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Tim Cook, CEO da Apple: empresa adiará recursos de IA na União Europeia por causa de lei - Foto: Christophe Licoppe/Creative Commons

Ética não pode ser um luxo ou um item opcional nas plataformas de IA

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Na sexta (21), a Apple anunciou que adiará na Europa o lançamento dos recursos de inteligência artificial para suas plataformas, apresentados no início do mês. A empresa culpou a Lei dos Mercados Digitais (DMA, na sigla em inglês), criada para evitar abusos das big techs, pela sua decisão, e não deu um prazo para que esses recursos cheguem ao continente.

Alguns europeus podem ficar irritados com a Apple; outros, com a lei. Mas essas regras existem justamente porque as gigantes de tecnologia abusam do poder que têm sobre seus usuários há décadas, criando relações comerciais desequilibradas, francamente desfavoráveis aos clientes.

A decisão da Apple de adiar a liberação desses recursos na Europa e sua oferta no resto do mundo é emblemática, e podemos aprender algo com ela. Em nota oficial, ela disse estar preocupada que os requisitos da DMA comprometam a integridade dos produtos, colocando em risco a privacidade e a segurança dos dados. Oras, se as regras de uma lei que determina boas práticas comerciais e de concorrência ameaçam um serviço, ele não me parece maduro para ser lançado em qualquer mercado.

Isso precisa ser observado em todos os produtos, mas é particularmente importante nos que usam a inteligência artificial. Essa tecnologia é tão poderosa, que, ainda que esteja em seus estágios iniciais, já transforma nossas vidas e o cotidiano de empresas. Nesse cenário, aspectos éticos e de governança são fundamentais para que a sociedade se desenvolva com a IA, evitando que ela aumente ainda mais a concentração de poder nas mãos de poucos grupos.


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A Apple já foi multada em março em €1,8 bilhão (cerca de R$ 10,5 bilhões) por infringir a DMA. No caso, o Spotify moveu um processo alegando práticas anticompetitivas pela Apple exigir de que os aplicativos para o iPhone e o iPad sejam instalados exclusivamente a partir da App Store, com a empresa ficando com 30% das transações na sua plataforma. Talvez por isso esteja ressabiada agora.

Graças à DMA, ela agora permite lojas de aplicativos de terceiros, o Google alterou o Android para usuários escolherem seu navegador e buscador, e a Meta concorda que outros serviços conversem com o WhatsApp e o Messenger. A Microsoft já aceita que os usuários desativem o Bing no Windows, e a Amazon solicita o consentimento dos clientes para personalização de anúncios. Por fim, o TikTok permite que os usuários baixem todos seus dados na plataforma. Mas tudo isso só vale para os europeus!

A inteligência artificial traz essas preocupações a um patamar inédito. A partir do momento em que essa tecnologia pode influenciar decisivamente nosso cotidiano e até nossas ações, é preciso entender como ela funciona. A opacidade dos algoritmos, que já causou muita dor de cabeça nas redes sociais, não pode se sentir confortável com a IA.

“A gente já tem uma dinâmica de inteligência artificial muito madura dentro das empresas, mas o tema de governança tem que ser antecipado”, explica Thiago Viola, diretor de inteligência artificial, dados e automação da IBM Brasil. Segundo ele, os gestores precisam adotar a IA com fortes padrões éticos, transparência e explicabilidade, ou seja, permitir aos usuários saberem como a IA foi construída e entenderem como ela tomou cada decisão.

No Brasil, o Congresso analisa o Projeto de Lei 2338/23, que teve uma nova versão de seu texto liberada na semana passada. Em vários pontos, ele se inspira na Lei da Inteligência Artificial, aprovada pelo Parlamento Europeu em março. E os conceitos de transparência, explicabilidade e rastreabilidade aparecem em toda parte.

Viola está certo: as questões éticas nunca devem ser colocadas de lado por interesses comerciais. Agora, com a ascensão galopante da IA, esses temas gritam para gestores, desenvolvedores e usuários. Mas se é assim, por que tantas empresas só parecem atentar a isso quando são obrigadas por força de lei?

 

Conflito de interesses

Precisamos entender que vivemos hoje uma reedição da “corrida do ouro” patrocinada pela inteligência artificial. Quem dominar essa tecnologia mais que seus concorrentes conseguirá um posicionamento determinante no mercado, especialmente porque, nesse caso, alguns meses à frente nessa etapa inicial podem significar uma liderança consolidada por muitos anos.

Diante disso, as empresas do setor, de startups a big techs, querem experimentar, ajustar e correr o quanto puderem agora, de preferência livres de qualquer restrição. Se algo der errado, pode-se considerar isso como justificáveis danos colaterais do processo de inovação supostamente inadiável.

Por conta da entrada em vigor da DMA, em março, conversei sobre isso com Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Empresas têm liberdade para oferecer seus produtos e serviços da maneira que considerarem mais estratégica, mas essa liberdade é limitada por leis que procuram prevenir práticas que restrinjam a concorrência”, explicou. E segundo ele, “a questão central é se os benefícios imediatos para os consumidores superam os potenciais prejuízos a longo prazo decorrentes de práticas anticompetitivas”.

Em um mundo capitalista selvagem, a busca incessante pelo lucro e a meritocracia de pessoas e empresas parecem valores  inalienáveis. Mas essa é uma distorção de realidade, como ironicamente o próprio mercado ajuda a desmistificar.

Um cenário de segurança jurídica ajuda muito a própria inovação, especialmente as mais vultosas e de mais impacto social. Basta ver que uma das indústrias mais regulamentadas que há –a farmacêutica– vive de inovação. E ainda que elas não pipoquem a cada mês como nas big techs, são mais duradouras e rentáveis a longo prazo.

Viola adverte que a governança precisa ser levada muito a sério pelas empresas quando se fala de IA, pois problemas associados a ela inevitavelmente acontecerão. “Se você tiver cultura, pessoas e ferramental preparados, o seu padrão de ação é muito mais rápido, mas se você não entende e não sabe o que está acontecendo, isso durará dias, semanas, e cairá na Internet”, explica.

Não proponho, de forma alguma, que a inovação seja desacelerada. Mas já passou da hora de as empresas entenderem que ela precisa ser realizada com ética, sem relaxamentos. Hoje as pessoas ainda estão deslumbradas com a inteligência artificial, despreocupadas com assumirem, como suas, sugestões vindas de uma caixa-preta, da qual nada sabem.

Mas à medida que essas decisões se tornarem mais frequentes e críticas em seu cotidiano, e problemas graves acontecerem por essa falta de transparência, a “lua de mel” acabará.  Ninguém continua usando algo pouco confiável. Se a falta de transparência das empresas com a IA levar a isso, todo esse poder será questionado.


Assista à íntegra em vídeo da conversa com Thiago Viola:

 

Rotuladores de dados realizam um trabalho essencial para a IA, porém estressante e mal pago - Foto: Drazen Zigic/Creative Commons

Para nos beneficiarmos da IA, uma multidão ameaça a própria saúde mental por trocados

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Não cansamos de nos deslumbrar com as capacidades da inteligência artificial generativa. Quando foi apresentado no dia 13 de maio, o GPT-4o, versão mais recente do “cérebro” do ChatGPT, parecia mágico, com suas capacidades cognitivas refinadas e conversas bem-humoradas. Mas ironicamente, apesar de essa data estar associada à lei que formalizou o fim da escravidão no Brasil, o “milagre da IA” das grandes empresas de tecnologia depende de um trabalho muitas vezes estressante e mal remunerado, feito por uma multidão de pessoas subcontratadas em países pobres.

Conhecidos como “data taggers” (ou “rotuladores de dados”), esses trabalhadores desempenham o papel crucial de ajudar os modelos de IA no que eles não conseguem distinguir por conta própria, de modo que, a partir daquela informação, eles saibam decidir corretamente. Por exemplo, em um conjunto de fotos, o que é um gato, um tigre, um leão e um cachorro? Um texto está com linguagem jornalística, publicitária ou acadêmica? Uma foto apresenta uma mulher amamentando, um nu artístico ou não passa de pornografia?

São sutilezas fáceis para uma pessoa entender, mas impossíveis para uma plataforma digital ainda destreinada. Mas depois que o rotulador de dados explica o que cada coisa é para a máquina, ela passa a ser capaz de identificar padrões para que tome boas decisões no futuro.

Como se pode ver, as respostas da IA dependem desse trabalho para serem adequadas. E como a humanidade usa cada vez mais esses sistemas, o descuido com o processo e com as pessoas nessa etapa pode trazer impactos significativos em tudo que fazemos. Portanto, se essas pessoas atuarem em condições degradantes, podemos estar confiando nosso futuro a uma forma de precarização de trabalho que pode trazer perigosos impactos para todos.


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A IA precisa de uma quantidade brutal de dados na fase de seu treinamento para que funcione. Só assim ela consegue identificar padrões e criar vínculos entre elementos de informação para que tire suas conclusões depois. Nem todos esses dados passam por um processo de rotulação por humanos, mas os que passam são fundamentais para que o sistema desenvolva uma base sobre a qual trabalhará.

A rotulação pode ser feita por cientistas de dados ou profissionais especializados. Isso resulta em um modelo mais preciso, porém custa mais e demora para ser concluído. O custo e a qualidade podem cair com um serviço terceirizado, e caem muito mais no modelo de “crowdsourcing”. E esse último formato tem sido escolhido pelas big techs para rotular as bases de dados colossais de suas plataformas de IA. Com ele, a classificação de dados é transformada em uma infinidade de microtarefas.

Você certamente já participou, sem saber, de inúmeras delas, quando precisou comprovar que era um ser humano. Essa tecnologia se chama reCAPTCHA, na qual ajudamos plataformas a identificar elementos em fotos ou palavras digitalizadas. Com isso, estamos rotulando dados para o sistema, que compara nossas respostas com a de muitos outros usuários para ter uma informação de qualidade.

Mas dizermos que partes de uma foto têm semáforos não é suficiente para treinar uma base como a que faz um ChatGPT funcionar. Para isso, um exército de pessoas subcontratadas por empresas especializadas realiza milhões dessas microtarefas.

Elas não têm contato com outros indivíduos, trabalhando de casa e gerenciadas por um software. Tudo isso pode prejudicar a qualidade das entregas. Assim algumas técnicas são usadas para compensar isso e minimizar problemas, como interfaces intuitivas, a busca de um consenso na rotulação de vários profissionais para um mesmo conteúdo e uma auditoria dos rótulos, que verifica sua precisão.

Esses trabalhadores normalmente são pouco qualificados e vivem em países pobres, como Quênia ou Índia, recebendo apenas de US$ 1 a US$ 2 por hora. Pessoas nos EUA ou na Europa Ocidental não aceitam tão pouco. Mas, apesar de ser aviltante nessas regiões, esse valor pode ser significativo nas partes mais pobres do globo.

E aí reside uma perversidade no sistema. Quando precisam que alguma informação seja rotulada por um americano, por exemplo, a plataforma paga muito mais pela mesma tarefa. Por isso, muitos trabalhadores de países pobres tentam enganar o sistema sobre onde estão. Se são descobertos, suas contas são bloqueadas e podem até ficar sem receber seu pagamento.

 

Saúde mental comprometida

Eventualmente esses trabalhadores precisam rotular textos ou imagens com violência, discurso de ódio e elementos grotescos. Por isso, podem desenvolver problemas como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. Uma exposição prolongada a esses conteúdos pode levar ainda a uma perda de sensibilidade e de empatia.

Além dos óbvios e graves problemas para a saúde mental desses trabalhadores, a exposição contínua a dados tóxicos pode comprometer a qualidade das entregas, introduzindo vieses e discriminação nos modelos. E isso pode depois se propagar em uma sociedade que cada vez mais confia nas informações oferecidas pela IA.

As empresas que gerenciam essas plataformas precisam, portanto, oferecer suporte psicológico a esses trabalhadores e mecanismos para que eles indiquem se algo está mal. Mas isso normalmente não acontece. As big techs, por sua vez, não se importam em forçar que isso seja seguido pelas empresas que contratam.

É irônico que um negócio multibilionário tenha na sua base uma legião de anônimos trabalhando em condições tão degradantes. A sociedade deve pressionar as gigantes da tecnologia para que criem políticas de trabalho éticas e transparentes envolvendo os rotuladores de dados, e que determinem que as empresa que lhes prestem serviços cumpram essas regras. E em tempos em que se discutem leis para reger a inteligência artificial, inclusive no Brasil, esse tema não pode ficar de fora.

Sabemos que preocupações sociais nem sempre provocam mudanças em processos de produção, especialmente quando isso impactará nos seus custos. Mas se não for por isso, as empresas deveriam, pelo menos, entender que essa precarização da mão de obra implicará em produtos piores para seus clientes.

Quanto a nós, os usuários de toda essa “magia” da inteligência artificial, precisamos entender e não esquecer que, quando conversamos com o ChatGPT, aquelas respostas incríveis só são possíveis porque alguém lhe disse o que cada coisa é.

 

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi (direita), manteve o cargo, após as “eleições da IA” - Foto: Governo da Índia/Creative Commons

Índia inaugura novo jeito de fazer campanha eleitoral, com apoio da IA

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O resultado das eleições sempre esteve ligado ao uso das tecnologias da época. A TV era fundamental para a vitória até 2018, quando foi suplantada pelas redes sociais, críticas para definir os pleitos desde então. Mas agora elas podem perder esse posto para a inteligência artificial. E a Índia, que acabou de realizar a maior eleição do mundo, demonstrou como dominar essa tecnologia ficou essencial para os candidatos.

A IA na política não se resume a criar deep fakes para desmoralizar adversários ou se valer do ChatGPT para compor peças publicitárias, legítimas ou falsas. Como alguns candidatos indianos demonstraram, ela pode desenvolver canais inovadores e personalizados com os eleitores. E isso parece até uma boa ideia!

Se a IA fornecesse a atenção que nenhum candidato humano conseguisse dar, atendendo cada cidadão individualmente, isso poderia até fortalecer a democracia. Mas o problema do uso da IA na política é o mesmo do seu uso em qualquer atividade: abusos de seus recursos para produzir resultados imprecisos, imorais e ilegais, para assim, mais que convencer, manipular multidões e vencer uma eleição.

No final, a IA maximiza a índole de quem a usa. E infelizmente a classe política tem sido pródiga em apresentar pessoas com uma moral rasteira, dispostas a pisotear a ética e usar todos os recursos para vencer. Por isso, devemos olhar para o que aconteceu na Índia e aprender algo com aquilo. Se um bom uso da IA pode fortalecer a democracia, seu mau uso pode colocá-la em seríssimo risco!


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Por décadas, os candidatos brasileiros com mais tempo na TV iam para o segundo turno das eleições. Isso mudou em 2018, quando Geraldo Alckmin, que tinha 5 minutos e 32 segundos (quase metade do tempo total do horário eleitoral gratuito), amargou uma quarta posição, enquanto Jair Bolsonaro, com apenas 8 segundos, foi eleito presidente.

Ele ganhou porque percebeu, antes e melhor que todos, que as redes sociais haviam se tornado o canal mais eficiente de disseminação de ideias e de manipulação de mentes. E não se tratava apenas de fazer um bom uso dos recursos técnicos, mas de se alterar o jeito de se fazer a própria política, com apoio de algoritmos, fake news e discursos que parecem falar aos anseios de cada um, e não aos de toda a sociedade.

Agora a inteligência artificial promete levar a “política digital” a patamares inimagináveis. O pleito indiano foi um laboratório que deve ser observado pela população, pela mídia, por autoridades eleitorais e pelos políticos, pelo seu tamanho gigantesco e pela disseminação da tecnologia entre os cidadãos.

Em janeiro, o Fórum Econômico Mundial classificou a desinformação potencializada pela inteligência artificial como um dos maiores desafios do mundo nos próximos anos. No caso da Índia, o relatório a classificou como um risco maior que o de doenças infecciosas ou atividades econômicas ilícitas.

E de fato, muito do que se esperava de ruim se materializou nessa campanha, como uma enxurrada de fake news e de deep fakes para se atacar adversários. Mas foram vistos também o uso extensivo de hologramas de políticos (inclusive de lideranças falecidas) em comícios, sintetização de áudios e vídeos de candidatos para responder, em tempo real, a dúvidas de eleitores, e a inteligência artificial analisando quantidades colossais de dados de usuários (muitos coletados ilegalmente) para apoiar a decisão de campanhas.

A IA generativa foi amplamente usada não apenas para gerar instantaneamente as respostas e o audiovisual, mas também para fazer com que o avatar do candidato falasse na língua de cada eleitor, chamando-o pelo nome. Isso é importante em um país como a Índia, que tem 23 idiomas oficiais e mais de 400 dialetos.

Se as redes sociais foram eficientes em desinformar as pessoas, a inteligência artificial agora pode encantar (e até iludir) os eleitores.

 

Mentiras cada vez mais críveis

Especialistas temem que essa tecnologia convença cada vez mais as pessoas sobre os que os candidatos quiserem, pelos conteúdos personalizados e visualmente convincentes. Além disso, muita gente pode acreditar que está realmente falando com o candidato, ao invés de seu avatar.

Há ainda outro aspecto a ser considerado: por mais que os modelos de IA sejam bem treinados para sintetizar respostas às perguntas de cada eleitor individualmente, eles podem “alucinar” e repassar informações completamente erradas ao público.

No Brasil, o Congresso não ajuda ao travar projetos de lei que poderiam organizar o uso dessas tecnologias nas eleições. As autoridades eleitorais tentam, por sua vez, impedir que esses problemas aconteçam no país, definindo regras claras para a eleição municipal desse ano, incluindo contra abusos da inteligência artificial. Ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no dia 3, a ministra Cármen Lúcia fez um discurso enfatizando a responsabilidade das redes sociais no problema e o combate que fará aos usos indevidos das tecnologias digitais na desinformação.

Não será uma tarefa fácil! Três dias depois, Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), Google (dono do YouTube), Microsoft, TikTok e Kwai aderiram ao Programa de Combate à Desinformação do Supremo Tribunal Federal (STF). O X, que se tornou um dos principais canais de fake news, não mandou representantes.

Ainda que a IA ofereça campanhas muito eficientes por uma fração do custo necessário para se obter os mesmos resultados de maneira convencional, esses recursos podem custar milhões de reais para um candidato. Isso desequilibra ainda mais a eleição entre os concorrentes ricos e os pobres.

A Índia demonstrou as incríveis oportunidades e os enormes problemas do uso da inteligência artificial em uma eleição. Regras são necessárias para disciplinar essa prática, mas bandidos são conhecidos por infringi-las, portanto não são suficientes.

Não podemos ser ingênuos! Esperar que as plataformas digitais tomem todos os devidos cuidados nas eleições é como esperar que a raposa cuide do galinheiro. E achar que todos os candidatos farão um bom uso desses recursos é como entregar as galinhas –ou seja, os eleitores– diretamente para a raposa.

É hora de aproveitar o que há de bom e redobrar a atenção para os usos nocivos da IA! É assim que a política será feita de agora em diante.

 

Theodore e Samantha (o sistema operacional do celular em seu bolso), em cena do filme “Ela” (2013) Foto: reprodução

Empresas querem que acreditemos que a inteligência artificial é humana

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A nossa interação com diferentes plataformas de inteligência artificial fica cada vez mais parecida com conversas que temos com outras pessoas. Em alguns casos, nossos cérebros podem ser enganados para crer que estão interagindo com outros indivíduos, por mais que saibam que não é verdade. Não é por acaso: as big techs querem que nos relacionemos com esses produtos de maneira mais “humana” possível. Mas longe de ser apenas um recurso para melhorar sua usabilidade, isso levanta questionamentos éticos e até de produtividade.

Ao longo da nossa evolução, aprimoramos a capacidade de atribuirmos características humanas ao que não é. Fazemos isso com animais de estimação, objetos, fenômenos da natureza e até a deuses. É o que chamamos de antropomorfismo. Por exemplo, dizemos que “o cachorro é muito inteligente”, “o carro está nervoso”, “a chuva está chorando” e representamos divindades com corpos e emoções humanas.

Isso é importante, porque facilita a nossa compreensão e interação, especialmente com aquilo com que não somos familiarizados. Além disso, com essa prática, criamos vínculos e até sentimos empatia pelo que não é humano.

Isso explica, pelo menos parcialmente, o ChatGPT ter atingido 100 milhões de usuários em apenas dois meses, o que o tornou o produto de mais rápida adoção da história. Antropomorfizar a inteligência artificial nos deixa à vontade para usá-la intensamente e para acreditar em suas respostas, às vezes além do que deveríamos.

Porém atribuir capacidades que esses sistemas não têm pode atrapalhar a nossa compreensão sobre o que realmente eles são e o que podemos fazer com a inteligência artificial. Corremos o risco de acabar atribuindo responsabilidades que as máquinas não possuem, enquanto ignoramos quem fizer usos indevidos de todo esse poder. Por isso, precisamos usar a IA como ela realmente é.


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Para deixar mais claros os efeitos do antropomorfismo, podemos comparar como nos relacionamos com a IA com o que sempre fizemos com os buscadores, que existem há quase três décadas. O Google, maior exemplo deles, tenta responder a todas as nossas perguntas desde 1998, quando foi lançado. E faz isso com uma eficiência incrível, sendo mais confiável que qualquer plataforma de inteligência artificial generativa do momento. Nem por isso, nós atribuímos características humanas a ele.

Como já debati nesse espaço, o mais incrível da inteligência artificial generativa não é o que ela nos diz, mas o simples fato de ser capaz de conversar conosco, como se fosse outra pessoa! Isso facilita o seu uso e amenta a credibilidade de suas respostas, mesmo quando ela nos diz alguma bobagem, as chamadas “alucinações” da IA.

Quando lançou o GPT-4o, no dia 13, a OpenAI dobrou essa aposta! Essa nova versão do “cérebro” do ChatGPT fala conosco com uma fluidez ainda mais impressionante, e é capaz de analisar, ao mesmo tempo, texto, voz, áudios e imagens, em tempo real, “enxergando” (olha a antropomorfização!) e analisando o que filmamos como celular.

Para reforçar ainda mais essa projeção, a empresa sugeriu que estaríamos nos aproximando do visto no filme “Ela” (2013), dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson. Na história, Theodore (Phoenix) se apaixona por Samantha (a voz de Johansson), o sistema operacional de seu computador e smartphone, movido por uma aparente inteligência artificial geral.

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse que “Ela” é seu filme preferido. Ele tentou contratar Johansson para dar voz ao GPT-4o, mas ela recusou a oferta. Não satisfeito, ele lançou o produto com uma voz muito parecida com a dela, o que lhe rendeu um processo da atriz. Aquela voz deixou de ser oferecida na plataforma.

Se tudo isso parece ficção científica demais, uma pesquisa publicada no ano passado na JAMA, a revista da Associação Médica Americana, indicou que pacientes consideraram empáticas quase dez vezes mais respostas dadas por um chatbot em relação às de médicos humanos. Na verdade, os pacientes sentiram alguma empatia do médico em apenas 5% das consultas, o que não deixa de ser uma informação importante por si só.

As pessoas querem se sentir acolhidas! Será que chegamos a um ponto em que as máquinas serão mais eficientes que humanos nessa tarefa?

 

A máquina perfeita de convencimento

O filósofo italiano e professor de Oxford Luciano Floridi, considerado uma das maiores autoridades nos campos da filosofia e da ética da informação, publicou um artigo nesse ano em que afirma que a inteligência artificial cria os mecanismos do que ele chama de “hiperpersuasão”. Resumidamente, essas plataformas ofereceriam um enorme poder para se convencer qualquer pessoa sobre qualquer coisa.

Segundo o pesquisador, isso se dá graças à já incrível e crescente capacidade de a máquina coletar e processar dados dos indivíduos, identificando padrões de comportamentos, preferências e vulnerabilidades, para manipular opiniões e comportamentos. Além disso, a inteligência artificial generativa pode produzir todo tipo de conteúdo com alta qualidade e cada vez mais parecida ao gerado por humanos.

Para ele, tecnologias persuasivas são tecnologias de poder. Já experimentamos isso com as redes sociais, e a esse processo deve se intensificar muito com a IA, não apenas pela tecnologia em si, mas por usos indevidos de grupos políticos e econômicos.

Para minimizar esses riscos, Floridi afirma que é necessária uma melhor proteção legal e ética da privacidade, contra os usos persuasivos da IA. E curiosamente, diante do fato de que esses usos nocivos acontecerão, ele sugere que a “hiperpersuasão” seja pluralista. Em outras palavras, usos positivos desse recurso poderão “compensar” os maus usos, trazendo também visões complementares do mundo. É mais ou menos o que acontece desde sempre com a mídia, mas agora aplicado à inteligência artificial.

Uma população em que todos os membros fossem muito educados e engajados ajudaria a resolver esse problema. Devemos perseguir sempre isso, mas entendo que seja uma utopia.

Isso nos leva então de volta ao antropomorfismo. Precisamos usar a IA como ela realmente é. Ela certamente atua como um agente social, no sentido em que promove transformações em nosso mundo, mas não é um agente moral, pois não tem autonomia e capacidade de escolher o que fará. Atribuir característica humanas à máquina pode distorcer essa realidade, isentando criminosos que fazem maus usos dela, e responsabilizando a máquina.

E isso não faz sentido algum!