sociedade

Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, que acaba de aprovar a Lei da Inteligência Artificial - Foto: PE/Creative Commons

Europa regulamenta a IA protegendo a sociedade e sem ameaçar a inovação

By | Tecnologia | No Comments

O Parlamento Europeu aprovou, na quarta passada (13), a Lei da Inteligência Artificial, uma legislação pioneira que visa a proteção da democracia, do meio ambiente e dos direitos fundamentais, enquanto promove o desenvolvimento dessa tecnologia. As novas regras, que devem entrar em vigor ao longo dos próximos dois anos, estabelecem obrigações para desenvolvedores, autoridades e usuários da IA, de acordo com potenciais riscos e impacto de cada aplicação.

Na semana anterior, a Europa já havia aprovado uma lei que regula a atuação das gigantes da tecnologia, favorecendo a competição. Tudo isso consolida a vanguarda do continente na organização do uso do mundo digital para proteger e beneficiar a sociedade, inspirando leis pelo mundo. O maior exemplo é a GDPR, para proteção de dados, que no Brasil inspirou a LGPD, nossa Lei Geral de Proteção de Dados.

Legislações assim se tornam necessárias à medida que a digitalização ocupa espaço central em nossas vidas, transformando profundamente a sociedade. Isso acontece desde o surgimento da Internet comercial, na década de 1990. De lá para cá, cresceu com as redes sociais, com os smartphones e agora com a inteligência artificial.

O grande debate em torno dessas regras é se elas podem prejudicar a sociedade, ao atrapalhar o desenvolvimento tecnológico. A preocupação é legítima, mas ganha uma dimensão muito maior que a real por influência dessas empresas, que se tornaram impérios por atuarem quase sem regras até agora, e gostariam de continuar assim.

Infelizmente essas big techs abusaram dessa liberdade, sufocando a concorrência e criando recursos que, na prática, podem prejudicar severamente seus usuários. Portanto, essas leis não devem ser vistas como ameaças à inovação (que continuará existindo), e sim como necessárias orientações sociais para o uso da tecnologia.


Veja esse artigo em vídeo:


A nova lei proíbe algumas aplicações da IA. Por exemplo, o uso de câmeras fica restrito, sendo proibido o “policiamento preditivo”, em que a IA tenta antecipar um crime por características e ações das pessoas. Também são proibidos a categorização biométrica e a captação de imagens da Internet ou câmeras para criar bases de reconhecimento facial. A identificação de emoções em locais públicos, a manipulação de comportamentos e a exploração de vulnerabilidades tampouco são permitidos.

“O desafio é garantir que tecnologias de vigilância contribuam para a segurança e bem-estar da sociedade, sem prejuízo das liberdades civis e direitos individuais”, explica Paulo Henrique Fernandes, Legal Ops Manager no Viseu Advogados. “Isso requer um diálogo contínuo para aprimoramento de práticas e regulamentações que reflitam valores democráticos e éticos”, acrescenta.

A lei também disciplina outros sistemas de alto risco, como usos da IA em educação, formação profissional, emprego, infraestruturas críticas, serviços essenciais, migração e Justiça. Esses sistemas devem reduzir os riscos, manter registros de uso, ser transparentes e ter supervisão humana. As decisões da IA deverão ser explicadas aos cidadãos, que poderão recorrer delas. Além disso, imagens, áudios e vídeo sintetizados (os deep fakes) devem ser claramente rotulados como tal.

A inovação não fica ameaçada pela lei europeia, porque ela não proíbe a tecnologia em si, concentrando-se em responsabilidades sobre aplicações que criem riscos à sociedade claramente identificados. Como a lei prevê um diálogo constante entre autoridades, desenvolvedores, universidades e outros membros da sociedade civil, esse ambiente pode até mesmo favorecer um desenvolvimento sustentável da IA, ao criar segurança jurídica a todos os envolvidos.

A nova legislação também aborda um dos temas mais polêmicos do momento, que é o uso de conteúdos de terceiros para treinar as plataformas de IA. Os donos desses sistemas vêm usando tudo que podem coletar na Internet para essa finalidade, sem qualquer compensação aos autores. A lei aprovada pelo Parlamento Europeu determina que os direitos autorias sejam respeitados e que os dados usados nesse treinamento sejam identificados.

 

Evitando Estados policialescos

Um grande ganho da nova lei europeia é a proteção do cidadão contra o próprio Estado e seus agentes. A tecnologia digital vem sendo usada, em várias partes do mundo, para monitorar pessoas e grupos cujas ideias e valores sejam contrárias às do governo da vez, uma violação inaceitável a direitos fundamentais, além de criar riscos enormes de injustiças por decisões erradas das máquinas.

Em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, muitas pessoas foram presas por terem sido confundidas pelos sistemas com criminosos. Em São Paulo, a primeira proposta do programa Smart Sampa, implantado em 2023 pela Prefeitura e que monitora os cidadãos com milhares de câmeras, previa que o sistema indicasse à polícia pessoas “em situação de vadiagem”, seja lá o que isso significasse.

A ficção nos alerta há muito tempo sobre os problemas desses abusos. O filme “Minority Report” (2002), por exemplo, mostra que mesmo objetivos nobres (como impedir assassinatos, nessa história) podem causar graves danos sociais e injustiças com a tecnologia. E há ainda os casos em que as autoridades deliberadamente a usam para controlar os cidadãos, como no clássico livro “1984”, publicado por George Orwell em 1949.

O Congresso brasileiro também estuda projetos para regulamentar a inteligência artificial. O mais abrangente é o Projeto de Lei 2.338/2023, que propõe o Marco Legal da Inteligência Artificial. “Enquanto a União Europeia estabeleceu um quadro regulatório detalhado e abrangente, focando na gestão de riscos associados a diferentes usos da IA, o Brasil ainda está definindo seu caminho regulatório, com um enfoque aparentemente mais flexível e menos prescritivo”, explica Fernandes.

É inevitável a profunda transformação que a inteligência artificial já promove em nossa sociedade, um movimento que crescerá de maneira exponencial. Os benefícios que ela traz são imensos, mas isso embute também muitos riscos, especialmente porque nem os próprios desenvolvedores entendem tudo que ela vem entregando.

Precisamos estar atentos também porque muitos desses problemas podem derivar de maus usos da IA, feito de maneira consciente ou não. Por isso, leis que regulamentem claramente suas utilizações sem impedir o desenvolvimento são essenciais nesse momento em que a colaboração entre pessoas e máquinas ganha um novo e desconhecido patamar. Mais que aspectos tecnológicos ou de mercado, essas legislações se tornam assim verdadeiros marcos civilizatórios, críticos para a manutenção da sociedade.

 

Criada por IA, Ren Xiaorong é a âncora do telejornal “Diário do Povo”, controlado pelo governo chinês - Foto: reprodução

IA agora produz e publica notícias, aumentando os riscos de desinformação

By | Jornalismo, Tecnologia | No Comments

O que você sentiria se o presidente da República telefonasse a você para lhe convencer de algo? Ou se alguém bem próximo, como um sobrinho ou até um filho, enviasse um áudio pedindo dinheiro? Muita gente desconfiaria que se trata de um golpe. Mas o rápido avanço da inteligência artificial está tornando esse tipo de engodo cada vez mais crível, fazendo vítimas em todos os estratos sociais.

Portanto, cuidado ao gritar que jamais cairá em algo assim. Por muito menos, todo mundo já acreditou em alguma fake news!

A ameaça cresce quando se observa que o uso da IA vai muito além da produção de textos, áudios e vídeos bem-feitos. Os robôs agora constroem sequências de notícias falsas sobre temas que lhes forem solicitados. Além disso, eles as distribuem de maneiras cada vez mais criativas, até como se fossem jornalistas humanos.

Não por acaso, em janeiro, o Fórum Econômico Mundial apontou a desinformação potencializada pela inteligência artificial como o maior risco que a humanidade enfrentará nos próximos anos.

As big techs, responsáveis pela criação dessas plataformas, estão se mexendo. No mesmo Fórum, Nick Clegg, presidente de assuntos globais da Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), anunciou que a empresa está trabalhando com os principais nomes do setor para criar mecanismos que identifiquem claramente que um conteúdo foi sintetizado por IA. O executivo classificou a iniciativa como “a tarefa mais urgente” da indústria tecnológica atualmente.

Já passamos há anos do ponto em que as versões ficaram mais “importantes” para o público que os fatos, e falhamos miseravelmente no combate a isso, com consequências desastrosas. Nesse ano, com mais de 2 bilhões de pessoas votando em 58 países, o desafio de todos passa a ser não apenas resgatar o valor da verdade, como também serem capazes de identificá-la.


Veja esse artigo em vídeo:


Isso já acontece, inclusive onde estão as sedes das big techs: os EUA. O país começou 2024 com a polarização nas alturas pela eleição presidencial em novembro, que deve colocar novamente o atual presidente, Joe Biden, frente a seu antecessor, Donald Trump. O primeiro já vem sendo vítima de vídeos falsos desde o ano passado.

Recentemente, eleitores do Estado de New Hampshire receberam telefonemas com a voz de Biden enganando-os para não votarem na eleição primária local. Isso fez com que o governo proibisse o uso de IA para simular vozes em ligações automáticas no país.

Legislações costumam chegar atrasadas e muitas vezes são ineficientes, diante da velocidade da inovação. O debate sobre regulamentar redes sociais e agora a inteligência artificial vem deixando claro que se focar nas tecnologias é infrutífero, devendo se concentrar na responsabilização dos desenvolvedores e dos usuários que usam esses recursos indevidamente.

O grande problema é que, com ou sem regras claras, os vilões –sejam empresas ou usuários– continuam fazendo o que bem entendem para garantir seus lucros ou outros objetivos. A IA deve facilitar esse processo ainda mais, e eles sabem disso.

A imprensa historicamente desempenha o papel de proteger a sociedade desse tipo de abuso, mas ela própria vem sendo impactada pela inteligência artificial, seja em seus próprios processos, seja na concorrência de “pseudojornalistas digitais” que tentam enganar o público.

O Reuters Institute divulgou em janeiro um detalhado estudo sobre as perspectivas para esse ano sobre jornalismo, mídia e tecnologia. O documento reconhece esses desafios, destacando que a maioria do conteúdo na Internet será produzido por IA já em 2026. Segundo os pesquisadores, isso exige que jornalistas e empresas noticiosas repensem seu papel e propósito urgentemente.

 

“Jornalistas sintéticos”

Essas empresas já observam queda na sua audiência vinda de redes sociais, que passaram a privilegiar criadores no estilo TikTok ao invés de jornalismo, pois isso lhes favorece. O desafio do jornalismo aumenta com o crescimento das “Experiências Generativas de Busca”, um recurso de buscadores como Google e Bing, em que a IA generativa redige parágrafos que explicam brevemente o que o usuário procura. Com isso, ele não precisa mais visitar as páginas de onde as informações foram tiradas.

Em outras palavras, os veículos de comunicação alimentam essas plataformas e não ganham nem mesmo a visita do usuário em troca. É quase como se cada um de nós agora tivesse um “jornalista sintético” a nossa disposição para nos explicar qualquer assunto.

Parece ótimo, mas isso embute um risco enorme: esses parágrafos podem misturar alegremente informações jornalísticas de qualidade com fake news bizarras. Portanto, podem se converter em poderosas ferramentas de desinformação, além de achatar a audiência dos veículos de comunicação.

Pesquisadores acreditam que, nesse ano, plataformas de inteligência artificial também passem a produzir grandes volumes de desinformação, não mais dependendo de comando individuais, mas seguindo diretrizes mais amplas. Como a publicação é automática, isso pode inundar as redes sociais com informações falsas, que soterrariam o conteúdo jornalístico diante dos algoritmos. Além disso, países como China e até Venezuela já usam avatares ultrarrealistas que se passam por jornalistas humanos e despudoradamente leem notícias que lhes forem ordenadas.

O relatório do Reuters Institute indica que as empresas de comunicação pretendem reforçar o contato direto com seu público, em detrimento das plataformas digitais. Mas isso pode afastá-las ainda mais de sua audiência mais jovem e menos instruída, que se sente satisfeita com as notícias geradas por IA.

A inteligência artificial é uma ferramenta fabulosa e estamos em um caminho sem volta para sua adoção em todos os setores da economia, inclusive na comunicação. Apesar de todos esses desafios, ela também oferece muitos ganhos ao jornalismo, se bem usada.

O risco a que todos nós –e não apenas jornalistas– temos que estar atentos é a possibilidade de decisões básicas da sociedade civil, como em quem votar, sejam sequestradas por robôs sem ética. As empresas de comunicação não podem repetir com a IA o erro que cometeram ao desprezar o poder das redes sociais, quando ainda estavam começando. Precisam compreender e se apropriar dessa tecnologia, e ajudar toda a sociedade a fazer o mesmo.

Caso contrário, seremos cada vez mais cidadãos teleguiados.

 

Para Salvador Dalí, “você tem que criar a confusão sistematicamente; isso liberta a criatividade” - Foto: Allan Warren/Creative Commons

Não “terceirize” sua criatividade para as máquinas!

By | Tecnologia | No Comments

Quando o ChatGPT foi lançado, em 30 de novembro de 2022, muita gente disse que, com ele, as pessoas começariam a ficar “intelectualmente preguiçosas”, pois entregariam à inteligência artificial até tarefas que poderiam fazer sem dificuldade. De lá para cá, observamos mesmo muitos casos assim, inclusive com resultados desastrosos. Mas o que também tenho observado é algo mais grave, ainda que mais sutil: indivíduos “terceirizando” a sua criatividade para as máquinas.

Quando fazemos um desenho, tiramos uma foto, compomos uma música ou escrevemos um texto, que pode ser um singelo post para redes sociais, exercitamos habilidades e ativamos conexões neurológicas essenciais para o nosso desenvolvimento. Ao entregar essas atividades à máquina, essas pessoas não percebem o risco que correm por realizarem menos essas ações.

Há um outro aspecto que não pode ser ignorado: a nossa criatividade nos define como seres humanos e como indivíduos. Por isso, adolescentes exercitam intensamente sua criatividade para encontrar seu lugar no mundo e definir seus grupos sociais.

A inteligência artificial generativa é uma ferramenta fabulosa que está apenas dando seus passos iniciais. Por mais que melhore no futuro breve (e melhorará exponencialmente), suas produções resultam do que essas plataformas aprendem de uma base gigantesca que representa a média do que a humanidade sabe.

Ao entregarmos aos robôs não apenas nossas tarefas, mas também nossa criatividade, ameaçamos nossa identidade e a nossa humanidade. Esse é um ótimo exemplo de como usar muito mal uma boa tecnologia. E infelizmente as pessoas não estão percebendo isso.


Veja esse artigo em vídeo:


Assim como nossa carga genética, algo que nos diferencia dos outros indivíduos são nossas ideias. Apesar de fazermos isso naturalmente, ter uma ideia original é um processo complexo, que combina tudo que aprendemos em nossa vida com os estímulos que estivermos recebendo no momento. Além disso, ela é moldada por nossos valores, que são alinhados com os grupos sociais a que pertencemos. E nossa subjetividade ainda refina tudo isso.

Mesmo a mais fabulosa inteligência artificial possui apenas a primeira dessas etapas para suas produções, que é o que aprendeu de sua enorme base de informações coletadas das mais diferentes fontes. É por isso que a qualidade do que produz depende implicitamente da qualidade dessas fontes.

Alguns argumentam que a inteligência artificial também pode desenvolver valores a partir de sua programação, dos dados que consome e da própria interação com os usuários. De fato, um dos maiores problemas dessa tecnologia são os vieses que acaba desenvolvendo, o que piora suas entregas.

Com valores, a máquina se aproxima mais do processo criativo humano. Mas a inteligência artificial ainda não pode ser chamada de criativa, justamente pela etapa final, conduzida pela nossa subjetividade. Os padrões que aprendemos em nossa história de vida única nos permitem ir além de simples deduções lógicas no processo criativo. Para as máquinas, por outro lado, esses mesmos padrões tornam-se limitadores.

Gosto de pensar que o processo criativo é algo que nos conecta com algo sublime, alguns diriam com algo divino. Quando escrevo, por exemplo, um artigo como esse, combino grande quantidade de informações que coletei para essa tarefa com o que aprendi ao longo da minha vida. Mas a fagulha criativa que faz com que isso não seja uma composição burocrática e chata (assim espero) só acontece ao me abrir intensamente para minha sensibilidade.

Jamais entregaria isso a uma máquina, pois isso me define e me dá grande prazer!

 

Nós nos tornaremos máquinas?

Em seu livro “Tecnologia Versus Humanidade” (The Futures Agency, 2017), Gerd Leonhard questiona, anos antes do ChatGPT vir ao sol, como devemos abraçar a tecnologia sem nos tornarmos parte dela. Para o futurólogo alemão, precisamos definir quais valores morais devemos defender, antes que o ser humano altere o seu próprio significado pela interação com as máquinas.

Essas não são palavras vazias. Basta olhar nosso passado recente para ver como a nossa interação incrivelmente intensa com a tecnologia digital nos transformou nos últimos anos, a começar pela polarização irracional que fraturou a sociedade.

O mais terrível disso tudo é que as ideias que nos levaram a isso não são nossas, e sim de grupos que se beneficiam desse caos. Eles souberam manipular os algoritmos das redes sociais para disseminar suas visões, não de maneira óbvia e explícita, mas distribuindo elementos aparentemente não-relacionados (mas cuidadosamente escolhidos) para que as pessoas concluíssem coisas que interessavam a esses poderosos. E uma vez que essa conclusão acontece, fica muito difícil retirar essa ideia da cabeça do indivíduo, pois ele pensa que ela é genuinamente dele.

Se as redes sociais se prestam até hoje a distorcer o processo de nascimento de ideias, a inteligência artificial pode agravar esse quadro na etapa seguinte, que é a nutrição dessas mesmas ideias. Como uma plantinha, elas precisam ser regadas para que cresçam com força.

Em um artigo publicado na semana passada, a professora da PUC-SP Lucia Santaella, autoridade global em semiótica, argumenta que o nosso uso da inteligência artificial generativa criou um novo tipo de leitor, que ela batizou de “leitor iterativo”. Afinal, não lemos apenas palavras: lemos imagens, gráficos, cores, símbolos e a própria natureza.

Com a IA generativa, entramos em um processo cognitivo inédito pelas conversas com essas plataformas. Segundo Santaella, o processo iterativo avança por refinamentos sucessivos, e os chatbots respondem tanto pelo que sabem, quanto pelos estímulos que recebem. Dessa forma, quanto mais iterativo for o usuário sobre o que deseja, melhores serão as respostas.

Isso reforça a minha proposta original de que não podemos “terceirizar” nossa criatividade para a inteligência artificial. Até mesmo a qualidade do que ela nos entrega depende do nível de como nos relacionamos com ela.

Temos que nos apropriar das incríveis possibilidades da inteligência artificial, uma ferramenta que provavelmente potencializará pessoas e empresas que se destacarão nos próximos anos. Mas não podemos abandonar nossa criatividade nesse processo. Pelo contrário: aqueles que mais se beneficiarão das máquinas são justamente os que maximizarem a sua humanidade.

 

Ilustração: Creative Commons

Esse será de novo o ano da inteligência artificial, mas de uma forma diferente

By | Tecnologia | No Comments

Quando 2022 começou, o mundo da tecnologia só falava de metaverso, grande promessa incensada por Mark Zuckerberg, que até trocou o nome de sua empresa de Facebook para Meta. Mas, passados 12 meses, nada verdadeiramente útil aconteceu em torno dele. Já 2023 começou com a inteligência artificial ocupando os grandes debates tecnológicos, e, ao final do ano, ela superou todas as expectativas. Agora, que estamos começando 2024, ressurge a pergunta: esse será o ano do que, no cenário tecnológico?

Conversei com diferentes especialistas e executivos e a resposta passa novamente pela inteligência artificial. Mas nada será como era antes! O que aconteceu em 2023 e deixou o mundo de queixo caído ficará para trás como iniciativas embrionárias, quase protótipos. Os entrevistados foram unânimes em afirmar que o ano que passou foi de aprendizado e que agora, em 2024, o mundo deve começar a ver a inteligência artificial movendo produtos realmente profissionais.

Outras mudanças em curso se consolidarão a reboque disso. O mercado de trabalho continuará sendo impactado, com oportunidades para profissionais mais atualizados e ameaças para quem permanece em tarefas repetitivas. Além disso, a liderança de TI ocupará cada vez mais o espaço de decisão de negócios, e questões éticas do uso da tecnologia ganharão destaque no cotidiano empresarial.

Esse será o ano em que a inteligência artificial se tornará verdadeiramente produtiva!


Veja esse artigo em vídeo:


“Quando eu olho 2024, continua sendo um ano de inteligência artificial, mas será um ano de muito mais inteligência de transformar o caso de uso em realidade”, afirma Thiago Viola, diretor de Inteligência Artificial e Dados da IBM Brasil. “As empresas vão começar a amadurecer, para garantir que as soluções funcionarão, que não vão ‘alucinar’, que não vão dar nenhum problema.”

“Em 2023, a gente teve alguns ‘brinquedinhos’, não eram ainda algo que se pudesse chamar de uma aplicação corporativa”, explica Cassio Dreyfuss, vice-presidente de análise e pesquisa do Gartner Brasil. “Em 2024, isso vai decolar e você tem que estar preparado para isso!”

Essa também é a percepção de Marcelo Ciasca, CEO da Stefanini. Para ele, “apesar de em 2023 a inteligência artificial ter sido a pauta principal em termos de tecnologia, ninguém sabia exatamente ainda como aplicá-la efetivamente.”

“’Automação’ é uma palavra importante para o ano”, sugere Gilson Magalhães, presidente da Red Hat Brasil. Apesar do deslumbramento que a IA provocou em 2023, as empresas passam a entender que ela é uma ferramenta para processos mais robustos e poderosos. “A automação vai entrar mais nas casas, melhorar nossa percepção de temas pessoais, mas a gente vai ver também automação industrial, no campo, fabril, a automação entrando como uma grande meta”, acrescenta.

A OpenAI, criadora do afamado ChatGPT, deu um passo importante nessa direção no final de 2023, ao liberar a possibilidade de seus usuários pagantes criarem os seus próprios assistentes virtuais, especializados em um tema e alimentados com dados próprios. Esse é o prelúdio de inteligências artificiais capazes de realizar tarefas mais amplas a partir de comandos complexos, conectando-se a diferentes serviços e até tomando decisões em nome do usuário.

A primeira vez que vi isso foi ainda em novembro de 2019, em uma demonstração da Microsoft, Adobe, Accenture e Avanade. Em uma época que o ChatGPT parecia uma miragem, um sistema controlado por voz em frases muito simples comprava passagens aéreas, reservava hotéis e até pedia comida para o usuário. Mas o que mais me chamou a atenção foi que ele tomava decisões comerciais com base no que sabia do usuário, sem o consultar, como por exemplo, escolher em qual hotel faria a reserva e até pedir um sanduíche sem queijo, pois a pessoa era intolerante à lactose.

Perguntei na época qual a garantia que eu, como usuário, teria que essas decisões seriam as melhores para mim, e não para as empresas envolvidas. E isso toca em um ponto que deve nortear os sistemas com IA nos próximos anos: a ética! Questionei também quando poderíamos ter algo como aquilo disponível.

A resposta: por volta de 2024!

 

Máquinas éticas

“Haverá um encapsulado de gestão e governança muito mais forte do que vimos em 2023”, afirma Viola. Segundo o executivo, “será um ano que vai ter que realizar se preocupando com fatores éticos, de governança, de proteção da IA como um todo”.

Esse debate ganhou força em 2023 e deve se cristalizar em 2024. Não se quer uma tecnologia incrível que, para ser assim, passe por cima da privacidade ou ameace direitos e até o bem-estar das pessoas. A regulamentação da IA é um grande desafio, pois ela não deve coibir seu desenvolvimento, mas precisa encontrar maneiras de responsabilizar empresas e usuários por maus usos e descuidos na sua criação.

Esse cenário abre ótimas oportunidades a empresas e profissionais. “TI se transformou no grande divisor de águas de diferenciação das empresas”, explica Magalhães. “Se você tem uma boa TI, você se diferencia”, conclui.

Em uma vida cada vez mais digitalizada e dependente da IA para decisões pessoais e empresariais, essas equipes ficam ainda mais importantes. “A TI muda de papel: ao invés de receber requisitos para gerar soluções, vai fornecer, de uma maneira consultiva, recursos nas áreas de clientes”, explica Dreyfuss. Ciasca corrobora essa ideia: “isso não vai eliminar o emprego das pessoas, mas vai redirecionar muitos para que as pessoas tenham a capacidade de fazer isso de forma adequada.”

Não há dúvida de que será um ano estimulante e de desenvolvimentos exponenciais. Precisamos apenas nos manter atentos porque todas essas novidades galopantes, que tanto nos impressionam, acabam sendo difíceis de assimilar pela nossa humanidade (o que não deixa de ser emblemático). Não podemos achar que o fim justifica os meios e partir em uma corrida irresponsável, mas tampouco podemos ficar travados por temores de máquinas que nos dominem (ou coisas piores).

Cada vez mais, a inteligência artificial será nossa parceira pessoal e de negócios, e isso ficará mais consolidado e profissional em 2024. É hora de nos apropriarmos de todo esse poder, para nos beneficiarmos adequadamente do que bate a nossa porta!

 

Geoffrey Hinton, o “padrinho da IA”, que se demitiu do Google em maio para poder criticar livremente os rumos da IA - Foto: reprodução

Entusiastas da IA querem acelerar sem parar, mas isso pode fazê-la derrapar

By | Tecnologia | No Comments

Nesse ano, a inteligência artificial deixou de ser um interesse da elite tecnológica e conquistou o cidadão comum, virando tema até de conversas de bar. Muita gente agora a usa intensamente, criando tanto coisas incríveis, quanto enormes bobagens. Isso gerou uma excitação em torno da tecnologia, com grupos que propõem que seja desenvolvida sem nenhuma restrição ou controle, acelerando o máximo que se puder.

Isso pode parecer emocionante, mas esconde um tipo de deslumbramento quase religioso que de vez em quando brota no Vale do Silício, a meca das big techs, nos EUA. Um movimento especificamente vem fazendo bastante barulho com essa ideia. Batizado de “Aceleracionismo Efetivo” (ou “e/acc”, como se autodenominam), ele defende que a inteligência artificial e outras tecnologias emergentes possam avançar o mais rapidamente possível, sem restrições ou regulamentações.

Mas quem acelera demais em qualquer coisa pode acabar saindo da pista!

Eles desprezam pessoas que chamam de “decels” e “doomers”, aquelas preocupadas com riscos de segurança vindos de uma IA muito poderosa ou reguladores que querem desacelerar seu desenvolvimento. Entre eles, está Geoffrey Hinton, conhecido como o “padrinho da IA”, que no dia 1º de maio se demitiu do Google, para poder criticar livremente os caminhos que essa tecnologia está tomando e a disputa sem limites entre as big techs, o que poderia, segundo ele, criar “algo realmente perigoso”.

Como de costume, radicalismos de qualquer lado tendem a dar muito errado. A verdade costuma estar em algum ponto no meio de caminho, por isso todos precisam ser ouvidos. Então, no caso da IA, ela deve ser regulada ou seu desenvolvimento deve ser liberado de uma forma quase anárquica?


Veja esse artigo em vídeo:


O Aceleracionismo Efetivo surgiu nas redes sociais no ano passado, como uma resposta a outro movimento: o “Altruísmo Eficaz”, que se tornou uma força importante no mundo da IA. Esse último começou promovendo filantropia otimizada a partir de dados, mas nos últimos anos tem se preocupado com a segurança da sociedade, propondo a ideia de que uma IA poderosa demais poderia destruir a humanidade.

Já o aceleracionistas efetivos acham que o melhor é sair da frente e deixar a inteligência artificial crescer livre e descontroladamente, pois seus benefícios superariam muito seus eventuais riscos, por isso jamais deveria ser vista como uma ameaça. Para eles, as plataformas devem ser desenvolvidas com software open source, livre do controle das grandes empresas.

Em um manifesto publicado no ano passado, os aceleracionistas efetivos descreveram seus objetivos como uma forma de “inaugurar a próxima evolução da consciência, criando formas de vida impensáveis da próxima geração”. De certa forma, eles até aceitam a ideia de que uma “super IA” poderia ameaçar a raça humana, mas a defendem assim mesmo, pois seria “o próximo passo da evolução”.

Para muita gente, como Hinton, isso já é demais! Em entrevista ao New York Times na época em que deixou o Google, o pioneiro da IA disse que se arrependia de ter contribuído para seu avanço. “Quando você vê algo que é tecnicamente atraente, você vai em frente e faz”, justificando seu papel nessas pesquisas. Agora ele teria percebido que essa visão era muito inconsequente.

Portanto é um debate em torno da ética do desenvolvimento tecnológico e das suas consequências. Conversei na época sobre aquela entrevista de Hinton com Lucia Santaella, professora-titular da PUC-SP. E para ela, “a ética da inteligência artificial tem que funcionar mais ou menos como a da biologia, tem que ter uma trava! Se não, os filmes de ficção científica vão acabar se realizando.”

 

A dificuldade de se regular

Além da questão ética, outro ponto que contrapõe aceleracionistas efetivos e altruístas eficazes é a necessidade de se regular a inteligência artificial. Mas verdade seja dita, essa tecnologia está dando um banho nos legisladores. Isso porque ela evolui muito mais rapidamente do que eles são capazes de propor leis.

Podemos pegar, como exemplo, a União Europeia, que legisla de forma rápida e eficiente temas ligados à tecnologia. Em abril de 2021, ela apresentou um projeto de 125 páginas como “referência” na regulação da IA. Fruto de três anos de debates com especialistas de diferentes setores associados ao tema, Margrethe Vestager, chefe da política digital do bloco, disse que o documento estava “preparado para o futuro”.

Parecia ser isso mesmo, até que, em novembro do ano passado, a OpenAI lançou o ChatGPT e criou uma corrida frenética para se incluir a inteligência artificial generativa em todo tipo de sistema. E isso nem era citado na proposta europeia!

O processo de criação de uma nova lei de qualidade é naturalmente lento, pois exige muita pesquisa e debate. Mas se as coisas acontecerem como propõem os e/accs, os legisladores estarão sempre muito atrás dos desenvolvedores. Os primeiros não conseguem sequer entender a tempo o que os segundos estão criando e, justiça seja feita, mesmo esses não têm total certeza do que fazem.

Enquanto isso, Microsoft, Google, Meta, OpenAI e outras gigantes da tecnologia correm soltas para criar sistemas que lhes concederão muito poder e dinheiro. A verdade é que quem dominar a IA dominará o mundo nos próximos anos.

Os aceleracionistas efetivos afirmam que eles são o antídoto contra o pessimismo dos que querem regular a inteligência artificial, algo que diminuiria o ritmo da inovação, o que, para eles, seria o equivalente a um pecado. Mas quanto disso é real e quanto é apenas uma “atitude de manada” inconsequente?

Sou favorável que a IA se desenvolva ainda mais. Porém, se nenhum limite for imposto, ainda que de responsabilização quando algo der errado, as big techs farão o mesmo que fizeram com as redes sociais. E vejam onde isso nos levou!

Não podemos perder o foco em nossa humanidade, que nos permite distinguir verdade de mentira, certo de errado! Só assim continuaremos desenvolvendo novas e incríveis tecnologias, sem ameaçar a sociedade.

Afinal, a ética consciente é o que nos diferencia dos animais, e agora, pelo jeito, também das máquinas!


Antes de encerrar, gostaria de fazer uma nota pessoal. Ainda que discorde filosoficamente dos aceleracionistas efetivos, acho o debate válido, se feito de forma construtiva. Pessoas com pontos de vista diferentes encontram juntas boas soluções que talvez não conseguiriam sozinhas, justamente por terem visões parciais de um tema. Para isso, necessitamos de conhecimento e de vontade de fazer o bem. Esse é um dos motivos para eu iniciar em 2024 meu doutorado na PUC-SP, sob orientação de Lucia Santaella, para pesquisar o impacto da inteligência artificial na “guerra” pelo que as pessoas entendem como “verdade”, algo determinante em suas vidas.

 

Um dos problemas derivados da queda na confiança na imprensa é a crescente agressão a jornalistas – Foto: reprodução

As razões para mordermos a mão que nos alimenta

By | Jornalismo | No Comments

Um dos sinais da falência de uma sociedade é quando as pessoas deixam de acreditar nas instituições democráticas. Quando não se confia em nada ou em ninguém, perde-se a capacidade essencial de se buscar o bem comum com o outro. Por isso, pesquisas recentes do prestigioso instituto Pew Research Center, que demonstram a baixa confiança da população na imprensa, me impactam, mas não me surpreendem. E isso é um sintoma que deveria preocupar todo mundo.

Segundo os levantamentos, apenas 38% dos americanos adultos se informam “o tempo todo ou quase o tempo todo”. Além disso, só 15% acreditam “muito” e 46% “um pouco” nos veículos jornalísticos nacionais. Em compensação, 14% buscam notícias no TikTok (32% entre os que têm de 18 a 29 anos), que ainda fica atrás do Instagram (16%), do YouTube (26%) e do Facebook (30%).

O mesmo instituto já havia indicado que o aumento de informações nas redes sociais é inversamente proporcional a sua qualidade, e que o público que as utiliza como principal fonte de informação é menos engajado, informado e capaz de demonstrar bom discernimento, se comparado a quem se informa pela imprensa.

Pelas minhas observações, arriscaria dizer que temos números semelhantes no Brasil.

Todos perdem muito com esse divórcio entre a imprensa e seu público, e cada um tem seu papel e razões. Mas isso precisa ser revertido! As bolhas de pensamento único, que nos maltratam diariamente, impedem que vivamos em uma sociedade com cidadãos mais conscientes e capazes de se desenvolver.


Veja esse artigo em vídeo:


Há mau jornalismo hoje, como sempre houve, porém, há mais bom jornalismo que mau na mídia profissional. Entretanto parte da população aprendeu a ver só o que a desagrada, generalizando como se toda a imprensa fosse pouco confiável.

Vale notar que, até o início do século, não se questionava a importância do jornalismo para o desenvolvimento pessoal. Uma boa informação era um diferencial que resultava em melhores empregos e outras oportunidades na vida. Ler jornais era sinônimo de pertencer à elite intelectual, mesmo que não fosse da elite econômica. E ser jornalista era uma das profissões mais desejadas pelos jovens.

A grande diferença é que, com a ascensão das redes sociais, os veículos de comunicação deixaram de ser os únicos capazes de trazer notícias. Todos nós nos tornamos mídia e somos capazes de produzir enormes quantidades de informação (o que é muito diferente de notícia). Diante disso, muitos grupos de poder descobriram uma nova maneira de dominar as massas, mas, para isso, precisavam usar o meio digital para desacreditar a imprensa, que teima em lhes fiscalizar.

O combate à mídia pelos poderosos não é algo novo: apenas ganhou escala com o meio digital. Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, foi essencial para seu poder, ao criar uma máquina de silenciar a imprensa e vozes dissonantes. Décadas depois, o venezuelano Hugo Chávez contribuiu com o processo, criando a ideia de que, se a mídia fosse contra ele, seria “contra o povo”. E demonstrando que o combate à imprensa não segue ideologia, Donald Trump se notabilizou por ignorar solenemente a verdade e usar o meio digital para impor seus interesses como fatos.

O Brasil também deu suas contribuições. Lula, desde seu primeiro mandato, desqualifica a imprensa e tenta lhe impor seu “controle social”. Jair Bolsonaro, por sua vez, instituiu ataques explícitos a jornais e jornalistas, especialmente mulheres, incendiando a população contra a mídia.

Como resultado, as pessoas só querem ver conteúdos que afaguem seu ego e concordem com seus pensamentos. E essa é uma perigosa zona de conforto.

 

Desagradando seu público

Mas o jornalismo não é feito para agradar. Na verdade, se estiver desagradando alguém, deve estar fazendo um bom trabalho.

Todo governo gostaria de ter uma imprensa dócil. Mas, se fizer isso, não é jornalismo: é relações públicas. Ela deve informar e formar o cidadão e protegê-lo dos interesses de grupos políticos, econômicos ou ideológicos, fiscalizando o poder.

Como disse certa vez o grande cartunista e jornalista Millôr Fernandes, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados.”

Às vezes, o jornalismo deve desagradar até seu próprio público, para forçá-lo a sair daquela zona de conforto perversa. Mas quando tudo vira “pão e circo”, isso coloca os veículos em uma situação delicada: como fazer isso se as pessoas –cada vez mais intransigentes– já estão “com um pé para fora” do jornalismo?

Os veículos têm sua culpa, ao se desconectar dos anseios e da linguagem do público. A distribuição e até seu modelo de negócios também estão ultrapassados. Diante disso, não é de se estranhar que tão pouca gente confie no jornalismo e menos ainda esteja disposto a pagar por ele. Os veículos de comunicação e seu público não conseguem mais ler os sinais uns dos outros.

Permitam-me aqui uma analogia abusada: um animal de estimação amoroso pode morder quem o alimenta como forma extrema de comunicar seu descontentamento. Um dos principais motivos é o animal não entender os sinais do tutor. Nesse caso, fica difícil saber quem é o cachorro e quem é o tutor, pois público e imprensa dependem um do outro, e nenhum está conseguindo entender os sinais alheios.

Mas em tempos tão sombrios e confusos, ambos precisam reaprender isso. Como qualquer atividade humana, o jornalismo é imperfeito, e essa atual situação faz com que sua margem de erro esteja reduzidíssima. Ele precisa ouvir novamente as demandas e falar a linguagem do público.

As pessoas, por sua vez, precisam colaborar, reconhecendo que, sem jornalismo profissional, perderiam elementos essenciais no seu cotidiano. Não saberiam, por exemplo, dos escândalos do governo atual, do anterior e de qualquer outro, ou as diferentes perspectivas sobre a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e o Hamas. Não teriam se vacinado contra a Covid-19 (e muitíssimo mais gente teria morrido), e não conheceriam as potencialidades da inteligência artificial ou os riscos das redes sociais. Não saberiam dos bastidores dos filmes importantes, e nem compreenderiam a crise da Seleção Brasileira. Tudo isso se fala nas redes sociais, mas é o jornalismo que descobre, noticia e explica.

Não há atalho: a imprensa precisa se reconectar com o seu público e vice-versa. É preciso reconquistar a confiança perdida! Isso não se faz com “caça-cliques”, mas com seriedade e transparência.

O jornalismo não pode se render à lógica perversa das redes sociais, que disseminam ódio, intransigência e o pensamento único. A confiança é uma via de mão dupla e benéfica para toda sociedade. Mas ela só existe quando todos estiverem dispostos a falar e ouvir civilizadamente, sem morder a mão um do outro.

 

Alunos precisam de 20 minutos para se reconectar ao estudo depois de usar smartphones para outras coisas - Foto: RDNE/Creative Commons

Pais e educadores devem “fazer as pazes com o não” para combater excesso de telas

By | Educação | No Comments

Ganha força a tese de que crianças e adolescentes fazem um uso excessivo de telas na escola e em casa, e que isso provoca grandes prejuízos ao seu desenvolvimento. No dia 26 de julho, um relatório da Unesco (a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) destacou pela primeira vez o problema e como um quarto dos países já faz alguma restrição de celulares em sala de aula. Mas ainda se fala pouco sobre como professores sem autoridade e até coibidos por pais de alunos podem ser levados a contribuir com essa situação.

Isso aparece no recém-lançado estudo “Educando na era digital”, da consultoria educacional OPEE. Ele indica que 97% dos educadores brasileiros concordam que há “uso excessivo de telas sem acompanhamento”, mas paradoxalmente apenas 9,7% deles acham que elas devem ser proibidas na sala de aula.

O exagero digital dos jovens vai além da escola. Outra pesquisa, a TIC Kids Online Brasil, divulgada no dia 25 de outubro pelo Cetic.br (órgão de pesquisa ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil), indica que 95% dos brasileiros entre 9 e 17 anos estão online, e que isso acontece cada vez mais cedo: no ano passado, 24% tiveram seu primeiro acesso até os seis anos de idade; em 2015, eram 11% nessa faixa etária.

Todos esses fatos estão interligados e se retroalimentam. Enquanto pais e educadores não resgatarem a consciência de sua autoridade para impor limites aos mais jovens, esse quadro tende a se agravar. É impensável negar o acesso à tecnologia digital no nosso mundo hiperconectado, mas é preciso ensinar crianças e adolescentes a usarem-na de maneira construtiva e responsável.


Veja esse artigo em vídeo:


“Muitos educadores nem podem dizer ‘não’, porque a escola está muito refém da ‘carteirada’, no caso da escola particular, e até da agressão ou da humilhação, na escola pública”, afirma Leo Fraiman, mestre em psicologia educacional e autor da metodologia OPEE. “O professor hoje é tido, por muitas famílias, como um funcionário, um empregado seu, e não mais como uma autoridade.”

Segundo o psicoterapeuta, existe uma esquizofrenia entre famílias e escolas. As primeiras exigem das segundas o ensino de limites, de valores, de humanidade. Mas quando surge algum limite, até em uma simples nota baixa, os pais reagem negativamente.

“Viemos de um modelo mais rígido, de onde muitos adultos saíram ressentidos, até machucados emocionalmente”, explica o pesquisador. “E hoje, como pais, é como se quisessem se vingar das suas próprias feridas, superprotegendo os filhos.”

As telas de crianças e adolescentes são subprodutos dessa cultura. Muitos pais argumentam que elas desenvolvem, nos mais jovens, necessárias habilidades digitais, o que não deixa de ser verdade, desde que feito com orientação. Entretanto, o que se observa é que principalmente o celular se tornou um “companheiro” que ocupa o tempo dos pequenos, uma “babá eletrônica” (posto que foi ocupado pela TV há 30 anos) que falsamente desobriga os pais de dar mais atenção aos filhos.

Isso se reflete na escola, com pais exigindo a possibilidade de falar com seus filhos a qualquer momento, mesmo nas horas em que estiverem em aula. Com o smartphone, os alunos acabam impactados pelas incontáveis notificações, além da sedução das redes sociais, destacadas pela Unesco como fortes fatores de distração. E os alunos podem levar até 20 minutos para se concentrar novamente no que estavam aprendendo depois de usarem o smartphone para atividades não-educacionais.

É importante que fique claro que ninguém está dizendo que os jovens não devem usar a tecnologia, e sim que façam isso de forma comedida e sob orientação de adultos. A Unesco aponta que o excesso e a falta de critérios podem levar ao surgimento de problemas de alimentação, sono, saúde mental e saúde ocular.

 

Cyberbullying e outras agressões digitais

Outro estudo do Cetic.br, o TIC Educação, divulgado em 25 de setembro, indica que um terço dos professores brasileiros disseram que seus alunos pediram ajuda após terem sofrido assédio ou agressões pelo meio digital, ou terem suas fotos publicadas sem consentimento. Em um ano, os casos de vazamento de fotos saltaram de 12% para 26% e os de cyberbullying passaram de 22% para 34% dos estudantes. Esses números estão em linha com as observações dos educadores ouvidos pela pesquisa da OPEE: 80,9% deles acreditam que o acesso às telas favorece o cyberbullying.

É muito bom observar que os alunos recorrem a seus professores para lidar com problemas gravíssimos criados ou agravados pelo meio digital. Isso demonstra uma relação de confiança diante de algumas das maiores agressões que eles podem sofrer. Entretanto os professores precisam ter autonomia para atuar como necessário, até mesmo limitando o uso das telas e das redes sociais. A escola ganha também um novo papel, que é o de educar os pais no convívio digital, uma habilidade que possivelmente eles mesmos não dominem.

Fraiman alerta que estamos “contraindo uma dívida enorme para as próximas gerações” ao não as educar para um uso construtivo do meio digital, abrindo brechas para o surgimento de todos esses problemas educacionais e emocionais. E provoca: “diante de um mundo que vai ser cada vez mais competitivo, exigente, caro, acelerado, complexo, qual é a chance de uma criança, de um adolescente realmente se tornar ativo e inserido na sociedade e no mercado de trabalho, se ele for uma pessoa rasa, individualista, narcisista, acomodada e amedrontada?”

Isso vem de quebras de paradigmas sociais que a tecnologia continuamente nos impõe. As potencialidades oferecidas são fabulosas e surgem em escala exponencial, assim como problemas da nossa inadequação a tantas novidades. Começou com o surgimento da Internet comercial, foi seguida pela explosão das redes sociais e posteriormente dos smartphones. Agora a inteligência artificial é a bola da vez. É muito difícil absorver adequadamente tanta mudança!

A Unesco defende o uso de telas nas escolas, desde que claramente destinadas ao apoio ao ensino, e não como distração dos alunos. Além disso, nunca podem substituir o papel dos professores. Esses, por sua vez, precisam ter sua autonomia e autoridade resgatadas por boas políticas educacionais e pelas próprias instituições de ensino. Quanto às famílias, cabe a elas trabalharem em parceria com as escolas para a criação de limites a seus filhos, respeitando e valorizando os educadores.

A escola é um espaço de aquisição de conhecimento, mas também de respeito a diferenças e de fortalecimento de uma cidadania inclusiva, com um uso inteligente de todos os recursos disponíveis. Isso só acontecerá com a colaboração de todos os envolvidos, e nossos jovens precisam desesperadamente disso.

 

Metrô de São Paulo lotado após fracasso de “big techs” que revolucionariam a mobilidade urbana - Foto: Wilfredor / Creative Commons

Como as big techs querem substituir instituições da sociedade por tecnologia

By | Tecnologia | No Comments

Todos nós usamos produtos do Google, da Meta, da Apple e de outras “big techs”. De fato, eles facilitam enormemente a nossa vida e ainda são rotulados como “grátis”.

Sabemos que não há nada de graça nisso. A explicação tradicional é que pagamos por eles com nossos dados, que permitem que essas empresas ganhem dinheiro, por exemplo, nos entregando anúncios hiperpersonalizados. É o chamado “capitalismo de vigilância”.

Mas a ascensão da inteligência artificial e a guerra aberta que as “big techs” travam contra qualquer forma de limitação de suas atividades, como estamos vendo no Brasil no embate contra o “PL das Fake News”, revela que esse controle que elas têm sobre nós é muito mais complexo, a ponto de que muita gente as defende nesses casos. E a tentativa de regulação da inteligência artificial fará nosso fracasso em impor limites razoáveis às redes sociais parecer algo pífio.

O que essas empresas realmente desejam é uma liberdade não-regulada para, entre outras coisas, substituir instituições da sociedade em áreas como saúde, educação, transporte ou segurança por soluções tecnológicas que, segundo elas, superariam a “ineficiência” do que temos hoje. Ao ocupar um espaço tradicionalmente sob cuidados do Estado, alcançariam um poder inimaginável, muito maior que o atual.

Eles só não dizem que tudo nessa vida tem um custo. Esse não será pago com publicidade em nossos celulares. Então “como essa conta fecha”?


Veja esse artigo em vídeo:


O avanço da inteligência artificial é inevitável e muito bem-vindo: ela tem o potencial de oferecer à sociedade benefícios até então inimagináveis. Mas isso significará que entregaremos muitas de nossas escolhas às máquinas, que decidirão o que elas acreditam ser o melhor para cada um de nós.

Em uma sociedade já encharcada de algoritmos, eles passam a controlar muito de nossa vida, de maneiras que nem percebemos. Nós não temos a menor ideia de quais são suas regras que decidem cada vez mais por nós. Diante de tanto poder, a falta de transparência das “big techs” e de explicabilidade de seus produtos se torna inaceitável e perigoso para nossas vidas e para a democracia. É justamente isso que essas empresas lutam para manter, pois, se soubermos detalhadamente o funcionamento de seus algoritmos, elas perdem o poder que têm sobre os cidadãos.

Tudo isso vale para os algoritmos atuais, bem conhecidos e controlados pelas “big techs”. A inteligência artificial torna esse debate ainda mais importante, pois nem seus criadores entendem completamente as novas estratégias criadas pelas máquinas para solucionar problemas.

Se essas companhias lograrem criar a chamada “inteligência artificial geral”, aquela que não se limita mais a tarefas específicas e passa a se comportar de maneira semelhante à mente humana, tomando decisões sobre qualquer assunto, a situação pode ficar realmente dramática.

Imagine um sistema como esse que tenha assumido, com nosso consentimento, decisões críticas sobre a saúde pública. Em nome de deixar todo o sistema mais “eficiente”, ele pode passar a privilegiar cirurgias com mais chance de sucesso ou lucrativas, em detrimento das mais difíceis ou com menos ganhos. Mas todos merecem a chance de serem tratados, mesmo quem tem baixa possibilidade de sucesso. Essa é a visão humana de um médico, que uma máquina que acha que o fim justifica os meios pode ignorar.

Agora multiplique esses riscos acrescentando, na equação, segurança pública, educação e até economia de um país.

 

Nem sempre dá certo

O discurso do Vale do Silício enaltece o inegável poder transformador da tecnologia. É praticamente impossível viver hoje sem smartphones, buscadores ou redes sociais. Mas seus gurus adoram perpetuar as histórias de sucesso, enquanto ignoram os fracassos. E eles muitas vezes acontecem quando se tenta substituir uma instituição social por uma tecnologia.

Podemos pensar, como exemplo, no caso da Uber. Conceitualmente acho sua proposta muito interessante, mas ela parece “estar fazendo água”, particularmente no Brasil. Vocês devem se lembrar como a empresa chegou prometendo revolucionar a mobilidade urbana, como um substituto vantajoso ao transporte público, com suas corridas baratas e a possibilidade de se ganhar dinheiro dirigindo.

Foi um sucesso instantâneo: muita gente chegou a vender seu carro! Mas, para aquilo ser possível, a empresa queimava milhões de dólares em subsídios. Quando os investidores se cansaram de perder dinheiro e exigiram lucros, o modelo ruiu, com a consequente queda enorme na qualidade do serviço, que agora sentimos.

Porém o mais educativo desse exemplo é mostrar que nunca se propôs resolver o verdadeiro problema social, no caso as deficiências no transporte público. Substituía-se uma “gestão governamental ineficiente” por uma “solução tecnológica mágica”, cujo verdadeiro objetivo era sedimentar a dominância da empresa em seu setor. Quando a realidade bateu à porta, ficamos sem nada!

O grande desafio da nossa geração é tomar consciência de que somos cada vez mais dependentes da tecnologia e das empresas que as criam. Elas têm suas próprias agendas e narrativas de como estão melhorando e até “salvando” o mundo com seus produtos. Mas às vezes a sua necessidade de lucrar chega antes de salvarem qualquer coisa.

Não nos enganemos: como qualquer outra empresa, seu objetivo real é aumentar seus lucros, e, a princípio, não há nada de errado nisso. Mas esse objetivo não pode ser atingido às custas do desmantelamento das instituições da sociedade e dos mecanismos de proteção dos interesses da população.

Não estou propondo a interrupção do avanço tecnológico: ele é essencial para melhorarmos nossas vidas. Mas precisamos parar de acreditar candidamente que a tecnologia resolverá todos nossos problemas e melhorará magicamente a sociedade. Temos que ter consciência de como isso será feito e qual será o verdadeiro o custo social que pagaremos.

Tudo isso deve acontecer preservando os legítimos interesses das pessoas, o que muitas vezes conflitam com os dessas empresas. É por essas e outras que elas precisam ser reguladas. Elas não podem ser mais poderosas que os governos eleitos no mundo todo, nem mesmo substituir suas instituições.

 

Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura e jornalista, que chamou o jornalismo “o melhor ofício do mundo” - Foto: reprodução

Por que a imprensa e a sua liberdade deveriam interessar a você

By | Jornalismo | No Comments

Na quarta (7), comemora-se o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. O tema está “na boca do povo”, junto com a afamada liberdade de expressão. Ainda assim, pouca gente sabe o que é de fato ou para que serve, especialmente porque, de uns anos para cá, parte da população perdeu sua fé no jornalismo. Isso traz um enorme risco à sociedade! Por isso, aproveito a data para tentar explicar por que um bom relacionamento entre a imprensa e seu público é essencial para todos.

Em primeiro lugar, é preciso definir para quem o jornalista trabalha. Não é para nenhum governo, nem empresas, nem mesmo anunciantes: é para seu público! Ficar sem anunciantes pode quebrar um veículo, especialmente quem ainda adota um modelo de negócios “mais tradicional”. Entretanto, ficar sem público é a sentença de morte para qualquer veículo. Ele é a sua razão de existência!

Como pretendo demonstrar, uma imprensa livre, vigorosa e comprometida é condição para uma sociedade vibrante e próspera. Aí mora nosso problema! Parte dessa desconexão atual se deve a alguns profissionais e veículos de comunicação esquecerem para quem trabalham.

Isso me leva a outro tema que se popularizou recentemente em meio a muita desinformação: a busca pela objetividade. Diante da confusão que muitos colegas fazem em torno dela, seus detratores aproveitam para exigir algo que, se fosse possível alcançar daquela forma, seria um grande desserviço à população.


Veja esse artigo em vídeo:


De uns anos para cá, muitos colegas abraçaram a ideia de que, pela sua própria humanidade, é impossível ser totalmente isento e objetivo. Isso é verdade: todas a pessoas são movidas por paixões e, portanto, sempre teremos nossas preferências em qualquer tema. Mas, no jornalismo, isso não pode servir para afrouxar a busca da verdade incluindo pontos de vista conflitantes com os seus. Ao fazer isso, muitos jornalistas caem em uma militância, seja real ou apenas aparente.

Isso dá munição àqueles que se beneficiam com o enfraquecimento da imprensa, pois vivem da mentira e da desinformação. Eles propagam a ideia de que o jornalismo deveria se limitar a “contar os fatos”, deixando que as pessoas tirassem suas conclusões. Na verdade, só querem a liberdade para distorcer esses fatos brutos para criarem narrativas que lhes sejam favoráveis.

É nessa hora que o bom jornalismo brilha e protege a sociedade! Ele não pode se limitar a “contar os fatos”: ele precisa explicá-los, contextualizá-los, sempre norteado pelo interesse do público e pela “verdade possível”. A combalida objetividade é sua ferramenta! Não aquela utópica, que só existiria em uma máquina, mas a melhor imparcialidade dentro das limitações humanas e de esforços sinceros.

Isso cria uma armadilha. Na ânsia de apresentar todos os lados de um tema com igual peso, jornalistas podem ironicamente criar visões distorcidas da realidade, colocando, lado a lado, completos absurdos e fatos comprovados. A imprensa pode mencionar as bobagens se também explicar, de maneira equilibrada, porque aquilo não deve ser considerado. Não podem cair na arapuca da falsa equivalência!

Quando falha nessa tarefa, permite o florescimento de teorias da conspiração, que podem ser catastróficas para a humanidade. Um exemplo é a de que vacinas seriam ineficazes e até perigosas, que recebeu um espaço muito maior que o devido na imprensa em nome de “ouvir o outro lado”. Por isso, muita gente acredita nessa aberração, e alguns grupos políticos até se beneficiaram disso.

A pandemia de Covid-19 foi uma dolorosa lição. Um enorme contingente desinformado deixou de se vacinar e, por conta disso, morreu. A situação só não foi mais dramática porque, diante da tragédia em curso, a maioria dos jornalistas e veículos assumiu seu papel e informou corretamente a população para que se vacinasse.

 

Fazendo as perguntas certas

Podemos, nesse ponto, aprender algo com o afamado ChatGPT. Afinal, obtemos boas respostas dele se fizermos boas perguntas, e vice-versa.

Bons jornalistas são justamente treinados para fazer as perguntas certas. Por isso, o valor da reportagem precisa ser resgatado. Uma boa entrevista é uma ótima conversa; uma ótima entrevista é uma sedução em busca da verdade. Deve existir uma ânsia genuína de querer aprender algo, com a mente aberta.

Jornalistas são contadores de histórias da vida real. Isso não quer dizer que têm que agradar alguém, pois o mundo nem sempre é bonito. Mas uma verdade feia é melhor que uma mentira agradável! Costumo dizer que, se fossem contos de fadas, jornalistas os contariam como os Irmãos Grimm, e não como as adaptações fáceis da Disney.

Vivemos em um mundo de obviedades e mesmice. Elas nos embrutecem, eliminam nossas individualidades e nos transformam em massa de manobra. O jornalismo protege a sociedade ao romper esse ciclo, contando as “histórias por trás das histórias”. Como escreveu em 1851 o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), “importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê.”

Ao contrário do que muitos imaginam, não é um trabalho fácil de um bando “apenas contando o que viu e dando sua opinião”. Em 1996, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Nobel de Literatura e também jornalista, disse, sobre o jornalismo, que chamou de “o melhor ofício do mundo”, que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver apenas para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cujo trabalho se encerra a cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede um momento de paz até recomeçar com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Por isso, a liberdade de imprensa é um mecanismo celebrado em todas as democracias. Os jornalistas não são perfeitos (como ninguém é), mas são a última frente de resistência da sociedade contra os diferentes abusos de poder e, por isso, precisam ser protegidos.

Na verdade, precisamos ir além. Mais que “contar fatos”, esse trabalho deve ser encharcado de inteligência e de boa vontade, vibrando com as pessoas que formam o público. Elas, por sua vez, devem apoiar esses profissionais, em uma bem-vinda simbiose.

Fora disso, não há jornalismo: resta apenas a barbárie das redes sociais. E aí salve-se quem puder!

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse estar “um pouco assustado” com a inteligência artificial – Foto: Steve Jennings / Creative Commons

Como lidar com os algoritmos que se sobrepõem à verdade

By | Tecnologia | No Comments

Três acontecimentos da semana passada, que provavelmente passaram despercebidos da maioria da população, envolvem tecnologias de enorme impacto em nossas vidas. O primeiro foi uma audiência no STF (Supremo Tribunal Federal) que debateu, na terça, o Marco Civil da Internet. Na quarta, mais de mil pesquisadores, executivos e especialistas publicaram um manifesto solicitando que pesquisas de inteligência artificial diminuam o ritmo, por representarem “grandes riscos para a humanidade”. Por fim, na sexta, a Itália determinou que o ChatGPT, plataforma de produção de textos por inteligência artificial da OpenAI, fosse bloqueado no país.

Em comum, os três tratam de tecnologias existentes há anos, mas com as quais paradoxalmente ainda temos dificuldade de lidar: as redes sociais e a inteligência artificial. E ambas vêm se desenvolvendo exponencialmente em seu poder para distorcer a realidade a nossa volta, muitas vezes contra nossos interesses e a favor dos das empresas que criam essas plataformas.

Não é um exagero! As redes sociais, usadas por quase 5 bilhões de pessoas, definem como nos relacionamos, nos divertimos, conversamos e nos informamos, manipulando-nos para consumirmos o que os algoritmos consideram melhor (mesmo não sendo). A “inteligência artificial generativa”, que ganhou os holofotes no ano passado e tem no ChatGPT sua estrela, produz conteúdos incríveis, mas que podem embutir grandes imprecisões que as pessoas aceitam alegremente como fatos.

As preocupações que se impõem são como podemos aproveitar o lado bom desses serviços, enquanto nos protegemos de potenciais efeitos nocivos, além de como responsabilizar seus produtores, algo que não acontece hoje!


Veja esse artigo em vídeo:


As redes sociais já são nossas velhas conhecidas. Segundo o relatório “Digital 2023 Global Overview Report”, da consultoria americana We Are Social, os brasileiros passam uma média de 9 horas e 32 minutos na Internet por dia, das quais 3 horas e 46 minutos são em redes sociais. Nos dois casos, somos os vice-campeões mundiais.

Não é surpresa para ninguém que sejamos manipulados por elas, em maior ou menor escala. Segundo a mesma pesquisa, 65,2% dos brasileiros se dizem preocupados se o que veem na Internet é real ou falso. Nesse quesito, somos o quinto país no mundo.

Agora a inteligência artificial ganha um destaque sem precedentes nas discussões tecnológicas, pelo poder criativo das plataformas que elaboram conteúdo. Algumas pessoas acham isso a aurora de uma nova colaboração entre nós e as máquinas; outros veem como um risco considerável para a própria humanidade.

Mas ela já faz parte do nosso cotidiano profundamente. Basta ver que os principais recursos de nossos smartphones dependem da inteligência artificial. As próprias redes sociais fazem uso intensivo dela para nos convencer. E se considerarmos que isso provocou uma polarização social inédita, colocando em risco a própria sociedade, os temores dos pessimistas fazem algum sentido.

Essa amálgama de euforia e paranoia provoca decisões às vezes precipitadas, mesmo de pessoas qualificadas. Países do mundo todo, inclusive o Brasil, se debruçam sobre o tema, tentando encontrar mecanismos legais para organizá-lo.

 

Regular ou não regular?

No Brasil, o uso das redes é disciplinado pelo Marco Civil da Internet, de 2014. “Ele entrou em vigor quando discurso de ódio e fake news estavam em outro patamar”, afirma Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Acredito que a revisão seja necessária, mas não com a simples declaração de inconstitucionalidade do artigo 19, e sim a partir de sistemas mais efetivos e transparentes de como as big techs fazem a gestão dos próprios termos de uso quando violados.”

“Hoje temos interações mais rápidas e intensas, que mudam a forma como vivemos em sociedade”, explica Carolina Giovanini, advogada especialista em direito digital do Prado Vidigal Advogados. “Porém isso não significa que o Marco Civil da Internet esteja ‘ultrapassado’, pelo contrário: é uma legislação que foi pensada levando em consideração o futuro da rede.”

O referido artigo 19 está no centro dessa discussão porque protege as plataformas digitais de serem responsabilizadas pelo conteúdo que os usuários publicam em suas páginas. Segundo o texto, elas só poderiam ser penalizadas se deixassem de retirar algo do ar após uma ordem judicial.

Como a Justiça não consegue analisar tudo que se publica nas redes, especialistas defendem que as plataformas sejam obrigadas a fazer isso por sua conta. A inteligência artificial seria fundamental para decidir o que seria apagado, mas a subjetividade de muitos conteúdos dificulta a definição inequívoca do que é desinformação, o que poderia levar a censura por falsos positivos.

“A própria ideia das redes sociais é ser um portal descentralizado, sem ‘pauta editorial’ ou viés socioeconômico, para que a sociedade pulverizada ganhe voz”, sugere Matheus Puppe, sócio da área de TMT, privacidade e proteção de dados do Maneira Advogados. “Responsabilizando as plataformas, todo o modelo de negócios e o propósito da informação descentralizada vai por água abaixo.”

Na prática, isso vem permitindo que as empresas que produzem essas tecnologias gozem de uma prerrogativa rara, que é responder pouco ou nada por danos que provoquem. Não se pode imaginar um mundo sem elas, mas o crescimento explosivo da desinformação e a consequente polarização social não podem ser vistos como meros “efeitos colaterais”. É como “perdoar” um remédio que mate 5.000 pessoas para curar outras 10.000: a cura é bem-vinda, mas não se pode tolerar tantas mortes.

“O ponto é que um novo regime de responsabilidade não é desejado pelas big techs”, afirma Crespo. “Elas têm até bons argumentos para manter como está, na medida em que elas mesmas removem alguns conteúdos ilícitos por vontade própria.”

Estamos em um impasse! Como canta Ney Matogrosso, “se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come!” As redes sociais estão no centro da nossa vida. A inteligência artificial abre possibilidade incríveis e necessárias. Eliminá-las é impossível, desacelerá-las é improvável. Mas esses problemas aparecem cada vez com mais força.

Qualquer que seja o futuro, ele precisa ser criado com a participação ativa de todos os agentes da sociedade. Essas empresas não podem continuar dando as cartas baseadas apenas na sua busca pelo lucro, pois seus produtos estão muito além de qualquer outra coisa já feita, do ponto de vista de transformação social.

Os benefícios devem ser distribuídos para todos, assim como as responsabilidades e os riscos. O futuro não pode ser distópico!

 

Na batalha da desinformação, a verdade foi a primeira vítima e agora todos sofremos

By | Jornalismo | No Comments

Na primeira semana do novo governo, uma das ações mais polêmicas foi a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, vinculada à AGU (Advocacia-Geral da União). Polêmica que ficou nanica diante do violento ataque à democracia cometido neste domingo, em Brasília. Mas justamente por esses atos antes impensáveis, essa análise ganha ainda mais importância, pois o problema não está distante, e sim algo que toca todos nós, em nossas telas de smartphones e computadores.

A polêmica em torno da criação da nova Procuradoria, que tem como um dos objetivos o combate à desinformação, gira, entre outras coisas, pela definição apresentada para o próprio termo, o que, argumentam alguns, poderia transformá-lo em um instrumento de censura.

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Isso acontece porque, qualquer que seja o lado do conflito, seus cidadãos nunca têm acesso ao ponto de vista e a informações do inimigo. Assim, seus governantes podem manipular os fatos e usá-los como uma “verdade” para seu benefício próprio. É o que se observa hoje claramente na guerra da Ucrânia.

Mas em tempos de redes sociais onipresentes e onipotentes, todos nós sofremos os efeitos de outro tipo de guerra inescapável, que culminou na destruição generalizada na praça dos Três Poderes neste domingo: a da dita desinformação, que tem nas fake news sua maior arma.

Na desinformação, apesar de estarmos todos “do mesmo lado”, cada pessoa recebe informações filtradas pelos algoritmos que a ajudam a reforçar pontos de vista existentes, incluindo preconceitos e mentiras. E, também nesse caso, os grupos de poder manipulam os fatos, para criar “suas verdades”.

Por tudo isso, ninguém questiona a necessidade de se combater a desinformação, que rachou a sociedade brasileira e a levou à beira desse precipício político nunca visto desde a redemocratização.


Veja esse artigo em vídeo:


O ponto central da polêmica no combate à desinformação foi como ela foi definida pelo novo órgão: “mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”.

Em tese, essa definição é válida. O problema é que não deveria dar espaço a interpretações livres dos envolvidos, mas acaba abrindo brechas para isso com adjetivos, advérbios ou pontos que dependem de comprovação.

A preocupação é legítima pelo histórico de governos de diferentes ideologias de usarem a musculatura estatal e brechas da legislação para legitimar atos questionáveis de aliados e questionar ações legítimas de opositores ou de quem simplesmente os critique. A imprensa é vítima costumaz desse mecanismo, com censuras judiciais e, em anos mais recentes, com a perseguição violenta e até a desumanização de jornalistas por iniciativa de governantes. E, graças ao enorme poder de convencimento das redes sociais, uma parcela significativa da população comprou essa ideia e a pratica.

A AGU declarou, em nota, que “desinformação e mentira são diferentes do sagrado benefício da liberdade de expressão” e que “não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa”.

“A gente precisa compreender que, quando se fala em desinformação, precisamos partir de um conceito mais amplo para ‘dar um norte’ sobre o que a gente está conversando”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Mas também é importante entender que esse conceito mais amplo não pode ser o que vai definir o resultado de uma ação contra a desinformação.”

Ele lembra que a AGU não é uma instituição de governo, é sim de Estado. Dessa forma, não faz parte de suas atribuições defender governantes, apesar de ser responsável pela orientação jurídica do Poder Executivo.

Assim a instituição não poderia censurar ou punir ninguém, um papel do Judiciário. O risco recai no histórico de governos de extrapolar esses limites e, de certa forma, usurpar suas atribuições em anos anteriores.

 

A maltratada liberdade de expressão

Nada disso seria necessário se a sociedade não tivesse descambado nesse vale-tudo em que se incite ou efetivamente se pratique diversos crimes e que, depois, isso seja “desculpado” com uma “aparentemente magia” chamada liberdade de expressão.

“O que aconteceu nesses últimos anos é que discursos golpistas, autoritários, desinformativos foram propagados sob uma chancela de que se estava praticando liberdade de expressão”, explica Crespo. “Como isso foi feito durante muitos anos, em sequência, por muitas pessoas de diferentes instituições, ficou parecendo que liberdade de expressão é isso”.

Mas ela não determina tudo o que pode ser dito. Pelo contrário, em tese, pode-se falar qualquer coisa, desde que isso não configure um crime, contravenção, invada a liberdade de outra pessoa ou a coloque em algum tipo de risco, por exemplo.

Nesse sentido, a iniciativa da AGU pode ser muito positiva, desde que seja bem executada e respeitada pelo próprio governo, pois, em empresas e na sociedade, as pessoas seguem o exemplo de seus líderes. “Quando os nossos dirigentes políticos adotam comportamento violadores da ética, dos bons costumes, das boas práticas, das boas maneiras, da inclusão, da diversidade, do respeito, é muito mais fácil insuflar a população a ir contra isso tudo também”, sugere Crespo.

Em outras palavras, a guerra conta a desinformação tem diversas frentes. Oferecer uma boa definição, que não crie mais dúvidas que certezas, é uma delas. Precisamos também que os órgãos dos três Poderes da República executem adequadamente suas funções, deixando ao Judiciário o papel de proibir ou punir.

Sobre isso tudo, precisamos de bons exemplos de expoentes diversos de nossa sociedade, figurando, em primeiríssimo lugar, nossos governantes. A situação dramática em que estamos vivendo, com nosso tecido social feito trapo e a democracia sob ataque, resulta de um consistente processo destrutivo dos últimos anos.

Resta saber se o novo governo resistirá ao apelo fácil de fazer o mesmo com a desinformação, apenas com outra ideologia. Torço para que resista a isso e tenha sucesso na reconstrução de nossa sociedade, sem fazer mais vítimas nessa guerra contra a desinformação.

 

Jovens esperam que empresas resolvam problemas da sociedade

By | Educação | No Comments

Costumo dizer que a melhor maneira de se “prever o futuro” é observando os mais jovens, em suas crenças e atitudes. Afinal, daqui a poucos anos, serão eles que conduzirão a sociedade. E esses jovens –representados agora pela Geração Z– desejam uma sociedade mais igualitária, diversa, preocupada com a natureza, e com relações mais transparentes entre pessoas e entre pessoas e empresas.

É um prognóstico animador. Esse pessoal, hoje entre seus 14 e 26 anos, traz também uma visão interessante sobre como chegar a isso: eles esperam que as empresas assumam um protagonismo na solução de problemas sociais, e estão dispostos a premiar com compras e fidelidade aquelas que adotem esse posicionamento.

Não se trata de um modismo e não é pouca coisa. O estudo internacional “A nova dinâmica da influência”, recém-divulgado pela consultoria americana Edelman, mostra que as pessoas estão tão preocupadas com seu país quanto com seu futuro pessoal, e os brasileiros lideram esse ranking, muito à frente da média global.

Além disso, na era da “economia da experiência”, em que estamos permanentemente online e com um acesso sem precedentes à informação, influenciamos e somos influenciados até por quem não conhecemos. E ninguém hoje tem um poder de influência sobre o que compramos e como nos posicionamos tão poderoso quanto a Geração Z.


Veja esse artigo em vídeo:


As empresas simplesmente não podem se dar ao luxo de ignorar isso!

No Brasil, 72% dos entrevistados afirmaram que compram de marcas em que confiam, mesmo se não forem as mais baratas, e 78% se disseram fiéis a essas marcas, até se algo der errado. Por outro lado, 59% dos brasileiros deixam de comprar de empresas em quem não confiam. Além disso, por aqui, 77% são mais propensos a comprar de marcas que se posicionam em temas ligados à saúde, 76% a direitos humanos e a justiça racial, 75% a mudanças climáticas e 64% a igualdade de gênero.

Na Geração Z, esses índices de compra e fidelidade são ainda maiores: 78% e 83% respectivamente. E os brasileiros premiam muito mais as marcas em quem confiam que os cidadãos dos outros países: essas médias globais são de apenas 58% e 67%.

O estudo da Edelman entrevistou pessoas de 14 países, incluindo o Brasil. Foram mais de 13.700 adultos com mais de 18 anos e mais de 6.700 adolescentes entre 14 e 17 anos, ouvidos entre maio e junho.

Outro aspecto apresentado pelo estudo é que os mais jovens influenciam fortemente como as famílias compram, como geram mudanças, sua cultura de trabalho e até suas finanças. Mas é interessante notar que essa influência também é muito grande sobre aqueles que não tem filhos.

De cada 10 brasileiros, 6 praticam ativismo ao escolher as marcas, chegando a 67% entre os membros da Geração Z. Por isso, 63% afirmam que as empresas devem facilitar que suas posições sobre esses temas relevantes sejam identificadas.

No final das contas, 6 em cada 10 brasileiros, especialmente entre 14 e 41 anos, veem as empresas como mais eficientes que o próprio governo para solucionar os problemas da sociedade.

 

Posicionamento nas redes

Quando uma parcela considerável da população passa horas nas redes sociais todos os dias, era de se esperar um papel crítico dessas plataformas em como as pessoas se posicionam. Assim, 74% dos brasileiros entendem que suas publicações podem mudar o mundo. E nós postamos muito! No Brasil, 74% dos integrantes da Geração Z fazem isso uma ou mais vezes por semana; 40%, uma ou mais vezes por dia!

Em seu livro “Marketing 4.0” (2017), Philip Kotler referiu-se a essas pessoas como netizens, um neologismo formado pelas palavras em inglês “net” (rede) e “citizen” (cidadão). O guru do marketing moderno os considera como “conectores sociais” e, segundo ele, “como netizens são mais visíveis do que outros usuários da Internet, exercem uma influência enorme”.

Atrair esse público torna-se, portanto, essencial para as empresas. A dificuldade é chamar sua atenção em um mundo inundado de informações que competem pelo nosso tempo. Para isso, muitas companhias já descobriram o papel dos influenciadores digitais e criadores de conteúdo. Mas a Geração Z está demonstrando que o que menos interessa nisso é a quantidade de seguidores ou de curtidas: o que lhes importa é a transparência, a sinceridade e o domínio do assunto.

Esses jovens podem até ser fãs, mas não colocam seus ídolos em pedestais. Pelo contrário, como conhecem o cotidiano desses criadores de conteúdo, percebem facilmente quando a mensagem tenta apenas promover um produto. Eles esperam que os influenciadores sejam especialistas no assunto e alguém que efetivamente use o produto. Por isso, esperam que suas recomendações sejam baseadas em experiências reais e que esses criadores de conteúdo lhes ensinem algo novo.

As marcas devem, portanto, escolher muito bem quem contratarão como influenciadores, pois a pressão aumenta à medida que se tornam mais transparentes na sua comunicação. Pode parecer contraditório, mas isso faz todo sentido quando se está querendo construir uma relação de mais qualidade. Os negócios bem-sucedidos nisso avançam na inovação e estabelecem a cada vez mais necessária confiança.

Os consumidores, com destaque aos da Geração Z, devem ser convidados a participar da criação de sua experiência com as marcas. Isso não quer dizer necessariamente trazê-los para o processo de produção: basta ouvir genuinamente o que têm a dizer. E, a partir dessa informação, os gestores devem ajustar seus produtos, seus modelos de negócios, sua comunicação e seu posicionamento social, indo muito além das próprias entregas, cuidando da sociedade.

No mesmo dia em que o estudo da Edelman foi publicado, o historiador israelense Yuval Noah Harari concedeu uma entrevista ao Estadão, por causa de seu mais recente livro, “Implacáveis: Como Nós Dominamos o Mundo”, curiosamente voltado para leitores a partir dos 9 anos. Em determinado momento, ele afirma que “se alguém realmente vai mudar o mundo, não são as pessoas que agora têm 50 anos, são as que agora têm 10”.

Ele está certíssimo! Os mais velhos estão “batendo cabeça” com temas desgastados, muitas vezes egoistamente manipulando as massas pelas redes sociais, apenas para ampliar seu poder, sem querer verdadeiramente melhorar a sociedade. Basta olhar a nossa volta no Brasil e no mundo.

Enquanto isso, os mais jovens querem propor mudanças tangíveis para problemas que realmente impactam nosso cotidiano e o futuro. E, como os governos (de qualquer ideologia) andam falhando miseravelmente nesses seus papeis, a Geração Z está dando às empresas a oportunidade de ocuparem um novo e valioso espaço.

Há esperança para um futuro melhor, afinal!

 

Para a sociedade dar certo, precisamos acreditar em algo

By | Jornalismo | No Comments

A vida tem um jeito especial de eventualmente nos jogar em um turbilhão de fatos e tarefas que nos tiram a perspectiva de qual é nosso lugar no mundo. Passamos a viver um dia após o outro sem refletir sobre o que poderíamos fazer para melhorar. Quando isso acontece, para reconstruirmos nosso caminho, às vezes temos que primeiramente chegar ao fundo do poço.

É o caso da falta de confiança generalizada em nossa sociedade. Ela deriva de uma crise política e econômica que já dura sete anos, e que só vem piorando. A pandemia, que nos apresentou desafios nunca antes enfrentados, nos tirou ainda mais do nosso eixo. É o que demonstram os recentes estudos globais Digital News Report, do Instituto Reuters e da Universidade de Oxford, e o Trust Barometer, da consultoria Edelman.

O fato é que, se não confiamos em mais nada, ou quando apenas as nossas convicções pessoais guiam nossos atos, a sociedade se dissolve. Passamos a viver dentro de um eterno “diálogo de surdos”, em que ninguém mais constrói nada com o outro, indo cada vez mais para o fundo.

Temos que romper esse círculo vicioso!


Veja esse artigo em vídeo:


A desconfiança é um sentimento natural diante do desconhecido ou de alguém que dá mostras de praticar atos questionáveis. É um sentimento de autopreservação legítimo contra quem potencialmente pode nos fazer algum mal. Mas ela não pode crescer sem limites. Caso contrário, chegamos no ponto em que estamos, com uma polarização irracional, o que afeta nosso próprio desenvolvimento ao excluirmos possibilidades sociais.

Por exemplo, será que só podemos comprar de quem pensa igual a nós? Se a pessoa tiver outras ideias, será que tudo que ela faz é necessariamente ruim? Por outro lado, será que tudo feito por quem pensa como nós é bom? Contratar pessoas que são diferentes de nós seria uma ameaça ao nosso estilo de vida?

Claro que nenhuma dessas ideias extremistas é verdadeira! Mas pensamentos como esses estão guiando a nossa vida.

As pessoas acreditam no que elas quiserem, no que lhes for mais conveniente. Sempre foi assim! Mas algo mudou em nossos cérebros há alguns anos, com o apoio das redes sociais.

Para nos vender todo tipo de coisa, seus algoritmos nos mantêm enjaulados em uma zona de conforto de pensamento único. Qualquer ideia que tivermos parece ser corroborada pelo mundo, quando, na verdade, é apenas um recorte da sociedade filtrado pelo sistema, escondendo de nós pensamentos divergentes. Trata-se do que o ativista digital americano Eli Pariser chamou, há uma década, de “filtro bolha”.

Tanto é assim que, em 2016, o renomado Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a “palavra do ano”. Na sua definição, ela é “relativa ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.”

Eu me pergunto se os organizadores da obra imaginavam quão proféticos estavam sendo ao escolher essa palavra.

 

O papel do jornalismo

Os veículos de informação têm um papel decisivo nesse resgate da verdade e da confiança. E, se alguém tinha alguma dúvida, isso ficou claro durante a pandemia: quando a situação ficou realmente crítica, a população correu para eles em busca de notícias confiáveis. Ou seja, apesar de toda a campanha de difamação que sofrem, eles conseguem manter uma boa reputação, especialmente quando as fontes “alternativas” de conteúdo carregam demais na pós-verdade.

O Digital News Report demostrou que a confiança aumentou em plena pandemia. Com informações de 46 países, que representam metade da população global, o relatório indica que a confiança no jornalismo cresceu seis pontos percentuais em 2021, chegando a 44%, mesmo índice de 2018. Além disso, aumenta a distância entre a confiança em veículos jornalísticos e em conteúdos nas redes sociais, que estacionaram em 24%.

O Brasil ficou em sétimo lugar entre esses países na confiança da população na imprensa, com 54%, empatado com Bélgica e Nigéria. O país em que a população mais acredita no jornalismo é a Finlândia, com 65%. Já nos Estados Unidos, que têm uma das melhores imprensas do mundo, apenas 29% da população acredita nos veículos de comunicação.

Isso é explicado pelos dados do Trust Barometer, que indica que eleitores de políticos conservadores e que abusam da pós-verdade confiam pouco na imprensa. A péssima colocação dos EUA deriva, portanto, da cruzada do ex-presidente Donald Trump contra o jornalismo.

Pela metodologia desse relatório, a confiança global na imprensa chegou a 51%, 2% a mais que em 2020. No Brasil, a confiança é de 48%, 4% a mais que no ano anterior.

 

Linguagem e formato

O levantamento do Instituto Reuters e da Universidade de Oxford traz duas coisas importantes. A primeira é que alguns grupos sociais não se sentem bem representados pelos veículos jornalísticos, como negros, mulheres e eleitores conservadores. A outra é que apenas 18% dos jovens se informam assim, enquanto 60% fazem isso nas redes sociais, sendo cada vez mais atraídos por redes visuais, como Instagram e TikTok.

Muitos veículos tradicionais ensaiam distribuir seus conteúdos nessas plataformas, até mesmo no TikTok. Mas como passar a informação necessária e não perder sua credibilidade nesses formatos? O tradicional Washington Post, com 143 anos, contratou Dave Jorgenson como editor dedicado ao TikTok. Ele consegue um bom engajamento, mas não dá notícias na plataforma.

Os veículos precisam encontrar o caminho para se reconectar com o público. Eles não podem esquecer seus valores, que os tornaram respeitados, mas talvez tenham que abandonar boa parte do seu formato e da sua linguagem.

O jornalismo só é viável se estiver representando o público! Caso contrário, a pós-verdade de políticos mequetrefes manipulará ainda mais as massas, destruindo a confiança das pessoas em todas as instituições, o que, a médio prazo, colocará em risco a própria existência da democracia.

O historiador israelense Yuval Noah Harari afirma que o ser humano só alcançou a dominância do planeta por ser o único ser vivo com a capacidade de acreditar em desconhecidos para construir algo com eles. A isso, damos o nome de “sociedade”. Não podemos perder esse recurso essencial de construir algo em grupo.

Será que chegamos ao fundo do poço da confiança para começar a reconstruí-la? Eu espero que sim, ou o que será do Brasil e do mundo daqui a 20 anos? Os que hoje são jovens precisam aprender o valor do bom jornalismo, tornando-se melhores cidadãos. Já os veículos de informação precisam reassumir seu protagonismo. Para isso, devem lembrar para quem trabalham, que é o público, e não seus acionistas, nem os anunciantes e muito menos os grupos de poder.

Como disse certa vez o jornalista e artista Millôr Fernandes, “jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados.”

Quanto a nós, todos nós, temos que reaprender a confiar no outro, mesmo em quem pensa diferentemente de nós. Só assim tiraremos nossa sociedade desse atoleiro em que está metida.

 

A origem do negacionismo

By | Educação | No Comments

No mundo todo, a educação sofre há um ano com a Covid-19. No Brasil, com o avanço galopante da doença, governadores e prefeitos vêm adotando medidas mais severas para conter o vírus, incluindo fechar as escolas. O impacto na formação de crianças e jovens é inevitável. Mas a educação sofre muitíssimo no nosso país desde muito antes da pandemia. De certa forma, grande parte do caos que vivemos se explica pelo desprezo histórico que o Brasil tem pela educação.

Basta ver que esse debate atinge basicamente educadores e pais de alunos. O resto da população passa ao largo do tema. Mas o fechamento de bares causa comoção nacional!

É sabido que cidadãos bem educados fazem valer seus direitos e igualmente cumprem seus deveres. Não ficam esperando que o governo os “salve de suas próprias vidas”. É assim em sociedades desenvolvidas. Por outro lado, os menos educados criam uma zona de conforto em torno de um pacto pela mediocridade: “se você me der o mínimo que preciso, eu não incomodo você, e vou levando minha vidinha”.

Como não somos bem educados, diante de algo muito maior que nós (como uma pandemia), procuramos uma “solução mágica”. Como isso não existe, negamos os fatos. Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente, certo?

Errado!


Veja esse artigo em vídeo:


A nossa má educação é, portanto, a principal causa desse negacionismo que jogou o Brasil nas mais profundas trevas, que, para nossa desgraça, foram ampliadas pela pandemia. Não dá nem para dizer que foi azar: plantamos isso.

Não é de se estranhar que o nível da educação no Brasil caia gradativamente desde o tempo da ditadura militar. Um povo mal educado é um povo mais dócil e facilmente manipulável. Mas, com isso, jogamos tudo no colo do Estado ou damos um jeito de responsabilizar o outro quando algo dá errado. Esperamos que o mundo nos sirva e nos salve, mas damos muito pouco em troca. Ao fazer isso, cada um de nós, individualmente, e o Brasil, como sociedade, afundamos ainda mais no lamaçal.

Para completar a tragédia, o caminho para sairmos disso, que é a busca pelo conhecimento e a ciência, é banalizado, desvalorizado, ridicularizado até por governantes e seus seguidores. Quem estuda, quem pesquisa e quem ensina no Brasil não tem valor.

Para compensar essa gravíssima falha, nós nos apoiamos, até para afagar nosso ego, na crença de que somos um povo criativo e “esperto”, que consegue “sair de qualquer buraco”. A verdade é que essa “esperteza” está muito mais para malandragem burra. Trabalhamos muitas horas, mais que outros povos, porque somos profissionais de baixa produtividade e baixa inventividade.

Dói dizer isso! Mas temos que encarar o problema de frente se quisermos corrigi-lo.

Somos ótimos seguidores de ordens, com pouca iniciativa. Fomos educados assim! Além disso, trabalhamos mal em equipe. Basta ver a enorme quantidade de chefes tóxicos e as “puxadas de tapete” na própria equipe que ainda temos em pleno ano de 2021.

Que fique claro: ao dizer tudo isso, não estou afirmando que somos um povo “sem jeito” ou condenado. Muito pelo contrário! Mas estamos indo por um caminho muito errado há décadas, sem nenhuma perspectiva de melhora. Basta ver o Ministério da Educação, que está em coma desde que Bolsonaro assumiu o poder.

 

Brasil X Coreia do Sul

Em novembro, pesquisadores da FGV (Fundação Getúlio Vargas) divulgaram um estudo apontando que, se o Brasil investisse, a cada ano, 1% a mais do seu Produto Interno Bruto em ensino básico, o padrão de vida médio da população aumentaria até 26% nos próximos 50 anos. Em 2050, a população brasileira poderia atingir o mesmo padrão de vida da portuguesa. Além disso, investir (bem) na educação 2% do que o país produz levaria a um aumento de quase 32% na produtividade do trabalhador.

Um dos reflexos do nosso terrível fracasso nisso é que, apesar do altíssimo desemprego por aqui, as empresas não conseguem preencher vagas que exigem qualificação profissional e competências específicas, por causa da baixa qualificação média do brasileiro.

É possível mudar esse quadro, mas isso exige trabalho sério e consistente, investimento e tempo. Podemos pegar, como exemplo, a evolução da Coreia do Sul.

Antes da Guerra da Coreia, que durou de 1950 a 1953, o país era um dos mais pobres do mundo, muito mais que o próprio Brasil da época. Após o conflito, o sul capitalista criou um plano de longo prazo de industrialização do país (a partir de tecnologia estrangeira) e de educação de alta qualidade para todos.

O resultado é que, depois de cerca de 30 anos, a Coreia do Sul passou da sua antiga situação miserável para ser um dos Tigres Asiáticos. Não por coincidência, na pandemia de Covid-19, o país ostenta um dos melhores resultados do mundo.

 

Para que estudamos?

A educação certamente tem uma função utilitária, crítica para o desenvolvimento de uma nação. Estudamos para aprender a fazer coisas e, dessa forma, melhorar de vida.

Mas não pode ser apenas isso! A educação também tem o papel de desenvolver em nós o amor pelo conhecimento, transcendendo seu aspecto prático. Apenas alguém que goste de aprender coisas novas impulsiona a sociedade para um estágio superior, pois tem uma mente flexível e aberta à inovação. Infelizmente, o Brasil investe pouco em ciência, e o que se investe vai quase tudo para a ciência aplicada, ficando quase nada para a ciência de base.

No início da minha carreira, eu sempre ouvia que mestrados e doutorados só serviam para quem queria “dar aula”, que era muito melhor fazer um MBA para subir na carreira. De tanto ouvir isso, acabei fazendo primeiro o MBA na FIA, que de fato foi incrível! Mas, quando fiz meu mestrado na PUC-SP alguns anos depois, minha mente se expandiu a um outro nível. Por isso, afirmo que todos deveriam ter a oportunidade de seguir esse caminho: não é “só para dar aula”, mas sim para criar cidadãos e profissionais melhores!

Precisamos plantar em nossas mentes, desde a mais tenra idade, o amor pelo aprendizado. Vejo com tristeza crianças e adolescentes reclamando “por que estudar isso, se nunca será usado”. Tudo que estudamos serve para entendermos melhor o mundo em que vivemos e nos ajudará, quando necessário, a nos posicionarmos melhor nele.

Apesar de ser um profissional da área de Humanidades, quando cursava ainda o Colégio Mackenzie, minha matéria preferida era Física. Isso porque eu tive a sorte de ter bons professores que não se resumiam apenas a “dar a matéria”, como alguns inimigos da educação exigem hoje. Um bom professor vai muito além e contextualiza o conhecimento na vida do aluno e na sociedade.

No mundo ideal, os alunos estudariam para aprender e não para tirar nota na prova, um instrumento de avaliação falho que perpetua essa distorção no objetivo do ensino. Nesse mundo, entenderiam que Língua Portuguesa e Matemática são ferramentas para fazer melhor qualquer coisa na vida e que todas as outras disciplinas, de Química a Filosofia, servem para se desenvolverem mentes livres e se tornarem cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.

Todos nós –e não apenas os educadores– precisamos nos engajar pela melhora da educação. Precisamos ser parceiros das escolas e dos professores, resgatando seu valor e sua autonomia, e dando a eles condições para realizar um bom trabalho.

Sem isso, nunca seremos como a Coreia do Sul ou qualquer outra nação desenvolvida. Nossa sociedade permanecerá estagnada e continuaremos sendo indivíduos que produzem pouco e produzem mal. E agora, pelo nosso negacionismo, nem somos aceitos nos aeroportos do mundo.

É isso que queremos para nós e para nossos filhos?

Pode ter menos pão, desde que tenha muito circo

By | Educação | No Comments

Um ano e 250 mil mortos depois do início da pandemia de Covid-19 por aqui, os brasileiros arranham caminhos para continuar tocando a vida. Diante da ausência de um norte consistente e seguro indicado pelas autoridades, buscamos garantir nossas necessidades básicas em meios ao caos.

Tradicionalmente tais necessidades são garantidas pelo Estado, até para sua própria manutenção. Na antiga República e no Império Romano, os governantes descobriram que era preciso garantir às pessoas duas coisas: o pão e o circo. O primeiro atendia parte do sustento, enquanto o segundo garantia a diversão, para diminuir as tensões do cotidiano.

Passados 2.500 anos, o panem et circenses, como era chamada essa política, continua valendo na relação entre governantes e governados, e invadiu também outras áreas, como o mundo do trabalho e até nossas relações pessoais. Além disso, o pão e o circo são representados de maneiras cada vez mais subjetivas e muito ligadas às redes sociais.

Uma coisa, entretanto, não mudou: se o pão diminui, é preciso caprichar no circo!


Veja esse artigo em vídeo:


Políticos jogam muito bem esse jogo, mas eles não estão mais sozinhos nesse tabuleiro. Graças aos meios que as redes sociais oferecem para se ganhar muita visibilidade, empresas e até indivíduos criam seus circos para ganhar o próprio pão.

A princípio, não há nada de errado em usar criativamente os recursos digitais, muito pelo contrário! O problema surge quando se ultrapassa o limite da ética ao se enganar os mais diferentes públicos, em uma espécie de estelionato ideológico.

O circo romano tem um aspecto muito perverso. Ao apresentar ao cidadão alguém que sofre muito mais que ele, seus problemas parecem ficar menores. Por isso, a plateia urrava em êxtase diante de gladiadores obrigados a lutar até a morte ou ao ver inimigos do Estado sendo entregues a leões. Qualquer problema fica menor diante do sangue jorrado na arena, pelo simples fato de quem assiste continuar vivo e estar sentado ao lado do governante, que promove a carnificina.

A lógica permanece até hoje, mas ganha novos recursos e novos promotores do espetáculo.

As autoridades continuam sendo soberanas em momentos de circo sem pão, e o nosso governo atual se destaca nisso. Diante de sua incompetência de solucionar as crises da saúde, do trabalho, da economia estagnada, da educação, entre muitas outras, abusa de bravatas vazias contra inimigos reais ou imaginários, para manter sua base de apoio incendiada. Com isso, cria uma densa cortina de fumaça que tira da população o foco nos problemas verdadeiros, mantendo aqueles que o apoiam anestesiados em uma fantasia grotesca.

Mas os políticos não estão sozinhos: reality shows também são um incrível exemplo de um circo romano moderno.

 

A vilã de uma nação

Sem dúvida, o melhor exemplo para entender esse fenômeno é o “Big Brother Brasil”. E um acontecimento da semana passada foi emblemático: a cantora Karol Conká foi eliminada do programa com uma rejeição recorde do público de 97,17%. Quando isso anunciado, pessoas gritaram nas janelas da minha vizinhança, algo que normalmente só acontece em partidas decisivas de futebol e em recentes manifestações políticas.

Karol foi alçada ao posto de supervilã do BBB 21 porque, segundo o jargão do programa, “jogou mal”. Foi arrogante, preconceituosa, agressiva, o que culminou na inédita saída espontânea de outro participante, Lucas Penteado.

Quando deixou a casa, ela descobriu que tinha perdido algo como 40% de seus seguidores nas redes sociais e contratos de trabalho que chegariam a R$ 5 milhões. Mas será que ela merecia tamanha punição, mesmo diante de seus comportamentos reprováveis no programa? Afinal, aquela casa costuma ser lar de muitas intrigas e muito veneno entre os participantes.

Mas, na lógica do circo, essa pergunta é irrelevante. A partir do momento que recebeu o selo de “pessoa má da história”, a audiência decretou que ela deveria ser imolada publicamente. O fato de ela ser famosa potencializou o sentimento. E a possibilidade de seu destino ser decidido por cada um de nós, impondo uma humilhante votação praticamente unânime pela sua saída, é um dos segredos do sucesso desse tipo de programa.

Cada um de nós se torna um pequeno imperador romano que, com o polegar para baixo, determina a morte do perdedor.

 

O circo nosso de cada dia

No mundo atual, não é preciso ser uma grande emissora de TV ou um presidente da República para armar um circo. Com as redes sociais, qualquer um pode ser dono de um picadeiro, apresentador e artista.

Infelizmente, a maioria dessas apresentações é de baixíssima qualidade. Em uma sociedade cada vez mais dependente de espetáculos, de atos teatrais, de bufões e de fanfarronices, quanto pior, melhor.

Isso explica a ascensão e queda das diferentes redes sociais. Quem aqui se lembra do Orkut, que nasceu como um interessante experimento social e terminou com um nível baixíssimo das publicações? O mesmo aconteceu com o Facebook, que cresceu diante do declínio daquele concorrente, mas, há muitos anos, vem sofrendo com a piora das conversas ali. Criou-se até o neologismo que diz que o Facebook foi “orkutizado”. O mesmo aconteceu com o Twitter, o Instagram e até o LinkedIn, uma rede que até o início de 2018 resistia a esse processo.

Esse raciocínio pode parecer elitista e, de certa forma, é mesmo. Quanto mais sucesso uma plataforma digital faz, mais ela se parece à população que representa. Oras, se essa população aprecia ver o sangue de quem não gosta ou prefere conversas com a profundidade de um pires, para poder esquecer de seus próprios problemas, aos poucos as redes passarão a oferecer isso.

Isso é uma tragédia anunciada! Quando as pessoas não saem do mundo digital, sendo profundamente influenciadas pelo que veem ali, o discurso raso anestesia todo mundo, fazendo com que deixem seus problemas para lá (sem resolvê-los), dedicando-se apenas à “diversão”.

O circo se torna muito mais importante que o pão!

São nessas horas que os grupos de poder deitam e rolam! Enquanto a massa cega se diverte, eles podem fazer o que quiserem, até mesmo se preocupar menos em dar o pão.

Precisamos resgatar o nosso senso crítico, autoestima e coletividade. Sem eles, logo seremos nós mesmos a alimentar os leões, para o deleite dos que sobrarem.