Monthly Archives: março 2025

Para Stephen Buckley, do “Dallas Morning News”, a reputação depende de transparência, responsabilização e humildade - Foto: reprodução

Desinformação escancara como o relacionamento pode salvar a confiança do público

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A confiança sempre foi essencial para o sucesso de qualquer relacionamento, inclusive os comerciais. Mas em uma época em que a desinformação se tornou uma ferramenta cotidiana para abalar reputações e conseguir clientes e apoiadores, o contato genuíno com o público pode reforçar laços e construir um vínculo duradouro.

Isso vale para qualquer atividade, mas é crítico para o jornalismo. Seu produto é a notícia, e a verdade é seu principal ativo. Por isso, a confiança do público foi um tema central no 26º Simpósio Internacional de Jornalismo Online, promovido na semana passada pela Universidade do Texas em Austin (EUA). Mas as conclusões do evento podem ser aproveitadas por profissionais de setores da economia bem diversos.

Apesar de ser um dos pilares de qualquer democracia, o jornalismo sofre como negócio. O “Digital News Report 2024”, publicado pelo Reuters Institute em junho, revelou que apenas 40% da população mundial acredita no noticiário. Mais grave que isso é que 39% dos entrevistados admitem evitar deliberadamente o consumo de notícias, uma perigosa escolha pela alienação, que vem crescendo ano após ano. No Brasil, a situação é ainda mais grave, com 47% da população evitando se informar.

Parte dessa desolação está sendo construída há duas décadas, por grupos de poder que veem na fiscalização jornalística um obstáculo a seus interesses escusos. Mas outro tanto cabe à própria mídia, que se distanciou do seu público, ao longo dos anos. Muitas pessoas a sentem como elitizada, longe de seus cotidianos, com linguagem e formato antigos, e “vendida”. E esses profissionais não conseguem reverter essa percepção, enquanto seus detratores se esbaldam com o apoio das redes sociais.

Ninguém tem o poder de decidir se é confiável ou sequer útil para a sociedade: são as pessoas que escolhem. Esse é um ingrediente essencial na confiança e uma verdade incômoda de que a credibilidade não é autoproclamada, mas conferida pelo outro. Por isso, jornalistas e qualquer outro profissional precisam encontrar o caminho para que seus públicos se sintam próximos, compreendidos e cuidados.


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Quando se trata de confiança, competência e caráter são fundamentais. A primeira refere-se à capacidade técnica de apresentar informações precisas, contextualizadas e aprofundadas. O segundo, menos tangível, mas igualmente decisivo, diz respeito às motivações, sinceridade e integridade percebidas pelo público.

Essa dupla exigência não se restringe à imprensa. Médicos, advogados, professores, empresários e muitos outros enfrentam o mesmo desafio: não basta dominar técnicas e conhecimentos específicos se falta a percepção de que existe uma genuína preocupação com o impacto do seu trabalho na vida das pessoas.

O desafio cresce no jornalismo, pois o público quer ouvir vozes como as suas, além de outras muito diferentes. A diversidade de perspectivas não é apenas uma questão de justiça social, mas um fator determinante para a credibilidade de qualquer instituição ou profissional.

A ausência dessa representatividade leva a coberturas jornalísticas enviesadas, mas também a serviços de saúde que ignoram especificidades culturais, sistemas educacionais que não contemplam diferentes formas de aprendizado ou empresas cujos produtos não consideram a diversidade de seus consumidores.

O simpósio dedicou atenção especial ao fenômeno dos influenciadores que, cada vez mais, ocupam espaços tradicionalmente reservados a jornalistas. As linhas entre jornalismo tradicional e conteúdo produzido por criadores independentes, e a fronteira entre noticiário e entretenimento ficam cada vez mais tênues, gerando debates sobre quem pode ser considerado fonte confiável de informação.

O fenômeno não se limita à comunicação. Consultores de saúde no lugar de médicos, coaches substituindo terapeutas, mentores digitais concorrendo com professores ilustram como a autoridade antes conferida por títulos e instituições agora é disputada com figuras que conquistam credibilidade não apenas por dominar os espaços digitais, mas pela sua capacidade de criar uma forte identificação com o público.

 

Concorrência heterogênea

Há de tudo nesses criadores de conteúdo, inclusive aqueles que se profissionalizam.

“Embora eu não me considere um jornalista ou mesmo alguém que dê notícias de última hora, se as pessoas me veem assim, então, em muitos aspectos, eu tenho a responsabilidade de fazer tudo o que o jornalismo tradicional faria, que é verificar os fatos para garantir que não esteja apenas espalhando desinformação”, explicou o uruguaio Carlos Eduardo Espina, um criador de conteúdo sobre direitos de imigrantes nos EUA, com 12,4 milhões de seguidores no TikTok, 3 milhões no Facebook e 1,2 milhão no Instagram. “Mas vemos muitas pessoas que simplesmente vão para as mídias sociais e mentem, pois isso é bom para o engajamento”, afirma, expondo um dilema que muitos jornalistas também enfrentam: o de serem envolventes e, ao mesmo tempo, responsáveis.

Outro ponto importante debatido é que grande parte do público não compreende como funciona o trabalho jornalístico, o que pode gerar desconfiança e esconder o trabalho minucioso e ético desses profissionais, que aumentaria muito a sua credibilidade, se fosse conhecido. Este problema se repete em diversos campos, por exemplo com as linguagens técnicas de médicos e advogados. Cada termo não explicado, cada processo não compartilhado torna-se um tijolo no muro da desconfiança.

Diante disso tudo, a transparência surge como uma poderosa aliada para se aproximar do público e reconstruir a confiança. Ela manifesta-se na clareza sobre processos, fontes de financiamento e valores editoriais, admissão de limitações, reconhecimento de vieses e, crucialmente, no reconhecimento e correção de erros.

“Jornalistas passam muito tempo responsabilizando outras pessoas e, portanto, faz todo o sentido que nós mesmos sejamos responsabilizados”, explicou Stephen Buckley, editor do “Dallas Morning News”, que disse que fica feliz quando percebe que muitas pessoas genuinamente tentam entender o trabalho dos jornalistas e até querem ajudá-los a fazer um trabalho melhor. Para ele, a conexão com o público e o aumento da reputação dependem de três pilares profissionais: transparência, responsabilização e humildade.

“Não estamos acima ou abaixo das pessoas: estamos com as pessoas”, afirmou Buckley. “Essa é uma mensagem realmente importante e ressonante, e as pessoas entendem isso e sentem quando estamos agindo assim”, concluiu.

 

O anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demônio Crowley (David Tennant), protagonistas da série "Belas Maldições" - Foto: reprodução

“Cultura do cancelamento” enfrenta a Justiça com a força das redes sociais

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Fãs da série “Belas Maldições” (“Good Omens”) ficaram desolados com o anúncio de que sua terceira temporada seria reduzida a um único episódio de 90 minutos, encerrando prematuramente esse sucesso do Amazon Prime Video. A decisão veio devido a graves acusações de abuso sexual contra Neil Gaiman, produtor e coautor da obra original, trazendo à tona questões sobre a “cultura do cancelamento”, um dos efeitos mais nefastos das redes sociais.

É importante que fique claro que isto não é uma defesa de Gaiman. As denúncias contra ele são graves e os indícios, consistentes. Se comprovadas, devem resultar na condenação apropriada.

Por outro lado, o caso ainda está em investigação e o autor sequer foi indiciado. Mesmo assim, já foi julgado e condenado pelo “Tribunal da Internet”. Como pena, sua reputação ficou seriamente comprometida, e vários projetos seus, como as séries “Belas Maldições” e “Sandman”, foram interrompidos ou abreviados.

A “cultura do cancelamento” contraria a presunção de inocência, um princípio fundamental em muitos sistemas legais. No Brasil, a Constituição estabelece, no artigo 5º, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isso garante que um acusado seja tratado como inocente até que sua culpa seja comprovada em um julgamento justo e definitivo.

Engana-se quem pensa que apenas celebridades passam por isso. Como as redes sociais se beneficiam da polarização e do ódio, sem assumir responsabilidades pelo que distribuem, o fenômeno cresce e pode afetar qualquer pessoa. Entender esse mecanismo tornou-se essencial para autopreservação no ambiente digital.


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Gaiman enfrenta denúncias de oito mulheres. A única com o nome revelado é Scarlett Pavlovich, ex-babá do filho de Gaiman, que acusa o autor e sua ex-esposa Amanda Palmer de estupro e tráfico humano. Ele nega tudo, afirmando que todas as relações sexuais que teve foram consensuais e que as acusações visam acordos financeiros.

Dois casos relativamente recentes com famosos ilustram como a “cultura do cancelamento” pode prejudicar muito suas vidas, mesmo quando acabam inocentados na Justiça. Um deles foi o ator Kevin Spacey, absolvido em 2023 de nove acusações de crimes sexuais no Reino Unido. Outro foi o ator Johnny Depp, que venceu o processo contra a ex-esposa, a também atriz Amber Heard, que o acusava de abusos físicos e emocionais. Mesmo assim, ambos continuam com dificuldades profissionais.

Esses exemplos demonstram como a “cultura do cancelamento” vem substituindo os devidos processos legais. Diferente do Judiciário, o “Tribunal da Internet” opera por emoções e achismos, sem considerar todas as evidências ou permitir defesa. Quando a opinião pública se torna juíza e executora, a presunção de inocência some, e as punições são aplicadas imediatamente, muitas vezes de forma irreversível.

A situação se agrava porque empresas associadas aos acusados vêm se apavorando com o risco de suas próprias reputações serem afetadas. Pressionadas pela opinião pública, frequentemente cancelam contratos antes de qualquer conclusão das investigações oficiais. Assim, a mera acusação torna-se suficiente para destruir carreiras, independentemente da veracidade dos fatos.

Entre os efeitos mais nocivos dos “cancelamentos”, está a inibição do debate democrático, silenciando vozes discordantes, criando medo e autocensura. Isso impossibilita diálogos saudáveis, o que frequentemente resulta em injustiças e punições desproporcionais. Em vez de promover a resolução construtiva de conflitos, prioriza o castigo e a exclusão, minando a confiança nas instituições da sociedade.

Eles também causam impactos devastadores na saúde mental. Ansiedade, depressão e isolamento social são consequências comuns para os alvos da fúria coletiva nas redes sociais, com danos psicológicos duradouros. Sem análise aprofundada, pessoas inocentes podem ter suas vidas destruídas por acusações falsas.

 

Recuperação difícil

Recuperar-se de um “cancelamento” é um processo árduo e frequentemente incompleto. Mesmo quando inocentada judicialmente, a pessoa enfrenta desafios significativos para restaurar sua imagem e carreira.

A reabilitação exige tempo e esforço, envolvendo realizações e entrevistas para reconstruir a reputação. Ainda assim, a memória das denúncias afeta permanentemente como a pessoa é vista. No âmbito profissional, projetos podem não ser retomados e parcerias podem ser irrecuperáveis. Reconstruir a carreira significa frequentemente começar do zero, enfrentando ceticismo e desconfiança constantes.

Como já foi dito, apesar desses exemplos reluzentes, um “cancelamento” pode vitimar qualquer pessoa, e igualmente lhe causar danos profundos. Funcionários podem ser demitidos, estudantes podem ser expulsos e pequenos negócios podem ser boicotados por acusações não-verificadas. Por isso, todos precisam aprender a se proteger disso, o que envolve cuidado ao se expressar. Ser claro ao se comunicar e pensar antes de falar são práticas essenciais para evitar mal-entendidos no cotidiano.

Desenvolver empatia e uma escuta ativa ajudam a compreender diferentes perspectivas, reduzindo o risco de ofensas involuntárias. É também importante ter cuidado com piadas e comentários controversos, avaliando seu potencial ofensivo.

Em um mundo com redes sociais controlando nossas vidas, a gestão da reputação online tornou-se crucial. Monitorar o que é dito sobre você nessas plataformas e responder imediatamente a rumores podem evitar sérias dores de cabeça. Além disso, construir relacionamentos positivos com influenciadores e formadores de opinião ajuda a mitigar crises. Uma imagem pública coerente e empática serve como prevenção.

Por tudo isso, esta destruição de reputações representa uma injustiça que deve preocupar a todos. O “efeito manada” cria multidões dispostas a destruir alguém apenas pelo que “se ouviu dizer”. O “cancelamento” é uma ferramenta de intolerância.

Combater essa cultura não significa defender comportamentos prejudiciais, mas, sim, um processo justo, baseado em evidências e no respeito aos direitos fundamentais. Cabe a cada um de nós, às redes sociais e à sociedade promover um ambiente digital mais transparente e responsável, onde acusações sejam tratadas com seriedade, mas também com o cuidado que a Justiça exige.

 

A ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos - Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Brasileiros abraçam a IA, mas precisam vencer desafios para sua implantação plena

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Os brasileiros têm fama de abraçar novas tecnologias rapidamente, especialmente as digitais. Isso se vê, por exemplo, no amplo uso de smartphones e redes sociais no país, que sempre lidera rankings internacionais nisso. Também vem sendo observado no nosso uso entusiasmado da inteligência artificial. Mas essa euforia enfrenta severos obstáculos que podem prejudicar resultados, especialmente nos negócios.

A pesquisa “Inteligência artificial no mundo corporativo”, divulgada no dia 11 pela gigante de software alemã SAP, mostra que 52% dos gestores brasileiros têm percepção muito positiva sobre essa tecnologia e outros 27% a encaram de forma favorável, mas com ressalvas. Na América Latina, esses números são 43% e 38%.

Para 29% desses gestores, o maior desafio é não saber como incorporar a IA no negócio, enquanto 28% afirmam que não há profissionais qualificados para isso, problemas que caminham de mãos dadas. Mas o Brasil enfrenta outra grande barreira nesse setor: dependemos demais de tecnologias importadas.

A princípio, isso não pareceria tão grave. O Brasil historicamente consome tecnologia digital de fora, graças ao sucateamento de nossa indústria e de nossa ciência, principalmente a de base. Continuaremos fazendo isso com a inteligência artificial. Mas suas características tornam essa dependência mais perigosa.

O quadro piora com o posicionamento errático da administração Donald Trump, que já usa a IA como arma geopolítica. No dia 13, a OpenAI, criadora do ChatGPT, apresentou uma série de propostas ao governo americano para supostamente manter a liderança dos EUA no setor. Entre elas, sugere uma restrição de exportações da IA a países “democráticos” (conceito que varia com o vento nos cabelos de Trump).

Isso cria uma divisão geopolítica artificial, condicionando o acesso à IA à subordinação de nações a interesses americanos, reforçando essa dependência tecnológica e perpetuando desigualdades globais. Esse é um risco que o Brasil não pode manter.


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Sendo uma tecnologia altamente disruptiva, a IA já transforma diversos setores da economia. Para isso, requer infraestrutura avançada e capacitação de profissionais qualificados. Sem investimentos significativos, o Brasil pode ficar para trás em ambos, dificultando a absorção e o uso eficaz dessa tecnologia, o que pode também aumentar os riscos de segurança e privacidade, pois dados sensíveis ficam sujeitos a leis estrangeiras.

Isso também limita nossa capacidade de inovar e ajustar soluções às nossas necessidades, além de comprometer a autonomia tecnológica do país. Como a IA automatiza muitas funções, a falta de investimentos em capacitação impõe ao Brasil desafios adicionais no mundo do trabalho e na adaptação ao avanço tecnológico.

Diante desse cenário, as empresas se mobilizam. Segundo a pesquisa da SAP, 62% dos gestores locais já capacitam seu pessoal para sanar este gargalo e outras 35% pretendem fazer isso ainda em 2025. “As empresas brasileiras trazem inovação no seu DNA, tanto na geração de diferencial competitivo, quanto na otimização de processos”, afirma Rogério Ceccato, diretor de pré-vendas da SAP Brasil. “Isso se explica com a maior maturidade do mercado brasileiro no cenário latino-americano.”

A IA generativa pode ajudar a reduzir esse problema, dispensando os profissionais de dominarem aspectos técnicos da tecnologia. Ceccato explica que assistentes, como a Joule da SAP, ajudam um profissional de vendas, por exemplo, a criar agentes de IA sem apoio técnico, concentrando-se no seu conhecimento do negócio. “Soluções com estratégia low-code/no-code (sem programação) permitem que mais profissionais dominem a IA”, acrescenta.

Além disso, alguns exemplos internacionais recentes animaram empresários e pesquisadores brasileiros a investirem mais em inteligência artificial. O mais marcante foi o chinês DeepSeek, que em janeiro demonstrou ser possível desenvolver um LLM (modelo de linguagem de grande porte) com qualidade comparável aos melhores do mundo, como o ChatGPT, por uma pequena fração dos seus investimentos.

Criou-se, assim, um novo paradigma, que retirou das big techs o “direito a dominar sozinhas” esse mercado.

 

Investimentos brasileiros

Na época, a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos (foto), disse que o Brasil desenvolverá seu próprio modelo de IA, citando o DeepSeek como exemplo. Ela lembrou que existia a ideia de que os investimentos para competir nessa tecnologia seriam proibitivos para países emergentes, mas os chineses mudaram isso, mesmo impedidos pelos EUA de comprar processadores mais poderosos.

Antes disso, no dia 30 de julho, o governo brasileiro anunciou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Ele detalha uma estratégia ambiciosa para os padrões brasileiros, com investimento de R$ 23 bilhões até 2028, para o desenvolvimento e aplicação ética e sustentável da IA no país.

O plano prevê a compra de um dos cinco supercomputadores mais avançados do mundo, que deve ser alimentado por energias renováveis. Também propõe o desenvolvimento de modelos de linguagem em português, treinados com conteúdo nacional, que contemplem nossas características culturais, sociais e linguísticas.

Sensível à falta de profissionais no setor, o projeto também destaca a capacitação em larga escala para atender a essa demanda. Por fim, reforça que o desenvolvimento da IA seja ético e responsável, promovendo a transparência algorítmica e a proteção de dados, itens críticos para o setor, mas pouco observados nos produtos americanos.

As propostas são interessantes e muito bem-vindas, mas a sociedade precisa acompanhar sua implantação, para que não se torne mais uma ideia populista que se perca na burocracia. A IA não pode ser mais uma revolução tecnológica que o Brasil apenas observe de longe.

Um esforço coordenado entre governo, academia e setor privado é imprescindível! Os programas já existentes precisam ser ampliados, especialmente para a formação de talentos e o desenvolvimento de propriedade intelectual nacional. Ainda podemos nos tornar protagonistas em nichos do ecossistema de IA.

As atuais restrições podem se traduzir em inovação acelerada. Mas, para isso, o Brasil precisará mobilizar recursos e talentos com a velocidade necessária para superar esse fosso tecnológico antes que se torne intransponível ou que eventuais restrições abalem decisivamente nossa transformação digital.

 

Lara (Ellen Parren) vive drama em “Eu Não Sou um Robô”, por não conseguir passar por um teste em seu computador - Foto: reprodução

Curta vencedor do Oscar alerta sobre nossa desumanização pela dependência tecnológica

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No domingo de Carnaval, com os brasileiros comemorando o Oscar de Melhor Filme Internacional para “Ainda Estou Aqui” e lamentando que sua protagonista, Fernanda Torres, não levou o de Melhor Atriz, a vitória do holandês “Eu Não Sou um Robô” (“I’m Not a Robot”) no prêmio de Melhor Curta-Metragem, dirigido por Victoria Warmerdam, passou praticamente despercebido. Mas ele promove uma importantíssima reflexão sobre o nosso tempo: estamos nos tornando muito dependentes da tecnologia, e isso pode ameaçar nossa humanidade.

Há décadas, a ficção nos alerta sobre esse risco, mas nunca imaginaríamos que uma validação automática pudesse nos fazer questionar quem somos. É exatamente esse o dilema vivido por Lara (Ellen Parren), a produtora musical protagonista da obra, que mergulha em uma crise existencial após falhar repetidamente em testes CAPTCHA, aqueles desafios online usados para distinguir humanos de robôs, nos quais é preciso clicar, por exemplo, nas “imagens com hidrantes”.

A sociedade vem sendo profundamente influenciada pelas big techs para abraçar a tecnologia como algo quase mágico, sem medir as consequências. Poucas vozes questionam esse movimento. Quem ousa fazer isso recebe rótulos de antiquado ou resistente ao progresso, normalmente injustos.

Apesar de ser uma ficção, o curta toca em questões muito reais. Vivemos em uma era em que sistemas cada vez mais eficazes e surpreendentes nos ajudam muito, mas também trazem consequências nocivas que às vezes ignoramos. Se nada for feito para corrigir essa dependência excessiva, podemos ultrapassar um limiar perigoso, onde a tecnologia não mais nos serve, mas nos define.


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Warmerdam criou uma sátira angustiante sobre nossa relação com a tecnologia. A incapacidade de Lara passar nos testes a coloca em uma jornada surreal, levando-a a questionar crescentemente sua própria humanidade. Assim, a obra explora temas como identidade, autonomia e o impacto da tecnologia na percepção humana.

Parren equilibra perfeitamente o humor absurdo com uma crítica social afiada, tornando a personagem ainda mais marcante. Afinal, ela é realmente um robô que desconhece sua verdadeira natureza? Ou será que a tecnologia falha ao identificar o que é ser humano? Esses dilemas existenciais são os elementos mais potentes do curta, reforçando sua crítica à dependência da validação digital, tornando a proposta ainda mais cortante! O absurdo da situação nos faz rir, mas também nos obriga a refletir sobre nossos comportamentos frente à digitalização da vida.

Já terceirizamos nosso pensamento para buscadores, dependemos de GPS para nos locomover e deixamos algoritmos influenciarem nossas decisões diárias, ainda mais com o avanço da inteligência artificial. Quando não têm acesso a essas tecnologias, muitos se sentem perdidos, como se parte de sua identidade tivesse sido removida.

Em alguns casos, um erro técnico pode bloquear nosso acesso a serviços essenciais, tornando-nos praticamente “invisíveis” para a sociedade. Mas precisamos encarar nossa atitude frente a essa dependência tecnológica, que pode prejudicar habilidades cognitivas cruciais, como memória, raciocínio e criatividade. Resolver problemas por conta própria é fundamental para o desenvolvimento humano.

Não dá para dizer que “isso só acontece com os outros”. Quem nunca ficou ansioso por perder o acesso à Internet? A incapacidade de lembrar informações básicas sem consultar o celular, a preferência por interações digitais em detrimento das presenciais, ou a sensação de que nossas realizações só valem quando publicadas e validadas nas redes sociais são outros sinais de que “passamos do ponto”.

Se um sistema de reconhecimento facial falha em nos identificar, um algoritmo de busca não entende nossa pergunta ou quando um assistente virtual não compreende nosso sotaque, sentimos uma frustração que vai além do incômodo prático. É quase uma negação de nossa existência!

 

Recuperando o controle

Para evitar que percamos o controle do que somos, precisamos adotar estratégias conscientes. E isso passa por questionar recomendações das plataformas digitais, tomar decisões sem depender delas e exercitar a memória. Ou seja, lembrar a nós mesmos que podemos também viver sem as máquinas, como sempre fizemos!

O contato humano e o mundo físico precisam ser valorizados. Participar de encontros presenciais e realizar atividades ao ar livre são antídotos eficazes contra a digitalização excessiva da vida. Além disso, falar com pessoas em vez de chatbots preserva o elemento humano nas interações.

Devemos também variar as fontes de informação e usar a tecnologia com propósito claro, em vez de consumir passivamente o que as plataformas sugerem: isso nos ajuda a manter o senso crítico. E pausas regulares no uso desses serviços permitem reavaliar nossa relação com o mundo digital.

“Eu Não Sou um Robô” nos ensina que a tecnologia deve ser uma ferramenta para ampliar nossas capacidades, não um fator determinante da nossa identidade e muito menos da nossa humanidade. Se confiarmos demais nela a ponto de comprometer nossa autonomia, corremos o risco de nos tornarmos reféns daquilo que criamos.

A obra é uma metáfora poderosa sobre a burocracia digital, a vigilância algorítmica e a automação excessiva, que nos transformam em dados e perfis, em vez de seres humanos complexos e autônomos. A tecnologia pode e deve ser usada para facilitar a vida, mas precisamos garantir que ela continue sendo um meio, e não um fim.

Em tempos de IA galopante, a verdadeira inteligência está na capacidade de equilibrar o poder do mundo digital com a experiência humana. Essa é a lição mais valiosa desse pequeno grande filme.

No fim das contas, somos muito mais do que aquilo que um teste CAPTCHA pode definir.

 

Mesmo com digitalização da sala de aula, a figura do professor continua imprescindível - Foto: Zinkevych (Freepik)/Creative Commons

Com a volta às aulas, IA amplia debate sobre a tecnologia na educação

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Com a inteligência artificial avançando exponencialmente e de maneira transversal em nossas vidas, a volta às aulas, no início de fevereiro, reabriu o debate sobre a digitalização da escola. Apesar da rápida evolução dessa tecnologia, seu uso ainda é limitado nas salas de aula brasileiras, principalmente porque muitos professores não sabem como incorporá-la em seus planos de aula. Enquanto isso, os alunos a abraçam, deixando para os educadores a tarefa espinhosa de encontrar formas de avaliar os estudantes de forma justa e eficaz nessa realidade.

Mas o debate vai muito além disso. Em abril passado, o governo paulista anunciou que passaria a usar a IA na produção do conteúdo didático distribuído a professores da rede estadual de ensino. A proposta foi alvo de muitas críticas, pois a IA generativa ainda erra muito em suas produções. Professores conteudistas responsáveis por verificá-las argumentaram que é mais trabalhoso fazer isso do que produzir um conteúdo totalmente novo. Mesmo assim, o projeto foi implantado.

Resistir a essa tecnologia não faz sentido: ela efetivamente pode ajudar os professores de diferentes formas. Por outro lado, incorporá-la de maneira descuidada ou inconsequente pode trazer muitos prejuízos à educação.

A personalização do ensino pela IA permite adaptar o conteúdo às necessidades individuais dos alunos, enquanto a automação de tarefas administrativas libera tempo precioso para interações ricas e atividades criativas. Ela também pode ajudar na inclusão, oferecendo recursos adaptados para alunos com necessidades especiais.

O problema é que a formação continuada dos professores no tema é insuficiente ou nula! Isso aumenta a desconfiança de muitos deles e atrasa a adoção da tecnologia.

O diálogo aberto e a capacitação contínua são essenciais para se compreender que a IA pode ser uma poderosa aliada, mas também que a educação não se restringe a uma transmissão de conteúdos que possa ser automatizada. Ela envolve empatia, mediação de conflitos, formação do pensamento crítico e desenvolvimento social, habilidades que nenhuma IA tem para substituir a interação humana na sala de aula.


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Os professores precisam de apoio para se apropriar da IA. Mesmo quem já a usa, precisa aprender a incorporar esse poder em seus planos de aula. Algumas ilhas de excelência oferecem treinamentos, mas essas iniciativas são pontuais e não atingem a maioria dos professores, especialmente em regiões com menos recursos tecnológicos.

O impacto da IA na avaliação exemplifica isso. Professores que insistam em métodos tradicionais terão mesmo problemas. Agora é preciso diversificar os métodos, apostando em apresentações orais, projetos em grupo em sala e discussões nas quais o professor possa observar o raciocínio. O acompanhamento próximo durante todo o processo de aprendizagem ganha espaço. E o uso da IA pode ser incentivado como ferramenta, mas com os alunos desenvolvendo autonomia e pensamento crítico.

Assim como em qualquer setor, implantar a IA na educação requer planejamento e estrutura. Em primeiro lugar, deve-se identificar necessidades e oportunidades com que a tecnologia possa efetivamente contribuir, criando então objetivos claros em linha com a proposta pedagógica. A partir disso, deve-se descobrir quais plataformas atendem essas demandas.

Nesse contexto, entram o engajamento e a capacitação dos professores. Pela minha experiência, se eles não comprarem a ideia, compreenderem seu funcionamento e usarem no cotidiano, nenhum produto prospera na escola. Ainda assim, a introdução da tecnologia deve ser gradual, monitorando resultados e fazendo ajustes continuamente.

Tudo isso introduz uma mudança considerável no processo pedagógico. Se bem-feita, pode alterar a relação dos alunos com a tecnologia, além dos limites da escola. Por isso, a família precisa ser envolvida.

 

Jamais uma substituta

Alguns pais temem que a inteligência artificial ocupe um espaço maior que o devido na escola. Mais preocupante é que outros, que já demonstram pouco apreço pelos professores, veriam com bons olhos essa substituição.

Para os primeiros, é importante dizer que não há movimentos de substituição dos professores pela inteligência artificial. A tecnologia bem aplicada potencializa o trabalho do professor, não o elimina. Ainda assim, esses pais podem participar construtivamente do processo, aliando-se aos docentes.

Já para o segundo grupo, vale lembrar que educação transcende a mera transmissão de informações. É um processo humano que envolve empatia, valores e desenvolvimento social. A IA não compreende nuances emocionais, não motiva alunos desanimados ou se adapta instantaneamente a situações inesperadas em sala, nem orienta os alunos em sua formação como cidadãos.

Quando o ChatGPT surgiu, apareceu um medo de que a IA criaria uma multidão de desempregados, mesmo nas funções mais criativas. Mas 27 meses após seu lançamento, é um alívio observar que a melhor maneira de escapar disso é justamente usando bem nossas qualidades humanas. E os professores já fazem muito isso, com a empatia para perceber dificuldades emocionais, a criatividade para adaptar métodos de ensino, os relacionamentos interpessoais baseados em confiança, criando ambientes seguros e acolhedores, a mentoria além das questões acadêmicas e a flexibilidade para transformar desafios em oportunidades de aprendizado.

O sucesso da digitalização do ensino passa pelo equilíbrio entre inovação tecnológica e o papel insubstituível do educador. O impacto da inteligência artificial na educação só tende a crescer. Professores, famílias e governantes devem abraçar essa mudança com discernimento, garantindo que a tecnologia seja uma aliada na formação de cidadãos críticos, criativos e preparados para os desafios do futuro.

Mas não se pode esquecer da humanidade, que, combinada ao conhecimento e à paixão pelo ensino, formam a essência do trabalho docente e que nenhuma inteligência artificial, por mais refinada que seja, conseguirá jamais substituir completamente. O professor não é uma peça obsoleta nesse novo cenário, mas o protagonista de uma educação que evolui.