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Jack Sparrow, da saga “Piratas do Caribe” (Disney), o pirata mais famoso do cinema

Os desencontros do streaming pavimentam o caminho para uma nova pirataria

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Alguns crimes vêm e vão, ressurgindo em novos formatos, aproveitando oportunidades. É o caso da pirataria de vídeos, que andava em baixa nos últimos anos, mas que vem ganhando força de novo com a guerra comercial das diferentes plataformas de streaming e mudanças impopulares em algumas das principais delas.

Na semana passada, a Netflix, líder dessa indústria, anunciou a primeira redução em sua base de assinantes em quase 11 anos. Justo ela, que teve um papel importante na diminuição da pirataria, fazendo o público trocar os camelôs de DVDs ilegais por um serviço cômodo e de qualidade, a um preço módico.

Com o aumento da concorrência de estúdios que tornam suas produções exclusivas em suas próprias plataformas, o público continua assinando algumas delas, mas não tem dinheiro para todas. Recorre então a métodos ilegais para assistir ao que está por trás dos muros das que não consegue pagar. Em outras palavras: o excesso de produções exclusivas nas diferentes plataformas empurra as pessoas para a pirataria, para conseguirem ver tudo que desejam.


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As ações da Netflix derreteram 35% na quarta passada, depois de ela ter divulgado seus resultados financeiros do primeiro trimestre do ano, no dia anterior. Isso diminuiu seu valor de mercado em cerca de US$ 50 bilhões, arrastando os papeis de concorrentes, como Disney, Warner Bros. Discovery e Paramount.

A empresa perdeu 200 mil contas no período. A expectativa era que aumentasse em, pelo menos, 2,73 milhões. Além disso, a receita do trimestre cresceu 10%, para US$ 7,87 bilhões, mas isso é menos que as previsões de US$ 7,93 bilhões.

Esses números podem ser parcialmente creditados ao encerramento da operação russa, em represália à invasão da Ucrânia, que resultou em uma perda de 700 mil assinantes. A situação só não foi pior porque a empresa conseguiu outros 500 mil no restante do mundo.

A Netflix já disse que as perdas podem chegar a 2 milhões de assinantes nos próximos meses. Além do fim da operação russa, a empresa justificou as perdas pela inflação nos EUA, o aumento da concorrência e o compartilhamento indevido de contas, algo que já anunciou que pretende combater com mais afinco.

Trata-se da prática de uma pessoa assinar o serviço e repassar as suas informações de conexão para amigos que não pagam. De acordo com a assinatura, a Netflix permite conexões simultâneas em duas ou até quatro telas. Mas isso deveria acontecer entre pessoas que moram juntas.

Estima-se que há cerca de 100 milhões de usuários que se valem desse “truque”. Identificar e impedir isso é tarefa tecnicamente simples, mas a Netflix sempre fez “vista grossa” para o problema. Mas em março a empresa anunciou que vai passar a cobrar uma taxa extra para quem compartilhar suas contas, equivalente à metade do preço do plano básico local. A novidade deve entrar em testes no Chile, no Peru e na Costa Rica em breve, sendo depois expandida para outros países.

Com a concorrência crescendo, não dá para continuar abrindo mão dessa receita. E por falar em dinheiro, outra mudança que vem sendo ventilada em vários desses serviços, inclusive na própria Netflix, é a oferta de planos mais baratos (ou até gratuitos) financiados por publicidade, algo que a mesma Netflix ensinou o público a rejeitar fortemente.

Essas são decisões impopulares e polêmicas. Quantos deixarão a base dos serviços de streaming graças a elas?

 

Os piratas agradecem

A gigante baseada em Los Gatos, na Califórnia (EUA), não é a única preocupada. O que aconteceu com ela pode ser um prenúncio de tempos mais difíceis para o mercado de streaming.

A Disney, por exemplo, que vem investindo pesadamente em sua plataforma Disney+ nos últimos anos, divulgará seus números no dia 11. Se eles também decepcionarem o mercado, o alerta pode passar a ser vermelho.

Não faz tanto tempo, as calçadas eram ocupadas por camelôs que vendiam DVDs piratas. A Netflix, com um catálogo englobando produções de vários estúdios a um preço módico, com alta qualidade e fácil acesso, praticamente eliminou aquilo. Agora, com a pulverização de conteúdos em diferentes plataformas, o bolso e a vontade do cliente podem não ser suficientes para pagar por todas elas.

A pirataria não acontece agora com discos: ela também vem pela Internet. E não para de crescer diante dessa guerra das plataformas. Em relatório divulgado em fevereiro, a empresa de cibersegurança Akamai colocou o Brasil como quinto país no mundo em acessos a sites de pirataria, atrás dos EUA, da Rússia, da Índia e da Turquia. Fizemos 4,5 bilhões de streams e downloads não licenciados entre janeiro e setembro de 2021.

Além da pulverização em diversas plataformas, o baixo poder aquisitivo da população e títulos não oferecidos no país favorecem a pirataria. Outro levantamento, esse do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade, calculou que, em 2020, o mercado ilegal custou R$ 287 bilhões ao Brasil, atingindo principalmente as áreas de música e televisão.

O mercado chega então a um impasse. Os diferentes produtores também têm direito a morder um pedaço dessa torta que a Netflix mostrou sem grande e suculenta. Mas chegamos a um ponto de saturação? Vale a pena ter sua própria plataforma ou continuar distribuindo seu conteúdo na dos outros?

O risco é que a pulverização e o assédio da pirataria reduzam demais a quantidade de assinantes para cada plataforma. Isso comprometeria a capacidade de investimento em novas produções exclusivas, que se tornaram a principal ferramenta de atração. E assim começaria a faltar dinheiro para investimentos, cada vez exigentes.

A Netflix costumava dizer que sua principal concorrência não era de outras plataformas de streaming, mas de outras formas de diversão, como ler e até dormir. Fica cada vez mais difícil sustentar isso!

Os assinantes pulam de um serviço para outro, cancelando suas assinaturas quando sua série preferida acaba, para ver a de outro serviço. E assim sucessivamente! Sobre todos eles, paira uma pirataria ressurgida de maneira mais tecnológica e atraente.

A transformação desses serviços em poderosos estúdios de filmes e de séries gerou uma demanda poderosa no público, a ponto de as pessoas quererem assistir a todos os grandes lançamentos. Mas não é poderosa o suficiente para fazer colocarem a mão no bolso para pagarem por tudo isso.

 

Os problemas de forçar um conteúdo nacional

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Frank Underwood (Kevin Spacey), o anti-herói da série House of Cards, um dos símbolos do Netflix

Frank Underwood (Kevin Spacey), o anti-herói da série House of Cards, um dos símbolos do Netflix

A Ancine (Agência Nacional do Cinema) está tramando a exigência de uma cota mínima de filmes e séries brasileiras em serviços de vídeo sob demanda, como o Netflix e o HBO Go. Com o argumento de fomentar as produções nacionais, esse tipo de intervenção pode matar a vaca para acabar com o carrapato.

Essa regra já funciona para os canais de TV paga, que são obrigados a dedicar pelo menos 30% de sua grade a programas brasileiros. De fato, temos hoje produção nacional de ótima qualidade, mesmo em canais internacionais, como a série O Negócio, na HBO. Mas esse alto nível está longe de ser padrão, com alguns conteúdos de interesse e qualidade limitados, sem falar na enxurrada de programas de culinária que criam variações sobre o mesmo tema nem sempre tão criativas.

O grande problema desse tipo de regra é tirar do consumidor o seu direito de escolher o que assistir. Quem paga por um serviço de TV por assinatura quer justamente fugir da qualidade rasteira da programação dos canais abertos. Ao forçar que um terço da grade de um canal pago seja preenchido com qualquer conteúdo local, apenas por ser brasileiro, esse direito de escolha é prejudicado.

Os serviços de vídeo sob demanda representam a maximização da escolha do consumidor, que agora não precisa sequer se ater às grades de programação: assiste o quiser, quando e onde quiser, uma liberdade inédita que está redefinindo o próprio jeito de se ver televisão.

No Brasil, o Netflix oferece cerca de 4.000 filmes e séries em seu acervo. Desse total, cerca de 5% é composto por produções brasileiras. Se a Ancine emplacar a mesma exigência feita aos canais de TV por assinatura, o Netflix precisaria ampliar o seu acervo -o que pode encarecer o produto- ou reduzir o volume de conteúdo internacional oferecido. Nas duas situações, quem perde é o consumidor.

Até a minha adolescência, o cinema brasileiro era desprezível, dominado pelas pornochanchadas e pelos filmes dos Trapalhões. Até que Carlota Joaquina, Princesa do Brazil estreou em 1995, seguido no mesmo ano por O Quatrilho e outras grandes produções, que inauguraram uma nova fase do cinema nacional, de alta qualidade. Disso surgiram obras-primas, como Central do Brasil, e Tropa de Elite. Entretanto, de uns anos para cá, as salas têm sido invadidas por uma enorme quantidade de comédias, muitas delas de gosto bastante duvidoso e pouco originais, mas todas com o logo da Ancine na abertura.

Por isso, sou favorável à constante ampliação da oferta de produções nacionais de qualidade. Mas isso não pode ser feito por decreto, principalmente quando contraria os interesses e fere os direitos do cidadão, que é, afinal, o cliente de tudo isso, pagando pelo cinema, pela TV por assinatura e pelo Netflix. Não abro mão do meu direito de assistir a House of Cards, Game of Thrones e afins em favor de programas de culinária fofinhos ou de comédias caça-niqueis.