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Reconhecimento facial se tornou uma poderosa ferramenta de negócios

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Muita gente já se espantou como o Facebook reconhece instantaneamente todas as pessoas que estão nas fotos que carregamos na plataforma, “marcando” seus rostos. Esse recurso, um dos segredos das “viralizações” das imagens nessa rede social, vem dos algoritmos de reconhecimento facial. Mas esse uso chega a ser um “brinquedo” diante do que essa tecnologia já oferece aos negócios.

Apesar de nunca ter se falado tanto disso, ela existe desde os anos 1960. De maneira simplificada, consiste em se criar uma “assinatura digital” (um “código hash”) composta por uma identificação única calculada a partir de distâncias entre pontos-chave do rosto (como o centro da pupila, a ponta do nariz, os limites da boca e assim sucessivamente). Quanto mais pontos forem avaliados, maior a eficiência no reconhecimento, pois essas distâncias variam de pessoa para pessoa.

“Uma coisa que melhorou muito de uns anos para cá foi a acuracidade do reconhecimento facial”, afirma Edgar Nunes, diretor comercial da Nuntius Tecnologia. De fato, até há poucos anos, existia desconfiança com essa tecnologia, por gerar muitos falsos positivos ou negativos.  “Antes as empresas tinham algoritmos que trabalhavam com 96 pontos do rosto, e hoje falamos de pelo menos 300 pontos, chegando a 1.024”, explica.

Tantos pontos permitem que o reconhecimento aconteça com precisão até quando o rosto está parcialmente coberto, por exemplo por óculos escuros ou, como agora é comum, por uma máscara. Os pontos ainda visíveis são suficientes para se fazer a identificação.


Veja a íntegra da entrevista com Edgar Nunes em vídeo:


Portanto a eficiência do reconhecimento facial está intimamente ligada não apenas a melhorias no software, mas também a avanços exponenciais nos computadores e nas próprias câmeras. Todo esse poder de processamento permite que as plataformas identifiquem mais pontos no rosto, em menor tempo e até de várias pessoas na mesma imagem. “Hoje a tecnologia reconhece 512 pessoas simultaneamente, em uma única câmera”, explica Nunes.

Além disso, os sistemas são capazes de identificar indivíduos mesmo que eles não estejam olhando de frente para a câmera, uma exigência dos sistemas mais antigos. A quantidade de pontos e o poder de processamento identificam também os rostos inclinados. Aliás, esse reconhecimento tridimensional pode ser usado para evitar fraudes, como alguém tentando apresentar uma foto e o sistema achar que se trata de um rosto real diante da câmera.

A qualidade nos reconhecimentos depende também da adaptação do sistema para a região onde ele será usado. Não basta, portanto, um algoritmo de qualidade: a plataforma precisa ser “calibrada” para o tipo de rostos da população local, mesmo em um país miscigenado, como o Brasil. É por isso que, se tentarmos usar um bom sistema preparado para o mercado americano em uma país asiático, ele pode não funcionar muito bem, e vice-versa.

Outro ganho das melhorias dos equipamentos é que sistemas locais podem tomar ações sem exigir uma conexão à Internet de banda larga. Esses equipamentos são capazes de armazenar mais de um milhão de “códigos hash” em sua memória (ou seja, as fotos das pessoas não estão ali, apenas essa sua “assinatura digital”). Dessa forma, se a imagem da pessoa diante da câmera não combinar com o respectivo “código hash”, o sistema pode negar a identificação.

Seguindo a mesma lógica, o sistema local pode gerar um “código hash” e enviar apenas essa informação para um servidor, um arquivo muito menor que o de uma foto ou um vídeo capturados. “A gente está falando de transportar apenas alguns kbytes de informação, o que não vai causar nenhum problema de conectividade, não vai ‘engargalar’ nenhuma rede’, explica Nunes.

Isso é particularmente interessante em locais em que a não há conexão com a rede ou em que ela seja limitada, como em um ônibus. O terminal do Bilhete Único (ou equivalente) pode conter os “códigos-hash” dos donos de bilhetes da cidade. Se alguém tentar usar um documento que não combina com a imagem capturada na hora pela câmera, a catraca pode não ser liberada, e a informação de uma possível fraude ou roubo ser enviada a uma central de controle e ao verdadeiro dono do bilhete.

 

Integração a outros sistemas

As plataformas de reconhecimento facial não trabalham mais de maneira isolada. “Antigamente, o reconhecimento facial entregava algo como ‘a pessoa é o Paulo e foi detectado na câmera 2’ e isso era enviado para o centro de controle”, conta Nunes. Agora a informação captada pela plataforma de reconhecimento vai muito além, identificando coisas como gênero, idade aproximada, raça e até estado de humor da pessoa no momento.

Essa informação fica ainda mais valiosa quando integrada a sistemas de gestão, para ajudar a tomar decisões de negócio. Por exemplo, de uma maneira automática, é possível saber que perfil de consumidor um determinado produto atrai, como o fluxo de visitantes em uma loja se comporta e até tomar ações personalizadas para um usuário específico, baseado em um histórico de relacionamento com a empresa ou combinando com perfis de visitantes semelhantes.

Em tempos de pandemia de Covid-19, os terminais de reconhecimento facial também trazem outras vantagens interessantes. A primeira delas é que, além de identificar a pessoa, consegue medir sua temperatura instantaneamente, sem necessitar de caras câmeras térmicas e evitando as filas provocadas pelas leituras com termômetros do tipo “pistola”, que se popularizaram no varejo. O sistema também é capaz de identificar se a pessoa está usando uma máscara. Em caso negativo ou se estiver com febre, uma ação é disparada, como informar a segurança ou a área de recursos humanos.

Nunes acredita que a evolução natural dessas plataformas envolverá ainda mais confiança e velocidade na identificação dos rostos, além de integrações cada vez mais poderosas com outros sistemas. Em um mundo com uso crescente de aplicações “touchless”, em que o usuário não precise encostar em nada, isso é muito bem-vindo.

O digital indica o caminho para o varejo, mesmo nas lojas físicas

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Na semana passada, o Carrefour anunciou as suas duas primeiras lojas autônomas do país. Sua principal característica é que elas não têm funcionários para ajudar os clientes na seleção de produtos ou sequer nos caixas. Todo o processo é feito pelo consumidor, com seu celular.

O objetivo é oferecer uma experiência eficiente, em que o cliente fique o mínimo de tempo dentro da loja, o que, aliás, é interessante em uma pandemia. Isso também traz uma óbvia economia para o varejista em salários.

Mas há um fator extremamente importante, que pode passar despercebido para muita gente. Lojas autônomas estão em linha com uma mudança cultural em curso no público: o desejo de consumir seja lá o que for com o mínimo de interação humana.

Portanto, o varejo pode tirar grande proveito de recursos digitais, muito além da criação de e-commerce. Além de viabilizar um atendimento em linha com esse inusitado e crescente desejo de autonomia, permite conhecer profundamente seu público, oferecendo um relacionamento mais moderno, um mix de produtos mais adequado para cada loja e ampliando a satisfação do consumidor.


Veja esse artigo em vídeo:


Com a pandemia, o e-commerce cresceu enormemente em todo mundo, inclusive no Brasil. Segundo a 43ª edição do Webshoppers, relatório sobre e-commerce produzido pela Ebit em parceria com a Nielsen, as vendas no e-commerce de 2020 cresceram 41% em relação a 2019, com um aumento de 23% em novos consumidores e 29% naqueles considerados recorrentes.

Ainda assim, o e-commerce representa pouco nas vendas globais do varejo, respondendo, mesmo com esse crescimento, por cerca de apenas 10% de todo o bolo. Ou seja, qualquer investimento para melhorar a experiência do consumidor nas lojas físicas é mais que bem-vindo!

Dentro desse cenário, as novas lojas do Carrefour dão completa autonomia ao cliente. Para entrar na loja, ele deve exibir a um totem o QR code que o identifica, pelo aplicativo do Carrefour em seu celular. Uma vez dentro da loja, ele deve escanear o código de cada produto que deseja comprar, que é acrescentado em um carrinho virtual. Se tiver qualquer dúvida, pode acessar um suporte em tempo real por WhatsApp. Uma vez concluída a compra, ele faz o pagamento pelo próprio aplicativo e apresenta o QR code novamente para sair da loja.

Desde 2018, a rede já usa algo semelhante em 40 de seus pontos de venda. Mas ainda existe um funcionário que confere o que foi pago e o que o consumidor está levando. Nas novas lojas, não há mais essa conferência. O novo formato está sendo testado em pequenos estabelecimentos no centro comercial Cow, em São Paulo, e no condomínio residencial Domo Life e Prime, em São Bernardo do Campo.

Apesar de estar sendo apresentado como algo inspirado na Amazon Go, as lojas físicas da gigante americana do varejo têm uma tecnologia ainda mais disruptiva. Nelas, o consumidor libera sua entrada na loja com o aplicativo, da mesma forma que no caso do Carrefour. Mas quando pega um produto para comprar, ele não precisa ser escaneado pelo celular: basta guardá-lo em uma sacola ou até no seu bolso. Um sofisticado sistema de câmeras e sensores permite que a loja saiba quais produtos foram pegos e a quantidade, o que diminui enormemente as fraudes e furtos. No sistema da Amazon, o pagamento também é mais simples: basta o cliente sair da loja com os produtos, que serão debitados automaticamente de seu cartão de crédito cadastrado.

Em São Paulo, a Zaitt oferece uma experiência bastante semelhante ao da Amazon Go. Nas outras lojas da sua rede, o funcionamento se parece ao das novas lojas do Carrefour.

 

Sem contato com ninguém

Como se pode ver, a tecnologia digital está no centro do processo, mesmo se tratando de lojas físicas. Ela é usada para identificar o cliente, os produtos que ele adquire e fazer o pagamento, dispensando a interação com funcionários.

Por mais estranho que isso possa parecer para muitos, essa “liberdade de fazer tudo sozinho”, sem ter que interagir com outras pessoas, cresce nos mais diversos setores do mercado. É um reflexo do enorme poder que os consumidores ganharam com o meio digital, especialmente com o advento dos smartphones. Não se trata apenas de ter mais escolha (e agora ela é imensa). As pessoas querem que tudo seja feito do seu jeito e a seu tempo, com uma experiência personalizada e com grande autonomia, centrada no seu smartphone, que se transformou em uma espécie de “painel de controle da vida”.

Isso explica, ainda que parcialmente, o sucesso de aplicativos como o iFood, para o delivery de comida, ou o Uber, para transporte. Segundo vários ex-alunos meus que trabalham no iFood, muitas pessoas preferem pedir comida interagindo com o aplicativo a ter que ligar para o restaurante, pois a experiência seria melhor com a tela que com o atendente humano, segundo eles.

Esses aplicativos não ameaçam os restaurantes físicos, pois a comida continua vindo deles. Apenas o canal para se fazer o pedido mudou. Mas o varejo físico precisa necessariamente estar atento a essas mudanças no comportamento do consumidor, para se manter relevante e evitar o pior.

Há muitos anos, já se fala do “apocalipse do varejo”, que vem fechando milhares de lojas físicas nos Estados Unidos desde 2010. A principal causa é a migração de consumidores para o e-commerce. Estudo do Credit Suisse previu que de 20% a 25% dos shoppings centers americanos fechariam as portas nos próximos anos.

Como eu digo sempre, não é uma tecnologia que põe uma empresa para fora do mercado. Quem faz isso é seu consumidor, quando encontra uma alternativa mais vantajosa. Pelo contrário, a tecnologia pode ser uma poderosa aliada para manter a empresa relevante a seu público!

 

Coletando dados

Um outro importantíssimo uso da tecnologia para fortalecer qualquer negócio é a coleta de dados dos usuários. Iniciativas como a do Carrefour, da Amazon e do Zaitt permitem que os varejistas saibam exatamente o que cada consumidor compra, quando e como. Essa informação é valiosíssima, não apenas para melhorar o mix de produtos de cada loja, para que ela tenha sempre aquilo que os clientes desejam, de maneira independente de outros pontos de venda, mas também para personalizar a experiência de cada consumidor, mesmo que sejam milhões em sua base.

O Pão de Açúcar vem fazendo isso muito bem desde 2017, quando ele lançou um novo aplicativo. Usando o perfil de compras de cada um dos milhões de clientes de sua plataforma de relacionamento “Pão de Açúcar Mais”, a empresa consegue oferecer descontos que podem chegar a 50%. Porém o mais interessante é que esses descontos são oferecidos naquilo que o consumidor realmente quer, atendendo a interesses também de seus fornecedores, que usam tais descontos personalizados como uma eficiente ferramenta de marketing. Ou seja, ganha o consumidor, o fornecedor e o varejista.

Em um tempo de tantos desafios impostos pela pandemia, o relacionamento do varejo com seus clientes se transformou profundamente, não apenas na comunicação, mas no próprio processo de venda, além da captação e da fidelização de consumidores.

Não dá mais para ficar esperando os clientes entrarem pela porta da loja para oferecer um caloroso sorriso e iniciar a venda. Se não estiver de maneira inteligente na vida digital da pessoa, talvez ela nunca mais entre pela sua porta. E, se entrar, talvez nem queira o sorriso, e sim uma experiência de autosserviço realmente inovadora.

 

O maior desafio do jornalismo na pandemia é seguir fazendo jornalismo

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Qual é a melhor profissão do mundo?

Naturalmente, não há resposta definitiva a essa pergunta. Todo profissional apaixonado pelo que faz dirá que seu ofício é o melhor, e filosoficamente estará certo nisso. Mas toda profissão tem (ou deveria ter) uma função social. Portanto, aquelas que promovem mais impacto na sociedade estariam mais próximas de receber esse título.

Para Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e jornalista (cuja foto ilustra esse artigo), o jornalismo é essa profissão. Em um histórico discurso na assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa, em 1996, Gabo (como era chamado) explicou que “o jornalismo é uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada por sua confrontação visceral com a realidade”.

A explicação genial em suas palavras vem sendo posta à prova nos últimos anos, em vários locais do mundo. Uma parcela considerável da população acredita pouco na imprensa e esse índice vem piorando, como demonstra o mais recente relatório Trust Barometer, da consultoria americana Edelman. O mesmo documento demonstra que essa desconfiança é maior entre eleitores de governantes autoritários, que se especializaram em atacar jornalistas, pois a verdade os incomoda. Isso acontece sistematicamente desde a Alemanha nazista, em que Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Adolf Hitler, calava todas as vozes dissonantes do Fürher.

No Brasil, isso não é diferente. Cresci vendo jornalistas sendo respeitados na sociedade pelo seu trabalho de trazer e contextualizar as notícias para todos nós. Essa foi a realidade em nosso país até pouco tempo, quando os ventos políticos mudaram e os jornalistas passaram a ser perseguidos, censurados, agredidos moral e fisicamente por autoridades e até pelo cidadão médio, inflamado pelo discurso de ódio de seus líderes.

Por que tanta gente detesta profissionais que se esforçam para os informar da melhor maneira possível, às vezes colocando a própria vida em risco?

É verdade que o mundo mudou, e não apenas no balanço político. A gigantesca digitalização de nossas vidas transformou a maneira como consumimos e produzimos conteúdo de toda natureza, inclusive jornalístico. As empresas de comunicação tradicionais deixaram de ser as únicas fontes disponíveis, competindo com pequenos veículos independentes que fazem um ótimo trabalho e com aqueles que se resumem a publicar um conteúdo raso ou deliberadamente atuam na desinformação, cada vez mais convincente e suculenta com suas mentiras.

Com a pandemia de Covid-19, que nos assola desde março de 2020, o ódio à imprensa se uniu às hostes negacionistas, jogando o país no caos. O grande desafio desses profissionais passou a ser insistir em se fazer jornalismo de qualidade. Esse foi o tema que apresentei no evento “Desafios para o jornalismo na pandemídia”, ao lado de Fábio de Paula, Magaly Prado e Marcelo Salgado, que aconteceu no dia 12, a convite da professora Maria Collier de Mendonça, no curso de jornalismo na UFPE. Todos são colegas do Sociotramas, grupo de pesquisa em temas ligados a redes sociais na PUC-SP.

Mas a pandemia criou um interessante efeito na busca pela verdade na maioria da população. Afinal, diante do desconhecido e do medo trazidos pelo vírus, era necessário buscar informações confiáveis para se proteger da doença, e as pessoas se voltaram para o jornalismo profissional. Isso pode ser comprovado pelo aumento na audiência de todos os veículos de comunicação sérios nesse período.

O jornalismo é um trabalho de persistência. Diante das piores adversidades, surgem os melhores profissionais, que se esforçam para trazer a informação mais confiável. Não se trata de verdade absoluta, pois ela é conceitualmente inatingível. Mas o jornalismo se esforça para se aproximar ao máximo dela, com muito suor, técnica e ética.

A essa altura, alguns podem estar torcendo o nariz, discordando de mim. Faz parte do trabalho! Não podemos agradar a todos, até mesmo porque o bom jornalismo também é aquele que apresenta os fatos inconvenientes para muitos. Por outro lado, não tem a pretensão de ser perfeito, até pela natureza humana falível de todos os profissionais, mas se busca sempre a melhor informação para o público.

É por isso que, mesmo aqueles que discordam da imprensa se beneficiam, em algum momento, de seu trabalho. No caso particular da pandemia, se não fosse a persistência incansável desses profissionais, não estaríamos agora na macabra marca de 300 mil mortos pela doença, e sim possivelmente na casa dos 500 mil óbitos. A educação da comunidade pelo noticiário evitou uma tragédia ainda maior, beneficiando a todos, mesmo àqueles que preferem acreditar em mitos.

As dificuldades e os ataques que jornalistas sofrem agora são resultados dos tempos de trevas em que vivemos. Mas, como diz o ditado, “depois da tempestade, vem a bonança”. Quando isso acontecer, bons jornalistas, contadores de histórias da vida real, estarão lá para dizer como tudo aconteceu.

Naquele seu genial discurso, Gabo concluiu: “Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra acaba depois de cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não garante um instante de paz até que recomece com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Não poderia concordar mais com ele: essa profissão é uma paixão de entrega ao próximo! É necessária para o desenvolvimento de qualquer nação, mesmo quando as verdades são inconvenientes. Por isso, nasci jornalista. E persisto!

 

Esse artigo foi publicado originalmente no blog do grupo de pesquisa Sociotramas, do qual faço parte, na PUC-SP. Com profissionais de diferentes áreas e de várias universidades brasileiras, estudamos os impactos do meio digital e das redes sociais na comunidade.

 

O que há por trás do crime do momento

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Na manhã de sexta (19), a Polícia Federal prendeu dois hackers em Uberlândia (MG) e Petrolina (PE), acusados de serem responsáveis pelo roubo e vazamento de dados de 223 milhões de pessoas e de 40 milhões de empresas em janeiro. Mas assistindo às imagens divulgadas pelas próprias autoridades, percebe-se que algo não bate nessa história: extremamente modestos, a casa e o computador de um deles não combinam com alguém que comercializaria uma base de CPFs e CNPJs por 40 mil euros, o que dá mais de R$ 260 mil.

O Brasil se transformou no paraíso dos vazamentos de informações pessoais. Desde o ano passado, várias bases de dados enormes, de diferentes fontes, são oferecidas na Deep Web, uma parte da Internet que não pode ser acessada com navegadores comuns e não é indexada em buscadores, muito usada por delinquentes.

Em um primeiro momento, tudo isso parece envolver grandes ações criminosas, com a participação da máfia russa ou outra organização internacional. Entretanto, é mais provável que os esquemas sejam locais e que o dinheiro não seja a única motivação.

Além disso, a vida dos bandidos está fácil. Empresas, organizações e até o governo brasileiro precisam melhorar muito a segurança de seus servidores. E os usuários, sejam corporativos, sejam qualquer um de nós, precisam ser mais cuidadosos: a maior parte dos roubos acontece graças à inocência das pessoas, que caem em golpes muito básicos.


Veja esse artigo em vídeo:


Obviamente os dois hackers presos na sexta não trabalham sozinhos. Isso explicaria a casa e o equipamento bastante simples do hacker de Uberlândia, algo completamente incompatível com um esquema que já deve ter movimentado milhões de reais.

Vale notar que ele já vinha sendo investigado pela possível participação em outras invasões semelhantes, como o roubo de dados do Tribunal Superior Eleitoral. Esse vazamento foi divulgado justamente no primeiro turno das eleições de 2020, ao que tudo indica para aumentar a desconfiança da população no sistema eleitoral brasileiro, atendendo a interesses de quem questiona as urnas eletrônicas, por exemplo.

Não precisa ser um gênio, portanto, para perceber que os dois presos são apenas peões de um grupo criminoso que usa invasões para obter ganhos financeiros e políticos. Se os dois forem os únicos encarcerados, será uma vergonha! Como em tantos crimes no Brasil, condena-se quem puxa o gatilho, mas o mandante continua solto para cometer outros atos ilícitos.

Com a digitalização galopante de nossas vidas, os crimes eletrônicos se transformaram nos mais devastadores e que causam mais prejuízos à sociedade. Pessoas, empresas e organizações não estão preparadas para lidar com a criatividade e a eficiência dos delinquentes digitais. Eles conhecem profundamente a tecnologia, mas também são especialistas em ludibriar e manipular a população.

O mais nocivo dos crimes digitais atualmente são as fake news, porque elas conseguem de abalar a sociedade. Basta ver o crescimento exponencial da crise de saúde que o Brasil vive com a Covid-19. Sem as infames notícias falsas, o número de mortes seria muito menor e os negócios voltariam a funcionar mais rapidamente, pois as pessoas agiriam de acordo com o que a ciência e os especialistas de saúde determinam. Mas, graças a elas, acreditam em qualquer bobagem messiânica, que não os protege de nada, apenas atende a interesses de grupos específicos de poder.

 

Crime no atacado e no varejo

Assaltos a indivíduos e empresas são substituídos por golpes em redes sociais, comunicadores como WhatsApp e invasões em computadores. Sem sair da cadeira, os bandidos fazem mais vítimas, com ganhos muito maiores e sem risco de morte, raramente sendo pegos.

Apesar de os prejuízos para as vítimas serem expressivos, aos olhos do crime organizado, isso não é tanto: é o crime digital “no varejo”.

O “crime no atacado” vem com esses grandes roubos. E aqui a vida dos criminosos também está fácil, pois as empresas e até o governo ficam a desejar na segurança.

Um bom exemplo é o Ministério da Saúde, que foi invadido em dezembro devido a uma falha muito básica, que permitiu que hackers baixassem dados de todas as pessoas cadastradas no SUS (Sistema Único de Saúde) ou com um plano de saúde, um total de 243 milhões de indivíduos. Depois disso, o site do ministério já foi invadido diversas outras vezes, sendo “pichado” com insultos para expor sua vulnerabilidade.

As grandes bases de dados colocadas à venda nos últimos meses parecem ser uma composição de invasões a sistemas de diferentes fontes, o que indica que as falhas de segurança são muito mais comuns que deveriam.

Os bancos são empresas com bons sistemas de segurança. Eles investem milhões nisso. Afinal, está na essência do seu negócio, seja com sistemas de invasão dificílima, seja com as infames portas com detectores de metal nas agências. Mas outras empresas, mesmo algumas que manipulam grande quantidade de dados de seus clientes, incluindo informações sensíveis, não cuidam tão bem de seus sistemas. E estou falando aqui de grandes empresas. Quando pensamos em pequenas e médias, encontramos verdadeiros shows de horror!

Em uma sociedade totalmente digital, ninguém é pequeno demais para não se preocupar fortemente com a segurança da informação em seus servidores, seja dos clientes, seja do próprio negócio.  E ninguém é grande demais para não correr o risco de ser colocado para fora do mercado no caso de um grande roubo de dados.

 

O desdém pela informação alheia

Há um outro aspecto a ser considerado, muito mais cultural que tecnológico: a falta de respeito com a informação dos outros.

Dados pessoais são indubitavelmente o recurso mais valioso do mundo hoje. Isso foi detalhado na icônica reportagem de capa da revista “The Economist” de 6 de maio de 2017.

O Brasil tem uma boa legislação nessa área: a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), sancionada ainda no governo Temer, em agosto de 2018. As empresas tiveram dois anos para se adaptar à legislação e ainda as multas não estão sendo cobradas de quem infringir suas determinações.

Entre elas, está o fato de as companhias serem responsáveis pelos dados de consumidores sob sua guarda, não importando se elas foram invadidas. Além disso, as empresas devem dizer exatamente que dados serão coletados, o que farão com eles e com quem os compartilharão. O cliente deve autorizar explicitamente tudo isso.

Mas essa prática está longe de acontecer. Somos rastreados o tempo todo, sem saber que informações nossas estão sendo coletadas e o que será feito delas. Isso acontece nas redes sociais, em nossos smartphones e até em eletrodomésticos, como aspiradores de pó robôs, que mapeiam nossas casas e enviam essa informação a seus fabricantes. Mas também somos rastreados em farmácias que associam nossas compras de medicamentos a nossos CPFs, a lojas que nos identificam por suas redes e até a câmeras nas ruas que contam a governos onde estamos por reconhecimento facial.

Não autorizamos nada disso e não temos a mínima noção do que está acontecendo com nossos dados. Diante da ação de criminosos mais perigosos, de empresas que não fazem os investimentos necessários em segurança da informação e de uma sociedade que desrespeita sistematicamente o direito aos dados dos cidadãos, estamos cada vez mais à mercê de um mundo tecnocrático que facilita o crime organizado e viabiliza um estado policialesco.

Ironicamente, no mês passado, o diretor-presidente da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior, falou sobre esses vazamentos em um evento. Segundo ele, “a investigação e o poder de polícia, não nos cabe”. Concordo com isso, mas eles são responsáveis por fazer valer a LGPD, usando todos recursos necessários. E isso vai indo muito mal em nosso país.

Sem melhorias consistentes na área, continuaremos sendo o paraíso dos hackers, das fake news e de todo tipo de criminoso que usa o mundo digital para ter ganhos em cima da nossa miséria.

A origem do negacionismo

By | Educação | No Comments

No mundo todo, a educação sofre há um ano com a Covid-19. No Brasil, com o avanço galopante da doença, governadores e prefeitos vêm adotando medidas mais severas para conter o vírus, incluindo fechar as escolas. O impacto na formação de crianças e jovens é inevitável. Mas a educação sofre muitíssimo no nosso país desde muito antes da pandemia. De certa forma, grande parte do caos que vivemos se explica pelo desprezo histórico que o Brasil tem pela educação.

Basta ver que esse debate atinge basicamente educadores e pais de alunos. O resto da população passa ao largo do tema. Mas o fechamento de bares causa comoção nacional!

É sabido que cidadãos bem educados fazem valer seus direitos e igualmente cumprem seus deveres. Não ficam esperando que o governo os “salve de suas próprias vidas”. É assim em sociedades desenvolvidas. Por outro lado, os menos educados criam uma zona de conforto em torno de um pacto pela mediocridade: “se você me der o mínimo que preciso, eu não incomodo você, e vou levando minha vidinha”.

Como não somos bem educados, diante de algo muito maior que nós (como uma pandemia), procuramos uma “solução mágica”. Como isso não existe, negamos os fatos. Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente, certo?

Errado!


Veja esse artigo em vídeo:


A nossa má educação é, portanto, a principal causa desse negacionismo que jogou o Brasil nas mais profundas trevas, que, para nossa desgraça, foram ampliadas pela pandemia. Não dá nem para dizer que foi azar: plantamos isso.

Não é de se estranhar que o nível da educação no Brasil caia gradativamente desde o tempo da ditadura militar. Um povo mal educado é um povo mais dócil e facilmente manipulável. Mas, com isso, jogamos tudo no colo do Estado ou damos um jeito de responsabilizar o outro quando algo dá errado. Esperamos que o mundo nos sirva e nos salve, mas damos muito pouco em troca. Ao fazer isso, cada um de nós, individualmente, e o Brasil, como sociedade, afundamos ainda mais no lamaçal.

Para completar a tragédia, o caminho para sairmos disso, que é a busca pelo conhecimento e a ciência, é banalizado, desvalorizado, ridicularizado até por governantes e seus seguidores. Quem estuda, quem pesquisa e quem ensina no Brasil não tem valor.

Para compensar essa gravíssima falha, nós nos apoiamos, até para afagar nosso ego, na crença de que somos um povo criativo e “esperto”, que consegue “sair de qualquer buraco”. A verdade é que essa “esperteza” está muito mais para malandragem burra. Trabalhamos muitas horas, mais que outros povos, porque somos profissionais de baixa produtividade e baixa inventividade.

Dói dizer isso! Mas temos que encarar o problema de frente se quisermos corrigi-lo.

Somos ótimos seguidores de ordens, com pouca iniciativa. Fomos educados assim! Além disso, trabalhamos mal em equipe. Basta ver a enorme quantidade de chefes tóxicos e as “puxadas de tapete” na própria equipe que ainda temos em pleno ano de 2021.

Que fique claro: ao dizer tudo isso, não estou afirmando que somos um povo “sem jeito” ou condenado. Muito pelo contrário! Mas estamos indo por um caminho muito errado há décadas, sem nenhuma perspectiva de melhora. Basta ver o Ministério da Educação, que está em coma desde que Bolsonaro assumiu o poder.

 

Brasil X Coreia do Sul

Em novembro, pesquisadores da FGV (Fundação Getúlio Vargas) divulgaram um estudo apontando que, se o Brasil investisse, a cada ano, 1% a mais do seu Produto Interno Bruto em ensino básico, o padrão de vida médio da população aumentaria até 26% nos próximos 50 anos. Em 2050, a população brasileira poderia atingir o mesmo padrão de vida da portuguesa. Além disso, investir (bem) na educação 2% do que o país produz levaria a um aumento de quase 32% na produtividade do trabalhador.

Um dos reflexos do nosso terrível fracasso nisso é que, apesar do altíssimo desemprego por aqui, as empresas não conseguem preencher vagas que exigem qualificação profissional e competências específicas, por causa da baixa qualificação média do brasileiro.

É possível mudar esse quadro, mas isso exige trabalho sério e consistente, investimento e tempo. Podemos pegar, como exemplo, a evolução da Coreia do Sul.

Antes da Guerra da Coreia, que durou de 1950 a 1953, o país era um dos mais pobres do mundo, muito mais que o próprio Brasil da época. Após o conflito, o sul capitalista criou um plano de longo prazo de industrialização do país (a partir de tecnologia estrangeira) e de educação de alta qualidade para todos.

O resultado é que, depois de cerca de 30 anos, a Coreia do Sul passou da sua antiga situação miserável para ser um dos Tigres Asiáticos. Não por coincidência, na pandemia de Covid-19, o país ostenta um dos melhores resultados do mundo.

 

Para que estudamos?

A educação certamente tem uma função utilitária, crítica para o desenvolvimento de uma nação. Estudamos para aprender a fazer coisas e, dessa forma, melhorar de vida.

Mas não pode ser apenas isso! A educação também tem o papel de desenvolver em nós o amor pelo conhecimento, transcendendo seu aspecto prático. Apenas alguém que goste de aprender coisas novas impulsiona a sociedade para um estágio superior, pois tem uma mente flexível e aberta à inovação. Infelizmente, o Brasil investe pouco em ciência, e o que se investe vai quase tudo para a ciência aplicada, ficando quase nada para a ciência de base.

No início da minha carreira, eu sempre ouvia que mestrados e doutorados só serviam para quem queria “dar aula”, que era muito melhor fazer um MBA para subir na carreira. De tanto ouvir isso, acabei fazendo primeiro o MBA na FIA, que de fato foi incrível! Mas, quando fiz meu mestrado na PUC-SP alguns anos depois, minha mente se expandiu a um outro nível. Por isso, afirmo que todos deveriam ter a oportunidade de seguir esse caminho: não é “só para dar aula”, mas sim para criar cidadãos e profissionais melhores!

Precisamos plantar em nossas mentes, desde a mais tenra idade, o amor pelo aprendizado. Vejo com tristeza crianças e adolescentes reclamando “por que estudar isso, se nunca será usado”. Tudo que estudamos serve para entendermos melhor o mundo em que vivemos e nos ajudará, quando necessário, a nos posicionarmos melhor nele.

Apesar de ser um profissional da área de Humanidades, quando cursava ainda o Colégio Mackenzie, minha matéria preferida era Física. Isso porque eu tive a sorte de ter bons professores que não se resumiam apenas a “dar a matéria”, como alguns inimigos da educação exigem hoje. Um bom professor vai muito além e contextualiza o conhecimento na vida do aluno e na sociedade.

No mundo ideal, os alunos estudariam para aprender e não para tirar nota na prova, um instrumento de avaliação falho que perpetua essa distorção no objetivo do ensino. Nesse mundo, entenderiam que Língua Portuguesa e Matemática são ferramentas para fazer melhor qualquer coisa na vida e que todas as outras disciplinas, de Química a Filosofia, servem para se desenvolverem mentes livres e se tornarem cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.

Todos nós –e não apenas os educadores– precisamos nos engajar pela melhora da educação. Precisamos ser parceiros das escolas e dos professores, resgatando seu valor e sua autonomia, e dando a eles condições para realizar um bom trabalho.

Sem isso, nunca seremos como a Coreia do Sul ou qualquer outra nação desenvolvida. Nossa sociedade permanecerá estagnada e continuaremos sendo indivíduos que produzem pouco e produzem mal. E agora, pelo nosso negacionismo, nem somos aceitos nos aeroportos do mundo.

É isso que queremos para nós e para nossos filhos?

O valor da notícia que informa você

By | Jornalismo | No Comments

Na semana em que o Brasil teve mais de dez mil mortos pela Covid-19, Bolsonaro disse para a população “parar de mimimi” e questionou “até quando as pessoas vão continuar chorando”, ao invés de “enfrentar o problema de peito aberto” e sem “frescura”. Para a maioria das pessoas, essas bravatas são um ataque frontal à vida. Mas há uma fatia considerável da sociedade que não apenas concorda com ele, como o defende.

Como explicar essa polarização em um caso tão extremo e literalmente de vida ou morte?

A resposta passa por outra doença crônica do nosso país, que também se agrava: a maneira ruim como as pessoas se informam. Isso se deve não apenas pela escolha de fontes questionáveis de notícias, mas também como elas chegam até nós, o que hoje acontece majoritariamente pelas plataformas digitais. As duas coisas desempenham igualmente um papel crítico na guerra da desinformação.

Para “combater esse bom combate”, existem, portanto, três atores principais: os veículos de comunicação, as big techs e nós mesmos, o público. Cada um tem seu papel e seus interesses nesse cenário, mas inimigos em comum: a desinformação e as fake news. Para vencê-las, é preciso que os três trabalhem em conjunto, fazendo adaptações e concessões.


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Quando isso não acontece, surgem os efeitos nefastos, como os que estamos vivendo. Não se engane: a qualidade da informação que você consome tem um efeito decisivo na sua vida. Essa afirmação pode soar óbvia, mas, às vezes, o óbvio precisa ser reforçado.

A desinformação não é naturalmente um fenômeno exclusivo do Brasil, mas o fato de ser muito forte aqui explica, ao menos em parte, o fato de estarmos na contramão do mundo no combate à pandemia. Como mostrou a manchete do Estadão desse domingo, dos dez países com mais mortes pela Covid-19, oito registram queda na média móvel de novos óbitos e um, a Índia, tem alta de 8,9%, enquanto, por aqui, esse indicador subiu 30,5%.

Isso acontece porque o tripé entres produtores, distribuidores e consumidores de notícias está desequilibrado. Enquanto as empresas de comunicação sérias se esforçam para produzir um conteúdo de alta qualidade, mas sofrem para impactar uma parcela grande da população, as plataformas digitais atingem virtualmente todo mundo, mas distribuem uma enorme quantidade de porcaria. O público, por sua vez, consome qualquer coisa que lhe é apresentada, tornando-se presa fácil da desinformação.

As empresas de comunicação e as plataformas digitais são um tipo especial de empresa, pois suas atividades influenciam profundamente a vida das pessoas. Portanto, precisam assumir com seriedade seu papel social. Claro que, como qualquer empresa, têm seus objetivos comerciais, mas eles não deveriam jamais se sobrepor ao que melhora a sociedade.

 

Simbiose informativa

Isso nos leva a um intenso debate sobre a eventual obrigação das redes sociais e de buscadores remunerarem as empresas de comunicação por usarem os conteúdos jornalísticos nas páginas dessas plataformas.

A origem desse debate remonta à criação do Google Notícias, serviço noticioso do buscador, lançado em 2002. A partir das notícias de veículos do mundo todo, ele cria um “jornal digital” personalizado para cada usuário.

Os produtores de informações sempre reclamaram que o Google criou um produto com seu conteúdo, sem pagar nada por isso. Ele, por sua vez, se defende dizendo que não tem nenhum ganho direto com a plataforma e que, na verdade, aumenta a audiência dos veículos, pois, se alguém clica em uma notícia, cai direto nela, no site ou aplicativo do produtor.

Com o tempo, essa cisma se expandiu também para as redes sociais, pois seus feeds são inundados de posts com notícias, criados pelos próprios usuários ou pelos veículos. Assim como o Google, Facebook e afins se defendem dizendo que não lucram diretamente com esses links, e que ainda aumentam a audiência dos produtores do conteúdo.

Mas a coisa não é tão simples assim.

O físico britânico Tim Berners-Lee, que criou a Web há 30 anos, já afirmou que um link não carrega em si conteúdo ou valor autoral, pois ele simplesmente leva o usuário de uma página para outra. Isso reforça os argumentos de defesa das plataformas digitais.

Por outro lado, dizer que não ganham nada com essas chamadas de conteúdo alheio é uma falácia! Podem até não ter ganho direto dali, mas elas aumentam a percepção de valor de toda a plataforma pelos usuários, aumentando até mesmo o valor dessas marcas bilionárias.

Há alguns anos, a organização Pew Research Center publicou um estudo que demonstrava que a maioria das pessoas não entra no Facebook para consumir notícias, porém, quanto mais tempo elas ficam nele, mais notícias consomem. Mais que isso: elas se engajam mais com notícias vistas a partir da rede social. Trata-se, portanto, de uma relação simbiótica, de ganho mútuo. E, como tal, todos os envolvidos precisam colaborar entre si.

Há ainda um outro fator a se considerar nesse embate. Os veículos de informação tradicionalmente tinham duas formas de financiamento: a assinatura de seus produtos e a publicidade. As plataformas digitais praticamente acabaram com esse modelo de negócio.

Do ponto de vista da publicidade, muitos anunciantes preferem agora colocar seu dinheiro nas redes sociais e nos buscadores, que custam menos e podem trazer melhores resultados, se bem usados. Quanto às assinaturas, muitas pessoas não se sentem mais atraídas a pagar pela informação, pois o meio digital inundou suas vidas com conteúdo, por mais que a maioria seja ruim.

 

Quem paga a conta?

Diante disso, as big techs vêm sofrendo pressões de conglomerados de mídia e de governos para remunerar os produtores de conteúdo. E, a contragosto, têm se rendido a elas.

No mês passado, um episódio foi emblemático. Depois de o governo australiano introduzir um projeto de lei que obrigaria o Facebook a pagar por todos os posts noticiosos em suas páginas no país, a empresa bloqueou a exibição de qualquer material jornalístico a usuários australianos. Além disso, usuários do mundo todo deixaram de ver material de veículos daquele país. Quatro dias depois, o bloqueio acabou após o governo fazer concessões à empresa de Mark Zuckerberg. O Facebook, por outro lado, se comprometeu a remunerar produtores no mundo todo, anunciando que investirá US$ 1 bilhão no setor jornalístico nos próximos três anos.

A Alphabet, controladora do Google, enfrenta pressões semelhantes e também chegou a ameaçar interromper seus serviços na Austrália pelo mesmo motivo. Mas, assim como o Facebook, a empresa também fechou um acordo de pagamento pelo conteúdo, como vem negociando no mundo todo, inclusive no Brasil. Também no mês passado, ela anunciou um grande acordo com o conglomerado de mídia News Corporation, do magnata Rupert Murdoch, para usar o conteúdo de seus diversos veículos, entre eles “The Wall Street Journal”, “The Times” e “The Sunday Times”. Vale dizer que Murdoch sempre foi um ferrenho crítico do meio digital, como algo que destruía o valor de seus negócios.

As empresas de comunicação, por sua vez, precisam abandonar o papel de vítima, que não lhes cai bem. Em parte, estão nessa situação porque, quando o meio digital ainda se consolidava, se recusaram a adaptar seus modelos de negócios a um público em rápida transformação. Agora “perderam esse bonde” e dependem umbilicalmente das plataformas para que seu conteúdo de qualidade chegue ao público. Basta observar que a audiência de suas home pages desaba há anos, pois as pessoas chegam diretamente às notícias a partir de buscadores e redes sociais.

Sei que em um ambiente de capitalismo selvagem, as boas intenções costumam ser colocadas de lado e até ridicularizadas. Mas, como disse antes, essas empresas têm um papel social que está na essência de seus negócios e podem se beneficiar mutuamente do trabalho umas das outras. Portanto, precisam aprender a colaborar mais.

Quanto a nós, o público de todo esse conteúdo, cabe escolher e incentivar aqueles que realmente produzem bom jornalismo. Apesar de estar “fora de moda”, assinar uma ou mais publicações melhorará nossa visão de mundo e ajudará quem trabalha contra a desinformação. Do lado das plataformas digitais, como inevitavelmente continuaremos consumindo conteúdo por elas, precisamos reforçar o nosso senso crítico, para não acreditarmos em qualquer porcaria ali.

Caso contrário, se nenhum desse atores fizer a sua parte, continuaremos vendo pessoas apoiando a morte e se negando a tomar vacinas, temendo virar jacaré.

Pode ter menos pão, desde que tenha muito circo

By | Educação | No Comments

Um ano e 250 mil mortos depois do início da pandemia de Covid-19 por aqui, os brasileiros arranham caminhos para continuar tocando a vida. Diante da ausência de um norte consistente e seguro indicado pelas autoridades, buscamos garantir nossas necessidades básicas em meios ao caos.

Tradicionalmente tais necessidades são garantidas pelo Estado, até para sua própria manutenção. Na antiga República e no Império Romano, os governantes descobriram que era preciso garantir às pessoas duas coisas: o pão e o circo. O primeiro atendia parte do sustento, enquanto o segundo garantia a diversão, para diminuir as tensões do cotidiano.

Passados 2.500 anos, o panem et circenses, como era chamada essa política, continua valendo na relação entre governantes e governados, e invadiu também outras áreas, como o mundo do trabalho e até nossas relações pessoais. Além disso, o pão e o circo são representados de maneiras cada vez mais subjetivas e muito ligadas às redes sociais.

Uma coisa, entretanto, não mudou: se o pão diminui, é preciso caprichar no circo!


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Políticos jogam muito bem esse jogo, mas eles não estão mais sozinhos nesse tabuleiro. Graças aos meios que as redes sociais oferecem para se ganhar muita visibilidade, empresas e até indivíduos criam seus circos para ganhar o próprio pão.

A princípio, não há nada de errado em usar criativamente os recursos digitais, muito pelo contrário! O problema surge quando se ultrapassa o limite da ética ao se enganar os mais diferentes públicos, em uma espécie de estelionato ideológico.

O circo romano tem um aspecto muito perverso. Ao apresentar ao cidadão alguém que sofre muito mais que ele, seus problemas parecem ficar menores. Por isso, a plateia urrava em êxtase diante de gladiadores obrigados a lutar até a morte ou ao ver inimigos do Estado sendo entregues a leões. Qualquer problema fica menor diante do sangue jorrado na arena, pelo simples fato de quem assiste continuar vivo e estar sentado ao lado do governante, que promove a carnificina.

A lógica permanece até hoje, mas ganha novos recursos e novos promotores do espetáculo.

As autoridades continuam sendo soberanas em momentos de circo sem pão, e o nosso governo atual se destaca nisso. Diante de sua incompetência de solucionar as crises da saúde, do trabalho, da economia estagnada, da educação, entre muitas outras, abusa de bravatas vazias contra inimigos reais ou imaginários, para manter sua base de apoio incendiada. Com isso, cria uma densa cortina de fumaça que tira da população o foco nos problemas verdadeiros, mantendo aqueles que o apoiam anestesiados em uma fantasia grotesca.

Mas os políticos não estão sozinhos: reality shows também são um incrível exemplo de um circo romano moderno.

 

A vilã de uma nação

Sem dúvida, o melhor exemplo para entender esse fenômeno é o “Big Brother Brasil”. E um acontecimento da semana passada foi emblemático: a cantora Karol Conká foi eliminada do programa com uma rejeição recorde do público de 97,17%. Quando isso anunciado, pessoas gritaram nas janelas da minha vizinhança, algo que normalmente só acontece em partidas decisivas de futebol e em recentes manifestações políticas.

Karol foi alçada ao posto de supervilã do BBB 21 porque, segundo o jargão do programa, “jogou mal”. Foi arrogante, preconceituosa, agressiva, o que culminou na inédita saída espontânea de outro participante, Lucas Penteado.

Quando deixou a casa, ela descobriu que tinha perdido algo como 40% de seus seguidores nas redes sociais e contratos de trabalho que chegariam a R$ 5 milhões. Mas será que ela merecia tamanha punição, mesmo diante de seus comportamentos reprováveis no programa? Afinal, aquela casa costuma ser lar de muitas intrigas e muito veneno entre os participantes.

Mas, na lógica do circo, essa pergunta é irrelevante. A partir do momento que recebeu o selo de “pessoa má da história”, a audiência decretou que ela deveria ser imolada publicamente. O fato de ela ser famosa potencializou o sentimento. E a possibilidade de seu destino ser decidido por cada um de nós, impondo uma humilhante votação praticamente unânime pela sua saída, é um dos segredos do sucesso desse tipo de programa.

Cada um de nós se torna um pequeno imperador romano que, com o polegar para baixo, determina a morte do perdedor.

 

O circo nosso de cada dia

No mundo atual, não é preciso ser uma grande emissora de TV ou um presidente da República para armar um circo. Com as redes sociais, qualquer um pode ser dono de um picadeiro, apresentador e artista.

Infelizmente, a maioria dessas apresentações é de baixíssima qualidade. Em uma sociedade cada vez mais dependente de espetáculos, de atos teatrais, de bufões e de fanfarronices, quanto pior, melhor.

Isso explica a ascensão e queda das diferentes redes sociais. Quem aqui se lembra do Orkut, que nasceu como um interessante experimento social e terminou com um nível baixíssimo das publicações? O mesmo aconteceu com o Facebook, que cresceu diante do declínio daquele concorrente, mas, há muitos anos, vem sofrendo com a piora das conversas ali. Criou-se até o neologismo que diz que o Facebook foi “orkutizado”. O mesmo aconteceu com o Twitter, o Instagram e até o LinkedIn, uma rede que até o início de 2018 resistia a esse processo.

Esse raciocínio pode parecer elitista e, de certa forma, é mesmo. Quanto mais sucesso uma plataforma digital faz, mais ela se parece à população que representa. Oras, se essa população aprecia ver o sangue de quem não gosta ou prefere conversas com a profundidade de um pires, para poder esquecer de seus próprios problemas, aos poucos as redes passarão a oferecer isso.

Isso é uma tragédia anunciada! Quando as pessoas não saem do mundo digital, sendo profundamente influenciadas pelo que veem ali, o discurso raso anestesia todo mundo, fazendo com que deixem seus problemas para lá (sem resolvê-los), dedicando-se apenas à “diversão”.

O circo se torna muito mais importante que o pão!

São nessas horas que os grupos de poder deitam e rolam! Enquanto a massa cega se diverte, eles podem fazer o que quiserem, até mesmo se preocupar menos em dar o pão.

Precisamos resgatar o nosso senso crítico, autoestima e coletividade. Sem eles, logo seremos nós mesmos a alimentar os leões, para o deleite dos que sobrarem.