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Sam Altman, CEO da OpenAI, fala sobre inteligência artificial no Fórum Econômico Mundial desse ano, em Davos - Foto: reprodução

Enquanto a IA melhora a produtividade de alguns, torna outros “inempregáveis”

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No dia 14, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um estudo que indica que cerca de 40% dos trabalhos do mundo serão impactados pela inteligência artificial. Isso não se dará de maneira homogênea: enquanto ela trará grande produtividade a alguns, pode eliminar postos de trabalho e até deixar muitas pessoas “inempregáveis”, ou seja, sem capacidade de assumir qualquer ocupação com o que sabem fazer.

Por que uma mesma tecnologia provoca consequências tão opostas no mercado de trabalho de um mesmo país, ao mesmo tempo? A resposta passa pelas capacidades dos profissionais de se adaptar para tirar proveito do que ela oferece.

Enquanto isso, o Brasil comemora mais uma queda na taxa de desemprego, que terminou novembro em 7,5%, a menor desde fevereiro de 2015. Ainda assim, o país continua tendo 8,2 milhões de desempregados. Apesar de muito bem-vinda essa retração, é preciso estar atento à qualidade desses empregos. Afinal, com o avanço da IA, muitos deles podem desaparecer em breve por falta de capacitação. A sociedade brasileira precisa se mobilizar para que isso não aconteça com força.

A IA escancara, portanto, algo que já se observa há anos: o futuro do trabalho passa pelo futuro da educação. Os robôs estão se tornando auxiliares valiosos, mas as pessoas precisam de uma melhor formação para não serem substituídas por eles.


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Segundo o estudo do FMI, nos países mais ricos, a IA afetará 60% dos postos de trabalho: metade será beneficiada, enquanto a outra pode experimentar desemprego, queda de salários e até extinção de profissões inteiras. Já nos emergentes, o impacto deve atingir 40% dos trabalhadores, mas apenas 26% devem ser beneficiados.

Segundo os autores, essa diferença entre países se dá pela falta de infraestrutura e de mão de obra qualificada para aproveitar bem a IA nos emergentes. Por isso, com o tempo, a inteligência artificial pode aumentar a desigualdade entre nações, e o mesmo se pode esperar entre ricos e pobres de um mesmo país.

A IA vem despertando tanto deslumbramento quanto medo. Não devemos sentir nenhum deles: precisamos entendê-la para nos apropriarmos do que els oferece de bom e nos esquivarmos de eventuais armadilhas, inclusive no mundo do trabalho.

Novas tecnologias extinguem profissões e criam oportunidades desde o início da Revolução Industrial, no século XVIII. A sociedade se ajusta e faz as mudanças para o novo. A diferença é que agora a adaptação precisa ser muito mais rápida, exigindo habilidades básicas que muitos não têm e que não conseguem adquirir a tempo. Por isso, pessoas no seu auge profissional estão vendo sua empregabilidade derreter, de uma maneira que elas não conseguem controlar, algo desesperador a qualquer um.

Ao contrário do que se via há alguns anos, quando apenas as pessoas menos qualificadas eram impactadas pela automação, a inteligência artificial também atinge carreiras mais nobres e criativas. Portanto, apesar de uma boa educação continuar sendo absolutamente fundamental, é preciso saber o que e como estudar.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV) divulgado em setembro demonstrou que os brasileiros que estudaram mais foram os que perderam mais renda na última década, com um aumento abrupto na informalidade. Isso obviamente não está associado à explosão da IA, que ainda é muito recente, mas demonstra que ninguém mais está “seguro”.

Na semana passada, o LinkedIn divulgou quais são as profissões em alta em vários países. No Brasil, várias estão intimamente ligadas ao mundo digital e à própria IA, como analista de privacidade, de cibersegurança e de dados. Outro estudo, da Universidade da Pensilvânia (EUA) e da OpenAI, concluiu que 80% dos trabalhadores americanos podem ter pelo menos 10% de suas tarefas afetadas pela IA.

Isso fica dramático no Brasil, com sua educação tecnológica ruim e um acesso limitado ao mundo digital. Segundo a mais recente pesquisa TIC Domicílios, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 20% dos domicílios (15 milhões) e 14% dos brasileiros com 10 anos ou mais (27 milhões) nem têm acesso à Internet.

 

Futuros do trabalho e da educação juntos

Muitas das “profissões do futuro” paradoxalmente existem desde a Antiguidade, como professores e médicos. Elas assim se classificam porque continuarão existindo e sendo muito importantes para a sociedade. Mas mesmo elas já sofrem e continuarão sofrendo grande mudanças pela digitalização. Querer continuar as exercendo como se fazia há alguns anos é um convite para ser colocado para fora do mercado. Por outro lado, profissionais que se atualizem com as novas tecnologias, como a inteligência artificial, se tornarão ainda mais relevantes.

O avanço galopante da IA atropela uma sociedade que não consegue medir as transformações que ela trará em pouco tempo. Em dezembro, o fundador da Microsoft Bill Gates disse que o avanço dessa tecnologia em breve permitirá semanas de trabalho de três dias, com as pessoas ganhando o mesmo. Tecnicamente pode ser verdade, mas, para que isso aconteça, os gestores teriam que fazer esse movimento magnânimo, ao invés de simplesmente demitir metade de sua força de trabalho para aumentar muito seus lucros. Não se trata, portanto, só de uma mudança tecnológica.

No Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) do ano passado, os líderes mundiais estavam deslumbrados com as oportunidades da IA. Na edição desse ano, que terminou na sexta, a euforia foi substituída por uma busca de como usá-la de forma responsável e segura, e qual o papel de cada um nisso.

Toda tecnologia deve ser usada para o bem de todos, e não apenas para o benefício de alguns. Um dos temores sobre a IA, que indubitavelmente fará a humanidade dar vários saltos, é que ela também seja usada para o mal. O mundo do trabalho é apenas um dos elementos mais críticos disso na vida das pessoas.

Governos, empresas e demais atores da sociedade civil devem fazer os ajustes necessários antes que essa bomba exploda, pois seu efeito pode ser devastador. Aqueles que estão na parte beneficiada pela IA não podem se acomodar e fingir que esse problema não lhes pertence, pois acabarão impactados de uma ou outra forma.

Precisamos de uma revolução educacional que ensine as pessoas a usarem melhor as tecnologias, não como meros apertadores de botões ou criadores de comando para o ChatGPT. Elas precisam entender o porquê de tudo isso para fazer escolhas conscientes, sem se tornar consumidores com senso crítico achatado pela máquina. De uma maneira um tanto paradoxal, isso acontecerá apenas com uma educação que também fortaleça seus aspectos humanos.

E precisamos disso já, pois a inteligência artificial não esperará pela lerdeza natural.

 

Thiago Araki, diretor-sênior de Tecnologia da Red Hat na América Latina, no palco do Summit Connect, no dia 18 – Foto: Red Hat

Negócios e empregos mudam exponencialmente com novas tecnologias e modelos

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O ano de 2023 será lembrado como o momento em que a inteligência artificial ganhou as ruas. O lançamento do ChatGPT, no final de 2022, disparou uma corrida em que todos os negócios parecem ser obrigados a usar a IA, quase como se ela fosse um selo de qualidade, o que obviamente não passa de uma distorção do que ela representa. O grande desafio reside, portanto, em conhecer e se apropriar dessa tecnologia, para tirar proveito dela adequadamente.

As empresas têm um papel central em ajudar nessa tarefa, não apenas com o lançamento de produtos que tragam soluções consistentes com a IA, mas também na educação do mercado. Isso ficou claro durante o Red Hat Summit: Connect, principal evento de tecnologia open source da América Latina, que aconteceu em São Paulo no dia 18.

É curioso pensar que a inteligência artificial já está em nosso cotidiano há muitos anos, em incontáveis aplicações empresariais e até em nosso celular, ajudando-nos a fazer escolhas melhores. A diferença é que, até então, ela se escondia nas entranhas desses sistemas. Agora ganhou a luz do sol, exposta em conversas que temos com a máquina, que nos responde como se fosse outra pessoa.

Ainda há deslumbramento demais e conhecimento de menos sobre a inteligência artificial entre consumidores e empresas. O próprio lançamento de tantas plataformas de inteligência artificial generativa, na esteira do sucesso explosivo do ChatGPT, indica um certo descuido de alguns desenvolvedores de soluções, liberando um enorme poder para pessoas que não sabem como usá-lo corretamente.

Nesse sentido, a Red Hat, que é a maior empresa do mundo no fornecimento de soluções empresariais open source, entende que deve ir além do seu papel de desenvolver produtos que tiram proveito da IA: deve também educar seus usuários, seja pelas suas próprias iniciativas, seja pela colaboração com o mundo acadêmico. “As empresas não só podem como devem colaborar na formação de profissionais”, explica Alexandre Duarte, vice-presidente de Serviços para a América Latina na Red Hat. “Nós temos que juntar esforços do mundo corporativo com o mundo educacional, estando alinhados.”

A versão latino-americana do Summit, que também acontece em Buenos Aires (Argentina), Santiago (Chile), Tulum (México), Lima (Peru) e Montevidéu (Uruguai), traz para esses mercados produtos e conceitos que foram apresentados em maio no evento global da empresa, realizado em Boston (EUA). Entre eles, o Ansible Lightspeed e o OpenShift AI, que usam a inteligência artificial na automação de tarefas, como geração de códigos a partir de pedidos simples em português, liberando o tempo das equipes para funções mais nobres.

E assim como pude ver em Boston, aqui a empresa também deixa claro que a inteligência artificial não chega para substituir profissionais, e sim para melhorar suas rotinas. “Se você for um novato, poderá criar melhor, mais rápido; se for um especialista, poderá melhorar muito o que faz e usar seu domínio para refinar a entrega”, explicou-me Matt Hicks, CEO global da Red Hat, em uma conversa com jornalistas durante o Summit na cidade americana. “Nessa nova fase, temos que conhecer a pergunta para a qual queremos a resposta”, concluiu.

É auspicioso observar essa visão em uma das empresas de software mais respeitadas do mundo, em um momento em que muita gente teme pelo seu emprego pelo avanço da inteligência artificial. “Essas ondas tecnológicas não tiram o emprego das pessoas, os profissionais precisam se acomodar”, acalma Duarte. Mas ele faz uma ressalva: é preciso querer aprender! “Se você tem propensão a aprender coisas novas, eu não acredito que a inteligência artificial vai tirar seu emprego, e ainda vai gerar novas oportunidades de trabalho”, acrescenta.

 

O poder da “coopetição”

Em março deste ano, a Red Hat completou 30 anos. Ele cresceu a partir de sua distribuição do sistema operacional Linux, provavelmente o software open source mais famoso do mundo. Nessa modalidade, o produto e o código-fonte ficam disponíveis gratuitamente. A regra fundamental é que, se alguém fizer uma melhoria no sistema, ela deve ser compartilhada de volta com a comunidade.

Essa forma de pensar inspira seu próprio modelo de trabalho, que ficou conhecido como “open business”, uma abordagem empresarial em que equipes, a comunidade e até concorrentes são convidados a cooperar de maneira transparente. Ela valoriza a transparência e a responsabilização, distribuindo os benefícios para todos. “Há 30 anos a gente fala sobre essa abertura, essa transparência, essa possibilidade de diferentes perspectivas”, afirma Sandra Vaz, diretora-sênior de Alianças e Canais para a América Latina na Red Hat.

Surge então a chamada “coopetição”, um neologismo que une “cooperação” e “competição”. “Nada mais é que dois competidores cooperando e criando novas soluções para o bem de seus clientes”, explica Vaz. “Nós colaboramos, nossas equipes de desenvolvimento se conectam e criam o melhor dos mundos, simplificando soluções já existentes.”

A “coopetição” também é uma poderosa ferramenta para ampliar a base de clientes, pois um dos participantes pode trazer consumidores a que o outro lado não teria acesso. Sandra dá, como exemplo, um provedor de serviços na nuvem, como a AWS ou a Microsoft, que podem até ter produtos concorrentes aos da Red Hat, mas que se associam a ela justamente nessas soluções, se assim for o desejo do cliente.

A tecnologia avança a passos muito rápidos, assim como modelos de negócios inovadores. Qualquer que seja o mercado ou a função, está claro que profissionais precisam estar não apenas abertos à inovação, como também dispostos a aprender como tirar proveito dela de maneira eficiente e ética.

A inteligência artificial talvez não acabe com os empregos das pessoas que não a adotem, mas isso pode acabar acontecendo pelas mãos daquelas que passarem a usá-la.


Você pode assistir à íntegra em vídeo das minhas entrevistas com os executivos da Red Hat. Basta clicar no respectivo nome: Alexandre Duarte, Sandra VazMatt Hicks.

 

Troca de empregos formais pela flexibilidade da “gig economy” pode levar a queda nos rendimentos - Foto: Ono Kosuki/Creative Commons

Estudar tem dado menos dinheiro, mas não investir na sua formação é uma armadilha

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O mercado de trabalho brasileiro vem criando mais vagas de baixa qualidade, mesmo com a população estudando mais. Isso empurra profissionais bem-preparados para posições que pagam menos e para a informalidade, e arma uma perigosa arapuca.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), divulgado recentemente com dados do IBGE, demonstrou que os brasileiros que estudaram mais foram os que perderam mais renda na última década, com um aumento abrupto na informalidade. O levantamento aponta ainda que despencou a vantagem dos seus rendimentos frente aos dos que estudaram muito pouco.

Outra pesquisa, essa da consultoria IDados sobre a população “sobre-educada”, indica que 5,4 milhões de brasileiros com ensino superior trabalham fora de sua área de formação ou em atividades que não tiram proveito de todo o seu potencial. Esse número vem crescendo desde 2019, quando os “sobre-educados” eram 4,5 milhões.

Esses levantamentos contrastam com a mais recente taxa de desemprego no país, divulgada pelo IBGE na sexta (29), que foi de 7,8%. É o menor índice desde fevereiro de 2015, quando era de 7,5%.

Isso se explica por uma economia sem dinamismo, com empresas que investem pouco, acostumadas a uma produtividade baixa. O grande perigo nisso tudo é se criar uma ideia errada de que não vale a pena estudar, ou pelo menos estudar muito.

Apesar dessas evidências, as pessoas que caem nessa armadilha colocam em risco a própria sobrevivência profissional, especialmente em um cenário de grande automação.


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Segundo a pesquisa do Ibre-FGV, os profissionais com mais de 16 anos de estudo viram sua renda média cair, entre 2012 e 2023, de R$ 7.211 para R$ 6.008, em valores corrigidos pela inflação. Nessa faixa, a informalidade saltou de 1,9 milhão para 4,1 milhões de trabalhadores entre 2015 e 2023. Vale apontar que percentualmente, o aumento não foi tão grande: de 14% para 19,5%, o que indica que mais pessoas chegaram a esse patamar superior de estudo no período.

De todas as faixas avaliadas no levantamento, a única que viu sua renda crescer sensivelmente de 2012 a 2023 foi justamente a dos com menos de um ano de ensino: de R$ 1.094 a R$ 1.396. Para quem estudou de 1 a 11 anos, permaneceu praticamente estável, caindo a partir daí. A informalidade também diminuiu para quem estudou até 8 anos, permaneceu estável na faixa de 9 a 11 anos de escola, e cresceu entre os que estudaram a partir de 12 anos.

O achatamento salarial é velho conhecido dos brasileiros, especialmente em momentos de crise, como a que estamos mergulhados há anos. A recente digitalização galopante agora afeta camadas profissionais mais especializadas, que antes se sentiam mais protegidas.

Mariane Guerra, vice-presidente de Recursos Humanos para a América Latina da ADP, acredita que a chamada “gig economy” também pode estar influenciando nesse processo. Por esse modelo, profissionais trocam empregos regulares por trabalhos pontuais, muitas vezes por tarefas. Se antes o grande expoente disso era a Uber, hoje temos profissionais em todos as áreas adotando o modelo, em busca de flexibilidade.

“Quando você passa a ser um trabalhador autônomo, você tem uma flutuação de renda”, afirma a executiva. “Demora até você ter uma carteira de clientes que permite ter uma renda constante, sólida, no mesmo patamar”, explica.

Para aqueles que insistem em um emprego, a situação econômica pode provocar um impacto perverso. Cresce o número de profissionais que “diminuem sua formação” no currículo (por exemplo, omitindo um doutorado) para conseguirem ser contratados.

“A gente tem a necessidade de pessoas com um perfil mais preparado, mais aculturado, mais transdisciplinar, para atender demandas mais sofisticadas”, afirma Marcelo Graglia, professor da PUC-SP e coordenador do Observatório do Futuro do Trabalho. “E a gente vê essa prática arcaica, que não faz mais sentido”, acrescenta.

 

Investindo no que importa

Os especialistas são unânimes em reafirmar a importância do estudo. Mas é preciso escolher no que focar.

O diploma de graduação deixou de ser suficiente para o sucesso profissional há muito tempo. É um consenso no mercado que se deve estudar continuamente, porque novas metodologias, recursos tecnológicos e modelos de negócios surgem a todo momento.

No cenário atual de pouco dinheiro e tempo, vemos o crescimento de busca por cursos de curta duração, para aprender habilidades técnicas específicas e de uso imediato no cotidiano profissional. É uma maneira rápida de se conseguir algum destaque no currículo.

Apesar de seu inegável valor, eles não substituem os cursos mais longos, como especializações, MBAs e até mestrados e doutorados. São eles que formam profissionais verdadeiramente diferenciados, capazes de enfrentar os desafios de um mercado cada vez mais exigente e em constante transformação.

“Os profissionais que enxergam esse momento do mercado como uma mudança estrutural cometem um equívoco estratégico para a carreira”, afirma Graglia. Ele e Guerra destacam ainda a importância das “soft skills”, competências interpessoais e emocionais para o trabalho. Para ele, “as pessoas muito especializadas, sem essas outras habilidades, são as mais suscetíveis à substituição pela tecnologia”.

Não se pode esperar que o governo resolva isso sozinho, apesar de seu papel fundamental na criação de novas políticas educacionais, que formem melhores cidadãos e profissionais mais alinhados ao mundo atual, desde o Ensino Básico até a universidade. As empresas precisam também assumir seu papel na solução, não apenas valorizando profissionais com boa formação, mas também investindo, elas mesmas, em cursos de capacitação e reciclagem. E naturalmente cada um de nós deve assumir o protagonismo da própria carreira, estudando para melhorar sempre.

“Conhecimento é perecível, então quem vai produzir mais, quem vai continuar fazendo pesquisa, se todo mundo acha que não precisa estudar mais”, questiona Guerra. Em um cenário de competição tecnológica cada vez mais acirrada, ela provoca: “quem vai dar o próximo passo qualitativo, desenvolver a próxima tecnologia?”

O mercado de trabalho e a educação caminham de mãos dadas. Quando um vai mal, a outra sente, e vice-versa. Não se pode, diante do cenário ruim que o país passa, esquecer do ensino e da valorização profissional como pilares para o crescimento de qualquer sociedade. Isso colocaria nosso futuro ainda mais em risco.

 

Muitos motoristas não querem se contratados como CLT pela Uber - Foto: Paul Hanaoka/Creative Commons

Decisão contra a Uber escancara o envelhecimento das leis trabalhistas

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No último dia 14, a Justiça Trabalhista de São Paulo determinou que a Uber contrate todos os motoristas ligados à plataforma pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e pague R$ 1 bilhão por danos morais coletivos. A decisão vale para todo o Brasil e a empresa tem seis meses após o fim de recursos para implantar as medidas.

A Uber já disse que não pretende cumprir a decisão! Em nota, a empresa afirma que não vai adotar nenhuma medida antes que todos os recursos estejam esgotados. A grande pergunta é: o que acontecerá se a decisão for mantida após isso?

Suprema ironia, associações de motoristas se manifestaram dizendo que eles não querem ser contratados pela CLT! Mas isso não quer dizer que estejam satisfeitos com as atuais condições de trabalho.

Qualquer que seja o resultado desses recursos, o caso serve para debatermos a aplicabilidade das leis trabalhistas brasileiras ao mundo atual. A Uber e diversas empresas que fazem parte de nossas vidas seguem os conceitos da economia compartilhada. Ela prevê o engajamento de vendedores e prestadores de serviço com seus clientes, viabilizado por plataformas digitais.

O problema é que esse modelo se choca com a CLT em muitos pontos. Em um momento em que o Governo Federal busca resgatar elementos como o imposto sindical, é de se questionar qual formato regerá as relações trabalhistas de milhões de brasileiros em um futuro próximo.


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A legislação brasileira é uma das que mais protege o trabalhador no mundo. Entre muitos itens de segurança social, benefícios como férias remuneradas de 30 dias (e ainda com um adicional de um terço) já a partir de um ano de admissão são luxos inimagináveis em outros países. Tudo isso tem um custo, pago pelos próprios profissionais e principalmente pelas empresas. Via de regra, para cada real pago em salário ao funcionário, a empresa gasta outro com os encargos trabalhistas.

“Essa é uma decisão feita para não ser cumprida”, afirma José Isaías Hoffmann, diretor de Controladoria da Corporate Consulting. “Operacionalmente, como a Uber vai admitir via CLT mais de um milhão de motoristas”, questiona. Ele acredita que, se ela for obrigada a fazer isso, acabará saindo do país, deixando um rastro de desemprego.

O peso dos encargos e de outras obrigações trabalhistas já provoca mudanças no perfil de contratações no Brasil há cerca de duas décadas. Cada vez mais, empresas procuram, sempre que possível, trocar o modelo da CLT por terceirizações de empresas com um único funcionário, os famosos “PJ”. Com isso, os empregadores se livram de encargos e burocracia, e têm o profissional à disposição.

Alguns trabalhadores também preferem esse formato, principalmente quando isso lhes proporciona flexibilidade, com destaque ao horário. É o caso dos profissionais por aplicativos, como motoristas e entregadores. “As pessoas querem uma vida flexível”, afirma a estrategista de carreira Ticyana Arnaud. “Se for para trabalhar CLT, então eles voltam a procurar emprego, vão ser motoristas numa empresa”, sugere.

O principal conflito entre as regras da CLT e as da economia compartilhada é que a primeira considera o profissional um empregado, enquanto a segunda o tem como um autônomo e às vezes nem isso: atua como um prestador informal, que pode trabalhar ao mesmo tempo para incontáveis contratantes. Essa flexibilidade tornou-se tão valorizada por trabalhadores de diferentes áreas (afinal, há uma enormidade de serviços na economia compartilhada), que muitos abrem mão da proteção e dos benefícios generosos da CLT por ela.

Apesar disso, é preciso ter cuidado, pois nem tudo que brilha é ouro!

 

Bondades podem esconder abusos

Não há dúvida que a economia compartilhada é um fenômeno consolidado e que traz muitos benefícios a prestadores e a clientes. A Uber é um exemplo tão didático quanto popular, por ter redefinido a mobilidade urbana e por ser usada por uma porcentagem considerável das populações das grandes cidades. Mas há muitos outros ótimos nomes, como Airbnb, Mercado Livre, iFood ou Rappi. Fica difícil pensar a vida moderna sem eles, e a pandemia deixou isso ainda mais evidente.

Ainda assim, não se pode deixar deslumbrar por suas inegáveis vantagens. O Laboratório de Pesquisa DigiLabour investiga continuamente o impacto das plataformas e de tecnologias disruptivas (como a inteligência artificial) no mundo do trabalho. Eles criticam, por exemplo, essas plataformas chamarem os motoristas de “parceiros” ou de “autônomos”, quando, na verdade, não têm autonomia nem para definir o valor das corridas ou a porcentagem que receberão por elas. Afirmam também que o “empreendedorismo de si mesmo” mascara uma relação de trabalho desigual, em que o profissional assume todos os riscos de um empreendedor, mas atua como um empregado, porém sem nenhum benefício ou proteção.

Já o Instituto Fairwork, ligado à Universidade de Oxford (Reino Unido), criou cinco princípios que seriam necessários para um trabalho decente: remuneração justa, condições justas de trabalho, contratos justos, gestão justa e representação dos funcionários na operação. Em uma pesquisa realizada por eles em 2021, as plataformas no Brasil ficaram entre as piores do mundo: em uma escala até 10 pontos nesses quesitos, iFood e 99 marcaram 2, Uber ficou em 1, enquanto Rappi, GetNinjas e UberEats não saíram do zero. Os resultados são semelhantes aos de outros países da América Latina, mas ficam atrás dos de operações na África, Ásia e Europa.

É importante lembrar que, quando a Uber começou a operar no Brasil, em 2016, dirigir para ela parecia um bom negócio: a empresa ficava com apenas 7% das corridas (hoje pode chegar a 50%) e oferecia muitos bônus aos motoristas. As corridas eram baratas e o serviço de alta qualidade.

Isso explica a “economia compartilhada que dá certo”: ela precisa ser boa para todos os envolvidos, ou seja, o cliente, o vendedor ou prestador, e a plataforma. Quando os motoristas da Uber passaram a receber muito pouco, tudo desmoronou!

“Precisa, de fato, de uma atualização na legislação para entender essa nova dinâmica de mundo”, afirma Hoffmann. “Ela requer que seja justo para quem faz o serviço, para quem recebe, para a economia, que ninguém seja prejudicado com isso”, conclui.

“É preciso tentar uma negociação para reduzir essas taxas e ser uma coisa que valha a pena para todos, e não só para um lado”, explica Arnaud. Para ela, “se a Uber for forçada a aderir à CLT, outras empresas também terão que fazer o mesmo”.

É um momento de mudança de paradigma na maneira como trabalhamos. Insistir na rigidez da CLT, criada em 1943, pode ir contra os interesses de muitos trabalhadores. Por outro lado, deixar tudo na mão das plataformas seria “pedir que a raposa tome conta do galinheiro”. É preciso buscar esse equilíbrio perdido, pois a economia compartilhada, sim, funciona. E nós, como clientes, precisamos pressionar para que essa solução seja encontrada.

 

Recurso de visualização acelerada de conteúdos nos dá mais tempo, mas pode nos deixar ansiosos - Foto: Akshay Gupta/Creative Commons

A tecnologia tenta nos acelerar, mas nossa natureza tem limite de velocidade

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Atire a primeira pedra quem nunca clicou no botão “2X” para ouvir mais rapidamente uma mensagem de áudio do WhatsApp. Quando foi lançado, em maio de 2021, esse recurso foi festejado por aqueles que não aguentam ouvir falas que duram vários minutos. Mas longe de ser um fenômeno isolado, essa possibilidade de “acelerarmos nosso cotidiano” está cada vez mais presente em diversas plataformas digitais.

Reflexo do sucesso da possibilidade de “encurtarmos” todo tipo de conteúdo para termos mais tempo livre, isso dispara alguns questionamentos. O primeiro é descobrir se há algum efeito colateral nesse processo. Outro se trata de um dilema do tipo “ovo e galinha”: as plataformas digitais nos oferecem isso cada vez mais porque é algo que desejamos, ou nós queremos e usamos a funcionalidade porque está mais disponível?

Pesquisadores se debruçam sobre o tema para entender até seu impacto fisiológico em nossos cérebros. Mas não é necessário ser um neurocientista para perceber que essa ânsia pela aceleração transforma nosso cotidiano há muitos anos. Hoje fazemos muitas coisas de maneira diferente e mais rápida, como estudar, trabalhar, nos divertir e até nos relacionar com outras pessoas. E o que começou nas diferentes telas agora também transforma essas mesmas atividades quando feitas presencialmente.

Como era de se esperar, algumas coisas ficaram pelo caminho. Ganhamos na velocidade, mas podemos perder em entendimentos deficientes e no aumento de ansiedade. E disso surge a pergunta: será que vale a pena?


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O conceito foi brilhantemente explicado no filme “Click” (2006), estrelado por Adam Sandler. Na história, seu personagem ganha um controle remoto mágico capaz de manipular o mundo a sua volta. Dessa forma, ele podia, por exemplo, acelerar as partes de sua vida pelas quais tinha que passar, mas de que não gostava. O problema é que o aparelho aprendia essas preferências, começando a “pular” automaticamente todos esses momentos. Como resultado, o personagem de Sandler acabou perdendo informações importantes de sua vida.

Ainda não chegamos a esse ponto de acelerar os acontecimentos reais, mas o que já temos no mundo digital vem alterando nossa percepção. É comum dizermos que os dias parecem estar ficando mais curtos, mas não pensamos na quantidade de coisas diferentes que fazemos a cada 24 horas, muito mais que nossos pais. Há uma sensação de aumento de produtividade, mas até onde isso é real e saudável?

A tecnologia digital combina perfeitamente com o conceito de sucesso da vida contemporânea, fortemente ligada à produtividade. Não basta fazer mais: é preciso brilhar mais e isso precisa ser visto por todos. Trocamos os benefícios de contemplar a vida pela sensação de uma suposta vitória pela hiperpodutividade.

Quem se dispõe a deixar a correria do cotidiano de lado para se dedicar, por alguns minutos que seja, a calmamente apenas ouvir músicas de que se gosta? Esse exemplo é muito emblemático, porque o que se observa é exatamente o contrário: pessoas que aceleram as músicas, para que acabem mais rapidamente, não se importando com a óbvia mutilação da obra.

Isso vem provocando alterações em com as próprias músicas são compostas atualmente. Introduções melodiosas e solos instrumentais desaparecem para que o ouvinte chegue ao clímax rapidamente. A própria duração da faixa fica limitada a três minutos, para evitar que a pessoa passe para outra música antes de se chegar ao final. Se isso acontece, os algoritmos das plataformas de streaming podem entender que a música não é tão interessante, passando a tocá-la menos daí em diante.

 

Crescimento da ansiedade

A comunidade científica ainda não chegou a uma conclusão sobre todos os impactos da aceleração de nosso cotidiano. Muitos estudos se concentram em descobrir quanto isso afeta a nossa compreensão de conteúdos que consumimos.

Em 2021, uma equipe da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA), liderados por Dillon Murphy, publicou um estudo na revista “Applied Cognitive Psychology”. Eles observaram que as pessoas conseguiam compreender vídeos acelerados em até 2X. Acelerações maiores já prejudicavam o processo. Concluíram também que pessoas que usam esse recurso frequentemente têm mais chance de entender e reter as mensagens aceleradas, como se estivessem treinadas.

Mas uma eventual compreensão prejudicada não é a única coisa que deve nos preocupar. Especialistas apontam uma correlação entre uma vida acelerada e o crescimento explosivo de casos de ansiedade. E nós, brasileiros, não estamos nada bem nisso: segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil possui a população com a maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo, com 9,3% dos brasileiros sofrendo de ansiedade patológica.

Tanta ansiedade transforma tudo que fazemos. Qualquer coisa que exija mais tempo, atenção ou reflexão pode disparar esses processos, assim as pessoas procuram evitar isso tudo. Mas gostemos ou não, eles continuam fazendo parte de nosso trabalho, nosso estudo e até de nossos relacionamentos. Nos escritórios, isso se sente em queda de produtividade e menos compromisso profissional.

Essa falta de envolvimento pode tornar tudo superficial. No caso de relacionamentos, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman já havia identificado isso em seu livro “Amor Líquido” (editora Zahar, 2004). Para ele, a redução nas suas qualidades é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. Aceleram-se os inícios e os términos com o clique em um aplicativo. Troca-se, sem remorsos, aqueles que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Como professor, sinto isso na alteração do formato de cursos de extensão universitária. As pessoas desejam, cada vez mais, cursos rápidos e focados em um tema específico, para aplicação imediata no cotidiano. Cursos que oferecem uma visão analítica e estratégica, responsáveis pela formação de profissionais capazes de solucionar grandes problemas, perdem espaço.

Dou aulas presenciais e a distância. Essas últimas, apesar de dadas sempre ao vivo, ficam gravadas e muitos alunos talvez as vejam aceleradamente. Mas seria uma pena: mesmo as pausas nas aulas são importantes para a construção de um raciocínio e para a fixação do conteúdo. Se forem eliminadas, o aprendizado fica comprometido.

Ninguém questiona como as plataformas digitais se tornaram inestimáveis ferramentas de produtividade. É praticamente impossível viver hoje sem o que elas nos oferecem. Mas como qualquer ferramenta, elas precisam ser usadas com inteligência. Longe de representar “esperteza”, o abuso da “aceleração da vida” demonstra um letramento digital pobre da população.

Como diz o ditado, “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza”. A natureza continua seguindo seu ritmo natural, desacelerado. Não somos máquinas! Ao tentar subverter isso, trocamos bem-estar por ansiedade, produtividade por acúmulo insustentável. Esse não é o caminho a ser seguido.

 

Cena de “O Exterminador do Futuro” (1984), em que máquinas inteligentes querem exterminar a humanidade - Foto: reprodução

Qual será a próxima vítima da inteligência artificial?

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No dia 13, o sindicato dos atores de Hollywood se juntou à greve do sindicato dos roteiristas dos EUA, que acontece desde maio. É a primeira vez em 63 anos que as duas organizações cruzam os braços ao mesmo tempo, o que já impacta a produção de filmes e séries. Entre reivindicações mais convencionais, como melhores condições de trabalho e salários, os dois grupos preocupam-se com o impacto que a inteligência artificial terá em suas profissões.

Já debati longamente, nesse mesmo espaço, sobre a substituição de profissionais por essa tecnologia. Mas esse caso é emblemático porque são as primeiras grandes entidades trabalhistas que colocam isso na pauta de reivindicações para seus patrões.

É curioso porque, no atual estágio de desenvolvimento da inteligência artificial, não se vislumbra que ela substitua consistentemente atores ou roteiristas em grandes produções, como filmes ou séries. Isso não quer dizer que, com o avanço galopante de sua evolução, não possa acontecer em algum momento. Portanto, a reivindicação dos sindicatos visa uma proteção futura, contra um concorrente digital implacável que ainda está por vir.

O que me preocupa, no presente, são empresas de todos os setores que possam estar se preparando para usar a IA, do jeito que está, para substituir trabalhadores de “níveis mais baixos da cadeia alimentar”, mesmo quando isso resulte em produtos ou atendimentos piores para os consumidores. Aqueles dispostos a cortar custos de forma dramática, irresponsável e impensada representam um perigo muito maior que a tecnologia em si.

Como dizem por aí, “isso é tão Black Mirror!”


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Não me interpretem mal! Sou um entusiasta da inteligência artificial bem usada, e entendo que esse movimento não tem volta. E nem deveria ter: quando aplicada de forma consciente e responsável, a IA traz inegáveis benefícios a empresas e a indivíduos. Nós mesmos já somos muito beneficiados em nosso cotidiano, em incontáveis aplicativos em nosso celular, que só existem graças a ela.

Mas a inteligência artificial não é uma panaceia. E isso fica claro com o popularíssimo ChatGPT, lançado em novembro e que provocou uma explosão de discussões e de uso da IA, além de uma corrida para empresas demonstrarem que estão nesse barco. Depois do frisson criado pela sua capacidade de manter conversas consistentes sobre qualquer assunto, as pessoas começaram a perceber que muito do que ele fala são verdadeiras bobagens. A despeito dos melhores esforços de seus desenvolvedores, ainda é uma ferramenta sem compromisso com a verdade.

Mas isso não impede que pessoas e empresas usem a plataforma como um oráculo. Gestores vêm confiando em respostas da plataforma para oferecer serviços. Alguns chegam a alimentar o sistema com dados sigilosos de seus clientes, uma calamidade se considerarmos que a ferramenta não promete nenhuma segurança nisso.

Da mesma forma, algumas pessoas têm usado o ChatGPT para funções para as quais não foi desenvolvido, como “fazer terapia” com um sistema incapaz de desenvolver empatia ou que sequer sabe realmente o que está falando: todas essas plataformas simplesmente encadeiam palavras seguindo análises estatísticas a partir de uma gigantesca base de informações com a qual foram “treinadas”.

O problema não é, portanto, usar a tecnologia, e sim usar mal uma coisa boa! Se o objetivo for somente economizar custos, essa é uma “economia porca” que resulta em uma queda dramática na entrega ao público.

 

Exterminador do Futuro

No dia 18, James Cameron, diretor e roteirista de sucessos como “Avatar” (2009) e “Titanic” (1997), deu uma entrevista à rede de TV canadense CTV News, afirmando que a inteligência artificial não é capaz de produzir roteiros. “Não acredito que uma mente desencarnada, que apenas regurgita o que outras mentes vivas disseram sobre a vida que tiveram, sobre amor, sobre mentira, sobre medo, sobre mortalidade, tenha algo que vá comover o público”, disse.

Há um ponto essencial na fala de Cameron, que também foi diretor e roteirista de “O Exterminador do Futuro” (1984), em que máquinas inteligentes tentam eliminar a humanidade: precisamos entender que a inteligência artificial não é realmente criativa!

Ela apenas agrupa padrões e estilos para suas criações, mas não tem algo essencial a qualquer artista: a subjetividade. A nossa história de vida faz com que os padrões que aprendemos sejam inspiração para nossa criatividade, e não uma limitação. A máquina, por outro lado, fica restrita a eles, sendo incapaz de alterá-los.

Mas eu não me iludo: o que puder ser automatizado será. Funções cujos trabalhadores atuam de forma previsível, seguindo regras muito estritas, já estão sendo substituídas por robôs. Em situações como essas, a máquina desempenha as tarefas de maneira mais rápida, eficiente e barata. A qualidade das entregas ao cliente pode até melhorar!

Nos demais casos, a inteligência artificial não deveria ser usada como uma ferramenta para substituir profissionais, e sim para torná-los mais eficientes em suas atividades, oferecendo-lhes sugestões e informações que jamais conseguiriam ter sozinhos, pelas suas limitações humanas.

Em outra frente, o Google está testando, com alguns jornais, um sistema baseado em inteligência artificial capaz de escrever textos a partir de informações que lhe forem apresentadas. Em um comunicado, a empresa disse que “essa ferramenta não pretende e não pode substituir o papel essencial que os jornalistas têm em reportar, criar e verificar os fatos”, devendo ser usado como um apoio a esses profissionais, liberando seu tempo para tarefas mais nobres. Resta saber se, uma vez lançado, o produto não será usado por editores para enxugar mais as já minguadas redações, mesmo que isso resulte em publicações suscetíveis a erros e menos criativas.

Na mesma entrevista, Cameron explicou que, sobre os roteiros, “nunca é uma questão de quem os escreveu, mas de serem boas histórias”. Só faltou definir, de maneira inequívoca, o que é “boa”. Alguns filmes têm roteiros escritos por humanos que são muito ruins. Para escrever aquilo, talvez a inteligência artificial bastasse.

Isso vale para roteiristas, atores, jornalistas e qualquer profissional que se sinta ameaçado pela tecnologia. A melhor proteção que podem ter contra os robôs é fazer melhor que o que eles são capazes de entregar.

Nós, como clientes de todos esses serviços, também temos um papel importante: não podemos aceitar que produtos ruins nos sejam empurrados. Muitos gestores tentarão usar esses recursos assim! Com isso, perderemos nós e os profissionais, todos vítimas dessa “tecnoganância”. Isso não pode passar e muito menos se normalizar.

 

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen - Foto: reprodução

Não podemos mais acreditar no que nossos olhos veem

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São Tomé ficou famoso por dizer que precisava “ver para crer” que Jesus havia ressuscitado. Seu pedido está associado ao fato de que, de todos os nossos sentidos, a visão é o que transmite mais segurança e confiabilidade. Se vemos algo acontecendo diante de nós, nosso cérebro entende aquilo como verdadeiro. Mas o avanço tecnológico, capaz de criar imagens falsas cada vez mais críveis, coloca isso em xeque e dispara alguns alertas.

Na segunda passada, o comercial “Gerações”, criado em comemoração aos 70 anos da Volkswagen no Brasil, provocou polêmica ao colocar a cantora Elis Regina (morta em 1982) cantando ao lado da filha Maria Rita. Elis aparece no filme dirigindo um antigo modelo de Kombi (que deixou de ser produzida no Brasil em 2013), enquanto a filha aparece ao volante de uma ID.Buzz, furgão elétrico recém-lançado, chamado de “Nova Kombi”.

Muitas pessoas questionaram o uso da imagem de Elis em algo que nunca fez (ou que pelo menos não há nenhum registro): cantar “Como Nossos Pais” enquanto dirige uma Kombi. O debate é válido, mas não me preocupo tanto com o uso da tecnologia dessa forma. Afinal, os produtores do comercial nunca propuseram enganar o público para que achasse que Elis estivesse viva e jovem.

O que me deixa tenso é o uso dessa tecnologia por pessoas inescrupulosas para deliberadamente distorcerem a realidade e enganar as massas para seu benefício. Quando isso acontecer, talvez nossos olhos já não sejam mais suficientes para nos garantir o que é verdadeiro.


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Para viabilizar o dueto entre Elis Regina e Maria Rita, a agência AlmapBBDO trabalhou com duas tecnologias: o “deep fake” e o “deep dub”. Elas já existem há alguns anos, mas a qualidade do que criam vem crescendo exponencialmente.

O primeiro “mapeia” os rostos de uma pessoa que é gravada em vídeo e o de quem efetivamente aparecerá na imagem final. Com isso, o sistema recria o vídeo com o segundo rosto no lugar do primeiro, fazendo exatamente os movimentos da pessoa original. Na peça da Volkswagen, a atriz Ana Rios gravou as cenas dirigindo a Kombi e fazendo movimentos típicos de Elis Regina. Quando o sistema trocou seu rosto pelo da cantora, é como se ela mesma estivesse lá.

Como a voz usada era de uma gravação da própria Elis, entrou em cena o “deep dub”. Sua função é modificar imagens já criadas para que exista um perfeito sincronismo entre a voz e o movimento dos lábios.

Apesar de o comercial ter agradado pela sua criatividade, sensibilidade e uso inteligente da tecnologia, muita gente o criticou por usar a inteligência artificial para criar imagens inéditas de alguém que já morreu. Mas não se trata de violação do direito de imagem. Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), explica que, quando alguém morre, esse direito passa a seus herdeiros.

“Mas é sempre importante considerar que eventualmente o próprio falecido não tivesse a intenção de participar post-mortem de atividades com sua imagem”, acrescenta Crespo. Ele explica que, nesse caso, a pessoa deve manifestar explicitamente sua contrariedade ainda em vida.

A publicidade se vale desde sempre de imagens de pessoas famosas que já se foram, com fotos ou filmagens antigas para montagens, e até o uso de atores maquiados para se parecer aos falecidos. A diferença agora é o uso da tecnologia para tornar tudo muito realista.

 

Limites éticos

De toda forma, o debate em torno do comercial foi interessante para se questionar se há um limite ético e moral para o uso dessa tecnologia, com pessoas vivas ou mortas.

Da mesma forma que devemos ver isso cada vez mais em produções audiovisuais, devemos estar preparados para encarar uma avalanche de “deep fakes” criados com o objetivo de prejudicar outras pessoas. Isso tampouco é novo, mas, como explica Crespo, “ficará mais difícil, a olho nu, detectar o que é verdadeiro e o que é uma construção baseada em inteligência artificial”, restando aos peritos identificar as falsificações. “O desafio, daqui pra frente, é que será mais comum ver esse tipo de debate na Justiça, com discussões sobre vídeos”, acrescenta.

Muitos profissionais estão preocupados que categorias inteiras desapareçam graças a essas tecnologias. É o caso dos dubladores. Seu trabalho artístico envolve fazer as falas traduzidas combinarem, tanto quanto possível, com o movimento dos lábios do ator no idioma original.

Agora as plataformas de inteligência artificial podem “aprender a voz” dos atores para recriá-la em qualquer idioma. Dessa forma, seria possível ter, por exemplo, Tom Hanks falando não apenas seu idioma nativo (o inglês), como também português, alemão, russo ou japonês, sem nenhum sotaque e com os lábios no vídeo perfeitamente sincronizados com sua fala em todos os idiomas.

De certa forma, isso ofereceria um produto mais interessante para o público e a produção das versões internacionais ficaria muito mais barata e rápida para os estúdios. Mas também significaria o fim da categoria dos dubladores. Esse não é um problema tecnológico, e sim social, e os países precisam se debruçar sobre um tema trabalhista sem precedentes.

No último dia 13, o músico Paul McCartney revelou que a voz de John Lennon havia sido extraída e aperfeiçoada por inteligência artificial a partir de uma antiga gravação. Nesse caso, a tecnologia não sintetizou nada, mas foi usada para captar a voz de John. Isso permitirá que, até o fim do ano, o mundo conheça uma nova música dos Beatles, apesar de Lennon ter sido assassinado em 1980 e de George Harrison ter morrido em 2001. Além de Paul, Ringo Starr também está vivo.

Por tudo isso, esse debate é válido e necessário. A tecnologia está madura e será cada vez mais usada, tanto em atividades lícitas quando na prática de crimes. Nosso desafio é sermos capazes de identificar o que é verdadeiro e o que é falso, e, nesse caso, se se trata de um uso legítimo, como no comercial da Volkswagen.

Uma educação de qualidade para todos fica ainda mais necessária para que as pessoas desenvolvam um senso crítico apurado. Ela é a melhor ferramenta que temos para fugir de arapucas digitais que coloquem em nosso caminho. Infelizmente esse é um investimento de longo prazo, enquanto a tecnologia avança de maneira galopante.

 

Matt Hicks, CEO da Red Hat, durante a abertura do Red Hat Summit 2023: “esse é o momento da IA” - Foto: Paulo Silvestre

Inteligência artificial produz coisas incríveis, mas não podemos perder nosso protagonismo

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Estive na semana passada em Boston (EUA), participando do Red Hat Summit, maior evento de software open source do mundo. Apesar desse modelo de desenvolvimento de programas aparecer a todo momento, a estrela da festa foi a inteligência artificial. E algo que me chamou a atenção foi a preocupação da Red Hat e de seus executivos em demonstrar como essa tecnologia, por mais poderosa que seja, não deve fazer nada sozinha, precisando ser “treinada” com bons dados, com o ser humano ocupando o centro do processo.

O próprio CEO, Matt Hicks, abriu a conferência dizendo que esse é o “momento da IA”. Muitos dos principais anúncios do evento, como o Ansible Lightspeed e o OpenShift AI, embutiam um incrível poder da inteligência artificial na automação de tarefas, como geração de código a partir de pedidos simples em português, liberando o tempo das equipes para funções mais nobres.

Isso não quer dizer, entretanto, que os profissionais possam simplesmente “terceirizar” o raciocínio e a sua criatividade para as máquinas. Pelo contrário, por mais fabulosas que sejam essas ferramentas, elas pouco ajudam se o usuário não conhecer pelo menos o essencial do que os sistemas produzem.

Tanto é verdade que assistimos a casos de pessoas e de empresas que enfrentam grandes contratempos por usar plataformas generalistas de inteligência artificial (como o ChatGPT) de maneira descuidada. Precisamos ter em mente que, por mais que ela chegue a parecer mágica, não é infalível!


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Foi o que aconteceu recentemente com o advogado americano Steven Schwartz, da firma Levidow, Levidow & Oberman, com mais de 30 anos de experiência: ele enfrentará agora medidas disciplinares por usar o ChatpGPT para pesquisas para o caso de um cliente que processava a Avianca. Tudo porque apresentou à corte um documento com supostos casos semelhantes envolvendo outras empresas aéreas.

O problema é que nenhum desses casos existia: todos foram inventados pelo ChatGPT. Schwartz ainda chegou a perguntar à plataforma se os casos eram reais, o que ela candidamente confirmou. É o que os especialistas chamam de “alucinação da inteligência artificial”: ela apresenta algo completamente errado como um fato, cheia de “convicção”, a ponto de conseguir argumentar sobre aquilo.

“Nessa nova fase, temos que conhecer a pergunta para qual queremos a resposta”, explicou-me Hicks, em uma conversa com jornalistas durante o Summit. “Se você for um novato, poderá criar melhor, mais rápido; se for um especialista, poderá melhorar muito o que faz e usar seu domínio para refinar a entrega”, concluiu.

Para Paulo Bonucci, vice-presidente e gerente-geral da Red Hat para a América Latina, “não adianta você chegar com inteligência artificial assustando a todos, dizendo que vai faltar emprego”. Para o executivo, a transformação que a inteligência artificial promoverá nas empresas passa por uma transformação cultural nos profissionais. “A atenção principal enquanto se desenvolvem os códigos e as tecnologias de inteligência artificial são as pessoas, são os talentos”, acrescenta.

Chega a ser reconfortante ver lideranças de uma empresa desse porte –a Red Hat é a maior empresa de soluções empresariais open source do mundo– demonstrando essa consciência. Pois não se enganem: a inteligência artificial representa uma mudança de patamar tecnológico com um impacto semelhante ao visto com a introdução dos smartphones ou da própria Internet comercial.

A diferença é que, no mundo exponencial em que vivemos, as transformações são maiores e os tempos são menores. E nem sempre as empresas e ainda mais as pessoas têm sido capazes de absorver esse impacto.

 

Corrida do ouro

Infelizmente o que se vê é uma corrida tecnológica, que pode estar atropelando muita gente por descuido e até falta de ética de alguns fabricantes. “Existem empresas grandes que fazem anúncios quando sua tecnologia não está madura”, afirma Victoria Martínez, gerente de negócios e data science da Red Hat para a América’ Latina. “Essa corrida tornou-se muito agressiva”.

É interessante pensarmos que as pesquisas em inteligência artificial existem há décadas, mas o assunto se tornou um tema corriqueiro até entre não-especialistas apenas após o ChatGPT ser lançado, em novembro. Não é à toa que se tornou a ferramenta (de qualquer tipo) de adoção mais rápida da história: todos querem usar o robô para passar para ele suas tarefas. E, graças a essa corrida, isso tem sido feito de maneira descuidada, pois alguns fabricantes parecem não se preocupar tanto com perigos que isso pode representar.

“Isso é uma coisa que a gente deveria estar discutindo mais”, sugere Eduardo Shimizu, diretor de ecossistemas da Red Hat Brasil. “Entendo que nós, não só como especialistas em segurança ou em tecnologia, mas como seres humanos, precisamos discutir esses temas éticos da forma de usar a tecnologia”, acrescenta.

Martínez lembra das preocupações que educadores vêm apresentando sobre o uso de plataformas de IA generativas, como o próprio ChatGPT por crianças. “Não podemos esquecer de aprender o processo”, alerta. Em uma situação limite, seria como entregar uma calculadora a uma criança que não sabe sequer conceitualmente as quatro operações básicas. Ela se desenvolveria como um adulto com seríssimos problemas cognitivos e de adaptação à realidade.

Por isso, a qualquer um que não saiba fazer uma divisão deveria ser proibido usar uma calculadora. Por outro lado, para quem domina suficientemente a matemática, a calculadora e mais ainda uma planilha eletrônica são ferramentas inestimáveis.

É assim que devemos encarar essa mudança de patamar tecnológico. Como escreveu Hicks em um artigo recente, “não sabemos o que o futuro reserva –nem mesmo o ChatGPT é precognitivo ainda. Isso não significa que não podemos antecipar quais desafios enfrentaremos nos próximos meses e anos.”

Quaisquer que sejam, quem deve estar no comando somos nós. Os robôs, por sua vez, serão ajudantes valiosíssimos nesse processo.


Você pode assistir à íntegra em vídeo das minhas entrevistas com os quatro executivos da Red Hat. Basta clicar no seu nome: Matt Hicks, Paulo Bonucci, Victoria Martínez e Eduardo Shimizu.

 

Cena de “Tempos Modernos” (1936), em que Charles Chaplin já criticava a automação do trabalho – Foto: reprodução

Que empregos a inteligência artificial deixará para nós?

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As grandes empresas de tecnologia continuam “passando o facão” em suas equipes no mundo todo. Em 2022, foram cerca de 150 mil demitidos; nesse ano, já são quase 100 mil. A maior parte dos cortes está associada a uma adequação dos times depois de grandes contratações na pandemia e pela crise nos EUA, mas especialistas indicam que podemos estar observando mudanças profissionais patrocinadas pela inteligência artificial em ascensão.

Não se trata de ficção científica distópica. Desde que o ChatGPT, o sistema produtor de textos da OpenAI, foi lançado no dia 30 de novembro, a quantidade de aplicações para a chamada “inteligência artificial generativa” não para de crescer.

Se antes o risco de substituição de trabalhadores humanos por máquinas era restrito a funções menos especializadas e criativas, essa tecnologia agora impacta trabalhadores que se sentiam “protegidos dos robôs” pela sua formação. E como o avanço das capacidades digitais acontece exponencialmente, alguns começam a se perguntar que empregos restarão em breve para humanos diante de máquinas cada vez mais eficientes.


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Na semana passada, a Amazon anunciou o corte de 9.000 funcionários no mundo, totalizando 27.000 vagas a menos desde novembro. Uma semana antes, a Meta (dona do Facebook) disse que demitirá outros 10.000 profissionais e congelará 5.000 contratações, somados aos 11 mil funcionários demitidos globalmente há três meses.

Um estudo divulgado no final de janeiro e feito sobre os cortes de 2022 indicou que supreendentemente a maior parte dos demitidos foi de funções ligadas a recursos humanos –27,8%– e não a tecnologia –que vieram na sequência, com 22,1%. Segundo a consultoria 365 Data Science, responsável pela pesquisa, isso se explica em parte por essas empresas estarem necessitando menos de analistas de RH, mas também porque grande parte do processo de recrutamento (e até de demissões) passou a ser automatizado pela inteligência artificial.

Coincidência ou não, algumas das que mais demitiram estão realizando investimentos massivos no tema. A Microsoft, que cortou 10 mil funcionários no fim de 2022, anunciou ao mesmo tempo um investimento estimado em US$ 10 bilhões na OpenAI. A Alphabet (controladora do Google), que mandou para casa 12 mil pessoas, lançou na semana passada o Bard, seu sistema concorrente do ChatGPT.

Outro estudo, realizado por pesquisadores da Universidade da Pensilvânia (EUA) e da OpenAI, concluiu que 80% dos trabalhadores americanos podem ter pelo menos 10% de suas tarefas afetadas por essa tecnologia, com 19% deles tendo que encarar metade do que fazem sendo tomado pela máquina. A influência abrange todos os níveis salariais, com empregos de renda mais alta sendo mais afetados.

“O importante é não entrar em estado de negação quanto ao avanço da tecnologia e estar aberto ao aprendizado contínuo através da empresa ou autodesenvolvimento”, explica a consultora de carreira Ticyana Arnaud. Isso está em linha com os pesquisadores da 365 Data Science, que afirmam ser essencial possuir a capacidade de se adaptar e se manter atualizado com as mais recentes inovações tecnológicas.

 

Aprender a aprender

“O indivíduo deve ser verdadeiramente protagonista de sua própria aprendizagem”, explica Karen Kanaan, sócia da École 42 no Brasil, uma escola francesa de tecnologia que forma profissionais a partir de projetos em que necessariamente precisam colaborar uns com os outros. “Deve ser uma formação que estimule que ele busque aprender a aprender, a colaborar, a ter empatia, a pensar de forma crítica, a ter criatividade e raciocínio lógico”, completa.

Como acontece com toda nova tecnologia, ela acaba extinguindo profissões inteiras, enquanto cria oportunidades. Isso acontece desde o início da Revolução Industrial, no século XVIII. A diferença é que, em mundos digitais, o tempo para que as pessoas se adaptem é muito menor, o que se agrava porque os novos ofícios exigem habilidades básicas que a maioria da população não tem.

Como disse no sábado ao Estadão o economista José Pastore, “a destruição (de empregos) é rápida e visível; a criação é lenta e é invisível”. Para o professor da FEA-USP, “isso traz impactos sociais imediatos, e apavora todo mundo.”

O mesmo Estadão trouxe uma reportagem sobre novas profissões ligadas a inteligência artificial, cujos salários chegam a R$ 20 mil. Apesar de a maioria estar, de alguma maneira, associada à área de TI, é importante observar que a adoção de inteligência artificial necessita de equipes multidisciplinares, para “treinar” as plataformas em tarefas dos mais diversos setores da economia. Além disso, algum domínio da tecnologia vem se tornando essencial em todas as carreiras.

Isso aparece na origem dos estudantes da École 42, cujo curso equivale a uma formação em engenharia de software. A maioria não vem da área de tecnologia e trazem, na sua bagagem, carreiras tão distintas quanto publicitários, cozinheiros, médicos e cabelereiros. E todos podem adquirir as novas habilidades de TI.

“É preciso conhecer seus limites, valores, o que gosta, o que sabe, o que quer fazer para levar uma vida que seja relevante, antes de tudo, pra si”, explica Kanaan. E isso é algo que a inteligência artificial não consegue fazer. Para ela, “um indivíduo criativo, capaz de imaginar, raciocinar consegue se adaptar a qualquer movimento.”

Em outras palavras, ninguém está “seguro”, mas também não precisa se desesperar. “A inteligência artificial fomenta a importância de uma vida voltada ao aprendizado”, afirma Arnaud. Temos que estar sempre atentos às tendências com implicações em nosso trabalho, aprendendo o que há de novo.

Muitas pessoas podem dizer que “falar é fácil”, e não as julgaria por isso. Talvez fosse mesmo mais confortável o mundo de 30 anos atrás, quando o que se aprendia na faculdade era suficiente para chegar até a aposentadoria.

Isso ficou literalmente no passado. Agora somos obrigados a estar em constante movimento. Mas isso pode ser uma incrível oportunidade, não apenas para continuarmos profissionalmente relevantes, mas para nos tornarmos pessoas melhores. Esse é o melhor caminho para os robôs não nos alcançarem.

 

Imagens inéditas geradas pelo Lensa, que usa inteligência artificial para criá-las a partir de outras fotos do usuário

Como nos defender das armadilhas da inteligência artificial

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Se alguém ainda tinha dúvida de como a IA (inteligência artificial) está disseminada em nossas vidas, dois sistemas movidos por essa tecnologia possivelmente acabaram com ela ao inundar as redes sociais nos últimos dias com conteúdo que produzem. O primeiro foi o Lensa e seus retratos estilizados de nossos amigos, e o outro foi o ChatGPT com textos incríveis que escreve a partir de simples comandos. De quebra, ambos escancararam como podemos pautar escolhas pessoais pelas sugestões da IA, às vezes sem ter plena noção disso. E essa nossa inocência esconde um grave problema, pois, apesar de os resultados dessa tecnologia parecerem incríveis, podem embutir falhas graves, que nós engoliremos alegremente.

Sou um entusiasta do que a inteligência artificial pode nos brindar nos diferentes campos do saber. Se bem utilizada, ela pode trazer ganhos que nos levarão a um nível de produtividade inédito. Mas precisamos dosar a euforia e entender que não existe almoço grátis.

Tudo porque a inteligência artificial não é inteligente de fato! Sim, esses sistemas efetivamente aprendem à medida que são usados e com seus próprios erros. Mas a qualidade de suas entregas depende do material usado para sua “educação” e até da índole de seus usuários. Assim como acontece com uma criança, se ela for mal instruída, repetirá tudo de ruim que tiver aprendido.

A diferença é que, ao contrário da criança com seu alcance limitado, plataformas com inteligência artificial mal instruídas podem influenciar negativamente milhões de pessoas com isso.


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Em setembro, a IBM divulgou um estudo global que indicou que 41% das empresas brasileiras já adotam IA. Ironicamente, muitas não sabem disso, porque ela está por trás de aplicações que se tornaram corriqueiras. E, da mesma forma que a inteligência artificial se presta a criar inocentes retratos a partir de outras fotos, pode ser o motor de sistemas empresariais para se tomar decisões de milhões de reais.

Há um outro aspecto que não pode ser ignorado: a IA também está no coração de incontáveis aplicativos em nossos smartphones e nas redes sociais. E, como já debatemos nesse espaço incontáveis vezes, essas plataformas têm um incrível poder de nos influenciar.

Em outras palavras, uma IA “mal orientada” pode não apenas nos fazer perder muito dinheiro, como ainda provocar diferentes danos no âmbito pessoal.

Não entendam isso como uma visão apocalíptica da tecnologia. Pelo contrário, a inteligência artificial quase nos dá “superpoderes”, ou pelo menos habilidades que nós eventualmente não tenhamos, como tirar uma foto incrível, escrever um texto brilhante ou evitar grandes riscos nos negócios. Entretanto, precisamos estar atentos para não achar que ela é infalível.

Há ainda um aspecto profissional a ser considerado. Com sistemas tão sofisticados cuspindo sensacionais fotos, textos ou contratos (só para ficar em alguns poucos exemplos), fotógrafos, escritores e advogados estão com seus empregos sob risco?

Por enquanto, isso não acontecerá por dois motivos. Em ambientes corporativos, essas plataformas acabam sendo usadas principalmente para mastigar grande quantidade de informações específicas para produzir um resultado de qualidade. Mas ainda é necessário um profissional que entenda do assunto para dar os comandos aos sistemas e confirmar suas entregas, fazendo eventuais correções de rumo. São necessárias ainda pessoas que produzam os conteúdos “originais” que os alimentarão.

Na verdade, uma nova profissão pode surgir disso: os “prompt designers”, capazes de extrair o melhor dessas plataformas. E eles também precisam de conhecimento na área do saber que o sistema trabalho. Fazendo uma analogia, é como comparar alguém que sempre consegue boas respostas do Google porque sabe fazer boas perguntas com a maioria dos usuários, que só recebem as páginas mais óbvias.

 

Máquinas preconceituosas

Há ainda um ponto de atenção central nessa tecnologia: os vieses que ela pode desenvolver. Sim, uma máquina pode verdadeiramente se tornar preconceituosa! Tanto que esse foi um dos temas centrais do World Summit AI Americas, um dos maiores eventos do setor no mundo, do qual participei em maio, em Montréal (Canadá).

Como disse anteriormente, para sistemas de IA oferecerem boas respostas, eles precisam ser ensinados com bons conteúdos e por bons usuários. Quanto pior qualquer um deles for, piores serão os resultados. E isso vale também para preconceitos.

Um exemplo clássico são sistemas de recrutamento profissional com inteligência artificial. Eles analisam milhares de currículos e escolhem poucos candidatos que seriam os mais adequados para que o RH os entreviste. Se, a cada contratação, o sistema identifica que os recrutadores humanos nunca escolhem alguém com mais de 40 anos, ele passará a indicar apenas candidatos até essa idade. Ou seja, o sistema terá incorporado o preconceito dos recrutadores contra profissionais mais velhos.

Outro tipo de viés desses sistemas pode ter efeitos nefastos na autoimagem das pessoas. Filtros do Instagram e do TikTok, e o próprio Lensa já foram acusados de gerar imagens com a pele mais clara e lisa do que as pessoas realmente têm, com rostos mais simétricos e magros, com narizes mais finos e lábios mais carnudos e até com aparência mais jovem. Dessa forma, reforçam ideais de beleza, às vezes inatingíveis.

Muitas pessoas, especialmente mulheres, têm pedido a cirurgiões plásticos para ficarem como vistas nesses aplicativos, mas isso não é possível, podendo causar enorme frustração com o próprio corpo. E isso dispara sinais de alerta e abre muitas reflexões.

Pode parecer irônico que uma tecnologia nos faça avaliar muito de nossa própria humanidade. Afinal, por que tanta gente criou suas imagens com o Lensa? Foi só um “efeito manada”? É um movimento egocêntrico ou narcisista? Foram mais uma vez controladas pelas redes sociais? Ou estão, de alguma forma, querendo “reescrever” sua própria realidade?

Qualquer que seja a resposta, a inteligência artificial ocupará um espaço cada vez maior em tudo que fizermos, conscientemente ou não. Ela realmente tem o potencial de fazer nossas vidas mais fáceis, divertidas, rápidas. Apenas não podemos usá-la para distorcer a realidade ou –pior ainda– sermos vítimas desses vieses e preconceitos. Precisamos conhecer e nos apropriar da tecnologia para algo bom, sem nos afastar do que somos!

Afinal, por mais que a realidade possa ser dura às vezes, é nela que temos nossas melhores experiências, que desencadeiam as verdadeiras transformações em nós mesmos. E é a partir delas que crescemos como indivíduos.

 

“Matemática ruim” e baixa identificação de jovens com TI fazem Brasil importar tecnologia

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Na semana passada, publiquei nesse espaço uma reportagem que indicava como o setor de TI no país “rouba” profissionais de outras áreas para suprir um déficit de formação universitária que pode passar de meio milhão de trabalhadores até 2025. Mas, se a procura é tão grande e essa área paga tão bem, é natural perguntar por que então não temos mais pessoas procurando por essas graduações.

Apesar de a pergunta ser simples, a resposta é complexa. A procura existe, os cursos estão cheios, entretanto poderia ser mais. Isso começa por um interesse relativamente baixo pelo aprendizado de Matemática, passa por questões culturais e familiares, choca-se com barreiras para grupos sociais nessas profissões e desemboca em um Ensino Médio Técnico que poderia suprir muitas dessas necessidades do mercado.

É uma combinação que demonstra como o problema é sistêmico, prejudicando profissionais, empresas e a própria sociedade. Os primeiros perdem oportunidades, as segundas pagam caro por trabalhadores e a última enfrenta o fato de que importa tecnologia ao invés de produzi-la nacionalmente, aproveitando a criatividade brasileira.

Da mesma forma que todos sofrem com o problema, a responsabilidade para sua solução precisa envolver a sociedade como um todo.


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“A escolha da profissão tem a ver, entre outras coisas, com o status social”, explica Ana Paula Gaspar, especialista em tecnologia e educação. “Falta uma dimensão subjetiva e humana na análise desses fenômenos sociais, porque as pessoas não escolhem apenas por conta de quanto vão ganhar.”

Segundo ela, não se pode esperar que jovens se decidam por uma graduação de Engenharia se eles não tiverem acesso a produtos com boa engenharia. “Então é muito natural que uma criança deseje mais ser youtuber que astronauta, porque tem a ver com o que ela consome”, explica. “E há esses dados escabrosos que mostram que muitos ainda têm dificuldade de estar no mercado de trabalho por conta de preconceito de classe ou de raça”, acrescenta.

“É um pressuposto equivocado da cultura brasileira de que o profissional, para trabalhar, precisa sair do ensino universitário”, afirma Marcelo Krokosc, diretor do Colégio FECAP, em São Paulo. Segundo ele, países da América do Norte e da Europa têm um Ensino Técnico muito valorizado, que supre parte da demanda por profissionais. “O aluno que faz o Ensino Técnico sai preparado para o mercado de trabalho com 17 anos, porque já veio aprendendo aquilo que tem interesse”.

Alunos de cursos técnicos de TI levam vantagem se prosseguem na área no Ensino Superior. David de Oliveira Lemes, diretor da Faculdade de Estudos Interdisciplinares da PUC-SP, explica que muitos deles chegam com uma maturidade em Matemática e aspectos técnicos que os demais estudantes não costumam ter. “Já passaram por alguns percalços, já ‘sofreram’ com programação, com Matemática, com Lógica”.

O aprendizado deficiente em Matemática acaba atrapalhando na escolha e no desenvolvimento nessas carreiras. “A educação matemática no Brasil é muito pobre: entre alunos que saem do Ensino Médio, apenas 5% têm a proficiência necessária para essa etapa”, explica Gaspar.

“Nos anos iniciais, a escola deve manter o interesse pela Matemática da mesma forma como mantém pela alfabetização”, afirma Krokosc. Ele conclui que “as famílias devem vibrar quando o filho lê uma palavra, mas também quando faz uma conta”.

Gaspar explica que essa baixa qualidade matemática no país se deve a como ela chegou por aqui, por uma influência francesa de uma “matemática pura”, sem ser aplicada e com a “matemática do dia a dia” desvalorizada. “Se a matemática que chega na escola está muito distante da realidade dos alunos, é um problema”, conclui.

 

Novos caminhos

Lemes acredita que a nova BNCC –a Base Nacional Comum Curricular, o conjunto de regras que determina como escolas devem organizar seus currículos e propostas pedagógicas– pode melhorar o ensino da disciplina. Ele explica que, “com ela, os professores precisam aplicar a Matemática em situações dentro e fora da escola, não só naquele contexto da Matemática pura”.

Isso não pode ser encarado apenas como um problema escolar. Esses desafios afetam a sociedade em geral e todos precisam se unir para sua solução.

“A responsabilidade do governo é a formulação de políticas públicas, e a das instituições de ensino é a oferta, quantidade e qualidade de vagas”, explica Gaspar. Ela afirma que “o mercado ‘lava as mãos’ para a formação, porque acha que seu papel é dar emprego, fazer negócios e gerar renda”.

Mas essa é uma visão míope e ultrapassada, especialmente em uma área tão dinâmica quanto TI, em que o conhecimento envelhece muito rapidamente. Por isso, as empresas devem cuidar da formação contínua de seus profissionais.

Gaspar sugere que um profissional só poderia ser considerado sênior e fosse capaz de formar outras pessoas, mas isso hoje não é feito. “Daí fica todo mundo roubando sênior de todo mundo, ao invés de formar júnior”. E conclui: “se as pessoas não forem parte do resultado das empresas, a gente nunca vai sair desse buraco.”

Não há outro caminho viável: qualquer que seja a sua profissão, se você quiser continuar relevante no mercado, precisará continuar estudando até o último dia. Por outro lado, precisamos ajudar crianças e jovens a desenvolver as competências necessárias, tanto em linguagem, quanto em Matemática. Além disso, precisamos dar a eles exemplos e modelos para que façam escolhas profissionais conscientes.

Se apresentada do jeito certo, a Matemática pode ficar até mais divertida. “É muito interessante ver um aluno com o cubo mágico na mão ao invés do celular”, sugere Krokosc. Precisamos dela para uma leitura crítica do mundo e uma vida melhor.

“Fala-se que vai faltar muito programador, mas para qualquer profissão hoje, para ser cidadão no mundo, é preciso ter fluência em competências digitais”, afirma Gaspar. E não adianta que apenas um pequeno grupo social atinja isso, ou a sociedade não se desenvolverá plenamente, nem diminuiremos nossa dependência tecnológica de fora. Como diz Lemes, “a gente tem que ser o produtor de conhecimento!”

 

Mercado de TI sofre com baixa diversidade nas equipes, dominadas por homens brancos

Setor de TI “rouba” trabalhadores de outras áreas para compensar déficit profissional

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A oferta de empregos de tecnologia vem crescendo de maneira mais acelerada que a de outras áreas no Brasil. Até agosto desse ano, o segmento cresceu 5,1% comparado ao fechamento de 2021, frente a 3,7% de todos os setores. Isso acirra a disputa por talentos em um mercado onde literalmente sobram vagas e para o qual as universidades não conseguem suprir suas demandas.

Com isso, empresas do setor investem na formação dos profissionais que necessitam e até os “roubam” de outras áreas, oferecendo capacitação e condições atraentes para quem tope fazer uma transição de carreira. ONGs e as próprias universidades também investem em capacitações pontuais para diminuir esse déficit e evitar que o setor entre em crise.

Até o momento, isso tem sido suficiente, mas a demanda cresce de forma exponencial. Por isso, não há garantia de que esses movimentos continuem “tapando o buraco” de um segmento cada vez mais crítico para a sociedade. Além disso, eles não resolvem uma dor histórica da área, que é a baixíssima diversidade entre os profissionais, o que leva a entregas menos alinhadas com o que o mercado precisa.

Uma pergunta que surge naturalmente é: se há uma demanda explosiva por esses profissionais, por que o Brasil não consegue formá-los?


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Esses dados fazem parte de um levantamento recente feito pela Brasscom, a associação das empresas de TI e comunicação. Em dezembro, outro estudo da entidade apontou que o mercado brasileiro demandará 797 mil profissionais de TI entre 2021 e 2025, mas nossas universidades formam apenas 53 mil pessoas no setor por ano. Ou seja, se o país depender apenas dessas graduações, faltará mais de meio milhão de profissionais até 2025.

“Já era para a gente ter colapsado, mas não é o que está acontecendo”, afirma Sergio Paulo Gallindo, presidente da Brasscom. Para esse ano, o estudo previa uma demanda de 132.765 profissionais de TI, o que está se concretizando. E a demanda vem sendo atendida. “São profissionais de outras áreas, profissionais que já estão em cursos superiores e fazem uma capacitação em programação, passam por um processo seletivo e pegam um estágio ou um trabalho”, explica Gallindo.

Essa demanda, entretanto, cresce exponencialmente. Para 2025, o cálculo é de que sejam necessários 206.940 profissionais de TI. Para o executivo, a solução paliativa que está funcionando hoje pode não dar conta daqui a pouco: “a gente tem um dever de casa gigantesco para esse negócio não colapsar”.

Não adianta ficar apenas tentando alargar a saída do funil se, na sua boca, ele capta poucas pessoas para o setor. “No Ensino Básico, a gente incentiva pouco essa curiosidade pela ciência, pela engenharia, pela matemática, deixando de criar a vontade no adolescente de buscar uma faculdade nisso”, sugere Gustavo Bodra, CTO da StartSe. “E, se não há demanda, as universidades não criam mais cursos”, conclui.

Se a digitalização de negócios e de nossas vidas já crescia de maneira rápida antes da pandemia, ela fez com que isso explodisse. É como se todas as empresas, de repente, passassem a ser também uma empresa de TI. Para Bodra, “quem ainda pensa que não é, seu concorrente vai passar na frente”.

“Houve esse boom e o mercado de tecnologia como um todo não conseguiu formar pessoas na mesma velocidade”, explica Fernanda Saraiva, diretora de RH da SAP Brasil. Ela acrescenta ainda outro fator para a oferta insuficiente: muitos jovens entram nas faculdades, mas não as concluem porque não conseguem pagar. “Daí fica todo mundo pescando no mesmo aquário para conseguir profissionais”.

“O interesse dos jovens por carreiras de tecnologia é um dos mais baixos”, afirma Gallindo. Quanto à evasão, o estudo da Brasscom aponta que, para graduações presenciais na área tecnologia, chega a 32%. “E ela afeta muito as camadas menos favorecidas, onde você encontra negros e negras”, explica.

 

Baixa diversidade

De fato, o setor de tecnologia no Brasil é fortemente dominado por homens brancos, longe de refletir a diversidade da população. Segundo o Censo do Ensino Superior de 2019, realizado pelo INEP, ligado ao Ministério da Educação, as mulheres são maioria no ensino superior no Brasil, respondendo por 56,1%. Mas se considerarmos apenas as carreiras de tecnologia, essa porcentagem desaba para apenas 14,8%. Além disso, para cada estudante negro, há seis estudantes brancos.

“A diversidade nesse mercado vai fazer com que ele tenha uma visão mais holística para soluções de tecnologia que permitam atender a sociedade tão diversa na qual nós vivemos”, explica Cecília Marshall, fundadora do projeto Ser Mulher em Tech, que incentiva meninas a escolher carreiras no setor. “A liderança feminina traz um olhar diferenciado, como se pôde ver na gestão da pandemia, em que países liderados por mulheres tiveram resultados mais positivos”, acrescenta.

De fato, para um setor que respira inovação, ter equipes em que todos são iguais tende a piorar o negócio. “Não tem forma melhor de inovar que trabalhar com diferentes pontos de vista”, afirma Saraiva.

Gallindo acrescenta que as habilidades para tecnologia são equivalentes em todos os gêneros e raças. O predomínio de homens brancos no setor deriva, portanto, de aspectos culturais e econômicos.

Todos eles afirmam que políticas públicas de ensino devem incentivar o gosto pela área entre os jovens e patrocinar a diversidade, mas as empresas têm um papel decisivo nesse processo. Elas devem não apenas apoiar as escolas e os professores, como também os estudantes. E isso pode ser feito com capacitações, bolsas de estudo e iniciativas que mostrem aos jovens que matemática e ciências podem ser divertidas, e têm o poder de mudar o mundo, mas em linguagens que eles entendam. Dentro de casa, as companhias precisam criar métricas de diversidade e promover modelos de liderança com mulheres e negros: eles servem para inspirar jovens desses grupos que pensam em abraçar essas carreiras.

É um dilema enorme e complexo, mas que precisa ser discutido, em busca de uma solução. O mercado exige profissionais mais completos em todos os setores. Se, de um lado, profissionais de TI não podem mais “fugir”, por exemplo, de habilidades de comunicação, os de Humanidades precisam aprender aspectos técnicos para se destacar.

Essa é uma incrível oportunidade, pois a combinação desses recursos cria uma sociedade melhor, o que tem muito valor para quem deseja crescer no mercado. Todos devem, portanto, se envolver no incentivo dos jovens e no fomento à diversidade.

 

Elon Musk chegou ao Twitter carregando uma pia, em um trocadilho em inglês que significa “deixe isso afundar (“let that sink in”)

Megademissões expõem o poder e a fragilidade das redes sociais

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No dia 4, o Twitter demitiu sumariamente metade de sua força de trabalho global, algo como 3.700 funcionários. Cinco dias depois, foi a vez da Meta, empresa dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, colocar na rua nada menos que 11 mil profissionais, equivalente a 13% de seu quadro no mundo. Isso vem deixando muita gente apreensiva com um possível novo “estouro da bolha ponto-com”, como o que aconteceu no ano 2000. Afinal, esses números maiúsculos demonstram que mesmo empresas poderosíssimas são suscetíveis a erros de administração.

A diferença é que, no caso das plataformas digitais, se elas quebrarem, impactarão profundamente a vida de incontáveis usuários e empresas no planeta, fazendo com que a crise do ano 2000 se pareça a um soluço. Hoje, em um mundo hiperconectado, o cotidiano dessas pessoas –incluindo você– é muito ligado aos feeds dessas redes.

Entretanto, apesar da proximidade dessas megademissões, não vejo um novo “estouro de bolha” ou muito menos um caos no mercado de tecnologia. Sim, Meta e Twitter estão com problemas seríssimos –ainda que diferentes– que precisam ser resolvidos, mas é pouco provável que quebrem. O que há de comum entre elas é a íntima ligação de suas crises com suas respectivas lideranças.


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No ano 2000, eu trabalhava na America Online (AOL), a mais reluzente ponto-com que o mundo havia visto até então. Em janeiro daquele ano, a empresa iniciou a compra do grupo Time Warner, uma fusão de US$ 360 bilhões, a maior da história, criando um conglomerado que cobriria virtualmente todos os pontos da “nova” e da “velha mídia”.

Parecia o casamento perfeito, até que, dois meses depois, a “bolha ponto-com” estourou, motivada pela desconfiança do mercado com incontáveis negócios digitais que não passavam de ideias brilhantes, mas altamente deficitários. Muitos grandes nomes subitamente desapareceram, arrastando centenas de outras empresas.

As ações da America Online derreteram! Além disso, decisões empresariais equivocadas e a resistência das empresas originais da Time Warner ao novo modelo minaram a fusão, que acabou desfeita em 2009. A AOL sobrevive até hoje, com um modelo de negócios completamente diferente do daquela época. Em 2015, a Verizon comprou a empresa por US$ 4,4 bilhões e ela agora é uma sombra do que já foi.

Como se pode ver, ninguém está imune a más decisões e ao humor do mercado.

É o caso do “novo Twitter”, sob a direção de Elon Musk. Depois de uma conturbada aquisição da companhia por US$ 44 bilhões, concluída no dia 28 de outubro, as ações do homem mais risco do mundo e também CEO da fabricante de carros elétricos Tesla e da companhia aeroespacial SpaceX têm sido no mínimo polêmicas.

Suas primeiras decisões foram demitir por e-mail os principais executivos e metade dos funcionários da empresa, com o apoio de pessoas de seus outros negócios. Isso fez com que vários sistemas do Twitter parassem de funcionar, fazendo com que alguns demitidos fossem convidados a voltar. Mas o que se vê é o êxodo de mais funcionários e de anunciantes de peso. Além disso, outras decisões provocaram a explosão de notícias falsas na plataforma nesses dias.

Já o negócio de Zuckerberg vem sofrendo –assim como outros que dependem da publicidade online– com a crise americana e a guerra na Ucrânia. Além disso, o TikTok vem se demonstrando um concorrente implacável e mudanças nos controles de privacidade dos iPhones feriram profundamente o modelo de negócios da Meta.

Mas o maior problema tem sido sua incapacidade de avançar no metaverso, caminho em que Zuckerberg apostou suas fichas há um ano. Por isso, suas ações perderem 76% do valor no período, equivalente a US$ 730 bilhões! A Reality Labs, unidade de produtos do metaverso, apresentou sozinha um prejuízo de US$ 12 bilhões.

 

Negócios inchados

Zuckerberg fez um mea culpa, dizendo que exagerou no otimismo durante a pandemia, contratando mais gente que deveria. Esse é, de fato, um problema de muitas dessas empresas, que incharam com o distanciamento social e agora sofrem com um choque de realidade.

Outro exemplo é a Amazon, que viu suas ações caírem após o anúncio de lucros menores que o esperado, fazendo seu valor ficar abaixo de US$ 1 trilhão pela primeira vez desde o início de 2020. Com isso, no dia 3, a companhia anunciou que interromperia todas as contratações até segunda ordem e agora iniciou a demissão de dez mil funcionários.

Notícias assim amedrontam mercados, mas é uma situação bem diferente da “bolha ponto-com” do ano 2000. A crise atual impacta negócios firmemente estabelecidos e resulta de decisões ruins de suas lideranças, que podem corrigir seus rumos. Além disso, o mercado de tecnologia continua aquecido, com uma acelerada digitalização de negócios de todos os setores. Essa é uma excelente notícia para os profissionais da área, inclusive no Brasil.

O que se deve prestar atenção é que redes sociais não são empresas comuns. Como já explicado, qualquer movimento que façam tem o potencial de provocar grande alegria ou tragédias a seus bilhões de usuários, e isso não é um exagero. Nos últimos anos, em eleições ao redor do mundo (inclusive no Brasil), essas plataformas digitais foram decisivas para o abalo nas democracias, a partir de polarização da sociedade pela enxurrada de fake news e do discurso de ódio em suas páginas.

Por isso, o mundo está de olho em Elon Musk, que prometeu afrouxar os controles do Twitter sobre o conteúdo publicado na plataforma, em nome de sua ideia de “liberdade de expressão”. Até agora, o que se viu com suas atabalhoadas decisões foi o aumento de desinformação em torno das “eleições de meio de mandato”, que elegeram governadores, senadores e deputados nos EUA na terça passada.

Musk levou os carros elétricos a um novo patamar e criou o conceito de corrida espacial privada, que são feitos memoráveis. Mas pode descobrir que o impacto de centenas de milhões de usuários na sociedade pode representar um desafio muito mais difícil de ser superado.

Quanto a nós, os referidos usuários tão dependentes dessas plataformas, precisamos entender que estamos na mão dos algoritmos. Temos que aprender a nos beneficiar deles, mas não de uma maneira umbilical. Afinal, mesmo que hoje brilhemos nas redes, amanhã eles podem nos tornar irrelevantes online. Sem falar que as próprias empresas podem desaparecer, com ou sem estouro de bolha.

 

Falta “inteligência natural” para termos uma melhor inteligência artificial

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Tudo que puder ser automatizado será! Costumo responder assim quando me perguntam se determinado setor será impactado pela IA (inteligência artificial). Mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor escala, todo negócio será transformado por ela. A ironia é que isso só não acontece mais rapidamente por falta de “inteligência natural”, de profissionais capacitados para criar esses sistemas.

Apesar do avanço galopante da IA, chegando a um ponto em que as plataformas começam a se “autoprogramar”, ela ainda depende essencialmente de seres humanos para seu desenvolvimento. E com seu uso sendo disseminado para as mais diversas áreas, está faltando gente. No Brasil, essa situação chega a ser dramática!

O estudo “O impacto e o futuro da inteligência artificial no Brasil”, divulgado na semana passada pelo Google for Startups em parceria com a Associação Brasileira de Startups e a agência Box1824, indica que 57% dos gestores dessas empresas que trabalham com inteligência artificial acreditam que a falta de mão de obra qualificada é o que mais prejudica o seu crescimento no país.

Isso acontece porque as escolas formam poucos profissionais, e formam mal. Além disso, apesar de ser uma tecnologia que impacta a vida de todos, esse é um setor com pouquíssima diversidade, o que resulta em plataformas com vieses que comprometem a qualidade de suas entregas. E isso exige muita atenção de todos nós.


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Para o estudo, foram entrevistados profissionais de 702 startups no Brasil. Desse total, 71% afirmam que as escolas apresentam pouquíssimos exemplos de profissionais bem-sucedidos em tecnologia, e 41% dizem que educar e conscientizar o mercado sobre IA é o mais importante para o futuro dessa tecnologia no país. Além disso, para 39% dos entrevistados, a vulgarização do termo, com empresas que entregam soluções ruins no que dizem ser IA, prejudica uma adoção mais ampla pelo mercado.

Sobre a baixa diversidade nessas empresas, 49% delas não têm mulheres em cargos de liderança, assim como 61% no caso de pessoas negras, 71% de pessoas LGBTQIA+ e 90% de pessoas com alguma deficiência. Além disso, essas empresas estão fortemente concentradas nas regiões Sudeste e Sul, que englobam 92,7% do total. O Estado de São Paulo sozinho detém 51,9% delas.

Quando se fala de inteligência artificial, essa baixa diversidade não resulta apenas em um problema social. Esses sistemas precisam ser desenvolvidos e “calibrados”, o processo em que literalmente aprendem os parâmetros para oferecer respostas mais assertivas depois. E equipes homogêneas treinam mal as plataformas.

Por exemplo, se um sistema na área de RH começa a aprender que, de todos os candidatos que ele sugere, a maioria dos que acabam contratados é branca e com menos de 35 anos, ele tende a fazer mais sugestões que reflitam essas escolhas dos recrutadores, eliminando pessoas com mais de 40 ou negras. Ou seja, ele reproduz um viés da equipe. E isso acontece mais quando as equipes são pouco diversas.

Esse é o tipo de problema que não podemos ter, tamanha a crescente influência da inteligência artificial nas tomadas de decisões de pessoas e empresas, e os negócios que isso gera. Segundo estudo global da consultoria McKinsey, divulgado em outubro de 2018, ela deve gerar US$ 13 trilhões no mundo até 2030. Na América Latina, deve responder por um aumento de 5% no Produto Interno Bruto (PIB).

 

Mudança social

Mas há desafios que a sociedade precisa enfrentar para chegar a isso. Segundo a McKinsey, eles podem ser agrupados em três tópicos.

O primeiro é uma implementação consciente. Isso envolve o governo, pois empresas precisam ser incentivadas a desenvolver e adotar a inteligência artificial. Além disso, a sociedade precisa se beneficiar dela de forma ampla.

Outro ponto destacado é o impacto disso no mundo do trabalho. As escolas precisam formar mais profissionais qualificados nessa área. De acordo com levantamento da Brasscom, a associação das empresas do setor digital, o Brasil terá uma demanda de 797 mil profissionais de tecnologia até 2025, mas forma apenas 53 mil deles por ano. Não se pode esquecer como a inteligência artificial impacta diversos setores, impondo mudanças profundas em como as pessoas trabalham, e até extinguindo funções.

Por fim, há o desafio de uma IA responsável. A população não pode perder a confiança na tecnologia por problemas de vieses (como explicado anteriormente), falhas na privacidade de suas informações ou usos mal-intencionados por empresas ou governos. A inteligência artificial só prosperará se trouxer benefícios a todos.

Empresas, escolas, a mídia e até o governo precisam trabalhar para que as pessoas entendam a inteligência artificial como ela é, desmistificando os conceitos da ficção científica, de máquinas inteligentes capazes de fazer tudo, que eventualmente se voltam contra o ser humano. Na sexta, por exemplo, o Estadão publicou uma série de reportagens sobre inteligência artificial, que explica alguns dos mais poderosos sistemas hoje disponíveis.

Não dá para fugir do tema. Na quarta passada, participei de uma mesa-redonda promovida pela lawtech Doc9 durante a Fenalaw, o maior evento da área jurídica da América Latina. No cardápio da transformação digital do Direito, a inteligência artificial apareceu com força. Já existem diversos sistemas que agilizam enormemente tarefas repetitivas dos escritórios, com alto índice de acerto. Essa digitalização só não está mais avançada pelas resistências culturais dos gestores e pela falta de profissionais que consigam combinar as características dos mundos jurídico e digital.

A inteligência artificial não é uma panaceia, nem tampouco uma ameaça a empregos ou à própria vida (na visão apocalíptica da ficção). Ela é uma tecnologia com um potencial de provocar mudanças profundas na sociedade, oferecendo serviços inimagináveis até bem pouco tempo atrás. Mas, para que isso seja conseguido, precisamos fazer os movimentos aqui descritos.

Merecendo atenção destacada, a inteligência artificial elevará a produtividade e o crescimento econômico do mundo, mas milhões de pessoas terão que mudar de ocupação ou aprimorar suas habilidades. Isso exige atualizações na maneira de se fazer negócios e principalmente em políticas educacionais. E infelizmente nós estamos nos mexendo muito pouco, principalmente no último.

Se não fizermos os movimentos necessários, podemos enfrentar, em pouco tempo, um crescimento expressivo do desemprego e o surgimento de uma massa de “inempregáveis”, ou seja, pessoas sem capacitação para qualquer trabalho. Não podemos deixar que uma tecnologia com incrível potencial crie esses problemas.

Se isso acontecer, a culpa não será das máquinas: será de nós mesmos.

 

Cursos de curta duração podem ensinar habilidades pontuais, mas não oferecem todo o necessário para um mercado cada vez mais exigente

Os desafios na formação de um profissional moderno

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Com a busca pelo emprego cada vez mais competitiva e a educação se tornando um negócio milionário, a formação profissional do brasileiro vem se transformando, com muitos solavancos nos últimos anos. A graduação se tornou condição básica de acesso ao mercado de trabalho, restando à pós-graduação a tarefa de qualificar a mão de obra. E aí muita gente coloca tudo a perder.

Se agora essa etapa cria a diferenciação profissional, poderíamos supor que cursos mais longos, como especializações ou mestrados, em instituições consagradas, seriam os mais procurados. Entretanto, essas turmas estão cada vez mais vazias, dando lugar a cursos de curta duração, muitas vezes ministrados por escolas ou pessoas desconhecidas, e ofertados nas redes sociais a preços módicos.

Isso se deve a duas coisas em falta por aqui: tempo e dinheiro. Por isso, são raros os que conseguem estender seus estudos por mais alguns anos. As pessoas preferem aprender qualquer coisa para usar imediatamente, conseguir um emprego e colocar comida no prato.

Fica difícil criticar alguém por isso. Mas, a longo prazo, o Brasil corre o risco de se deparar com um enorme contingente de profissionais com habilidades limitadas, incapazes de enfrentar os desafios de um mercado cada vez mais exigente.


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Nesse país que parece ter perdido o direito de pensar a longo prazo e busca soluções instantâneas, a educação não foge da regra. “Eu sinto, nessa busca por cursos curtos, o imediatismo de resultado, uma falta de visão de se conectar a repertórios distintos, a vivências, a pensamentos diversos”, adverte Cátia Lassalvia, consultora e doutora na área de linguagens e tecnologias. Ela acrescenta que “os estudantes têm essa necessidade de ‘aprender urgentemente’, aquela coisa da sociedade da rapidez, da fluidez, do mundo líquido, junto com uma crise econômica.”

Celso Kiperman, CEO da +A Educação, concorda. Segundo o executivo, “a geração atual tem uma necessidade de soluções mais imediatas, tem menos paciência e menos tolerância, por isso procuram as que deem respostas mais rápidas e mais efetivas.”

Cursos de curta duração têm naturalmente grande valor. Eles são um caminho eficiente para corrigir falhas na formação profissional ou para adquirir novas habilidades. Mas, por serem muito mais fáceis de serem oferecidos, exigem cuidados adicionais do estudante. É preciso verificar as credenciais da instituição de ensino e dos professores, para evitar cair em verdadeiras arapucas, que proliferam se aproveitando da necessidade e inocência dos candidatos. “Para quem estiver querendo um diploma rápido, vai ter cada vez mais faculdades ofertando”, afirma Lassalvia.

A consultora vê uma precarização de políticas públicas educacionais, com a gestão da carreira deixada maquiavelicamente para uma pessoa às vezes mal preparada e desassistida. “Se ela estudou e se deu bem, é empreendedora de si mesma, mas, se não se deu bem, é problema dela”, explica.

“Pode até ter havido uma diminuição da qualidade, mas houve uma democratização”, contrapõe Kiperman. De fato, esse cenário facilita que mais pessoas adquiram novas habilidades rapidamente e sem gastar muito. “É então algo pontual, pragmático, para preencher lacunas, o que não é formação, mas informação”, afirma Lassalvia.

O problema de se fazer apenas esses cursos é justamente sua proposta de ensinar algo pontual. Isso não confere ao estudante a capacidade de conectar conteúdos complexos e diferentes, dando grandes saltos na carreira. “Essa busca por cursos em formato de pílula é muito bacana como algo complementar, mas não pode ser a formação principal”, explica a consultora. “Se o sujeito estiver fazendo algo e aparecer uma exigência maior, aquele aprendizado não comportará mais.”

 

Aprendendo a aprender

Talvez essa seja a grande diferença entre cursos pontuais e os mais longos, especialmente mestrados e doutorados: a capacidade de desenvolver conhecimento por conta própria, diante de novos desafios. É como ser capaz de misturar ingredientes para criar um novo prato, ao invés de ser restrito a seguir receitas sem questionamentos.

Isso só é possível graças a professores muito capacitados e que não se restringem a atender demandas imediatas, podendo se debruçar na pesquisa. Mas ironicamente uma crítica contundente de muitos profissionais tangencia justamente isso: a distância entre a universidade e o que mercado precisa.

“A academia é muito conservadora, reagindo lentamente às demandas da sociedade, às vezes a reboque delas”, afirma Kiperman. “O desenvolvimento tecnológico, antes capitaneado pela academia, hoje está dentro das empresas: de uma Amazon, de um Google, de um Facebook”.

Lassalvia acrescenta que as instituições de ensino precisam acompanhar a modernização do mundo. E isso não significa apenas investir em tecnologia. “É preciso trabalhar com metodologias ativas, é tentar inserir um pouco da vida fora da escola dentro dela”, sugere. “Não pode ser mais somente ensino baseado em conteúdo, que eu encontro no Google, no livro.”

Kiperman explica que, até 1998, as universidades brasileiras não podiam ter fins lucrativos. Isso fazia com que as poucas universidades então existentes se concentrassem na excelência acadêmica, deixando em segundo plano as necessidades do mercado. Por isso, as empresas pouco colaboravam financeiramente com as instituições. Isso criou um afastamento que permanece, em alguma escala, até hoje, apesar de ser desinteressante para todos.

O Brasil nunca demonstrou apreço pela educação, o que explica em parte a nossa dificuldade de nos consolidarmos como uma nação desenvolvida. Isso aparece, por exemplo, no desprestígio e nas condições de trabalho ruins dos professores, que chegaram a seu nível mais baixo nos últimos anos, com demissões em massa, perseguições e até agressões verbais e físicas.

Acompanho todos esses movimentos com apreensão. O surgimento de novos trabalhos muito bem remunerados e que exigem pouco estudo, como influenciadores digitais, pode diminuir ainda mais o apreço pela educação. Mas não podemos achar que basta ligar uma câmera para ficar rico. “Assim a gente vai ter um abismo de formação maior do que a gente teve nessas últimas décadas”, afirma Lassalvia.

Cursos rápidos são ferramentas modernas e eficientes para a formação profissional, desde que ministrados por professores qualificados, em instituições que se preocupem com a qualidade do ensino. Mas eles não podem levar à extinção de formações mais sofisticadas que, em última instância, são as que impulsionam toda a sociedade a patamares superiores de qualidade de vida e desenvolvimento.

Todos nós temos um papel nisso, ao valorizar a escola como espaço de aquisição de conhecimento e de valores de colaboração, tolerância, inclusão e respeito. As instituições de ensino, por sua vez, precisam se aproximar da sociedade e se modernizar no conteúdo e na forma. Enquanto tudo isso não acontecer, o Brasil continuará andando de lado no seu desenvolvimento.