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Mark Zuckerberg, CEO da Meta: empresa quer usar dados de seus usuários para treinar sua IA - Foto: Anthony Quintano/Creative Commons

O que está por trás da proibição da Meta usar dados dos usuários para treinar sua IA

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Na terça passada (2), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tomou a decisão de mais visibilidade e impacto da sua existência de cinco anos: proibiu a Meta (empresa dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) de usar os dados dos usuários para treinar seus modelos de inteligência artificial. É a primeira vez que o órgão age contra uma big tech, em um movimento que impacta todos os internautas do país.

Segundo a ANPD, a maneira como a empresa está usando esses dados violaria a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). O ineditismo da medida não se dá apenas pela sua abrangência, mas também por tratar de algo ligado à IA, uma área que empresas, governos e usuários ainda tentam compreender toda sua enorme complexidade.

Mas eventuais lacunas nesse entendimento não podem ser usadas por empresas para abusar de seus usuários e do mercado. Como não há legislação sobre a IA definida na maioria dos países, práticas como a da Meta levantam muitos questionamentos.

Afinal, os usuários podem ficar em risco ou serem expostos com isso? Esse comportamento configura um abuso de poder econômico? Não seria melhor as pessoas decidirem compartilhar os seus dados, ao invés de isso acontecer sem seu consentimento e até conhecimento? Se nossos dados são tão valiosos para as big techs criarem produtos que lhes rendem bilhões de dólares, não deveríamos ser remunerados por eles? E acima de tudo, será que as pessoas sequer entendem esse mundo em acelerada transformação diante de seus olhos?

É um terreno pantanoso! Por isso, qualquer que seja o desfecho da decisão da ANPD, o debate em torno dela já oferece um grande ganho para a sociedade.


Veja esse artigo em vídeo:

 


A Meta atualizou a política de privacidade de seus serviços para usar as informações de todos os posts públicos dos usuários, feitos de agora em diante e também no passado. Mas as pessoas não viram a nova regra ou, se viram, não leram ou sequer entenderam. E, como de costume, aceitaram, pois essa é uma condição para continuar usando esses produtos que se tornaram centrais em suas vidas.

As pessoas não esperam que seus posts sejam usados para treinar uma IA. Por conta disso e por entender que o formulário para os usuários se oporem a coleta de seus dados ser de difícil acesso, exigindo que a pessoa vença nove etapas, a ANPD anulou a atualização da política e determinou que a coleta seja interrompida imediatamente.

A Meta pode ser multada em R$ 50 mil por dia em que não cumprir a determinação. E vale dizer que a companhia enfrenta uma proibição semelhante na Europa.

Obviamente, a empresa reclamou! Em nota, disse estar desapontada com a decisão da ANPD, e que eles são mais transparentes no treinamento de sua IA que muitas outras empresas. Afirma ainda que a proibição seria um retrocesso para a inovação e a para a competividade no desenvolvimento de IA, podendo atrasar a chegada de seus benefícios para os brasileiros.

A Meta quer usar os textos, imagens, áudios e vídeos dos posts de seus usuários porque os modelos de linguagem amplos (da sigla em inglês LLM), que viabilizam plataformas de inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, dependem de quantidades gigantescas de informações para serem treinados. Sem isso, são incapazes de dar respostas de qualidade.

Os posts nas redes sociais são uma fonte suculenta desse tipo de informação, mas sua coleta pode trazer riscos aos usuários. “É possível pensar em clonagem de voz e vídeo por IA para enganar familiares, amigos e colegas, ou mesmo extorsão por meio de deepfakes”, explica Marcelo Cárgano, advogado especialista em direito digital do Abe Advogados.

Segundo ele, esse uso dos dados pode ainda levar a uma “discriminação algorítmica”, quando os sistemas determinam que grupos selecionados serão desfavorecidos em processos como ofertas de crédito, emprego ou serviços públicos. “E em regimes autoritários, dados pessoais podem alimentar sistemas de IA preditiva comportamental, aumentando a vigilância e a repressão sobre a população”, adverte.

 

Pedir para entrar ou para sair?

Nesse caso, a Meta fez o chamado “opt-out” com seus usuários. Ou seja, assumiu que todos aceitariam que seus dados fossem coletados. Quem não quisesse bastaria pedir para sair. O problema é que, como a ANPD corretamente apontou, as pessoas nem sabem que seus dados estão sendo coletados, não entendem isso e o processo para se oporem à coleta é muito difícil, o que, na prática, pode fazer com que muita gente ceda seus dados sem assim desejar.

Do ponto de vista de privacidade e respeito às pessoas, o processo deveria ser o contrário: um “opt-in”. Nesse caso, os usuários precisariam conscientemente permitir que a empresa fizesse sua coleta, antes que isso começasse. Mas a Meta não adotou esse caminho porque obviamente pouquíssimas pessoas topariam.

Não quer dizer que dados pessoais não possam ser usados para o treinamento de um modelo de IA. Mas as boas práticas indicam que o usuário seja avisado previamente e aceite cedê-los conscientemente. Além disso, a informação deve ser anonimizada.

E é importante que esse consentimento seja dado antes de a coleta ser iniciada, pois, uma vez que a informação é incorporada ao modelo, é virtualmente impossível removê-la individualmente. Mas a LGPD determina que, mesmo que alguém conceda acesso a seus dados, se decidir que não mais aceita, a informação deve ser apagada.

Por fim, há a polêmica de que os usuários sejam eventualmente remunerados por seus dados, essenciais para a criação de um produto bilionário. “Um sistema amplo de remuneração de dados pessoais não me parece tão prático ou desejável, porque eles geralmente são valiosos para empresas quando são massificados”, explica Cárgano. “Isso pode tornar difícil para um indivíduo conseguir negociar um preço justo, se é que isso existe, para seus próprios dados”, conclui.

Como se vê, há mais dúvidas que consensos no uso de nossas informações para treinamento de modelos de IA. Ainda haverá muito ranger de dentes e aplausos em torno da decisão da ANPD. Mas temos que ter em mente também que muitas outras empresas estão fazendo exatamente o mesmo que a Meta, e precisam ser identificadas.

De todo jeito, tudo isso está servindo para a sociedade debater a questão. No final das contas, o que mais precisamos é que as big techs sejam mais transparentes e respeitem seus clientes, dois pontos em que elas historicamente falham feio!

 

Como o Facebook pode piorar o jornalismo e deixar as pessoas na ignorância

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Foto: Venkat Mangudi/Creative Commons

Na quinta passada, o Facebook anunciou mais uma mudança no seu algoritmo de relevância: os usuários passarão a ver mais o que seus amigos e familiares postarem, e menos o que vier das páginas que curtem. Parece uma bobagem, mas isso terá impactos significativos em muitos negócios e -pasmem!- em como a humanidade se informa. Você está pronto para isso?

Não é um exagero! Qualquer ação, por menor que seja, de algo que tem mais de 2 bilhões de usuários ativos, sendo que mais de 60% deles acessam o sistema todos os dias, tem um impacto social profundo. É como um elefante querendo coçar as costas em uma árvore: por mais que queira só se coçar, pobre árvore!


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No caso do anúncio da turma do Mark Zuckerberg, a justificativa oficial é “aproximar mais as pessoas”. Justo! E isso pode acontecer mesmo, mas, quanto disso é o real objetivo, quanto é só um discurso bonito, só eles sabem. Mas algumas transformações imediatas acontecerão.

A primeira coisa é que realmente a audiência das fan pages despencará. E isso será muito ruim para empresas que dependem muito do Facebook para seus negócios. Você pode até dizer que é a “hora da verdade” para esse pessoal, que até agora surfou na bonança criada pela rede. Pode ser! Mas isso demonstra o poder de “vida ou morte” desse “dono da bola”.

Restará às empresas duas alternativas. A primeira mais simples -e cara: pagar ao Facebook para “impulsionar” suas publicações. Isso é muito bom para o negócio da rede social, e bastante fácil no seu entendimento.

A segunda alternativa é tentar convencer as pessoas a elas mesmas distribuírem o conteúdo dessas empresas, por sua própria iniciativa. No mundo perfeito da justificativa oficial do Facebook, isso é bacana, pois, se a pessoa estiver fazendo isso, é porque tal conteúdo lhe é interessante.

E é aí que o elefante -ou a porca- pode torcer o rabo com força!

 

Jogo de interesses

Mesmo naquele mundo perfeito, é pouco provável ver pessoas compartilhando produtos. Com exceção dos apaixonados por marcas como Apple, convenhamos: não é normal, certo? Então, de cara, o varejo que vá preparando o seu espírito.

Entretanto a coisa muda bastante de figura quando pensamos em conteúdo editorial, em notícias, em entretenimento. No cenário idílico acima, os usuários compartilhariam conteúdos que fossem relevantes, provocando debates positivos. Até mesmo poderia ser uma ferramenta bacana para informar todos eficientemente.

Só que desgraçadamente isso não vai acontecer.

E o motivo é muito simples: quem disse que as pessoas querem criar debates em torno de temas que sejam realmente importantes? As pessoas querem falar sobre aquilo que lhes dê prazer imediato, e de preferência fácil, mesmo que seja a mais rotunda porcaria! E não estou fazendo aqui nenhum julgamento moral. Todos nós fazemos isso uma hora ou outra: faz parte da nossa natureza humana!

Para piorar, a recíproca é válida. Muitas informações que são realmente importantes para nosso desenvolvimento como indivíduo, cidadão, profissional vêm carregadas de um esforço para serem digeridas. Em muitos casos, elas são chatíssimas e exigem que abandonemos a nossa zona de conforto. Mas precisamos que alguém nos traga isso!

Essa é tradicionalmente a função da (boa) imprensa. Os jornais não nos mostram só coisas que gostamos: eles nos mostram também o que precisamos saber. Pois além de informar, eles precisam também formar o cidadão, mesmo que isso seja “chato” às vezes.

E aí chegamos à ironia dos fatos! Os veículos de comunicação hoje dependem pesadamente do próprio Facebook para gerar audiência para suas propriedades digitais. Na média, dá para falarmos em metade disso vindo dos algoritmos de Zuckerberg. Junte esse gosto pelo “conteúdo fácil” e os veículos sendo obrigados a implorar que os usuários compartilhem seu conteúdo, o que pode acontecer?

Um mundo cada vez mais dominado pelo jornalismo rasteiro, “fake news” e pessoas mantidas na ignorância.

 

Samba do crioulo doido

O Facebook pode ter criado uma forca, e os veículos podem estar alegremente colocando seu pescoço na corda. Não podemos deixar esse nó apertar, mesmo que isso seja chato!

Assim como Stanislaw Ponte Preta ironizou com seu samba a obrigatoriedade das escolas de samba só criarem enredos com fatos históricos (e a porcaria decorrente disso), os veículos não podem cair na tentação de investirem ainda mais nos caça-cliques para fazer o público lhes ajudar a garantir a audiência.

Mas nem tudo está perdido! Há uma solução, que depende de três atores principais.

O primeiro deles é o próprio Facebook. Ele tem o direito de alterar seus algoritmos como bem entender: afinal, é um produto que tem interesses comerciais. Mas, como já disse acima, ele tem uma paquidérmica função social, que não pode ser ignorada. Curiosamente, em seu já afamado desafio pessoal de início de ano, Zuckerberg publicou seu desejo de “consertar o Facebook” em 2018, inclusive para que seus recursos não sejam usados para disseminação de ódio e notícias falsas.

A mudança no algoritmo acima vai contra objetivo. Porém a empresa pode compensar essa mancada potencial com outras iniciativas que valorizem verdadeiramente conteúdo de qualidade, e não apenas “que provoquem conversas”, pois as conversas podem ser de baixo nível, em torno de coisas ruins. Precisam criar recursos que combatam o “fake news”. E, justiça seja feita, a empresa já vem trabalhando nisso, inclusive porque tem sido pesadamente criticada por sua omissão diante desse mar de lama em suas páginas.

O segundo ator é a própria mídia. A imprensa marrom sempre existiu e sempre existirá, mas ela jamais pode superar a imprensa séria, que informa e forma com precisão e responsabilidade. Nesse cenário, o papel da mídia é, portanto, resistir ao caminho mais fácil e sedutor do lado sombrio para ganhar uns cobres, e exaltar a ética e os pilares do bom jornalismo. Pois, se isso for oferecido em grande quantidade, aumenta a chance de as pessoas disseminarem mais bom que mau conteúdo.

Por fim, resta o mais importante de todos os atores: nós mesmos! Pois nós somos o vetor de tudo que se trafega nos meios digitais. Pela nossa humanidade, podemos ser o elo mais frágil, movidos pelas nossas paixões e porque é gostoso ficar em nossa zona de conforto. Mas também temos que resistir! Além disso, cabe a cada um de nós ajudar quem estiver a nossa volta a fazer o mesmo, convidando todos a tirar o senso crítico da gaveta, a não compartilhar nada antes de ler, a desconfiar (saudavelmente) sempre, a ouvir e criar um diálogo construtivo com aqueles que pensam diferentemente de nós, praticando a tolerância e a empatia.

Se esses três fizerem bem a sua parte, mudanças nos algoritmos das redes sociais terão impactos apenas pontuais, e elas, ao invés de se tornarem palco de ainda mais conteúdo rasteiro, poderão se consolidar como um espaço de compartilhamento de boa informação, construção de cidadania e debates construtivos.


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