nunca esteve tão atual, graças ao debate em torno da responsabilidade das redes sociais pela fake news. A frase em latim foi proposta pelos inconfidentes para a bandeira da república que idealizaram no Brasil do final do século XVIII. Hoje ela faz parte da bandeira do Estado de Minas Gerais.

Aqueles que se opõem à regulamentação das redes sociais argumentem justamente que ela cercearia a liberdade de expressão, abrindo caminho para todo tipo de censura. Como muitos processos eficientes de desinformação, a ideia se constrói sobre argumentos verdadeiros e até desejáveis (no caso, a liberdade), mas colocados de maneira maliciosamente distorcida, para convencer grande parte da população a apoiar os interesses de um grupo.

De fato, o grande problema do projeto de lei é não definir, de maneira inequívoca, o que são fake news, o que pode abrir brechas para quem se beneficia delas. Por outro lado, reconheço a dificuldade de criar uma regra definitiva para tal, recaindo sobre a Justiça arbitrar casos duvidosos.

Outro ponto questionável do projeto é garantir a imunidade parlamentar no meio digital. Não é segredo algum que, entre os maiores produtores, disseminadores e beneficiários da desinformação, estão muitos políticos. Isso pode blindar essa categoria para que continuem abusando desse expediente.

Apesar disso tudo, o projeto avança em um ponto essencial, que é a responsabilização das redes sociais pelo que se publica em suas páginas. Se isso já era grave, ficou explícito com a explosão de ataques a escolas, incentivados por publicações no meio digital.

As plataformas devem bloquear conteúdos indubitavelmente criminosos. Para caso de falsos positivos, devem oferecer mecanismos de contestação. Em conteúdos dúbios, a Justiça continuará sendo acionada para decisões. O que se exige dessas empresas é celeridade e transparência no processo, algo que elas não oferecem hoje.

Não se trata, portanto, de ameaça à liberdade ou criação de um mecanismo de censura. Todos podem continuar dizendo o que quiserem nas redes sociais, sendo penalizados apenas quando infringirem alguma lei, como, por exemplo, em casos de calúnia ou difamação. E esses crimes já eram definidos muito antes desse debate.

As empresas das redes sociais não podem continuar isentas de um problema que nasceu e continua existindo graças a recursos que elas criaram, por mais que não fosse esse seu objetivo. Não se deseja cercear liberdades ou banir plataformas, e sim trazê-las para o centro dos esforços de solução dessa crise.

Nosso papel, como cidadãos, é parar de acreditar na barba falsa de Tiradentes e buscar fatos confiáveis para nossa tomada de decisões. Ninguém está isento dessa responsabilidade, nem das consequências de usos abusivos das plataformas digitais.

 

Elon Musk, CEO do Twitter, que relaxou o controle de conteúdo quando comprou a rede social - Foto: Daniel Oberhaus / Creative Commons

A marcha da insensatez nas redes sociais e a falência da sociedade

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Na última semana, um dos debates mais intensos no país foi a apuração da culpa das redes sociais no crescimento de ataques em escolas. Se já não bastasse a incredulidade diante de alunos e professores brutalmente assassinados, o posicionamento do Twitter em uma reunião de representantes das principais plataformas com o ministro da Justiça na terça provocou revolta. Entretanto, apesar daquela pavorosa declaração, precisamos olhar o problema sem simplificações.

Especialistas de educação e de saúde mental afirmam que a explosão de conteúdo nas redes sociais que menciona e até glorifica esses crimes serve como catalisador para novos atentados. Neste mesmo espaço, destrinchei o tema na semana passada. Mas como expliquei, apesar da contribuição dessas publicações para esses crimes, eles não podem ser atribuídos apenas a isso.

Ao longo da semana, conversei com profissionais de diferentes áreas sobre o caso. É um consenso que as redes sociais fazem muito menos do que poderiam e deveriam para o combate a esses crimes, como quando o Twitter disse naquela reunião que fotos de assassinos e de vítimas em posts não violariam as regras da rede ou sequer seriam apologia a crimes.

Muitos afirmam que retirar esse ou qualquer outro conteúdo seria censura. Alguns vão além e sugerem que esse movimento encobriria o interesse de um governo que, na verdade, estaria usando essa comoção para controlar a mídia.

São argumentos fortes, e eu até concordaria com isso, se as redes sociais fossem meios de comunicação tradicionais. Mas elas não são: sua gigantesca capacidade de nos convencer de qualquer coisa concentra o núcleo dessa discussão.


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Houve uma época em que eu era muito mais liberal sobre o que poderia ser publicado nas redes sociais. Eu as via como ferramentas que garantiam uma liberdade inédita ao cidadão para expor ideias em pé de igualdade com veículo de comunicação. Em 2015, cheguei a discordar publicamente do escritor e filósofo italiano Umberto Eco, quando ele disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, e que “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Quando alguém argumentava que essas plataformas deveriam ter alguma responsabilidade sobre o que seus usuários publicavam nelas, eu comparava isso com culpar o fabricante de um carro se ele fosse usado em um assalto a banco. Porém, à medida que fui estudando mais os algoritmos das redes sociais, fui percebendo que essa analogia era muito errada. Se os carros fossem como redes sociais, eles eventualmente convenceriam seus donos a roubar o banco!

A minha “fase mais liberal” com as redes sociais vinha do fato de usar essas plataformas desde suas primeiras aparições, como o Friendster e o Orkut, há cerca de duas décadas. Elas eram quase pueris, feitas para encontrar velhos amigos e conhecer gente nova. Todo mundo “brincava” ali, sem ofensas, sem medo, sem ódio.

E tudo isso porque tampouco existiam algoritmos de relevância, popularizados pelo Facebook em 2014. São eles que escolhem o que seus bilhões de usuários veem nas redes. Mais que isso, para que as pessoas se sintam “confortáveis”, exibem apenas conteúdos de que elas gostem, prendendo cada um de nós nas infames “bolhas”.

Ao fazer isso, as redes sociais se transformaram nas ferramentas perfeitas de convencimento de qualquer coisa, até mesmo para se cometer um crime bárbaro.

É nessa hora que “o carro pode induzir seu dono a roubar o banco”.

 

A responsabilidade de cada um

As redes sociais estão na berlinda. Diante de sua apatia, o governo quer que as empresas criem canais para rápida remoção de conteúdo ligado a esses crimes, e ameaça com multas e até bloqueios a quem não colaborar.

“O governo tem na lei os limites aos quais suas ações podem chegar, e não pode haver liberdade para multar ou banir sem a devida previsão legal”, explica Márcio Chaves, sócio da área de Direito Digital do Almeida Advogados. No caso brasileiro, há o Marco Civil da Internet, que prevê que uma plataforma digital seja responsabilizada por um conteúdo apenas se não o remover após uma ordem judicial. “Esse limite foi imposto justamente para evitar a censura prévia e não jogar para o provedor essa obrigação”, acrescenta.

Mas Chaves acredita que a legislação dificilmente dará conta de todas as situações em que a segurança da sociedade seja ameaçada por uma suposta “liberdade de expressão”. Segundo ele, “por isso é tão importante estimular um ambiente não de imposição, mas de cooperação entre as empresas e a administração pública, no qual ferramentas tecnológicas, conselhos de supervisão, e autoridades judiciais possam endereçar situações sensíveis como a que estamos passando agora com os ataques nas escolas, em uma velocidade mais compatível com a que estamos sujeitos com o uso das tecnologias digitais”.

O debate sobre mais responsabilidade para as redes sociais acontece há alguns anos no Brasil. Ele está, por exemplo, no Projeto de Lei conhecido como “PL das Fake News” e em sugestões de atualização do Marco Civil da Internet. No geral, pede-se que essas plataformas sejam mais atuantes e efetivas na identificação de discurso de ódio, desinformação e outros crimes em suas páginas, removendo esse conteúdo sem necessidade de uma ordem judicial, mesmo não sendo obrigadas a isso.

O grande risco é se criar uma espécie de “censura algorítmica”, com essas plataformas eliminando equivocadamente conteúdos legítimos. É verdade que a tecnologia para essas identificações vem progredindo a passos largos, inclusive com o apoio da inteligência artificial, mas ela ainda não é garantida.

Precisamos encontrar mecanismos eficientes para coibir a escalada de crimes incentivados nas redes sociais, sem criar outros problemas. O que não pode acontecer é uma empresa não remover um conteúdo de ódio “porque não violaria seus Termos de Uso”, como disse o Twitter. Chaves lembra que eles “são contratos entre a plataforma e o usuário, e só há liberdade contratual se não for contrária à lei”.

Sobra o temor de o governo usar isso para controlar a mídia. Todos governantes desejam isso, em alguma escala. Antes se restringia à imprensa, mas ela, ainda que independente, obedece a leis. Além disso, o jornalismo profissional segue um Código de Ética, que faz com que sua produção, ainda que às vezes falha, tenha um mínimo de qualidade. Já as redes sociais parecem ser guiadas apenas pelos seus interesses.

Por fim, isso não pode virar uma discussão político-partidária, como muitos já têm feito. Tampouco há espaço para deixar tudo como está, pois o discurso de ódio nas redes agrava o problema de fato. Essas empresas devem abandonar sua complacência, para evitar medidas mais drásticas. E a sociedade precisa ficar vigilante para que nenhum governo use o pânico para controlar qualquer mídia.

 

Escolas se tornaram alvo porque abordam questões que podem alimentar o extremismo - Foto: Max Klingensmith / Creative Commons

Como as redes sociais influenciam os ataques a escolas

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Na quarta passada, o Brasil vestiu luto mais uma vez diante do ataque à creche Cantinho do Bom Pastor, em Blumenau (SC). Ela foi invadida por um homem de 25 anos que, de maneira brutal e imotivada, assassinou quatro crianças. O delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, afirmou que não há indícios de que o crime tenha sido coordenado por meio de redes sociais ou games. Mas apesar de ele estar correto ao dizer que não existe vínculo direto no caso, o papel do meio digital em ataques como esse não pode ser ignorado.

A declaração me fez lembrar de um crime semelhante. No dia 13 de março de 2019, dois ex-alunos invadiram a escola estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP). Eles mataram estudantes e funcionários e depois se suicidaram. Autoridades, ainda no local do atentado, sugeriram que a culpa seria do game que os assassinos jogavam.

Especialistas descartam a relação entre jogos digitais e a violência, mas o mesmo não pode ser dito das redes sociais. O aumento de grupos de ódio em suas páginas incentiva pessoas a praticar esses atos bárbaros. A sociedade precisa entender suas dinâmicas, para buscar soluções sustentáveis e eficientes.


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O crescimento desses grupos e dos ataques não é uma coincidência. Nove dias antes do atentado em Blumenau, um aluno de 13 anos assassinou uma professora de 71 anos em uma escola na Vila Sônia, na capital paulista. Em 2021, um homem de 18 anos matou duas funcionárias e três bebês em uma creche na também catarinense cidade de Saudades.

Até 2002, não havia relatos de atentados em escolas brasileiras. De lá para cá, 40 pessoas morreram em casos assim. O primeiro aconteceu em Salvador, em 2002. Depois dele, houve um caso em 2003, dois em 2011, um em 2012, 2017 e 2018, dois em 2019 e um em 2021. Já em 2022 foram seis ocorrências. Em 2023, estarmos ainda em abril, e já aconteceram três atentados, um deles felizmente sem vítimas.

“As escolas se tornaram alvos porque abordam questões que podem alimentar o extremismo, como educação sexual, diversidade, racismo e violência de gênero”, explica Evelise Galvão de Carvalho, mestre em Psicologia Forense e especialista em comportamento antissocial na Internet. “Dessa maneira, é necessário considerar esses ataques como crimes de ódio”, afirma.

Quando atentados assim acontecem, os participantes de um movimento online conhecido como “True Crime Community” se agitam, repercutindo os ataques como se fossem grandes feitos. Eles destacam os nomes dos autores e, quando disponíveis, distribuem fotos e vídeos da ação. Por isso, muitos desses participantes buscam essa perversa “fama”, por mais fugaz e doentia que seja.

O problema fica ainda mais preocupante quando se observa que esses grupos agora podem ser encontrados facilmente nas redes sociais, inclusive naquelas preferidas por adolescentes, como o TikTok. Até pouco tempo atrás, eles trafegavam apenas em áreas restritas nas redes sociais a na chamada “Dark Web”, em que são necessárias ferramentas e autorizações especiais para entrar, o que a torna ideal para criminosos.

Essa nova “liberdade” amplia o efeito de “contagiar” pessoas para que outras ações sejam realizadas. É o que aconteceu em 15 março de 2019, quando um supremacista branco matou 51 pessoas em duas mesquitas na Nova Zelândia. A ação foi transmitida ao vivo pelas redes, sendo massivamente compartilhada depois.

 

Redes de intolerância

Tais grupos são motivados por crenças de superioridade racial, étnica, religiosa ou nacionalista, e consequente inferioridade de quem é diferente. Alguns visam proteger valores tradicionais que consideram ameaçados. Frequentemente promovem suas ideias por desinformação e violência, e chegam a propor uma sociedade em que os outros sejam subjugados ou excluídos.

Esses ataques não são atos terroristas convencionais. As pessoas que os praticam costumam agir sozinhas, incentivadas pelo que veem na Internet, mas não se pode atribuir seus atos exclusivamente a esses grupos.

Os agressores seriam predispostos a cometer os atentados pois viveriam em ambientes violentos. Fatores como agressividade em casa, bullying nas escolas e insucesso em relacionamentos podem contribuir. Vale dizer ainda que a sociedade se tornou muito mais intolerante e radicalizada nos últimos anos, com grupos de poder desvalorizando o afeto, pregando o ódio e até desumanizando quem pensa de forma diferente. Por fim, a pandemia agravou problemas de saúde mental na população.

“Alguns grupos podem enxergar meninos como futuros líderes e tentar doutriná-los desde cedo, para garantir seu engajamento contínuo à medida que envelhecem”, explica Carvalho. “Os meninos são frequentemente socializados para valorizar a força e a agressão, e grupos de ódio podem tentar explorar essas normas culturais para recrutar novos membros.”

Não se trata, portanto, apenas de casos de polícia. Detectores de metal e até policiais das escolas podem reduzir esses ataques, mas não resolvem a violência, que se manifestará de outras formas.

A escola deve ser fortalecida, como um espaço de diversidade e de debate. Professores precisam ser valorizados e pais e mães devem se unir nesse esforço, ao invés de combatê-los por não concordar com algo. Também é um problema de saúde pública, com as autoridades precisando ficar atentas ao crescimento de isolamento social e problemas de saúde mental. As famílias também precisam de apoio para que consigam construir relacionamentos positivos com seus filhos, minimizando o desejo de se unir a esses grupos, por exemplo, por falta de afeto.

A mídia pode contribuir ao não divulgar nomes e imagens dos crimes, dificultando a sua promoção nas redes de ódio, que é o “prêmio” desses criminosos. No atentado de quarta passada, grandes veículos de imprensa agiram assim.

Da mesma forma, as redes sociais precisam fazer mais. Para Carvalho, “é de extrema importância que sejam regulamentadas, e indivíduos e empresas que permitem que esses grupos se organizem e disseminem o ódio e desinformação sejam penalizados”.

Caímos no tema da regulamentação das redes sociais, que tanto debate vem provocando. Qualquer que seja seu desfecho, casos como esses escancaram o tamanho do estrago que essas plataformas causam por se portar apenas como inocentes “mensageiros”: ao não serem responsabilizadas pelo que seus usuários publicam, continuam oferecendo os caminhos para fake news e o ódio destilado.

Se a desinformação política já não fosse ruim o suficiente, a fluidez digital do discurso de ódio agora está literalmente matando crianças.

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse estar “um pouco assustado” com a inteligência artificial – Foto: Steve Jennings / Creative Commons

Como lidar com os algoritmos que se sobrepõem à verdade

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Três acontecimentos da semana passada, que provavelmente passaram despercebidos da maioria da população, envolvem tecnologias de enorme impacto em nossas vidas. O primeiro foi uma audiência no STF (Supremo Tribunal Federal) que debateu, na terça, o Marco Civil da Internet. Na quarta, mais de mil pesquisadores, executivos e especialistas publicaram um manifesto solicitando que pesquisas de inteligência artificial diminuam o ritmo, por representarem “grandes riscos para a humanidade”. Por fim, na sexta, a Itália determinou que o ChatGPT, plataforma de produção de textos por inteligência artificial da OpenAI, fosse bloqueado no país.

Em comum, os três tratam de tecnologias existentes há anos, mas com as quais paradoxalmente ainda temos dificuldade de lidar: as redes sociais e a inteligência artificial. E ambas vêm se desenvolvendo exponencialmente em seu poder para distorcer a realidade a nossa volta, muitas vezes contra nossos interesses e a favor dos das empresas que criam essas plataformas.

Não é um exagero! As redes sociais, usadas por quase 5 bilhões de pessoas, definem como nos relacionamos, nos divertimos, conversamos e nos informamos, manipulando-nos para consumirmos o que os algoritmos consideram melhor (mesmo não sendo). A “inteligência artificial generativa”, que ganhou os holofotes no ano passado e tem no ChatGPT sua estrela, produz conteúdos incríveis, mas que podem embutir grandes imprecisões que as pessoas aceitam alegremente como fatos.

As preocupações que se impõem são como podemos aproveitar o lado bom desses serviços, enquanto nos protegemos de potenciais efeitos nocivos, além de como responsabilizar seus produtores, algo que não acontece hoje!


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As redes sociais já são nossas velhas conhecidas. Segundo o relatório “Digital 2023 Global Overview Report”, da consultoria americana We Are Social, os brasileiros passam uma média de 9 horas e 32 minutos na Internet por dia, das quais 3 horas e 46 minutos são em redes sociais. Nos dois casos, somos os vice-campeões mundiais.

Não é surpresa para ninguém que sejamos manipulados por elas, em maior ou menor escala. Segundo a mesma pesquisa, 65,2% dos brasileiros se dizem preocupados se o que veem na Internet é real ou falso. Nesse quesito, somos o quinto país no mundo.

Agora a inteligência artificial ganha um destaque sem precedentes nas discussões tecnológicas, pelo poder criativo das plataformas que elaboram conteúdo. Algumas pessoas acham isso a aurora de uma nova colaboração entre nós e as máquinas; outros veem como um risco considerável para a própria humanidade.

Mas ela já faz parte do nosso cotidiano profundamente. Basta ver que os principais recursos de nossos smartphones dependem da inteligência artificial. As próprias redes sociais fazem uso intensivo dela para nos convencer. E se considerarmos que isso provocou uma polarização social inédita, colocando em risco a própria sociedade, os temores dos pessimistas fazem algum sentido.

Essa amálgama de euforia e paranoia provoca decisões às vezes precipitadas, mesmo de pessoas qualificadas. Países do mundo todo, inclusive o Brasil, se debruçam sobre o tema, tentando encontrar mecanismos legais para organizá-lo.

 

Regular ou não regular?

No Brasil, o uso das redes é disciplinado pelo Marco Civil da Internet, de 2014. “Ele entrou em vigor quando discurso de ódio e fake news estavam em outro patamar”, afirma Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Acredito que a revisão seja necessária, mas não com a simples declaração de inconstitucionalidade do artigo 19, e sim a partir de sistemas mais efetivos e transparentes de como as big techs fazem a gestão dos próprios termos de uso quando violados.”

“Hoje temos interações mais rápidas e intensas, que mudam a forma como vivemos em sociedade”, explica Carolina Giovanini, advogada especialista em direito digital do Prado Vidigal Advogados. “Porém isso não significa que o Marco Civil da Internet esteja ‘ultrapassado’, pelo contrário: é uma legislação que foi pensada levando em consideração o futuro da rede.”

O referido artigo 19 está no centro dessa discussão porque protege as plataformas digitais de serem responsabilizadas pelo conteúdo que os usuários publicam em suas páginas. Segundo o texto, elas só poderiam ser penalizadas se deixassem de retirar algo do ar após uma ordem judicial.

Como a Justiça não consegue analisar tudo que se publica nas redes, especialistas defendem que as plataformas sejam obrigadas a fazer isso por sua conta. A inteligência artificial seria fundamental para decidir o que seria apagado, mas a subjetividade de muitos conteúdos dificulta a definição inequívoca do que é desinformação, o que poderia levar a censura por falsos positivos.

“A própria ideia das redes sociais é ser um portal descentralizado, sem ‘pauta editorial’ ou viés socioeconômico, para que a sociedade pulverizada ganhe voz”, sugere Matheus Puppe, sócio da área de TMT, privacidade e proteção de dados do Maneira Advogados. “Responsabilizando as plataformas, todo o modelo de negócios e o propósito da informação descentralizada vai por água abaixo.”

Na prática, isso vem permitindo que as empresas que produzem essas tecnologias gozem de uma prerrogativa rara, que é responder pouco ou nada por danos que provoquem. Não se pode imaginar um mundo sem elas, mas o crescimento explosivo da desinformação e a consequente polarização social não podem ser vistos como meros “efeitos colaterais”. É como “perdoar” um remédio que mate 5.000 pessoas para curar outras 10.000: a cura é bem-vinda, mas não se pode tolerar tantas mortes.

“O ponto é que um novo regime de responsabilidade não é desejado pelas big techs”, afirma Crespo. “Elas têm até bons argumentos para manter como está, na medida em que elas mesmas removem alguns conteúdos ilícitos por vontade própria.”

Estamos em um impasse! Como canta Ney Matogrosso, “se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come!” As redes sociais estão no centro da nossa vida. A inteligência artificial abre possibilidade incríveis e necessárias. Eliminá-las é impossível, desacelerá-las é improvável. Mas esses problemas aparecem cada vez com mais força.

Qualquer que seja o futuro, ele precisa ser criado com a participação ativa de todos os agentes da sociedade. Essas empresas não podem continuar dando as cartas baseadas apenas na sua busca pelo lucro, pois seus produtos estão muito além de qualquer outra coisa já feita, do ponto de vista de transformação social.

Os benefícios devem ser distribuídos para todos, assim como as responsabilidades e os riscos. O futuro não pode ser distópico!

 

EUA e outros países ocidentais acusam Pequim de espionar seus cidadãos pelo aplicativo - Foto: divulgação e reproduções

TikTok vira arma na escalada da tensão entre Ocidente e China

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O TikTok cozinha em fogo alto no caldeirão das crescentes tensões políticas entre países ocidentais e a China. Após ser proibido em celulares corporativos de órgãos públicos de EUA, Canadá, vários países europeus e Nova Zelândia, o aplicativo corre o risco de ser banido dos smartphones pessoais de todos os americanos. Mas por que uma plataforma de vídeos curtos de amenidades está enfrentando isso?

Tudo passa pelo temor de que a chinesa ByteDance, criadora do TikTok, compartilhe os dados dos usuários coletados pelo aplicativo com o governo de Pequim. Apesar de a empresa rejeitar categoricamente fazer isso, ninguém consegue afirmar ou negar que exista essa colaboração. Portanto, não se sabe quanto dessas preocupações são fatos, paranoias ou mero teatro político.

O debate fica mais quente quando se observa que os dados coletados pelo TikTok são basicamente os mesmos que os de qualquer rede social, a maioria delas americanas, como Facebook ou Instagram. O mesmo pode ser dito dos sistemas operacionais Android e iOS, que gerenciam nossos smartphones e que, por si só, nos rastreiam de diferentes formas. E essas empresas colaboram com governos.

Grupos de usuários que não querem perder acesso ao TikTok afirmam que tudo isso não passa de hipocrisia, e que o banimento do aplicativo violaria seus direitos.


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A ByteDance naturalmente não quer perder esses mercados, por isso vem acenando com várias mudanças para mitigar tais temores, como hospedar os dados dos usuários americanos em servidores no país, e ter seu código revisado por autoridades locais. Em um caso extremo, o TikTok poderia ser vendido e se tornar uma empresa independente.

“Como tudo o que envolve um governo autoritário, é difícil dizer o quanto é verdade e o quanto é ficção ou retórica nos medos ocidentais em relação ao TikTok”, explica Marcelo Cárgano, especialista em direito digital no escritório Abe Advogados. “Mas é fato que há pouca transparência em relação a um eventual compartilhamento de dados entre a empresa e o governo chinês”.

Não é a primeira vez que suspeitas de espionagem recaem sobre empresas chinesas. O ex-presidente americano Donald Trump gostava de acusar a Huawei disso e fez pressão internacional para que países não adotassem seus equipamentos para suas redes de celulares 5G. Mas não teve muito sucesso em sua campanha.

Apesar de o Brasil estar passando por um amplo debate sobre a regulação das plataformas digitais, especialmente para tentar coibir a desinformação, não há nenhum movimento especificamente contra o TikTok. Vale lembrar que, ao contrário desses países, o Brasi não tem restrições políticas ou comerciais contra a China, que, aliás, é nosso principal parceiro de negócios no mundo.

Todos esses países têm mecanismos legais que exigem cooperação de empresas em seus territórios em temas ligados a segurança nacional. Mas, na opinião pessoal de Rubens Kuhl, instrutor de governança de Internet do NIC.br, há diferenças na disposição das empresas de cooperar, mesmo nos EUA. “Já na China, a cultura é tipicamente de cooperação, então um pouco dessa preocupação se justifica, apesar das bases legais serem bem similares”, acrescenta.

 

Riscos reais aos usuários

Além da premissa central do compartilhamento de dados dos usuários com o governo chinês não ter sido comprovada, há dúvidas sobre o risco que a coleta de informações poderia representar às pessoas.

Kuhl explica que, como há a identificação de onde a pessoa está, haveria riscos físicos. Além disso, informações derivadas de interesses e de informações de contatos poderiam causar riscos reputacionais.

A situação fica mais grave em celulares corporativos de empresas e de órgãos governamentais. Em tese, informações sensíveis dessas instituições poderiam ser passadas à administração de um país hostil. É por isso que, até o momento, o TikTok foi banido apenas desses equipamentos.

Outro temor é que o TikTok seja usado para promover a desinformação entre seus usuários, especificamente algo associado a interesses chineses. Em uma situação extrema, serviria como ferramenta de um governo autocrático para inocular mensagens antidemocráticas em usuários contra seus próprios países.

Novamente nesse ponto é importante lembrar que algumas das principais plataformas para disseminar fake news –o Facebook, o WhatsApp e o YouTube– são de empresas americanas. E os agentes da desinformação nessas plataformas podem ser cidadãos e governos de qualquer país, inclusive dos próprios EUA, como tem acontecido nos últimos anos, até no Brasil.

Precisamos pensar também que muita gente está alheia a todo esse debate e nem sonha em deixar de usar o TikTok ou qualquer outra plataforma de sua preferência. Bilhões de pessoas no mundo usam esses sistemas para se divertir, se informar e até trabalhar.

Banir um aplicativo como esse representaria, portanto, um grande prejuízo a essas pessoas. Por isso, grupos de defesa de liberdades individuais nos EUA estão se posicionando contra as proibições. “Nos EUA, qualquer banimento total do aplicativo certamente desencadeará uma discussão a respeito da constitucionalidade de tal medida face à Primeira Emenda da Constituição americana, que protege, entre outras questões, a liberdade de expressão”, explica Cárgano.

No meio do fogo cruzado da política internacional, estamos nós, os usuários. E temos que fazer o que estiver a nosso alcance para proteger nossos interesses. Não encaro o TikTok como um braço de um “império maligno”, nem pior ou melhor que outras redes sociais. Então, como em toda plataforma digital, minha sugestão é compartilhar apenas informações necessárias para que você obtenha os benefícios que ela oferece. Isso exclui, no caso do TikTok, sua localização e seus contatos.

Precisamos entender que nossas ações em qualquer rede social são construções em um terreno instável e que não é nosso. As regras mudam a toda hora e nem conhecemos seus detalhes. Por isso, muita gente vai do sucesso ao ostracismo digital e nem sabe por quê.

No final das contas, devemos usar esses recursos com consciência, pois as redes sociais são as máquinas de convencimento e de coleta de informações mais perfeitas já criadas. Não dá para escapar totalmente de sua influência, mas podemos pelo menos tentar não ser feito de bobos. E a influência do país de onde a empresa vem acaba ficando pequena diante de tantos interesses envolvidos.

 

A pílula vermelha do filme “Matrix”, usada por grupos que abraçam realidades distorcidas pela Internet – Foto: divulgação

A Internet tem “memória de elefante”, mas alguns apagam seus crimes na realidade alternativa da rede

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Um estudo da empresa de cibersegurança NordVPN indicou que cerca de 20% dos brasileiros gostariam de ter todos os seus dados apagados da Internet. Infelizmente isso é impossível, pois a informação que cai na rede acaba sendo replicada em muitos locais, além de continuarmos deixando nossas “pegadas digitais” o tempo todo. Entretanto, como em outras coisas da vida, a regra parece só valer para o “cidadão comum”: para quem tem muito dinheiro, é possível até remover referências online a seus crimes.

O grupo internacional de jornalistas investigativos Forbidden Stories vem divulgando práticas que alguns bandidos ou simplesmente pessoas endinheiradas usam para alterar seu passado na Internet. Não é trivial ou barato e, na maioria dos casos, é ilegal e antiético. Empresas manipulam os algoritmos de buscadores e de redes sociais para os resultados não exibirem os fatos, mas sim o interesse de seus clientes.

Na prática, vivemos em uma realidade alternativa, em que todos os pecados parecem perdoados. Nossa presença online tornou-se uma ferramenta que nos arrasta para longe da verdade e manipula nossas emoções e comportamentos para proteger criminosos, enquanto nos faz de massa de manobra do poder. O grande risco é que essas versões fabricadas ultrapassem os limites do digital e se imponham sobre nossa vida.


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Essas práticas são primas-irmãs dos mecanismos de desinformação e fake news, que também distorcem a realidade para convencer uma legião de pessoas sobre um assunto do interesse de quem as publica.

Segundo o material da Forbidden Stories, uma das estratégias usadas por essas empresas de “lavagem de reputação” é a velha intimidação. Enviam e-mails a jornalistas, como se fossem autoridades, ameaçando-os de sanções graves caso não apaguem informações contra seus clientes. Outra, mais moderna, consiste em denunciar, com recursos das redes, publicações que exponham negativamente seus clientes, como se violassem direitos autorais. A expectativa é que os algoritmos das plataformas digitais apaguem suas referências a esses materiais.

Outra tática, ainda mais ousada, é criar muitas páginas elogiosas (e falsas) sobre seus clientes em sites pseudojornalísticos. Usando técnicas para aumentar a audiência desse conteúdo, os buscadores acabam empurrando as notícias verdadeiras para sua terceira página de repostas (ou mais), aonde raramente os usuários chegam.

Essa consciente alteração dos fatos no meio digital não serve apenas para apagar rastros de crimes na Internet. Seu poder de convencimento também se manifesta no surgimento de grupos sociais que defendem ferozmente ideias distorcidas como se fossem incontestáveis, colhendo algum benefício a partir disso.

Por exemplo, na semana passada, um dos assuntos mais destacados nas redes foi a série de ataques contra mulheres por homens que acreditam na submissão delas como caminho para que resgatem sua masculinidade. Esses grupos vêm crescendo nos últimos anos, graças a uma combinação de narrativas nos meios digitais.

Essas e outras organizações que distorcem a realidade de diferentes maneiras acreditam que foram “libertados” de um suposto controle da ciência, da mídia e de educadores. Afirmam ter escolhido a “pílula vermelha” (uma referência ao filme Matrix, de 1999), que os permitiria “ver o mundo como realmente é”.

 

A origem de uma ideia

Outro filme que nos ajuda a entender esse mecanismo de convencimento é “A Origem” (2010). Nele, uma equipe entra em sonhos de outras pessoas para “plantar ideias” em suas mentes. Na descrição desse inusitado serviço, uma vez que a ideia ganha força no cérebro da vítima, é quase impossível erradicá-la.

De certa forma, o filósofo e psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) já defendia isso. Para ele, não há nada mais persistente que uma teoria que criamos por conta própria. O poder de convencimento nas redes sociais usurpa esses conceitos ao oferecer recursos para que as pessoas pensem estar construindo suas próprias teorias. Na verdade, estão sendo conduzidas a encontrar elementos que consigam encaixar de maneira crescente, até que cheguem, no seu ritmo, ao momento da “revelação”.

Essas “peças” não precisam ser verdadeiras. Basta que se encaixem em uma ideia que faça sentido, dando ao indivíduo o prazer de sentir que está “vendo o que sempre lhe negaram”. E normalmente essas liberdades ampliam desejos pré-existentes nessas pessoas, como o medo de vacinas ou a submissão de mulheres.

Em outras palavras, a ideia mais forte não é imposta, mas sim construída aos poucos.

Esse poder pode ser visto em nossa sociedade há muitos anos, quando aqueles que escolheram as “pílulas vermelhas” dos mais diferentes sabores na Internet manifestam seu “aprendizado” na realidade. Graças a elas, por exemplo, muitos deixaram de se vacinar contra a Covid-19 e, por isso, morreram.

O clímax da realidade distorcida se manifestou no dia 8 de janeiro, quando uma horda depredou as sedes dos três Poderes da República, achando que estavam defendendo a democracia. E uma parcela significativa da população continua pensando assim, a despeito do absurdo daqueles acontecimentos. Tudo porque essa é a “sua conclusão”.

As diferentes plataformas digitais não podem se furtar de seu papel nisso tudo. Ainda que involuntariamente, elas se tornaram as distribuidoras das “pílulas vermelhas” e se prestam à “lavagem de reputações”. Como esses grupos vêm agindo mais ou menos impunemente há anos, ficaram suas raízes no mundo real a partir do digital. Essas empresas são, portanto, corresponsáveis por isso, e precisam se esforçar muito mais para combater a “realidade alternativa” em suas propriedades.

De toda forma, por mais que façam isso, elas não conseguirão dar conta do problema sozinhas. A mídia e os educadores precisam produzir conteúdos que restabeleçam a verdade e reconstruam os valores de boa convivência.

Entretanto isso não pode continuar sendo feito do jeito de sempre: apontando o que é o certo e o que é errado. Precisam se apropriar das ferramentas dos grupos de desinformação, não para atuar de forma antiética ou criminosa, mas para ajudar as pessoas a aprenderem aos poucos o que é o certo, chegando a suas conclusões.

Isso não é trivial, mas, se não se apropriarem desse recurso, dificilmente terão sucesso nessa empreitada que pode consumir uma geração para desfazer tanto mal.

Até lá, precisamos redescobrir os caminhos para uma convivência pacífica e construtiva, mesmo com aqueles que tenham ideias e valores diferentes do nossos. A despeito de alguns tropeços pela caminho, foi assim que a humanidade chegou até aqui.

 

A Finlândia firmou-se como referência em educação midiática, após mudanças nas escolas em 2016 – Foto: Felicity Weary/Creative Commons

Precisamos de uma boa educação midiática para nossa sociedade não desaguar na barbárie

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Sempre que viajo, costumo analisar a mídia de onde vou. É cristalino que, quanto mais livre e profissional é a imprensa do lugar, mais bem informada é a população e consequentemente mais vibrante é a sociedade. Por essas e outras, governos autoritários combatem a imprensa, algo que vem sendo praticado no Brasil de maneira sistemática e crescente nos últimos anos.

Não se trata apenas de ataques a veículos de comunicação e a jornalistas, inaceitáveis em uma democracia. Como exemplo, na terça passada, a repórter Renata Cafardo e o fotógrafo Tiago Queiroz, do Estadão, foram agredidos física e verbalmente por moradores de um condomínio de luxo em São Sebastião, enquanto cobriam as tragédias causadas pelas chuvas. De onde vem tanto ódio gratuito?

O afastamento das pessoas de boas fontes de informação, substituindo-as por questionáveis redes sociais, coloca a própria democracia em risco à medida que derrete a capacidade do cidadão de discernir entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal. O resultado desse processo em nosso país é a grotesca polarização que nos rachou ao meio, culminando nos abomináveis ataques à democracia de 8 de janeiro.

A reversão do caos em que vivemos passa pela educação midiática, um conjunto de práticas que ensina crianças e adolescentes a desenvolver uma visão crítica sobre o que a mídia –em todos seus formatos– lhes apresenta, para que sejam capazes de consumir, compreender e até produzir informação de qualidade.


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“É mais que preparar para o uso da mídia: é preparar para compreender esse mundo em que a gente vive”, explica Ana Lúcia de Souza Lopes, professora de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “E todo esse universo midiático faz parte dele.”

Um ótimo exemplo dos ganhos da educação midiática para uma sociedade vem da Finlândia. Quando a vizinha Rússia tomou da Ucrânia a região da Crimeia em 2014, os finlandeses começaram a ser bombardeados com altas cargas de desinformação, para influenciar o debate política em favor dos russos.

O governo então reformou seu sistema educacional em 2016, para incluir uma disciplina de alfabetização midiática, que também é abordada de maneira transversal em todas as matérias. Como resultado, a Finlândia tornou-se o país mais resistente à desinformação entre as nações da Europa pelo estudo anual do instituto Open Society, firmando-se como uma referência mundial no combate às fake news.

Se me permitem um abuso de linguagem, uma “boa desinformação” é aquela que parece ser verdadeira e que reforça desejos de quem a lê. É por isso que se espalha rapidamente e ganha ares de fato incontestável. E quanto menos a pessoa tiver uma visão crítica das informações, mais suscetível será a esse controle.

Se já não bastasse esse desafio, especialistas temem que as recém-popularizadas inteligências artificiais generativas, como o ChatGPT, sejam usadas para criar fake news ainda mais críveis. Fiz alguns testes com essa ferramenta e –justiça seja feita– na maioria das vezes, ela respondeu que não poderia entregar o que eu pedia porque era falso. Mas nas ocasiões em que fiz pedidos que já continham várias mentiras, ela pariu obras-primas da desinformação.

Ter uma visão crítica da mídia e do mundo torna-se uma questão de sobrevivência!

 

Mudança de época

Em junho de 2014, em entrevista ao jornal italiano “Il Messaggero”, foi perguntado ao papa Francisco se o aumento da corrupção se deveria à mídia dar mais destaque ao tema. O pontífice explicou que “vivemos não só uma época de mudanças, mas uma mudança de época”. Para ele, isso altera profundamente aspectos culturais.

A digitalização da vida está no centro desse processo. Os mais jovens têm grande acesso a conteúdo, normalmente sem a necessária visão crítica. E assim como podem influenciar positivamente suas famílias com o que aprendem na escola, como respeito ao meio ambiente e diversidade, também podem ser vetores de fake news.

“A criança não só consome a desinformação: ela é uma propagadora”, explica Maria Carolina Cristianini, editora-chefe do “Joca”, um jornal brasileiro dedicado a crianças e adolescentes. Por isso, segundo ela, os pequenos leitores precisam entender a sua responsabilidade sobre o que leem e o que reproduzem em seus círculos sociais.

“Participar de um meio de comunicação é uma das maneiras de dar a dimensão real da importância da imprensa, da conscientização sobre a desinformação, e que informação de qualidade não é uma expressão vaga”, conta Mônica Gouvêa, diretora educacional da Editora Magia de Ler.

Crianças são naturalmente curiosas e participativas, por isso a educação midiática ganha ainda mais importância. “É nessa geração que a gente tem que trazer essa mudança de época, para mudar a sociedade”, explica Lopes. “Senão, cada vez mais, estaremos com uma sociedade alienada”, conclui.

A escola é o melhor lugar para isso, pela visão diversa de mundo que embute. No Brasil, a educação midiática ainda engatinha, com iniciativas pontuais de algumas escolas e redes de ensino. Ainda assim, alguns pais e mães se colocam contra essas práticas, argumentando que a escola estaria doutrinando ideologicamente seus filhos.

Cristianini argumenta que essa reação é inócua, pois é impossível manter a criança em uma “bolha de pensamento único”. É melhor que ela esteja preparada para lidar com pensamentos divergentes, que a impactarão mais cedo ou mais tarde. Além disso, ela explica que as famílias podem usar até conteúdos de que discordem para explicar aos filhos suas visões de mundo. “As notícias podem ajudar nisso, podem ser a base para essa conversa”, acrescenta.

“Alguns pais acham que tem o momento certo para você saber de algumas coisas, mas não existe isso”, explica Gouvêa. Os jovens consomem conteúdo o tempo todo, e sempre é uma oportunidade de se desenvolver seu senso crítico.

Aqueles que lucram com a desinformação atuam maquiavelicamente na contramão disso. Ao invés de dizer o que as pessoas devem fazer, oferecem um mecanismo para que essas pessoas se enredem em uma narrativa profunda que distorce a realidade, acreditando que elas chegaram a essas conclusões, e que não estão sozinhos.

A Finlândia é um exemplo a ser seguido. Governo, escolas, educadores e famílias precisam se unir para a disseminação da educação midiática, para formar gerações saudavelmente críticas e menos suscetíveis à desinformação. Elas construirão uma sociedade melhor e ajudarão as gerações anteriores a fazer o mesmo.

Caso contrário, corremos o risco de ver a democracia se esfacelando, com os ataques de 8 de janeiro parecendo manifestações legítimas.

 

Crise no mercado de publicidade afetou também os influenciadores digitais, que estão em menos campanhas e recebendo menos produtos

“Desinfluenciadores” explodem em audiência, mas podem matar a própria reputação

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Diz o ditado que “um cliente satisfeito conta sua experiência para uma pessoa; um insatisfeito conta para dez”. O padrão se repete nas redes sociais, com a diferença de que uma crítica negativa pode alcançar milhares de pessoas no meio digital. Agora essa prática, tão antiga quanto a própria relação entre empresas e consumidores, ganha uma nova roupagem, com o fenômeno dos “desinfluenciadores”.

O termo vem ganhando enorme alcance entre usuários americanos do TikTok nas últimas semanas. A hashtag #deinfluencing já agrega vídeos que se aproximam de 200 milhões de visualizações. Alguns deles individualmente ultrapassam 1 milhão.

O formato é bem conhecido: uma pessoa diante da câmera apresentando produtos. Mas diferentemente dos influenciadores, que enaltecem marcas, os “desinfluenciadores” falam mal explicitamente daquilo que, na sua visão, são produtos ruins, e oferecem alternativas melhores ou mais baratas.

A prática é controversa. Enquanto alguns gostam dela e a veem como um serviço ao público, outros entendem que não passa de uma maneira de se ganhar audiência nas plataformas digitais. O problema é que, em qualquer cenário, a prática pode, a médio prazo, matar a reputação do próprio “desinfluenciador”.


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“É fácil entender por que isso está crescendo: falar mal chama mais a atenção que falar bem”, explica Edney Souza, professor de inovação e marketing digital na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “As pessoas têm muitas opiniões negativas reprimidas e, quando encontram um ambiente em que se sentem seguras para se manifestar, isso aparece.”

Apesar do termo “desinfluenciador” ser recente, falar mal de produtos no meio digital está longe de ser novidade. Os primeiros relatos surgiram ainda em blogs, no início dos anos 2000, antes das redes sociais. Mas ganhou muita força há uns 15 anos com o Twitter, quando consumidores começaram a citar empresas em postagens com a hashtag #fail (falha, em inglês).

No Brasil, o fenômeno também pode ser encontrado no TikTok, mas ainda de maneira muito tímida. Acredita-se que o surgimento dos novos “desinfluenciadores” esteja associado à retração econômica vivida nos EUA pós-pandemia. Com menos dinheiro no bolso, as pessoas começam a questionar o valor do que compram.

Há ainda um fator ligado à retração do mercado publicitário. Muitos influenciadores passaram a ficar de fora de campanhas, além de deixar de receber produtos para promoção. Com isso, sentiram-se “livres” para expressar suas opiniões negativas, alguns talvez motivados por uma certa “vingança” contra as marcas.

Naturalmente existem aquelas pessoas que querem compartilhar suas experiências ruins com produtos para que outras não passem pelo mesmo. Ainda assim, qualquer que seja a motivação, “desinfluenciar” se tornou um ótimo negócio, graças à política do TikTok de remunerar seus maiores criadores de conteúdo. Alguns deles relatam ganhar até US$ 10 mil da plataforma em um mês.

 

Unidos pelo desgosto

Temos uma necessidade natural de expressar nossas opiniões. Graças a isso, as redes sociais passaram de plataformas simplórias de encontrar amigos para o maior fenômeno de comunicação da história, para o bem e para o mal.

Apesar de se encontrar de tudo nelas, muita gente não se sente segura para fazer críticas online a empresas ou produtos. Por isso, quando um influenciador fala mal de algo em linha com o descontentamento das pessoas, elas se sentem livres para se expressar. “Quando elas encontram um ‘desinfluenciador’ que ecoa o que gostariam de ter dito, aproveitam para endossar aquilo, para comentar, curtir, às vezes compartilhar com um amigo”, explica Souza.

Para as empresas, naturalmente o fenômeno desagrada. Qualquer comentário negativo é ruim. Quando atinge tais magnitudes, pode impactar nas vendas. Em casos extremos, pode desaguar em uma crise de imagem, que precisa ser rapidamente contida, na enorme velocidade das redes sociais. Por isso, as empresas possuem equipes dedicadas a monitorar como suas marcas estão sendo citadas nas redes.

Os “desinfluenciadores” precisam tomar cuidado com a prática. Apesar dos eventuais ganhos financeiros e de exposição pontuais, isso pode trazer prejuízos duradouros e lhes fechar portas.

Acabamos nos tornando conhecidos pelas ideias que expomos nas redes sociais. E seus algoritmos têm uma incrível capacidade de juntar pessoas com ideias e comportamentos semelhantes. Isso quer dizer que alguém que se notabilize por falar mal de produtos pode ficar conhecida como uma “destruidora de marcas”. Além disso, cada vez mais terá pessoas assim a sua volta.

“Não estou dizendo que todo mundo tem que ser positivo o tempo todo, que ninguém possa criticar”, acrescenta Souza. Mas, para o professor, a pessoa fazer disso a sua assinatura a impedirá que transforme sua presença nas redes em uma oportunidade de negócios.

Isso acontece porque uma pessoa pode se tornar realmente muito conhecida por sempre falar mal de produtos. Por mais que faça isso com a intenção de ajudar outros usuários, empresas não gostam de contratar profissionais assim para iniciativas de marketing, como palestras e muito menos campanhas. Até mesmo para vagas de trabalho, um comportamento assim pode atrapalhar.

Como tudo na vida, são escolhas que fazemos, e elas podem nos trazer benefícios ou prejuízos. Tornar-se um “desinfluenciador” pode, portanto, gerar ganhos e visibilidade rapidamente. Mas, se isso pode arranhar a imagem de marcas, pode trazer um prejuízo muito maior à reputação da própria pessoa. Cada um deve escolher se vale a pena seguir por esse caminho.

 

Na batalha da desinformação, a verdade foi a primeira vítima e agora todos sofremos

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Na primeira semana do novo governo, uma das ações mais polêmicas foi a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, vinculada à AGU (Advocacia-Geral da União). Polêmica que ficou nanica diante do violento ataque à democracia cometido neste domingo, em Brasília. Mas justamente por esses atos antes impensáveis, essa análise ganha ainda mais importância, pois o problema não está distante, e sim algo que toca todos nós, em nossas telas de smartphones e computadores.

A polêmica em torno da criação da nova Procuradoria, que tem como um dos objetivos o combate à desinformação, gira, entre outras coisas, pela definição apresentada para o próprio termo, o que, argumentam alguns, poderia transformá-lo em um instrumento de censura.

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Isso acontece porque, qualquer que seja o lado do conflito, seus cidadãos nunca têm acesso ao ponto de vista e a informações do inimigo. Assim, seus governantes podem manipular os fatos e usá-los como uma “verdade” para seu benefício próprio. É o que se observa hoje claramente na guerra da Ucrânia.

Mas em tempos de redes sociais onipresentes e onipotentes, todos nós sofremos os efeitos de outro tipo de guerra inescapável, que culminou na destruição generalizada na praça dos Três Poderes neste domingo: a da dita desinformação, que tem nas fake news sua maior arma.

Na desinformação, apesar de estarmos todos “do mesmo lado”, cada pessoa recebe informações filtradas pelos algoritmos que a ajudam a reforçar pontos de vista existentes, incluindo preconceitos e mentiras. E, também nesse caso, os grupos de poder manipulam os fatos, para criar “suas verdades”.

Por tudo isso, ninguém questiona a necessidade de se combater a desinformação, que rachou a sociedade brasileira e a levou à beira desse precipício político nunca visto desde a redemocratização.


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O ponto central da polêmica no combate à desinformação foi como ela foi definida pelo novo órgão: “mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”.

Em tese, essa definição é válida. O problema é que não deveria dar espaço a interpretações livres dos envolvidos, mas acaba abrindo brechas para isso com adjetivos, advérbios ou pontos que dependem de comprovação.

A preocupação é legítima pelo histórico de governos de diferentes ideologias de usarem a musculatura estatal e brechas da legislação para legitimar atos questionáveis de aliados e questionar ações legítimas de opositores ou de quem simplesmente os critique. A imprensa é vítima costumaz desse mecanismo, com censuras judiciais e, em anos mais recentes, com a perseguição violenta e até a desumanização de jornalistas por iniciativa de governantes. E, graças ao enorme poder de convencimento das redes sociais, uma parcela significativa da população comprou essa ideia e a pratica.

A AGU declarou, em nota, que “desinformação e mentira são diferentes do sagrado benefício da liberdade de expressão” e que “não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa”.

“A gente precisa compreender que, quando se fala em desinformação, precisamos partir de um conceito mais amplo para ‘dar um norte’ sobre o que a gente está conversando”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Mas também é importante entender que esse conceito mais amplo não pode ser o que vai definir o resultado de uma ação contra a desinformação.”

Ele lembra que a AGU não é uma instituição de governo, é sim de Estado. Dessa forma, não faz parte de suas atribuições defender governantes, apesar de ser responsável pela orientação jurídica do Poder Executivo.

Assim a instituição não poderia censurar ou punir ninguém, um papel do Judiciário. O risco recai no histórico de governos de extrapolar esses limites e, de certa forma, usurpar suas atribuições em anos anteriores.

 

A maltratada liberdade de expressão

Nada disso seria necessário se a sociedade não tivesse descambado nesse vale-tudo em que se incite ou efetivamente se pratique diversos crimes e que, depois, isso seja “desculpado” com uma “aparentemente magia” chamada liberdade de expressão.

“O que aconteceu nesses últimos anos é que discursos golpistas, autoritários, desinformativos foram propagados sob uma chancela de que se estava praticando liberdade de expressão”, explica Crespo. “Como isso foi feito durante muitos anos, em sequência, por muitas pessoas de diferentes instituições, ficou parecendo que liberdade de expressão é isso”.

Mas ela não determina tudo o que pode ser dito. Pelo contrário, em tese, pode-se falar qualquer coisa, desde que isso não configure um crime, contravenção, invada a liberdade de outra pessoa ou a coloque em algum tipo de risco, por exemplo.

Nesse sentido, a iniciativa da AGU pode ser muito positiva, desde que seja bem executada e respeitada pelo próprio governo, pois, em empresas e na sociedade, as pessoas seguem o exemplo de seus líderes. “Quando os nossos dirigentes políticos adotam comportamento violadores da ética, dos bons costumes, das boas práticas, das boas maneiras, da inclusão, da diversidade, do respeito, é muito mais fácil insuflar a população a ir contra isso tudo também”, sugere Crespo.

Em outras palavras, a guerra conta a desinformação tem diversas frentes. Oferecer uma boa definição, que não crie mais dúvidas que certezas, é uma delas. Precisamos também que os órgãos dos três Poderes da República executem adequadamente suas funções, deixando ao Judiciário o papel de proibir ou punir.

Sobre isso tudo, precisamos de bons exemplos de expoentes diversos de nossa sociedade, figurando, em primeiríssimo lugar, nossos governantes. A situação dramática em que estamos vivendo, com nosso tecido social feito trapo e a democracia sob ataque, resulta de um consistente processo destrutivo dos últimos anos.

Resta saber se o novo governo resistirá ao apelo fácil de fazer o mesmo com a desinformação, apenas com outra ideologia. Torço para que resista a isso e tenha sucesso na reconstrução de nossa sociedade, sem fazer mais vítimas nessa guerra contra a desinformação.

 

Esse foi o ano do “ciberpopulismo”

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Nos meses de novembro, os principais dicionários do mundo elegem suas “palavras do ano”, verbetes que, mesmo não sendo necessariamente novos, refletem fatos de grande impacto no período. Com a globalização, muitas dessas palavras valem para o mundo todo, mas as escolhas desse ano se demonstraram muito regionalizadas. Por isso, decidi, de maneira pessoal, escolher uma palavra que representasse bem algo que moveu decisivamente o Brasil em 2022: “ciberpopulismo”.

Esse neologismo une a palavra em inglês “cyber” (em referência ao que se dá no mundo digital) a “populismo”. Ele procura definir como as redes sociais passaram a atuar decisivamente na política nos últimos anos. No populismo, cria-se a figura de um líder capaz de “salvar” o povo dos interesses de uma “elite” ou das ações de um “inimigo comum a todos”. Por depender de um conjunto de narrativas bem arquitetadas, o meio digital surgiu como a ferramenta perfeita de convencimento das massas, amplificando as ideias do populista.

O “ciberpopulismo” vem sendo amplamente usado no Brasil há pelo menos seis anos, mas atingiu a sua maturidade em 2020, com a pandemia de Covid-19. As suas fórmulas usadas durante a crise sanitária pavimentaram o caminho para as eleições de 2022, criando um cenário de polarização política inédito em nossa história, que rachou o país e que continua incendiando corações, mesmo dois meses após o fim do pleito. Daí essa minha escolha.


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O populismo não é um conceito novo. O termo surgiu no século XIX, na Rússia czarista, e propunha dar mais poder político a camponeses com uma grande reforma agrária. De lá para cá, tem sido usado por diferentes grupos, ganhando definições bem variadas, de acordo com o pensamento do autor. Por isso, não há um consenso definitivo sobre ele, e há até uma discussão se o populismo seria, afinal, bom ou ruim: um meio para melhorar a vida do povo ou uma ferramenta para sua manipulação pelos poderosos.

Nas últimas décadas, consolidou-se no Ocidente uma definição do populismo como um conjunto de práticas políticas para obtenção e manutenção do poder, sendo igualmente usado por governantes conservadores ou progressistas em todo mundo, indo do nazismo de Hitler ao chavismo venezuelano. Via de regra, todos eles têm alguns pontos em comum: um povo que se sente oprimido por algum tipo de elite ou agente externo, um inimigo em comum (verdadeiro ou na maioria das vezes imaginário) e um líder apresentado como o único capaz de conduzir a sociedade a sua “salvação”.

Como o populismo depende necessariamente da criação de uma narrativa que legitime a figura e as ideias do seu “líder ungido”, os meios de comunicação acabam sendo peça-chave no processo. Para a cristalização de um pensamento único, os veículos simpáticos à “causa” devem ser promovidos, enquanto os demais devem ser silenciados. E, nos últimos anos, as redes sociais ocuparam esse espaço. Elas diminuíram o poder de mediação da imprensa (que filtra extremismos) e deram voz a todos, especialmente ao “cidadão comum” que antes não se sentia representado pela mídia.

Grupos de poder com valores semelhantes a esses indivíduos perceberam isso e aprenderam a usar, antes dos outros, os recursos digitais, apostando nos extremos e dando origem a esse movimento. Essa dinâmica é bem explicada no livro “Ciberpopulismo” (editora Contexto), lançado no ano passado pelo filósofo e comunicador Andrés Bruzzone. Para ele, nesse cenário, “quem tenta pensar fora dos polos dificilmente será ouvido e certamente não terá espaço nos grandes debates.”

“A combinação eficiente de técnicas de propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia no século XXI já mostrou sua capacidade de causar alterações estruturais nos países e na geopolítica”, escreveu. E, de fato, observa-se esse fenômeno em países muito diferentes pelo mundo.

 

Aldeia global em chamas

O “ciberpopulismo” vem legitimando barbaridades em muitos países há anos, e não foi diferente em 2022.

A mais grave delas é a guerra na Ucrânia. Com o pretexto de salvar russos que lá viviam de “perseguições nazistas”, o presidente russo, Vladimir Putin, invadiu o vizinho. O mandatário diz abertamente que pretende anexar a Ucrânia como seu território, não reconhecendo sua soberania. Os “inimigos do povo” seriam a União Europeia, a OTAN e –diante do inesperado e decisivo apoio militar dos EUA– todo o “Ocidente”. E com uma fortíssima censura local da imprensa e das redes sociais, a maioria da população acredita nisso tudo e que a Rússia estaria vencendo o conflito.

Os EUA também têm suas assombrações. Ao longo desse ano e do anterior, tiveram que lidar com as consequências do bizarro ataque ao Congresso no dia 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump, inconformados com sua derrota na tentativa de reeleição, tentaram impedir a confirmação da vitória de seu opositor, Joe Biden. Foi o maior ataque da história à democracia do país. Vale dizer que Trump é o maior expoente global do “ciberpopulismo”.

Em outro exemplo, no dia 7, o governo alemão deflagrou a maior operação de contraterrorismo em 70 anos. O alvo foi um grupo que cresceu nas redes sociais e pretendia derrubar a república e reinstalar a monarquia, que vigorou até 1918 no país. Eles pretendiam ainda matar 18 pessoas, incluindo o chanceler, Olaf Scholz.

Nossos vizinhos também sofrem com isso. A Argentina tem uma política e uma economia em frangalhos há décadas. No Peru, o presidente Pedro Castillo foi destituído do cargo e preso no mesmo dia 7, depois de tentar um autogolpe. A vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu como sexto presidente do país em seis anos.

Como se pode ver, o “ciberpopulismo” atende bem a interesses da “direita” e da “esquerda”. As aspas são propositais, pois ambas são mais parecidas que diferentes quando se trata de manipulação online. De toda forma, a segunda só agora está aprendendo a jogar a versão digital desse jogo e, para isso, está sujando as mãos também.

Receio que tenhamos que ver ainda mais crescimento do populismo anabolizado pelas redes sociais antes de experimentarmos o seu recuo, com a sociedade regressando aos trilhos de uma vida harmônica e colaborativa, em que ideias divergentes levem à evolução e não a um conflito beligerante. Precisamos voltar a ter apenas adversários para contrapor, ao invés de inimigos a eliminar.

Como Bruzzone explica em seu livro, o contrário do populismo é o pluralismo: a crença de que não há duas visões únicas do mundo. “Pluralista é quem entende que a verdade não se obtém derrotando um inimigo, mas que é o resultado de um processo construído a muitas vozes”, escreveu.

Adoraria voltar a esse espaço no fim de 2023 e dizer que a minha “palavra do ano” seria então “ciberpluralismo”. Mas sinto que teremos que descer ainda mais fundo nessa fossa política antes que as massas entendam a importância dessa diversidade. Nas últimas duas décadas, o populismo, e nos últimos anos o “ciberpopulismo” criaram raízes profundas em nossa sociedade.

Por isso mesmo, está em nossas mãos –e não nas de qualquer “líder”– o poder de diminuirmos a fervura nas redes sociais e reencontrarmos esse bom caminho.

 

O escritor e filósofo italiano Umberto Eco: “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”

O mundo de hoje é pior que o de ontem ou o digital distorce a realidade?

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Estamos nos aproximando do fim do ano, tempo de se fazer balanços do período e preparar resoluções para o que está chegando. Talvez pelo meu ofício, estou sempre “entrevistando” as pessoas, inclusive sobre o que 2022 lhes representou. E, para muitos, a virada de ano chegará encharcada de esperança, depois de anos muito difíceis.

Uns tantos chegam a dizer que foram os anos mais difíceis de suas vidas. Mas longe de julgar os motivos de cada um, será que foram mesmo? Ou os problemas vêm sendo amplificados por uma complexa combinação de sentimentos ruins e desinformações inoculadas pelas redes sociais, a intolerância decorrente disso e a perda do “norte” de cada um?

A humanidade já passou por períodos muito piores, como a Idade Média, a Inquisição, a Gripe Espanhola (que foi muito mais grave que a Covid-19) e as duas Grandes Guerras, só para citar alguns exemplos terríveis. Sobreviveu a todos eles e até prosperou, em vários aspectos impulsionada pelos males associados a essas crises.

Como diz o ditado, “depois da tempestade, vem a bonança”. Mas não dá para ficarmos esperando sentados que as nuvens se dissipem. Temos que fazer nossa parte, e isso inclui nos blindar da influência nefasta da lente de aumento do meio digital para o lado mais feio da vida.


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Claro que tivemos que enfrentar problemas sem precedentes para essa geração nos últimos anos, a começar pela pandemia de Covid-19, que afetou fortemente todo mundo. Não minimizo a gravidade disso ou do ódio que rachou nações inteiras, incluindo a brasileira. Mas precisamos colocar isso em perspectiva.

Hoje temos acesso a um volume de informações inimaginável há 20 anos. Os agentes que viabilizaram isso foram os smartphones e as redes sociais. Os primeiros atingiram uma quase onipresença, mantendo-nos permanentemente em contato com pessoas, serviços e conteúdos diversos. Já as redes sociais criaram uma eficientíssima plataforma para disseminar todo tipo de informação.

Em um primeiro momento, isso parece ótimo: podemos fazer mais e melhor quando somos bem-informados. Mas justamente aí reside o problema: a imensa maioria desse conteúdo é de baixa qualidade ou propositalmente distorcido ou mentiroso, as infames fake news, que já debatemos nesse espaço incontáveis vezes.

A imprensa profissional deveria servir como um porto-seguro contra os efeitos nocivos desse coquetel. Mas apenas recentemente está aprendendo a se posicionar nessa nova realidade informativa, depois de muita autocrítica, sofrimento e estudo. Lamentavelmente parte dela ainda não encontrou esse caminho ou deliberadamente se rendeu aos métodos questionáveis das redes sociais, em busca de audiência.

Esse é um embate desigual! A verdade muitas vezes produz notícias monótonas e até incômodas, pois ela é o que é. Já a mentira pode produzir conteúdos suculentos e alinhados com o que cada indivíduo deseja, pois não tem compromisso com os fatos.

É aí que a verdade sucumbe e os problemas se agigantam.

 

“Certezas” sobre o desconhecido

Esse acesso desmedido a informações boas e ruins, misturadas e sem identificação, nos dá “certezas” sobre tudo, como os bastidores da política, a melhor maneira de nos proteger de doenças e até a receita do bolo de fubá perfeito.

Que saudades do tempo em que éramos “apenas 200 milhões de técnicos de futebol”! Poderíamos estar agora debatendo na mesa de um bar os motivos da desclassificação do Brasil e do triunfo da Argentina na Copa do Mundo.

Tanta “certeza sobre tudo” nos torna intolerantes, alimentando inconscientemente esses monstros do cotidiano. A necessidade de se opinar em qualquer tema, mesmo sobre o que não temos ideia, pode transformar um singelo calango no Godzilla.

E aí salve-se quem puder!

Temos que identificar o tamanho real dos problemas e, para isso, precisamos de informações confiáveis. Elas definitivamente não vêm das redes sociais, e sim da escola, da ciência e da imprensa séria.

Nisso reside outro desafio dessa geração, pois os grupos de poder que se beneficiam da desinformação conseguiram plantar firmemente em parte da sociedade a ideia de que esses três agentes informativos não são confiáveis e devem até ser combatidos. Como toda atividade humana, eles não são perfeitos e têm seus interesses. Mas eles estão muito mais alinhados com as reais necessidades do público que estão as redes sociais ou aqueles que as usam para se beneficiar do caos.

Basta ver que, na semana passada, Elon Musk, que comprou recentemente o Twitter para (segundo ele), “garantir a liberdade de expressão na rede”, bloqueou na plataforma jornalistas que criticavam seus questionáveis métodos de gestão.

Impossível não recordar de Umberto Eco nessa hora. Em junho de 2015, ele disse que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, que antes “eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra que um Prêmio Nobel”. Para ele, “o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”

Quando Eco disse aquilo, as redes sociais eram muito mais saudáveis, antes de se tornar o atual espaço de manipulação e ódio. O escritor e filósofo italiano parecia ter antecipado todos esses problemas que estavam por vir.

Mas podemos reverter isso tudo!

O fim de ano é um momento de reflexão e de recomeço. É uma pena, mas os problemas não desaparecerão. Ainda assim, temos a oportunidade de dar menos ouvido a “idiotas da aldeia” e olhar os problemas com atenção. Se os virmos menores que o que realmente são, não daremos a eles a importância devida. Se os pintarmos maiores que a realidade, nunca destinaremos recursos e atenção suficientes para sua solução.

Unidos e com consciência e serenidade, podemos resolvê-los de maneira melhor e mais justa para todos.

 

“Horizon Worlds”, plataforma de metaverso que a Meta vem desenvolvendo, mas cujos próprios funcionários usam pouco

O que falta para o metaverso deixar de ser uma promessa

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As big techs estão ocupando grande espaço no noticiário nas últimas semanas, por causa de seus problemas e demissões: a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) mandou embora 11.000 pessoas, a Amazon 10.000 e o Twitter perdeu algo como 5.000 funcionários (entre os demitidos e os que pediram para sair). Esse último é o que tem feito mais barulho, por causa do estilo midiático de seu novo dono, Elon Musk. Mas o maior deles é o que pode nos afetar mais diretamente, com o metaverso idealizado por Mark Zuckerberg.

Apesar de o CEO da Meta ter prometido uma revolução há um ano e ter investido mais de US$ 10 bilhões na sua visão de um mundo digital incrivelmente imersivo e poderoso, sua entrega até agora foi mínima e decepcionante. Tanto que os investidores não o perdoaram, fazendo com que a empresa perdesse três quartos de seu valor de mercado no período.

Afinal, o que falta para o metaverso “virar”, tornando-se uma realidade na vida de todos nós? A resposta passa por entender que essa não é uma mudança essencialmente tecnológica, e sim cultural. O ser humano não pode ser retirado dessa equação.


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Isso ficou claro para mim no sábado, enquanto participava do painel “Comunicação, marcas e aspectos jurídicos no metaverso”, no Expo Metaverso. O conceito foi cunhado em 1992 por Neal Stephenson, no livro “Nevasca”. De lá para cá, apareceu em várias plataformas digitais, sendo a mais popular o Second Life, lançado em 2003.

Apesar dessa longevidade, poucas pessoas entendem o que ele realmente é e menos gente ainda está nele. E isso acontece porque esses sistemas, apesar de tecnicamente disruptivos, acabam oferecendo uma experiência ruim, ou pelo menos pior que alternativas já disponíveis, como sites, aplicativos e redes sociais.

O próprio Second Life é um exemplo emblemático. Desde sua concepção, era bem construído, sendo incrivelmente poderoso e flexível na sua proposta. Mas sempre exigiu computadores robustos para funcionar bem. Como poucas pessoas conseguem atender esse requisito, usar a plataforma chega a ser torturante para alguns, pela lentidão com que, por exemplo, seus avatares se movimentam ali.

Para essas pessoas, é melhor investir o tempo em uma experiência que, mesmo sendo mais limitada, entrega o que promete e de maneira divertida, como as redes sociais. As próprias marcas entenderam isso, migrando toda sua atenção para essas plataformas mais eficientes, onde podem, ademais, fazer negócios com o público.

Entretanto, desde que Zuckerberg deu com a língua nos dentes em outubro do ano passado, apontando todos seus recursos para o metaverso, muitas empresas começaram a olhar para as incríveis possiblidades que ele oferece, e voltaram a investir em diferentes plataformas para criar novos canais com seus clientes.

Ainda não vi nada que pudesse ser considerado um sucesso de massas, mas esse movimento é válido. Afinal, se quisermos chegar a algum lugar, precisamos nos mover. E essas empresas estão fazendo isso.

 

Fugindo das caixas pretas

O norte-americano Henry Jenkins, professor da Universidade do Sul da Califórnia e considerado um dos maiores pesquisadores de mídia do mundo, forjou um conceito que se aplica muito bem para essa dificuldade de o metaverso “vingar”: a “falácia da caixa preta”.

Em seu best-seller “Cultura da Convergência” (publicado originalmente em 2006), Jenkins explica que há uma fantasia no mercado de que diferentes mídias convergirão e serão transformadas por um único dispositivo agregador, que ele chamou de “caixa preta”. Mas, segundo ele, “parte do que faz do conceito da caixa preta uma falácia é que ele reduz a transformação dos meios de comunicação a uma transformação tecnológica, e deixa de lado os níveis culturais que estamos considerando aqui.” E conclui: “tecnologias de distribuição vêm e vão o tempo todo, mas os meios de comunicação persistem como camadas dentro de um estrato de entretenimento e informação cada vez mais complicado.”

Os criadores do metaverso precisam prestar mais atenção nisso. Vale notar que as redes sociais nasceram mais ou menos na mesma época que as primeiras plataformas de metaverso e transformaram o mundo, tornando-se parte indissociável de nossas vidas. Em grande parte, esse sucesso se deve ao fato de que, apesar de se viabilizarem com tecnologias e conceitos muito inovadores, elas sempre colocaram o foco no benefício que traziam às pessoas. Tudo isso de uma maneira extremamente fácil e funcionando até em computadores e smartphones bastante simples.

Para o metaverso abandonar de vez seu aspecto experimental, precisa então se demonstrar útil não na perspectiva de quem cria as experiências, mas na do público que espera cativar. E isso deve funcionar nos equipamentos que todos nós já temos, e não apenas em óculos de realidade virtual que custam centenas de dólares.

As possibilidades que ele traz são imensas, em terrenos como trabalho, estudo, diversão e até relacionamentos. E é importante que fique claro que não se trata de substituir as experiências presenciais por equivalentes virtuais, e sim a chance de se fazer coisas que a distância e até a física não permitem, como manipular versões digitais de objetos com times distribuídos por vários países.

Há muitos riscos também, que não podem ser ignorados. Uma realidade virtual tão poderosa pode diminuir nossa capacidade de distinguir entre o presencial e o virtual, “enganando” nosso cérebro para acreditarmos que a simulação seja real. E nosso corpo reage a isso! Em um cenário extremo, as pessoas poderiam começar a usar o metaverso como uma fuga das limitações da realidade, como se fosse uma droga.

Já discutimos amplamente esses benefícios e riscos nesse espaço. Afinal, por muito menos, passamos mais horas que deveríamos nas redes sociais, “viciados” na dopamina que elas estimulam nosso cérebro a produzir. Um metaverso realmente eficiente pode potencializar todas essas sensações para o bem e para o mal.

Resta perguntar se as empresas que criam essas plataformas estão se preocupando com isso tudo, ou estão apenas pensando nos aspectos tecnológicos e financeiros do metaverso. A maior delas, a Meta, não tem um bom histórico de cuidado com seus usuários, como ficou claro no ano passado, no escândalo dos “Facebook Papers”.

Quanto a nós, os usuários, precisamos estar atentos! Quando (e não “se”) o metaverso realmente se tornar um fenômeno de massas, precisaremos aprender a tirar o máximo proveito de seus recursos, sem cairmos nessas armadilhas. O ser humano não pode ser ignorado nessa poderosa “caixa preta”.

 

Elon Musk chegou ao Twitter carregando uma pia, em um trocadilho em inglês que significa “deixe isso afundar (“let that sink in”)

Megademissões expõem o poder e a fragilidade das redes sociais

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No dia 4, o Twitter demitiu sumariamente metade de sua força de trabalho global, algo como 3.700 funcionários. Cinco dias depois, foi a vez da Meta, empresa dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, colocar na rua nada menos que 11 mil profissionais, equivalente a 13% de seu quadro no mundo. Isso vem deixando muita gente apreensiva com um possível novo “estouro da bolha ponto-com”, como o que aconteceu no ano 2000. Afinal, esses números maiúsculos demonstram que mesmo empresas poderosíssimas são suscetíveis a erros de administração.

A diferença é que, no caso das plataformas digitais, se elas quebrarem, impactarão profundamente a vida de incontáveis usuários e empresas no planeta, fazendo com que a crise do ano 2000 se pareça a um soluço. Hoje, em um mundo hiperconectado, o cotidiano dessas pessoas –incluindo você– é muito ligado aos feeds dessas redes.

Entretanto, apesar da proximidade dessas megademissões, não vejo um novo “estouro de bolha” ou muito menos um caos no mercado de tecnologia. Sim, Meta e Twitter estão com problemas seríssimos –ainda que diferentes– que precisam ser resolvidos, mas é pouco provável que quebrem. O que há de comum entre elas é a íntima ligação de suas crises com suas respectivas lideranças.


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No ano 2000, eu trabalhava na America Online (AOL), a mais reluzente ponto-com que o mundo havia visto até então. Em janeiro daquele ano, a empresa iniciou a compra do grupo Time Warner, uma fusão de US$ 360 bilhões, a maior da história, criando um conglomerado que cobriria virtualmente todos os pontos da “nova” e da “velha mídia”.

Parecia o casamento perfeito, até que, dois meses depois, a “bolha ponto-com” estourou, motivada pela desconfiança do mercado com incontáveis negócios digitais que não passavam de ideias brilhantes, mas altamente deficitários. Muitos grandes nomes subitamente desapareceram, arrastando centenas de outras empresas.

As ações da America Online derreteram! Além disso, decisões empresariais equivocadas e a resistência das empresas originais da Time Warner ao novo modelo minaram a fusão, que acabou desfeita em 2009. A AOL sobrevive até hoje, com um modelo de negócios completamente diferente do daquela época. Em 2015, a Verizon comprou a empresa por US$ 4,4 bilhões e ela agora é uma sombra do que já foi.

Como se pode ver, ninguém está imune a más decisões e ao humor do mercado.

É o caso do “novo Twitter”, sob a direção de Elon Musk. Depois de uma conturbada aquisição da companhia por US$ 44 bilhões, concluída no dia 28 de outubro, as ações do homem mais risco do mundo e também CEO da fabricante de carros elétricos Tesla e da companhia aeroespacial SpaceX têm sido no mínimo polêmicas.

Suas primeiras decisões foram demitir por e-mail os principais executivos e metade dos funcionários da empresa, com o apoio de pessoas de seus outros negócios. Isso fez com que vários sistemas do Twitter parassem de funcionar, fazendo com que alguns demitidos fossem convidados a voltar. Mas o que se vê é o êxodo de mais funcionários e de anunciantes de peso. Além disso, outras decisões provocaram a explosão de notícias falsas na plataforma nesses dias.

Já o negócio de Zuckerberg vem sofrendo –assim como outros que dependem da publicidade online– com a crise americana e a guerra na Ucrânia. Além disso, o TikTok vem se demonstrando um concorrente implacável e mudanças nos controles de privacidade dos iPhones feriram profundamente o modelo de negócios da Meta.

Mas o maior problema tem sido sua incapacidade de avançar no metaverso, caminho em que Zuckerberg apostou suas fichas há um ano. Por isso, suas ações perderem 76% do valor no período, equivalente a US$ 730 bilhões! A Reality Labs, unidade de produtos do metaverso, apresentou sozinha um prejuízo de US$ 12 bilhões.

 

Negócios inchados

Zuckerberg fez um mea culpa, dizendo que exagerou no otimismo durante a pandemia, contratando mais gente que deveria. Esse é, de fato, um problema de muitas dessas empresas, que incharam com o distanciamento social e agora sofrem com um choque de realidade.

Outro exemplo é a Amazon, que viu suas ações caírem após o anúncio de lucros menores que o esperado, fazendo seu valor ficar abaixo de US$ 1 trilhão pela primeira vez desde o início de 2020. Com isso, no dia 3, a companhia anunciou que interromperia todas as contratações até segunda ordem e agora iniciou a demissão de dez mil funcionários.

Notícias assim amedrontam mercados, mas é uma situação bem diferente da “bolha ponto-com” do ano 2000. A crise atual impacta negócios firmemente estabelecidos e resulta de decisões ruins de suas lideranças, que podem corrigir seus rumos. Além disso, o mercado de tecnologia continua aquecido, com uma acelerada digitalização de negócios de todos os setores. Essa é uma excelente notícia para os profissionais da área, inclusive no Brasil.

O que se deve prestar atenção é que redes sociais não são empresas comuns. Como já explicado, qualquer movimento que façam tem o potencial de provocar grande alegria ou tragédias a seus bilhões de usuários, e isso não é um exagero. Nos últimos anos, em eleições ao redor do mundo (inclusive no Brasil), essas plataformas digitais foram decisivas para o abalo nas democracias, a partir de polarização da sociedade pela enxurrada de fake news e do discurso de ódio em suas páginas.

Por isso, o mundo está de olho em Elon Musk, que prometeu afrouxar os controles do Twitter sobre o conteúdo publicado na plataforma, em nome de sua ideia de “liberdade de expressão”. Até agora, o que se viu com suas atabalhoadas decisões foi o aumento de desinformação em torno das “eleições de meio de mandato”, que elegeram governadores, senadores e deputados nos EUA na terça passada.

Musk levou os carros elétricos a um novo patamar e criou o conceito de corrida espacial privada, que são feitos memoráveis. Mas pode descobrir que o impacto de centenas de milhões de usuários na sociedade pode representar um desafio muito mais difícil de ser superado.

Quanto a nós, os referidos usuários tão dependentes dessas plataformas, precisamos entender que estamos na mão dos algoritmos. Temos que aprender a nos beneficiar deles, mas não de uma maneira umbilical. Afinal, mesmo que hoje brilhemos nas redes, amanhã eles podem nos tornar irrelevantes online. Sem falar que as próprias empresas podem desaparecer, com ou sem estouro de bolha.