Os mais recentes geradores de vídeo por inteligência artificial, lançados nas últimas semanas, põem o nosso discernimento à prova. Simplesmente não é mais possível saber o que é real! A impressionante capacidade de geração dessas plataformas permite que uma mentira suculenta se torne mais crível que uma verdade tristemente limitada pelos fatos, até para olhos treinados.
Isso era “crônica de uma morte anunciada”: todo mundo sabia que a tragédia aconteceria, mas ninguém fez nada para evitá-la. E se já não bastasse todo tipo de lixo produzido por IA sendo destacado pelos algoritmos das redes sociais (ao mesmo tempo que escondem bons conteúdos), esse recurso já é usado para enganar a população de maneira voraz, especialmente na política.
Já é bem ruim pessoas que não existem fazendo de tudo nos vídeos. Mais grave, entretanto, é ver, diante de nossos olhos, pessoas reais em atividades que nunca realizaram, muitas vezes comprometedoras.
Essa tecnologia já existe há algum tempo, mas, até então, seus desenvolvedores limitavam seu uso a pouquíssimos especialistas, enquanto buscavam maneiras para evitar que ela fosse usada indevidamente, uma precaução muito bem-vinda. Mas parece que agora mandaram os escrúpulos às favas, como se vê, aliás, em muitas outras atitudes das big techs desde o começo deste ano.
Quando tudo pode ser simulado com perfeição e quando passamos a desconfiar até do que é real, cria-se um ambiente de paranoia e cinismo. Essa erosão da confiança coletiva pode levar as pessoas a rejeitarem fatos documentados e a se refugiarem em teorias conspiratórias. E assim a democracia vai dando lugar à barbárie.
Veja esse artigo em vídeo:
A responsabilização é um ponto nevrálgico nesse dilema. Quem responde por um uso daninho dessa tecnologia: o criador do vídeo, a plataforma que o hospedou ou a empresa dona do algoritmo? Diante da ausência de regulamentação da inteligência artificial e das redes sociais, ninguém assume as falhas.
As big techs responsáveis por essas plataformas investem pesado no lobby para que tudo continue assim. Afinal, esse cenário de impunidade é muito bom para seu negócio, seja pela infinidade de conteúdos criados e distribuídos assim, seja pelo estímulo a um desenvolvimento descuidado dessas tecnologias. Para elas, quanto menos regras, melhor.
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Claro que nem todos os vídeos criados com IA são nocivos. Um bom exemplo de seu uso para fins humorísticos são os programas da apresentadora Marisa Maiô. Criada como uma brincadeira para testar a tecnologia por Raony Phillips, a personagem satiriza programas de auditório e faz um enorme sucesso nas redes.
Apesar de sua proposta inofensiva, muita gente pode achar que ela é mesmo uma mulher e que seu programa passa em algum canal. Isso demonstra a responsabilidade dos criadores de conteúdo com o que geram com a inteligência artificial.
Em tese, todas essas plataformas possuem mecanismos para que não sejam usadas em práticas condenáveis, mas eles não garantem nada. Por isso, outro grave problema é o uso indevido da imagem de pessoas comuns retratadas em conteúdos pornográficos ou vexatórios, muitas vezes para extorsão ou vingança. Mesmo figuras públicas, que têm menos controle sobre sua imagem, enfrentam dificuldades para lidar com problemas derivados desses conteúdos, pela velocidade com que se espalham.
Não por acaso, em janeiro de 2024, o Fórum Econômico Mundial concluiu que a desinformação impulsionada por inteligência artificial será o risco mais severo para a humanidade nesse ano e no próximo.
Diversão e responsabilidade
Àqueles que defendem esse uso irrestrito da IA como um caminho inevitável do progresso, é preciso lembrar que inevitabilidade não justifica irresponsabilidade. O avanço tecnológico é constante, mas o modo como o usamos define os valores da sociedade que queremos construir.
Marisa Maiô e outras criações mostram o grande potencial da IA para a diversão, e isso atrai as massas. Não há nenhum problema em rir com gatinhos tocando Chopin no piano, mas essa banalização do irreal está destruindo a característica de documentação que o vídeo sempre teve, assim como já aconteceu com a fotografia.
Uma sociedade não se desenvolve sem ter algo para confiar. Se a qualidade técnica de um vídeo não servir mais de medida para isso, precisaremos encontrar outra.
O jornalismo profissional pode recuperar o posto de porto-seguro da informação, com trabalhos sérios de apuração e divulgação. Justamente ele, que vem sendo combatido há anos por aqueles que mais se beneficiam de usos criminosos dessas tecnologias, tentando se escudar depois na “liberdade de expressão”. Isso não é uma coincidência!
A imprensa precisa fazer a sua parte garantindo produtos de qualidade. Mas também é necessário que as pessoas recebam uma melhor educação midiática, que lhes permita diferenciar mais facilmente verdades de mentiras, mesmo as mais críveis.
A forma como uma tecnologia é concebida, distribuída e adotada carrega intencionalidades. Ao se criar uma ferramenta capaz de simular pessoas com perfeição, sem mecanismos nativos de identificação ou rastreio, a pretensão de neutralidade das big techs desaparece. A ética não pode ser um detalhe técnico, pois é a linha que separa a inovação do controle das massas.
A defesa de que essa tecnologia seja liberada sem critérios significa fechar os olhos para os desequilíbrios de poder. Ignorar os riscos ou tratá-los como “efeitos colaterais” do progresso é uma postura não apenas ingênua, mas perigosa. Afirmações sobre o uso irrestrito ser “inevitável” são maneiras cômodas de se eximir da responsabilidade.
Esse tipo de determinismo tecnológico ignora o fato de que toda inovação carrega consigo escolhas humanas, com impactos concretos sobre vidas, direitos e estruturas sociais. Assim como não permitimos o uso irrestrito de armas ou remédios, não dá para liberar tecnologias tão poderosas sem limites, critérios ou consequências.
Mas é o que está acontecendo, e deve acontecer cada vez mais, contando com aplausos de parte da população que insiste em ver apenas os inegáveis benefícios da tecnologia. Por isso, esses impactos devem ser amplamente discutidos. Afinal, não é porque ganhamos um carro superveloz que podemos abrir mão de seus freios. Se fizermos isso, não chegaremos vivos ao nosso destino.














