urna eletrônica

A mentira dita mil vezes

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O governo federal parece ter agora apenas um único objetivo: desacreditar as urnas eletrônicas e instituir o voto impresso. A pandemia, o desemprego e tantas outras mazelas do Brasil parecem ter sumido, pois o ataque ao sistema eleitoral brasileiro se tornou um assunto onipresente nas falas de Bolsonaro. É de se perguntar o porquê dessa insistência insana.

Para quem conhece um pouco da história e da política, esse movimento é facilmente explicável. Ele segue um padrão de convencimento popular formalizado há cerca de 90 anos, mas que foi reforçado pelo advento das redes sociais.

Na quinta, o mandatário não cumpriu a promessa de demonstrar as falhas da urna eletrônica, em uma transmissão recheada de vídeos antigos e argumentos falsos, todos largamente desmentidos por autoridades e especialistas. Ainda assim, insiste na tese e convoca seus apoiadores para lutar por ela.

Essa linha de ação segue o conceito de que “uma mentira dita uma vez é apenas uma mentira; já uma mentira dita mil vezes se torna verdade”.


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Essa tese foi organizada por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolph Hitler, para legitimar suas atrocidades. Foi dessa maneira que os alemães na década de 1930 apoiaram a política do seu Fürher contra os “inimigos do povo”, com a qual se consolidou no poder, tornou-se ditador, promoveu a Segunda Guerra Mundial e realizou o Holocausto. As ações dos apoiadores do líder nazista podem ser vistas no premiado documentário “Arquitetura da Destruição” (disponível gratuitamente e legendado no YouTube).

Aquilo parece monstruoso a nossos olhos, mas, guardadas as proporções, é exatamente o mecanismo atual, com o agravante de que se espalha mais rapidamente pelas redes sociais. Agora, para se tornar “verdade”, uma mentira não se repete mais mil vezes, e sim um milhão de vezes, o que torna o processo mais eficiente.

Esse modus operandi não tem nada a ver com um governo ser progressista ou conservador, de esquerda ou de direita. Tem a ver com um governo ser autoritário e querer se perpetuar no poder a qualquer custo.

A história é pródiga em demonstrar isso, sendo que alguns de seus mais perfeitos expoentes foram legitimamente eleitos em um primeiro momento, como Donald Trump, Hugo Chávez e Adolph Hitler. Dos três, o único que fracassou em seus objetivos foi o primeiro, mas não sem deixar um grande custo, com os Estados Unidos rachado ao meio, culminando com a grotesca invasão do Capitólio, em que seus apoiadores invadiram violentamente o Congresso para tentar impedir o anúncio da vitória de seu opositor, Joe Biden.

 

“Engana que eu gosto”

Não se trata de uma loucura coletiva. Por uma característica evolutiva de autopreservação da espécie, as pessoas acreditam naquilo que lhes for mais conveniente, mesmo que a manutenção de alguns de seus privilégios prejudique muitas pessoas ou até coloque a democracia em risco.

Quando são expostas a apenas uma narrativa, baseada em fatos, na ciência ou em instituições de grande reputação, acatam mesmo o que não gostam, resignando-se. Mas, na primeira oportunidade de alguém lhes apresentar uma versão contrária e mais palatável, abraçam cegamente o mentiroso, como uma tábua de salvação.

Esse mecanismo de interesse de manada contra a verdade foi descrito em 2016 pelo renomado Dicionário Oxford. Naquele ano, seus organizadores elegeram “pós-verdade” como a “palavra do ano”. Na sua definição, ela é “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

Mas isso precisa ser construído! A narrativa mentirosa, que interessa a esses grupos específicos, precisa fazer frente à realidade, sufocando os fatos e expondo incansavelmente a alternativa por todos os métodos disponíveis.

Por isso, a boa imprensa sempre é uma pedra no sapato de governantes, especialmente dos autoritários. A despeito de suas imperfeições, ela tem a função essencial de fiscalizar todo governo, impedindo-o de extrapolar suas prerrogativas. Se um veículo não fizer isso, não está fazendo bom jornalismo.

Goebbels sabia e censurou a imprensa, classificando as vozes dissonantes de “inimigos do povo”. Os nazistas não viam problema em desqualificar, censurar, prender e até matar quem se opusesse a eles. Por outro lado, como se vê em “Arquitetura da Destruição”, todos os recursos eram usados para reforçar sua visão, como eventos populares, o esporte, a cultura, as artes e até a arquitetura.

 

As redes sociais e a mentira

Em democracias consolidadas, calar a imprensa não é tarefa simples. Como os veículos de comunicação alcançam milhões de pessoas, sua voz tem enorme poder.

Mas ela ganhou um contraponto há cerca de 20 anos, com o surgimento das redes sociais. Pela primeira vez, as ideias de qualquer pessoa poderiam potencialmente atingir uma enorme quantidade de indivíduos, até mesmo em outros países.

Em um primeiro momento, foi incrível, pois a informação parecia ser mais democrática. Mas, de uma década para cá, grupos de poder aprenderam a usar esse recurso para impor a sua “pós-verdade”, travestindo-a de “voz do povo”. Obviamente trata-se de um engodo! Mas, como os algoritmos não têm ética e nem moral, é o suficiente para convencer milhões de pessoas.

Os “robôs” são essenciais nesse cenário para dar o primeiro empurrão e apresentar as mentiras nas redes sociais para quem deseja que aquilo seja verdade. A partir daí, essas pessoas espalharão essas fake news. Mas ainda não é suficiente. É preciso criar um discurso uníssono para consolidar a falcatrua. Exatamente como se faz agora contra as urnas eletrônicas.

Elas são perfeitamente auditáveis, enquanto os votos impressos (mesmo impressos automaticamente) são facilmente fraudáveis. E não é preciso adulterar uma enorme quantidade de votos impressos: apenas o suficiente para criar uma diferença entre essa contagem e o das urnas eletrônicas, para se criar uma insegurança jurídica em torno dos resultados da eleição. A partir daí, pode-se querer impugnar o resultado com o respaldo de uma parcela considerável da população, que acredita na farsa.

As circunstâncias nunca foram tão favoráveis para que uma mentira dita mil vezes se torne verdade. Para que uma democracia sobreviva, as pessoas devem ter acesso a fontes de informação diversas e confiáveis.  Precisam também ser convidadas a pensar e a contestar o que chega para elas, especialmente quando parece ser incrivelmente suculento para os seus valores e os seus desejos.

E isso é bem difícil. Mas é exatamente aí que reside a mentira que quer se tornar verdade!

Apesar da lentidão relativa, urna eletrônica reafirma seu valor contra fraudes

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Nesse domingo, aconteceu o primeiro turno das eleições municipais. Apesar de os resultados terem saído no mesmo dia, demoraram mais que o normalmente visto desde que as urnas eletrônicas foram implantadas. Isso deu munição àqueles que visam desmoralizar o sistema.

Ficamos mal acostumados com a velocidade e a segurança delas? Não: é assim que deve ser! O sistema eleitoral eletrônico brasileiro é hoje o mais moderno do mundo, e um exemplo do que toda transformação digital deve ser em qualquer negócio. Afinal, ele redefiniu a percepção do público sobre algo (no caso, a eleição), permitindo que se faça muito melhor o que já existia e que se tenha algo impossível antes.

A demora além da métrica definida pelo próprio sucesso aconteceu, segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por uma falha no supercomputador que totaliza as apurações dos Estados. O tribunal sofreu ainda um ataque de hackers durante o dia, que foi contido. Mas, pela eficiência do sistema, nenhum dos dois problemas afetou a segurança do pleito.

Mas, se o sistema funciona tão bem, por que algumas pessoas preferem adorar o passado e querem a volta dos ineficientes e inseguros votos em papel?


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Eu acompanho o desenvolvimento da urna eletrônica desde suas primeiras versões, e participei da primeira distribuição em tempo real dos dados da apuração para veículos de comunicação (do lado dos veículos), o que permite a criação dos seus sites que exibem os resultados ao público.

Dizer que o sistema eleitoral eletrônico brasileiro é perfeito e invulnerável seria inocência. Não existe sistema a prova de falhas! Mas dá para criar proteções que praticamente inviabilizam as fraudes, como é o caso aqui. Ele é, sem dúvida nenhuma, bastante seguro do ponto de vista técnico e conceitual, e certamente é muito mais seguro que qualquer votação com células em papel, muitíssimo mais fáceis de se fraudar.

Os críticos argumentam que o software das urnas eletrônicas poderia ser adulterado para beneficiar determinado candidato. Ou seja, o eleitor votaria em um candidato, mas o voto seria contabilizado para outro. Além disso, reclamam que o voto, mesmo que sem qualquer identificação do eleitor, não pode ser checado individualmente no caso de uma auditoria, pois as urnas guardam o resultado consolidado de todos os votos nelas.

Curiosamente, as urnas eletrônicas foram criadas para combater a grande fraude que existia na apuração dos votos em papel, uma verdadeira operação de guerra. Por exemplo, nas eleições de 1994, a última totalmente com votos em papel, a apuração contou com o trabalho de cerca de 170 mil pessoas! Ainda assim, demorou duas semanas para terminar.

 

Sistema antifraude

Não existe registro comprovado de fraude desde a primeira vez em que as urnas eletrônicas foram usadas, em 1996. Para isso, o TSE adota cerca de três dezenas de mecanismos de segurança para impedir fraudes e garantir o sigilo.

Todos os dados das urnas eletrônicas são criptografados e os equipamentos não possuem nenhuma foram de acesso à Internet ou qualquer rede, seja por Wi-Fi, por Bluetooth ou qualquer outra forma de comunicação. Para um hacker invadir uma urna, ele teria que fazer o processo na própria seção eleitoral, durante o horário da votação, na frente dos presentes, pois as urnas confirmam que estão sem nenhum voto quando são ligadas. Além disso, precisaria romper um lacre físico, desenvolvido pela Casa da Moeda, que, se for manipulado, muda de cor.

A fabricação das urnas, por mais que seja feita por empresas privadas, é toda controlada pelo TSE, que é o único capaz de testar os equipamentos. Nem o fabricante consegue fazer isso sozinho.

Além de todas essas proteções físicas, o processo eleitoral eletrônico brasileiro é composto por 94 sistemas exclusivos do TSE. Todos eles ficam disponíveis para que partidos políticos, o Ministério Público, a Controladoria Geral da União e outras entidades possam verificar sua integridade.

Antes de serem instalados nas urnas, os programas passam por um sistema de autenticação. Ele envolve a criação de hashes –uma espécie de garantia de inviolabilidade do código– e as assinaturas digitais do presidente do TSE, do procurador-geral da República e do secretário de tecnologia da informação do TSE. Se for preciso qualquer alteração nos programas, todo esse processo deve ser refeito, ou o novo software não será executado pela urna.

Logo após a votação ser encerrada, a urna automaticamente apura os votos nela e imprime os resultados da seção eleitoral, com o total de votos por partido e por candidato, total de votos nulos e em branco e a hora do encerramento da eleição. O relatório é afixado na seção eleitoral, garantindo que a informação fique imediatamente disponível ao público.

Os resultados consolidados são então criptografados e gravados em uma mídia digital removível. Ela é levada para um cartório eleitoral para ser transmitida por uma rede interna para um sistema totalizador. Os votos são então somados e publicados de uma maneira incrivelmente rápida: cerca de 150 mil votos por segundo!

Foi justamente nesse ponto que o sistema “pipocou” na noite desse domingo, ficando abaixo de sua própria média histórica. Ainda assim, foi muito mais rápido que as eleições observadas no resto do mundo, como a americana. Mesmo com a “demora”, mais de 110 milhões de votos –já descontadas as abstenções– foram computados e publicados em apenas seis horas. Além disso, os votos podem ser auditados, se for necessário.

De novo, dá para garantir que o sistema é infalível? Por uma questão filosófica e técnica, não! Mas, para vencer toda essa combinação de proteções físicas e eletrônicas, os hackers precisariam de um procedimento que provavelmente nunca será feito por ninguém.

 

O ataque dos arautos do atraso

O que nos leva de volta à outra pergunta feita no começo: por que tem gente que deseja a volta do voto em papel, com todas as suas gigantescas desvantagens?

Bom, na melhor das hipóteses, é porque a pessoa desconhece o processo descrito acima, ou é mais uma vítima da guerra de desinformação nas redes sociais. Na pior faz hipóteses, é porque essa pessoa deseja mesmo fraudar as eleições, e o sistema eleitoral eletrônico inviabiliza os seus planos malignos. Até uma eventual contestação dos resultados na Justiça, como vimos no espetáculo grotesco dessa eleição americana, fica praticamente inviável.

Na prática, como também aconteceu nos EUA, isso não mudará em nada o resultado. Apenas atrasará a declaração do vencedor e custará muito dinheiro ao contribuinte.

Há ainda um terceiro tipo de pessoa que pode querer a volta do voto em papel: aquela que tem medo do desconhecido ou do que não tem controle –mesmo que seja um controle ilusório.

O medo é um sentimento necessário. Ele existe para nossa autopreservação e está associado aos momentos mais primitivos da nossa evolução como espécie. Ele pode ser paralisante. Mas como nosso trabalho hoje (felizmente) não envolve mais tomar decisões de caça diante de um tigre de dente de sabre, não podemos deixar que o medo nos controle.

Em tempos de transformação digital, com tantos e tantos benefícios, o medo pode ser, portanto, um fator que impede a inovação dos negócios e –por que não– de nossa vida.

Mas não tem jeito! Como cantava Elis Regina, na belíssima “Como Nossos Pais”, o novo sempre vem! Não dá para continuar amando o passado e insistindo em não ver isso.