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Anúncios de “host clubs” em Tóquio, onde homens bonitos são pagos para entreter mulheres - Foto: Dick Thomas Johnson/Creative Commons

Como as redes sociais podem diminuir a quantidade de filhos

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Os primeiros resultados do Censo 2022, divulgados na semana passada, indicam que os brasileiros estão tendo cada vez menos filhos. Causas para essa queda na taxa de fecundidade há muito conhecidos, como o custo de vida e a ascensão profissional das mulheres, ganham ainda mais relevância. Mas há um aspecto que o IBGE não mede e que pode estar contribuindo cada vez mais para esse quadro: as mudanças comportamentais promovidas pelas redes sociais.

Para essa análise, considero bebês nascidos em relacionamentos estáveis de qualquer tipo. Se os últimos diminuírem, teremos menos bebês. E aí entram as plataformas digitais.

Redes de vídeos curtos, especialmente o TikTok, estão alterando não apenas a maneira como consumimos conteúdo, mas também como trabalhamos, estudamos, compramos, nos divertimos e nos relacionamos. Não é um exagero: um bombardeio infinito com estímulos visuais apelativos e vazios está criando uma geração impaciente e avessa a compromissos, que espera que tudo siga esse padrão.

Mas relacionamentos, mesmo um simples namoro, exigem tempo, paciência, resiliência e dedicação. E no final ainda podem dar errado!

Há muitos anos, me disseram que “a paixão é uma armadilha da natureza para procriarmos”. Vendo os números do Censo, essa frase faz ainda mais sentido: se as pessoas não mais tiverem paciência nem para a paixão, teremos mesmo menos crianças no mundo.


Veja esse artigo em vídeo:


Nos últimos 12 anos, o crescimento médio anual da população brasileira foi de 0,52%, o primeiro abaixo de 1% desde que o levantamento começou a ser feito no país, em 1872. O número médio de filhos por mulher, que era de 6,28 em 1960 e 1,90 em 2010, agora gira em torno de 1,75.

Naturalmente esse quadro de diminuição no crescimento populacional não se observa apenas no Brasil. A situação é dramática no Japão, onde nasceram 770 mil pessoas no ano passado, frente a 1,5 milhão de mortes. O governo japonês estima que a população caia dos atuais 125 milhões para 87 milhões em 2070, com a metade sendo idosos. Por lá, 27% das mulheres até 50 anos nunca tiveram filhos, país onde esse índice é mais alto.

Nenhuma economia resiste a padrões como esses. Por isso, o governo japonês está incentivando fortemente que famílias tenham mais filhos, dando dinheiro para quem fizer isso, mais educação (para que as pessoas tenham melhores salários) e promovendo igualdade entre os gêneros no ambiente de trabalho.

Mas a “geração TikTok” resiste, valorizando sua “solteirice”. O mercado e as plataformas digitais oferecem o apoio que precisam. Em Tóquio, por exemplo, já há mais de 3.000 “host clubs”, ambientes em que homens bonitos são pagos para oferecer uma conversa agradável e tratar bem mulheres que querem escapar das “complicações” de um relacionamento ou só fugir da rotina, sem compromissos.

O sexo não é o objetivo desse tipo de estabelecimento (apesar de que pode acontecer), mas, para isso, há aplicativos como o Tinder. Graças a eles, cresce a quantidade de pessoas que chegam a ter vários parceiros sexuais em um único dia.

Todos esses recursos podem até suprir necessidades sexuais e de companhia das pessoas, mas recaímos no problema original: nada disso gera bebês.

 

“Facilidades” do mundo moderno

As plataformas digitais nos oferecem facilidades que seriam verdadeiros superpoderes até bem pouco tempo atrás. Fazemos muito mais e (na maioria das vezes) melhor do que nós mesmos fazíamos há 20 anos. Basta pensar que o primeiro iPhone só veio ao mundo em 2007!

Somos seres gregários, e a linguagem é a nossa ferramenta mais fabulosa de construção. Agora esses microconteúdos subvertem a estrutura narrativa que aprendemos ainda na escola, de que a construção de uma ideia precisa de uma introdução, de um desenvolvimento e de uma conclusão. As redes sociais já desprezavam a primeira e a última, mas agora nem o “miolo” se salva.

Como a linguagem está em nossa essência, esse movimento impacta tudo que fazemos, inclusive os relacionamentos. Isso explica, ainda que parcialmente, a dificuldade de os adolescentes atuais namorarem.

É inevitável pensar no “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman (editora Zahar, 2004). Para o filósofo e sociólogo polonês, a redução na qualidade das relações é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. A relação social como uma responsabilidade mútua dá lugar ao que chamou de “conexão”. Para ele, o grande apelo desses sistemas é a facilidade de esquecer o outro, de se “desconectar”: troca-se, sem remorso, parceiros que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Mas, para Bauman, apenas quando nos damos conta de que nossa voz é ouvida e de que nossa presença é sentida, entendemos que somos únicos e dignos de amor. Precisamos do outro em um contato de qualidade para nos fazer perceber isso, mas, se estamos perdendo essa comunicação essencial, nunca sentiremos o outro.

As redes sociais sabem disso e, ainda assim, debaixo de um verniz de bom-mocismo cada vez mais gasto, continuam empurrando recursos para nos manter “engajados” (ou “viciados?) em suas plataformas. Se existisse alguma dúvida disso, os “Facebook Papers”, escândalo em que Frances Haugen expôs milhares de documentos internos da empresa em 2021, deveria ter acabado com ela. A ex-gerente de integridade cívica do Facebook mostrou que o a empresa tinha consciência dos males que causava até à saúde mental dos usuários, mas não fazia nada que atrapalhasse seus negócios.

É simplesmente impossível viver sem os recursos digitais hoje. Isso não quer dizer que podemos abrir mão de nosso livre-arbítrio e de nossas capacidades cognitivas de interagir com o mundo em toda a sua profundidade e complexidade. As redes sociais achatam o que nos rodeia, deixando tudo meio igual e desinteressante. E isso definitivamente não nos favorece.

Citando Bauman, “amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama.” E continua: “no amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo.”

Precisamos recuperar as rédeas de nossas vidas, até mesmo para –quem diria?– nos relacionarmos e termos filhos.

 

Navio com refugiados é resgatado no Mediterrâneo - Foto: Wikimedia / Creative Commons

Qual vida vale mais: a de um bilionário ou a de um refugiado?

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Você sabe qual a diferença entre um submarino e um submersível? Ou que a pressão no fundo do mar, onde jazem os destroços do Titanic, é 400 vezes maior que a da superfície? E que isso provocou a implosão do Titan, matando cinco ricaços que estavam nele no dia 18?

Se você acompanhou o noticiário por qualquer meio na semana passada, provavelmente pelo menos ouviu falar sobre isso tudo. A cobertura do acidente inundou todos os veículos de comunicação.

Mas você sabe que, poucos dias antes, o naufrágio de um barco hiperlotado de refugiados matou centenas de pessoas nas costas da Grécia, criando aquela que talvez seja a maior tragédia do Mediterrâneo?

Não se sinta mal se souber do primeiro e não do segundo caso. O espaço dado pela mídia para a tragédia do pesqueiro foi muitíssimo menor que o dedicado ao acidente do submersível. O mesmo aconteceu no mundo-cão das redes sociais.

Esse não é um problema só da imprensa, apesar de ela ser essencial para a melhora desse quadro. Porém nós, o público, temos um papel fundamental em algo que impacta a nossa vida, mesmo estando do outro lado do mundo.


Veja esse artigo em vídeo:


O valor de uma vida humana é imensurável, qualquer vida. Por isso, os dois acidentes são tragédias a serem muito lamentadas. Mas não se pode ignorar que, se os cinco ocupantes do Titan morreram, do pesqueiro que saiu do Egito em direção à Líbia com estimadas 750 almas, apenas pouco mais de cem foram resgatadas com vida e outra centena de corpos foram encontrados. Um número incerto de outras vítimas fatais, talvez 500, se perdeu no mar. Vale dizer que, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações, quase 27 mil migrantes desapareceram no Mediterrâneo desde 2014!

A desigualdade não se dá apenas no espaço dedicado às duas tragédias na imprensa e nas redes sociais. Talvez ainda mais absurdo tenha sido o empenho nos resgates. Investigações apontam que as autoridades gregas foram lentas em reagir no caso do pesqueiro, o que aumentou dramaticamente a taxa de mortos. Enquanto isso, as guardas-costeiras dos Estados Unidos e do Canadá, além de várias embarcações particulares, tentaram resgatar o Titan, um esforço que custou milhões de dólares e que será pago, pelo menos em parte, pelos contribuintes desses países.

Tudo recai sobre porque nos interessamos tanto por tragédias como a do Titan e ignoramos a do pesqueiro.

As redes sociais sempre destacarão, para cada um de seus bilhões de usuários, aquilo que chama mais a sua atenção, mesmo que seja algo horrível. A frieza de seus algoritmos não tem nenhum compromisso com o bem-estar social ou mesmo com a verdade: ele exibirá mais aquilo em que há mais chance de clicarmos. Daí surgem as infames “bolhas”, que racharam a sociedade ao meio nos últimos anos, reforçando as crenças de cada um, mesmo as piores.

Vale dizer que até hoje, mais de uma semana depois do acidente, continuo vendo postagens sobre o Titan nas redes. Mas eu não vi nenhum usuário dedicar algumas linhas aos refugiados. As poucas publicações nessas plataformas foram feitas justamente por veículos de comunicação.

Resta saber então por que esses mesmos veículos seguiram essa desigualdade.

 

A banalização da “morte sem rosto”

Existem algumas regras para que uma notícia chame a atenção do público e assim ganhe destaque na imprensa. Uma dela é o ineditismo, e, convenhamos, não é sempre que um submersível com bilionários querendo passear no Titanic implode. O próprio Titanic estar envolvido também desperta muito a curiosidade. E há ainda sentimentos “menos nobres”, como achar graça de ricaços que pagam uma fortuna para visitar os destroços do naufrágio mais famoso da história (ocorrido em 1912), em uma embarcação com falhas críticas de projeto. Algumas pessoas talvez até quisessem ter tentado aquilo!

No caso dos refugiados, o naufrágio não tinha nenhum desses elementos. O público os despreza poque sente que eles acontecem “a toda hora”, matando pessoas sem nome, rosto, origem, destino ou motivação. Mas não é nada disso! Essas pessoas deixam para trás seu país para salvar a própria vida, fugindo de guerras, terrorismo, perseguições religiosas e outras atrocidades que a humanidade produz.

Isso é tão verdadeiro que, de vez em quando, a tragédia ganha um rosto, chocando o mundo todo. Foi o caso dos ucranianos, que saíam da própria Europa, fugindo da invasão russa. Ou da foto de uma criança refugiada que apareceu morta com sua camiseta vermelha e short azul, na costa da Turquia em 2015. A foto do seu rosto sendo encoberto pela onda na areia provocou uma comoção global pela crise dos refugiados… que infelizmente foi logo esquecida depois.

Esse desprezo não acontece só com quem está do outro lado do mundo. Acontece diariamente na nossa cidade, na nossa rua. Às vezes, tratamos de ignorar a morte até de alguém em nosso condomínio. Afinal, “não é ninguém próximo”.

Até que acontece conosco!

A imprensa “entrou no automático” nesse tipo de decisão editorial há muito tempo. Não chega a ter frieza criminosa dos algoritmos das redes sociais, mas acaba colaborando com a desumanização da sociedade.

Sei que não é possível noticiar todas as mazelas do mundo, mas é preciso mais consciência quando se destaca a morte de cinco bilionários enquanto se varre para o rodapé a maior tragédia marinha do Mediterrâneo.

A imprensa tem o papel de informar, mas também de formar a população. E, salvo em algumas exceções, vem falhando nesse segundo, entregando o público à manipulação dos abutres das redes sociais. Esses chegam ao absurdo de não apenas desprezar a dor alheia, como promover isso!

A vida não tem que ser assim. Não deve ser assim! Quem quer que sejamos, não podemos achar que o problema nunca chegará a nós por não nos envolvermos.

Não dá para se blindar. Os bilionários do Titan acharam que dava. E implodiram.

 

A Bruxa dá a maçã envenenada à Branca de Neve, no primeiro longa-metragem animado da história (1938) - Foto: reprodução

Quem matou a veia criativa da Disney?

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Desde que lançou “Branca de Neve e os Sete Anões” em 1938, Walt Disney elevou o conceito das animações a um patamar altíssimo, sendo responsável por algumas das maiores obras-primas do gênero. Seu sucesso se deve a sua obsessão pela excelência.

Infelizmente não dá para manter a barra no alto o tempo todo: de vez em quando, o estúdio fazia algo que não fosse tão incrível. Mas isso é diferente do que se observa agora: uma aparente decisão de trocar a qualidade pela quantidade.

Já faz muito tempo que a Disney não faz nada que seja realmente memorável. A empresa está se especializando em “live actions” –filmes com atores humanos que reproduzem antigos sucessos de animações– sem nenhuma criatividade, até piorando a história para que fique mais palatável ao mercado. Um exemplo disso foi o remake de “Mulan” (2020).

A mais recente vítima da nova política é a recém-lançada animação da outrora brilhante Pixar, “Elementos”, que teve a pior bilheteria de estreia da história do estúdio. Depois de custar US$ 200 milhões, rendeu “míseros” US$ 29,5 milhões nos EUA no fim de semana de estreia. Para comparação, “The Flash”, da Warner Bros, que também está decepcionando, rendeu US$ 55,1 milhões na estreia por lá.

Esse resultado é emblemático, porque a Pixar foi comprada pela Disney em 2006, em uma época em que a última passava por uma seríssima crise criativa, com lançamentos como os pavorosos “Nem Que a Vaca Tussa” (2004) e “O Galinho Chicken Little” (2005). Naqueles anos, a Pixar lançava os fabulosos “Os Incríveis” (2004) e “Carros” (2006).

A compra provocou uma transferência de cérebros para a casa do Mickey, especialmente de John Lasseter, que havia sido demitido da própria Disney em 1983 por querer apostar em animação computadorizada. Voltou como diretor criativo da Pixar e da Walt Disney Feature Animation (depois rebatizada como Walt Disney Animation Studios). Aquilo foi um sopro de inteligência e criatividade, gerando bons títulos para a Disney, como “Enrolados” (2010), “Detona Ralph” (2012) e “Frozen” (2013).

A empresa fez outras duas mega-aquisições para seu portfólio nos anos seguintes: comprou a Marvel (2009) e a Lucasfilm (2012), duas marcas que pareciam ter um “toque de Midas”, produtoras de enormes sucessos em sequência.

E então a coisa começou a desandar de novo.

 

Sai a qualidade, entra a quantidade

Sou um fã histórico de “Star Wars”, daqueles que faz citações dos filmes no cotidiano. Ou fazia: sob o comando da Disney, a saga da família Skywalker pariu filmes enlatados de consumo fácil e qualidade sofrível.

Quando o primeiro deles saiu em 2015, “Episódio VII: O Despertar da Força”, trouxe ideias interessantes: uma protagonista jedi, um stormtrooper negro que mostrava o rosto (literalmente) e com crise de identidade, o resgate dos velhos heróis e cenários mais realistas. Infelizmente pouco disso foi bem desenvolvido, sofrendo ainda com um vilão fraco e um roteiro com buracos. Era o prenúncio para o catastrófico “Episódio VIII: Os Últimos Jedi” (2017) e o fraco “Episódio IX: A Ascensão Skywalker” (2019).

Como resultado, aconteceu o inimaginável: perdi o interesse que tinha em “Star Wars”.

Algo semelhante aconteceu com a Marvel. Depois de anos com uma enxurrada de sucessos, começando pelo “Homem de Ferro” (2008) e culminando em “Vingadores: Ultimato” (2019), o selo tem lançado títulos que não empolgam a base de fãs como antes.

Várias coisas levaram a essa relativa queda da Pixar, da Lucasfilm, da Marvel e da própria Disney. Em primeiro lugar, há um êxodo de cérebros da empresa, que a deixam reclamando de más condições de trabalho. Os prazos ficaram tão exíguos, que os artistas estão tendo que piorar a qualidade dos efeitos especiais, pois não há tempo para os computadores gerá-los como gostariam.

Mas há claramente a política da quantidade a qualquer custo. E aí entra um outro fator determinante: o serviço de streaming Disney+, lançado em 2019. Sua principal força é também seu calcanhar de Aquiles: ele possui todo o conteúdo da Disney, da Pixar, da Marvel, de Star Wars e da National Geographic. E só!

Ele chegou tarde a um mercado amplamente dominado por rivais estabelecidos, liderados pela Netflix. Com força bruta, cavou o seu espaço entre eles. Mas, para isso, precisou iniciar uma corrida frenética de produção de filmes e principalmente séries dessas marcas, muitas delas descartáveis.

Outra decisão polêmica tem afastado o público que não assina a Disney+: a decisão de lançar longas-metragens apenas no streaming, ignorando as salas de cinema. Foi o caso de três títulos da Pixar seguidos: “Soul: Uma Aventura com Alma” (2020), “Luca” (2021) e “Red: Crescer É uma Fera” (2022).

De todas as marcas da casa, a Pixar é justamente a que vem se esforçando mais para manter o nível. Tanto que, apesar da bilheteria decepcionante, “Elementos” conseguiu do público uma nota A nas pesquisas do CinemaScore e ficou com 91% no índice Rotten Tomatoes, na manhã de domingo de estreia. É bom, mas está abaixo do índice na estreia de grandes sucessos da Pixar. E precisamos verificar se se manterá quando o público “menos fã” começar a votar.

O mercado cultural e até Wall Street estão preocupados com essas decisões da Disney. O primeiro lamenta a queda na qualidade média das produções a um nível abaixo da crítica. Já a turma dos investimentos quer saber como isso impactará os negócios desse colosso do entretenimento.

Walt Disney criou seu império apostando na qualidade e fazendo o que os outros não conseguiam para encantar o público. Deve estar se revirando no túmulo ao ver que as ainda existentes boas ideias vêm sendo diluídas em um oceano de filmes e séries de fórmulas fáceis e decisões de negócios que afastam o público de suas produções.

Para uma empresa que nasceu com histórias baseadas em contos de fadas, seus gestores deveriam prestar atenção na fábula de Esopo sobre a “galinha dos ovos de ouro”. Ela conta a história de um casal de camponeses que tinha uma galinha que diariamente botava um ovo de ouro! Movidos pela ganância e achando que no interior do animal haveria grande quantidade do metal, eles a matam. Só para descobrir que, nas entranhas, era como qualquer outra galinha, ficando sem sua dose diária de ouro.

Do jeito que está, sinto que os executivos da Disney já estão amolando a faca…

 

Imagem: composição por Paulo Silvestre

Chamamos de “magia” muitas coisas que simplesmente não entendemos

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Em 1985, eu e três amigos começamos a nos interessar por computadores, em uma época em que pouquíssimas pessoas sabiam o que eles eram ou para que serviam. Fomos a uma pioneira “escola de computação” no bairro para saber se poderíamos aprender mais sobre aquilo. A recepcionista nos levou a um TK-85 (um pequeno computador como o da imagem) e digitou o seguinte programa:

 

10 PRINT "Qual é o seu nome?"
20 INPUT nome$
30 PRINT "Olá, " + nome$ + "."
40 END

 

Quando ela rodou aquele código “espantoso”, a tela da TV preto-e-branco exibiu “Qual o seu nome?” Cada um de nós digitou o seu, ao que a máquina respondeu (para mim) “Olá, Paulo.”

Assombro geral com a “inteligência” do computador! Suficiente para aqueles pré-adolescentes se matricularem no cursinho de BASIC.

Não é preciso ser um programador para perceber que aquilo era algo extremamente simples. Mas para quem nunca tinha tocado em um computador (1985, lembra?), foi o suficiente para abrir as portas que me permitiram, a partir dali, olhar para o digital como forma de ampliar meus horizontes, procurando entender o que acontece no mundo dos bits.

O ser humano tem medo do desconhecido, porque não o pode controlar. Mesmo que algo aconteça incontestavelmente diante de seus olhos, se não compreender o fenômeno com o que sabe, recai sobre obra do divino ou –pior– vira “bruxaria”. Por conta disso, muitas mulheres e homens geniais foram, ao longo da história, calados, presos ou mortos por suas ideias, mesmo as mais benéficas à humanidade.

Por outro lado, quando adquirimos conhecimento, qualquer coisa, mesmo aquelas até então tidas como mágicas, deixa o campo do desconhecido e passa a ser uma ferramenta sob nosso domínio. E de tempos em tempos, uma nova tecnologia disruptiva surge para “testar a nossa fé”.

A bola da vez é a inteligência artificial, que já está revolucionando muitos negócios, mas igualmente desperta medo, pois o cidadão médio não consegue entender como ela funciona. Para ficar ainda mais confuso, temos pesquisadores e executivos da própria área revelando publicamente restrições a ela.

Talvez exista exagero nesses temores; talvez não. A dúvida se dá porque essa, que é uma das mais poderosas tecnologias já criadas, ainda seja majoritariamente incompreendida pela massa, que a vê, portanto, como “mágica”.

Precisamos desmistificar a IA, assim como qualquer outra tecnologia. Essa é a melhor maneira de tirarmos bom proveito do que ela pode nos oferecer, enquanto escapamos de eventuais armadilhas. Não quer dizer que teremos que ser todos programadores ou cientistas de dados: entendermos o que é, como funciona e para que serve já ajudará muito!

 

PS: tenho até hoje o meu TK-85 (foto a seguir), testemunha daquele momento histórico do nascimento da microinformática no país, nos anos 1980.

Foto: Paulo Silvestre

Foto: Paulo Silvestre

 


Vídeo relacionado:

Joan, protagonista do primeiro episódio da sexta temporada de “Black Mirror”, surta por causa de um mau uso da IA - Foto: divulgação

“Black Mirror” explica ludicamente os riscos da inteligência artificial

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Em uma sociedade polarizada pelo poder descontrolado dos algoritmos das redes sociais, cresce o debate se a inteligência artificial vai exterminar ou salvar a humanidade. Como costuma acontecer com esses extremismos, a verdade provavelmente fica em algum lugar no meio do caminho. Agora a sexta temporada da série “Black Mirror”, que estreou na Netflix na última quinta (15), surge com uma explicação lúdica de como essa tecnologia pode ser incrível ou devastadora, dependendo apenas de como será usada.

A icônica série, criada em 2011 pelo britânico Charlie Brooker, é conhecida pelas suas perturbadoras críticas ao mau uso de tecnologias. Sem correr risco de “dar spoiler”, o primeiro episódio da nova temporada (“A Joan É Péssima”) concentra-se na inteligência artificial generativa, mas guarda espaço para apontar outros abusos do mundo digital pela sociedade. Sobra até para a própria Netflix, a vilã do episódio!

Como fica claro na história, o poder da inteligência artificial cresce de maneira que chega a ser assustador, alimentando as teorias pessimistas ao redor dela. Se até especialistas se pegam questionando como essas plataformas estão “aprendendo”, para uma pessoa comum isso é praticamente incompreensível, algo ainda no campo da ficção científica.

Mas é real e está a nossa volta, começando pelos nossos smartphones.


Veja esse artigo em vídeo:


Como acontece em tantos episódios de “Black Mirror”, algo dá muito errado. E a culpa não é do digital, mas de como ele é usado por seres humanos movidos por sentimentos ou interesses condenáveis. A lição é que, quanto mais poderosa for a tecnologia, mais incríveis serão os benefícios que ele pode trazer, mas também maiores os riscos associados à sua desvirtuação.

É nesse ponto que estamos com a inteligência artificial. Mas ela não estraga a vida da protagonista do episódio sozinha: tem a “ajuda” de celulares (que estão captando continuamente o que dizemos e fazemos), dos algoritmos das plataformas de streaming (que nos dizem o que assistir), da “ditadura das curtidas”, do sucesso de discursos de ódio e até de instalarmos aplicativos sem lermos seus termos de uso.

A indústria de tecnologia costumava ser regida pela “Lei de Moore”, uma referência a Gordon Moore, um dos fundadores da Intel. Em um artigo em 1965, ele previu que a quantidade de circuitos em chips dobraria a cada 18 meses, pelo mesmo custo. Em 1975, reviu sua previsão para 12 meses. Hoje, o poder da inteligência artificial –que é software, mas depende de um processamento gigantesco– dobra a cada três meses.

O “problema” é que nossa capacidade humana não cresce no mesmo ritmo. E quando não conseguimos acompanhar uma evolução, ela pode nos atropelar. Essa é a gênese de muitos desses problemas, pois tanto poder à disposição pode fazer com que as pessoas deixem cuidados de lado e até passem por cima de limites morais.

É como diz o ditado: “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza!”

 

Faça a coisa certa

Na quarta, participei do AI Forum 2023, promovido pela IBM e pela MIT Sloan Review Brasil. As palestras demonstraram o caminho desse avanço da inteligência artificial e de como ela está se tornando uma ferramenta essencial para empresas de qualquer setor.

De fato, com tantos recursos incríveis que novas plataformas movidas pela IA oferecem aos negócios, fica cada vez mais difícil para uma empresa se manter relevante no mercado sem usar essa tecnologia. É como procurar emprego hoje sem saber usar a Internet ou um smartphone. Por mais experiente e qualificado em outras áreas que se seja, não haveria chance de ser contratado, porque esses pontos fortes seriam facilmente suplantados por outros candidatos que dominassem esses recursos.

Um estudo recém-divulgado pela IBM mostra que, se em 2016 58% dos executivos das empresas estavam familiarizados com a IA tradicional, agora em 2023 83% deles conhecem a IA generativa. Além disso, cerca de dois terços se sentem pressionados a acelerar os investimentos na área, que devem quadruplicar em até três anos.

A mesma pesquisa aponta que o principal fator que atravanca essas decisões é a falta de confiança na tecnologia, especialmente em aspectos de cibersegurança, privacidade e precisão. Outros problemas levantados foram a dificuldade de as decisões tomadas pela IA generativa serem facilmente explicadas, a falta de garantia de segurança e ética, a possibilidade de a tecnologia propagar preconceitos existentes e a falta de confiança nas respostas fornecidas pela IA generativa.

Conversei no evento com Marcela Vairo, diretora de Automação, Dados e IA da IBM (a íntegra da entrevista pode ser vista no vídeo abaixo). Para ela, três premissas devem ser consideradas para que a inteligência artificial nos ajude efetivamente, resolvendo essas preocupações.

A primeira delas é que as aplicações movidas por IA devem ser construídas para tornar as pessoas mais inteligentes e produtivas, e não para substituí-las. Deve existir também um grande cuidado e respeito com os dados dos clientes, que pertencem apenas a eles e não podem ser compartilhados em outra plataforma ou com outros clientes. E por fim, as aplicações devem ser transparentes, para que as pessoas entendam por que elas estão tomando uma determinada decisão e de onde ela veio, o que também ajuda a combater os possíveis vieses que a IA desenvolva.

O que precisamos entender é que essa corrida tecnológica está acontecendo! Não sejamos inocentes em achar que ela será interrompida pelo medo do desconhecido. Os responsáveis por esse desenvolvimento devem incluir travas para que seus sistemas não saiam do controle, garantindo essas premissas.

O que nos leva de volta a “Black Mirror”: tampouco podemos ser inocentes em achar que todos os executivos da indústria serão éticos e preocupados em fazer a coisa certa. É por isso que a inteligência artificial precisa ser regulamentada urgentemente, para pelo menos termos a tranquilidade de continuar usufruindo de seus benefícios incríveis sem o risco de sermos dominados pela máquina.

E no final, sempre temos que ter uma tomada para puxar e desligar a coisa toda se ela sair completamente dos trilhos.


Íntegra de entrevista com Marcela Vairo (IBM):

Marcela Vairo, diretora de Automação, Dados e IA da IBM, fala no palco do AI Forum 2023 - Foto: Paulo Silvestre

As empresas não podem mais ignorar a inteligência artificial

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A inteligência artificial atingiu o mundo dos negócios como um tsunami. Apesar de pesquisas na área existirem há décadas e de a tecnologia já estar presente em aplicações comerciais e até pessoais há muitos anos, nos últimos seis meses ela ganhou uma visibilidade gigantesca, desde que o ChatGPT colocou nas mãos do cidadão comum a sensação de que ele agora “controla a IA”.

Seja isso real ou uma impressão superestimada, o fato é que o poder da inteligência artificial está dobrando a cada três meses, e isso não pode ser ignorado. Quando pensamos no mundo dos negócios, começa a ficar realmente difícil uma empresa permanecer relevante no mercado quando seus concorrentes adotam ferramentas profissionais com IA.

Fazendo uma analogia, é como se um profissional buscasse emprego hoje sem saber usar a Internet ou um smartphone.  Por mais experiente e qualificado em outras áreas que fosse, não teria chance de ser contratado, porque seus pontos fortes seriam facilmente suplantados por outros candidatos que dominassem essas tecnologias disruptivas em nossas vidas.

Isso não significa que os gestores devem ir para a IA em desabalada carreira. Como toda ferramenta, ela pode trazer ganhos apreciáveis, mas, para isso, precisa ser bem usada. E quanto mais poderosa for essa tecnologia, maiores serão os benefícios que trará, mas também maiores são os riscos de algo dar muito errado.

A boa notícia é que não precisamos reinventar a roda. Foi-se o tempo em que tecnologias assim ficavam no campo da ficção científica, ou custavam tão caro que apenas grandes corporações podiam bancar seus benefícios. Graças a seu desenvolvimento exponencial e à combinação com outras tecnologias, como a computação na nuvem, a inteligência artificial pode hoje beneficiar mesmo pequenos negócios. Há até soluções gratuitas para quem está começando.

Falei sobre isso e muito mais com Marcela Vairo, diretora de Automação, Dados e IA da IBM, no AI Forum 2023, que aconteceu em São Paulo nesta quarta. A conversa traz dicas valiosas para quem deseja entender melhor a inteligência artificial e como ela impacta seus negócios e sua carreira e pode ser encontrada na íntegra no víeo abaixo:

 

 

Neo luta contra o Agente Smith em “Matrix Revolutions” (2003): mundo digital criado para iludir a humanidade - Foto: divulgação

Se deixarmos, a inteligência artificial escolherá o próximo presidente

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Nas eleições de 2018, eu disse que o presidente eleito naquele ano seria o que usasse melhor as redes sociais, e isso aconteceu. Em 2022, antecipei a guerra das fake news, que iludiram o eleitorado. Para o pleito de 2026, receio que a tecnologia digital ocupe um espaço ainda maior em nossas decisões, dessa vez pelo uso irresponsável da inteligência artificial.

Não estou dizendo que a IA escolherá por sua conta qual é o melhor candidato. A despeito de um medo difuso de que máquinas inteligentes nos exterminem, isso não deve acontecer porque, pelo menos no seu estágio atual, elas não têm iniciativa ou vontade própria: fazem apenas o que lhes pedimos. Os processos não são iniciados por elas. Temos que cuidar para que isso continue dessa forma.

Ainda assim, a inteligência artificial generativa, que ganhou as ruas no ano passado e que tem no ChatGPT sua maior estrela, atingiu um feito memorável: dominou a linguagem, não apenas para nos entender, mas também para produzir textos, fotos, vídeos, músicas muito convincentes.

Tudo que fazemos passa pela linguagem! Não só para nos comunicar, mas nossa cultura e até nosso desenvolvimento como espécie depende dela. Se agora máquinas com capacidades super-humanas também dominam esse recurso, podemos ser obrigados a enfrentar pessoas inescrupulosas que as usem para atingir seus objetivos, a exemplo do que foi feito com as redes sociais e com as fake news.


Veja esse artigo em vídeo:


A inteligência artificial não sai das manchetes há seis meses. Mesmo com tanta informação, as pessoas ainda não sabem exatamente como funciona e o que pode ser feito com ela. E isso é um risco, pois se tornam presas daquele que entendem.

É aí que mora o perigo para as eleições (e muito mais), com o uso dessa tecnologia para iludir e convencer. “No Brasil, as próximas eleições presidenciais serão daqui a três anos, e a tecnologia estará ainda mais avançada”, afirma Diogo Cortiz, professor da PUC-SP e especialista em IA. “A gente vai partir para um discurso não só textual, mas também com vídeo, som, fotografias ultrarrealistas, que farão ser muito difícil separar o real do que é sintético”, explica.

Não nos iludamos: vai acontecer! Esse é o capítulo atual do jogo em que estamos há uma década, em que a tecnologia digital é usada como ferramenta de convencimento. E, como sempre, ela não é ruim intrinsicamente, mas, se não houver nenhuma forma de controle, pessoas, empresas, partidos políticos podem abusar desses recursos para atingir seus fins, até de maneira criminosa.

Entretanto, não somos vítimas indefesas. Da mesma que esses indivíduos não deveriam fazer esses usos indecentes da tecnologia para nos manipular, cabe a cada um de nós usá-la conscientemente. Por mais que pareça mágica ao responder a nossos anseios de maneira tão convincente, ela erra, e muito! Por isso, não podemos pautar decisões importantes no que a IA nos entrega sem verificar essas informações.

O ser humano sempre teve medo de ficar preso em um mundo de ilusões. O filósofo e matemático grego Platão (428 a.C. – 348 a.C.) antecipou isso em seu “Mito da Caverna”. Nos dias atuais, o assunto permeia a ficção, como na série de filmes “Matrix”, curiosamente um mundo falso criado por máquinas para iludir a humanidade.

 

Intimidade com a máquina

Há um outro aspecto que precisamos considerar. Assim como a IA primitiva das redes sociais identifica nossos gostos, desejos e medos para nos apresentar pessoas e conteúdos que nos mantenham em nossa zona de conforto, as plataformas atuais também podem coletar e usar essa informação para se tornarem ainda mais realistas.

Hoje vivemos no chamado “capitalismo de vigilância”, em que nossa atenção e nosso tempo são capturados pelas redes sociais, que os comercializa como forma eficientíssima de vender desde quinquilharias a políticos.

Com a inteligência artificial, a atenção pode ser substituída nessa função pela intimidade. “Eu vejo vários níveis de consequência disso: sociais, cognitivos e psicológicos”, afirma Cortiz, que tem nesse assunto um dos pontos centrais de suas pesquisas atuais. “Se a pessoa começar a projetar um valor muito grande para essa relação com a máquina e desvalorizar a relação com o humano, a gente tem um problema, porque essa intimidade é de uma via só: o laço não existe.”

“O cérebro funciona quimicamente, buscando o menor consumo com o maior benefício”, explica Victoria Martínez, gerente de negócios e data science da empresa de tecnologia Red Hat para a América Latina. Para ela, uma das coisas que nos define como humanos é nossa capacidade de pensar coisas distintas, e não podemos perder isso pela comodidade da IA. E alerta do perigo implícito de crianças e adolescentes usarem essa tecnologia na escola, entregando trabalhos sem saber como foram feitos. “É muito importante aprender o processo, pois, para automatizarmos algo, precisamos entender o que estamos fazendo”, acrescenta.

A qualidade do que a inteligência artificial nos entrega cresce de maneira exponencial. É difícil assimilarmos isso. Assim pode chegar um momento em que não saberemos se o que nos é apresentado é verdade ou mentira, e, no segundo caso, se isso aconteceu por uma falha dos algoritmos ou porque eles foram usados maliciosamente.

Isso explica, pelo menos em parte, tantos temores em torno do tema. Chegamos a ver em março mais de mil de pesquisadores, especialistas e até executivos de empresas do setor pedindo que essas pesquisas sejam desaceleradas.

É por isso que precisamos ampliar o debate em torno da regulação dessa tecnologia. Não como um cabresto que impedirá seu avanço, mas como mecanismos para, pelo menos, tentar garantir responsabilidade e transparência de quem desenvolve essas plataformas e direitos e segurança para quem as usa.

Isso deve ser feito logo, e não apenas depois que o caos se instale, como aconteceu com as redes sociais. Agora, no meio do turbilhão, vemos como está sendo difícil regulamentá-las, graças aos interesses dos que se beneficiam dessa situação.

“Por enquanto, nós temos o controle”, afirma Martínez. “Então espero que a democracia não seja dominada por uma máquina.”

É verdade, mas temos que nos mexer. E que isso seja feito pelas nossas aspirações, e não porque algo deu muito errado!

 

Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura e jornalista, que chamou o jornalismo “o melhor ofício do mundo” - Foto: reprodução

Por que a imprensa e a sua liberdade deveriam interessar a você

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Na quarta (7), comemora-se o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. O tema está “na boca do povo”, junto com a afamada liberdade de expressão. Ainda assim, pouca gente sabe o que é de fato ou para que serve, especialmente porque, de uns anos para cá, parte da população perdeu sua fé no jornalismo. Isso traz um enorme risco à sociedade! Por isso, aproveito a data para tentar explicar por que um bom relacionamento entre a imprensa e seu público é essencial para todos.

Em primeiro lugar, é preciso definir para quem o jornalista trabalha. Não é para nenhum governo, nem empresas, nem mesmo anunciantes: é para seu público! Ficar sem anunciantes pode quebrar um veículo, especialmente quem ainda adota um modelo de negócios “mais tradicional”. Entretanto, ficar sem público é a sentença de morte para qualquer veículo. Ele é a sua razão de existência!

Como pretendo demonstrar, uma imprensa livre, vigorosa e comprometida é condição para uma sociedade vibrante e próspera. Aí mora nosso problema! Parte dessa desconexão atual se deve a alguns profissionais e veículos de comunicação esquecerem para quem trabalham.

Isso me leva a outro tema que se popularizou recentemente em meio a muita desinformação: a busca pela objetividade. Diante da confusão que muitos colegas fazem em torno dela, seus detratores aproveitam para exigir algo que, se fosse possível alcançar daquela forma, seria um grande desserviço à população.


Veja esse artigo em vídeo:


De uns anos para cá, muitos colegas abraçaram a ideia de que, pela sua própria humanidade, é impossível ser totalmente isento e objetivo. Isso é verdade: todas a pessoas são movidas por paixões e, portanto, sempre teremos nossas preferências em qualquer tema. Mas, no jornalismo, isso não pode servir para afrouxar a busca da verdade incluindo pontos de vista conflitantes com os seus. Ao fazer isso, muitos jornalistas caem em uma militância, seja real ou apenas aparente.

Isso dá munição àqueles que se beneficiam com o enfraquecimento da imprensa, pois vivem da mentira e da desinformação. Eles propagam a ideia de que o jornalismo deveria se limitar a “contar os fatos”, deixando que as pessoas tirassem suas conclusões. Na verdade, só querem a liberdade para distorcer esses fatos brutos para criarem narrativas que lhes sejam favoráveis.

É nessa hora que o bom jornalismo brilha e protege a sociedade! Ele não pode se limitar a “contar os fatos”: ele precisa explicá-los, contextualizá-los, sempre norteado pelo interesse do público e pela “verdade possível”. A combalida objetividade é sua ferramenta! Não aquela utópica, que só existiria em uma máquina, mas a melhor imparcialidade dentro das limitações humanas e de esforços sinceros.

Isso cria uma armadilha. Na ânsia de apresentar todos os lados de um tema com igual peso, jornalistas podem ironicamente criar visões distorcidas da realidade, colocando, lado a lado, completos absurdos e fatos comprovados. A imprensa pode mencionar as bobagens se também explicar, de maneira equilibrada, porque aquilo não deve ser considerado. Não podem cair na arapuca da falsa equivalência!

Quando falha nessa tarefa, permite o florescimento de teorias da conspiração, que podem ser catastróficas para a humanidade. Um exemplo é a de que vacinas seriam ineficazes e até perigosas, que recebeu um espaço muito maior que o devido na imprensa em nome de “ouvir o outro lado”. Por isso, muita gente acredita nessa aberração, e alguns grupos políticos até se beneficiaram disso.

A pandemia de Covid-19 foi uma dolorosa lição. Um enorme contingente desinformado deixou de se vacinar e, por conta disso, morreu. A situação só não foi mais dramática porque, diante da tragédia em curso, a maioria dos jornalistas e veículos assumiu seu papel e informou corretamente a população para que se vacinasse.

 

Fazendo as perguntas certas

Podemos, nesse ponto, aprender algo com o afamado ChatGPT. Afinal, obtemos boas respostas dele se fizermos boas perguntas, e vice-versa.

Bons jornalistas são justamente treinados para fazer as perguntas certas. Por isso, o valor da reportagem precisa ser resgatado. Uma boa entrevista é uma ótima conversa; uma ótima entrevista é uma sedução em busca da verdade. Deve existir uma ânsia genuína de querer aprender algo, com a mente aberta.

Jornalistas são contadores de histórias da vida real. Isso não quer dizer que têm que agradar alguém, pois o mundo nem sempre é bonito. Mas uma verdade feia é melhor que uma mentira agradável! Costumo dizer que, se fossem contos de fadas, jornalistas os contariam como os Irmãos Grimm, e não como as adaptações fáceis da Disney.

Vivemos em um mundo de obviedades e mesmice. Elas nos embrutecem, eliminam nossas individualidades e nos transformam em massa de manobra. O jornalismo protege a sociedade ao romper esse ciclo, contando as “histórias por trás das histórias”. Como escreveu em 1851 o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), “importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê.”

Ao contrário do que muitos imaginam, não é um trabalho fácil de um bando “apenas contando o que viu e dando sua opinião”. Em 1996, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Nobel de Literatura e também jornalista, disse, sobre o jornalismo, que chamou de “o melhor ofício do mundo”, que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver apenas para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cujo trabalho se encerra a cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede um momento de paz até recomeçar com mais ardor que nunca no minuto seguinte.”

Por isso, a liberdade de imprensa é um mecanismo celebrado em todas as democracias. Os jornalistas não são perfeitos (como ninguém é), mas são a última frente de resistência da sociedade contra os diferentes abusos de poder e, por isso, precisam ser protegidos.

Na verdade, precisamos ir além. Mais que “contar fatos”, esse trabalho deve ser encharcado de inteligência e de boa vontade, vibrando com as pessoas que formam o público. Elas, por sua vez, devem apoiar esses profissionais, em uma bem-vinda simbiose.

Fora disso, não há jornalismo: resta apenas a barbárie das redes sociais. E aí salve-se quem puder!

 

Matt Hicks, CEO da Red Hat, durante a abertura do Red Hat Summit 2023: “esse é o momento da IA” - Foto: Paulo Silvestre

Inteligência artificial produz coisas incríveis, mas não podemos perder nosso protagonismo

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Estive na semana passada em Boston (EUA), participando do Red Hat Summit, maior evento de software open source do mundo. Apesar desse modelo de desenvolvimento de programas aparecer a todo momento, a estrela da festa foi a inteligência artificial. E algo que me chamou a atenção foi a preocupação da Red Hat e de seus executivos em demonstrar como essa tecnologia, por mais poderosa que seja, não deve fazer nada sozinha, precisando ser “treinada” com bons dados, com o ser humano ocupando o centro do processo.

O próprio CEO, Matt Hicks, abriu a conferência dizendo que esse é o “momento da IA”. Muitos dos principais anúncios do evento, como o Ansible Lightspeed e o OpenShift AI, embutiam um incrível poder da inteligência artificial na automação de tarefas, como geração de código a partir de pedidos simples em português, liberando o tempo das equipes para funções mais nobres.

Isso não quer dizer, entretanto, que os profissionais possam simplesmente “terceirizar” o raciocínio e a sua criatividade para as máquinas. Pelo contrário, por mais fabulosas que sejam essas ferramentas, elas pouco ajudam se o usuário não conhecer pelo menos o essencial do que os sistemas produzem.

Tanto é verdade que assistimos a casos de pessoas e de empresas que enfrentam grandes contratempos por usar plataformas generalistas de inteligência artificial (como o ChatGPT) de maneira descuidada. Precisamos ter em mente que, por mais que ela chegue a parecer mágica, não é infalível!


Veja esse artigo em vídeo:


Foi o que aconteceu recentemente com o advogado americano Steven Schwartz, da firma Levidow, Levidow & Oberman, com mais de 30 anos de experiência: ele enfrentará agora medidas disciplinares por usar o ChatpGPT para pesquisas para o caso de um cliente que processava a Avianca. Tudo porque apresentou à corte um documento com supostos casos semelhantes envolvendo outras empresas aéreas.

O problema é que nenhum desses casos existia: todos foram inventados pelo ChatGPT. Schwartz ainda chegou a perguntar à plataforma se os casos eram reais, o que ela candidamente confirmou. É o que os especialistas chamam de “alucinação da inteligência artificial”: ela apresenta algo completamente errado como um fato, cheia de “convicção”, a ponto de conseguir argumentar sobre aquilo.

“Nessa nova fase, temos que conhecer a pergunta para qual queremos a resposta”, explicou-me Hicks, em uma conversa com jornalistas durante o Summit. “Se você for um novato, poderá criar melhor, mais rápido; se for um especialista, poderá melhorar muito o que faz e usar seu domínio para refinar a entrega”, concluiu.

Para Paulo Bonucci, vice-presidente e gerente-geral da Red Hat para a América Latina, “não adianta você chegar com inteligência artificial assustando a todos, dizendo que vai faltar emprego”. Para o executivo, a transformação que a inteligência artificial promoverá nas empresas passa por uma transformação cultural nos profissionais. “A atenção principal enquanto se desenvolvem os códigos e as tecnologias de inteligência artificial são as pessoas, são os talentos”, acrescenta.

Chega a ser reconfortante ver lideranças de uma empresa desse porte –a Red Hat é a maior empresa de soluções empresariais open source do mundo– demonstrando essa consciência. Pois não se enganem: a inteligência artificial representa uma mudança de patamar tecnológico com um impacto semelhante ao visto com a introdução dos smartphones ou da própria Internet comercial.

A diferença é que, no mundo exponencial em que vivemos, as transformações são maiores e os tempos são menores. E nem sempre as empresas e ainda mais as pessoas têm sido capazes de absorver esse impacto.

 

Corrida do ouro

Infelizmente o que se vê é uma corrida tecnológica, que pode estar atropelando muita gente por descuido e até falta de ética de alguns fabricantes. “Existem empresas grandes que fazem anúncios quando sua tecnologia não está madura”, afirma Victoria Martínez, gerente de negócios e data science da Red Hat para a América’ Latina. “Essa corrida tornou-se muito agressiva”.

É interessante pensarmos que as pesquisas em inteligência artificial existem há décadas, mas o assunto se tornou um tema corriqueiro até entre não-especialistas apenas após o ChatGPT ser lançado, em novembro. Não é à toa que se tornou a ferramenta (de qualquer tipo) de adoção mais rápida da história: todos querem usar o robô para passar para ele suas tarefas. E, graças a essa corrida, isso tem sido feito de maneira descuidada, pois alguns fabricantes parecem não se preocupar tanto com perigos que isso pode representar.

“Isso é uma coisa que a gente deveria estar discutindo mais”, sugere Eduardo Shimizu, diretor de ecossistemas da Red Hat Brasil. “Entendo que nós, não só como especialistas em segurança ou em tecnologia, mas como seres humanos, precisamos discutir esses temas éticos da forma de usar a tecnologia”, acrescenta.

Martínez lembra das preocupações que educadores vêm apresentando sobre o uso de plataformas de IA generativas, como o próprio ChatGPT por crianças. “Não podemos esquecer de aprender o processo”, alerta. Em uma situação limite, seria como entregar uma calculadora a uma criança que não sabe sequer conceitualmente as quatro operações básicas. Ela se desenvolveria como um adulto com seríssimos problemas cognitivos e de adaptação à realidade.

Por isso, a qualquer um que não saiba fazer uma divisão deveria ser proibido usar uma calculadora. Por outro lado, para quem domina suficientemente a matemática, a calculadora e mais ainda uma planilha eletrônica são ferramentas inestimáveis.

É assim que devemos encarar essa mudança de patamar tecnológico. Como escreveu Hicks em um artigo recente, “não sabemos o que o futuro reserva –nem mesmo o ChatGPT é precognitivo ainda. Isso não significa que não podemos antecipar quais desafios enfrentaremos nos próximos meses e anos.”

Quaisquer que sejam, quem deve estar no comando somos nós. Os robôs, por sua vez, serão ajudantes valiosíssimos nesse processo.


Você pode assistir à íntegra em vídeo das minhas entrevistas com os quatro executivos da Red Hat. Basta clicar no seu nome: Matt Hicks, Paulo Bonucci, Victoria Martínez e Eduardo Shimizu.

 

“Montanha russa virtual” da Rilix: equipamento possui vibração e até gerador de vento para aumentar a imersão - Foto: divulgação

Evento mostra como a tecnologia pode levar setor de festas a um novo patamar

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Esqueça as decorações caseiras improvisadas! O setor de festas já usa há anos a alta tecnologia, não apenas para a produção de itens para celebrações de todo tipo e porte, como também no que é oferecido aos clientes finais. A ideia é transformar esses encontros, sejam pessoais ou corporativos, em momentos memoráveis.

Na semana que vem, o maior evento do setor promete mostrar tudo isso em São Paulo. A Celebra Show acontecerá entre 31 de maio e 3 de junho no Expo Center Norte. Contará com a participação de 180 fabricantes, importadores, exportadores e distribuidores de um setor que representa 4,32% do PIB Nacional, segundo a ABCasa (Associação Brasileira de Artigos para Casa, Decoração, Presente, Utilidades Domésticas, Festas e Flores), organizadora da feira.

A associação calcula que o setor deve movimentar algo como R$ 40 bilhões nesse ano. Isso é 62% a mais que em 2019, o último ano antes da pandemia de Covid-19.

“O nosso objetivo é reunir todos os segmentos que compõem o setor de celebrações em um único evento e que este seja uma referência no mercado nacional e Internacional e onde os visitantes possam verificar tendências, fazer contatos importantes e conhecer novos fornecedores”, explica Eduardo Cincinato, presidente da ABCasa.

Resultado da união das antigas ABCasa Natal e Festas e Expo Festas e Parques, a Celebra Show receberá expositores dos segmentos de Natal, festas, Halloween, eventos sociais, confeitaria, balões, parques e outros. Além de itens mais tradicionais e já conhecidos do público nesses setores, os visitantes poderão ver produtos inovadores, como partes mecânicas e diferentes sensores, que criam verdadeiros efeitos especiais nas celebrações.

A tecnologia também gera oportunidades de negócios novas no setor. É o caso de usos criativos da realidade virtual. Um dos expositores do evento, a Rilix, oferece equipamentos de “montanhas russas virtuais”, que podem ser instaladas em festas ou em espaços públicos (como shoppings) para clientes que queiram pagar para “fazer um passeio”.

O sistema possui uma estrutura em que até duas pessoas podem se sentar. Graças aos óculos de realidade virtual, elas podem olhar para qualquer lado durante a simulação. Para aumentar o envolvimento, o equipamento ainda possui vibração e gerador de vento.

Para a Celebra Show, a empresa prepara um novo recurso que é a captura da posição das mãos dos clientes. “Antes, a pessoa colocava os óculos e fazia um passeio em algum dos 12 cenários”, explica Rafaela Sedlacek, gestora comercial da Rilix. “Agora teremos interação com as mãos, com alvos para atirar durante o passeio, gerando uma pontuação no final.”

A ABCasa tem incentivado seus associados na adoção de tecnologia para incrementar os setores de produção, comercialização e distribuição. Para o evento, a inteligência artificial está sendo usada na logística, garantindo o suprimento e o abastecimento de tudo o que for necessário. Também foram criados microsserviços na nuvem, que oferecem informações em tempo real, podendo ser acessados por computadores, tablets e smartphones.

 

Colaboração entre decoradores

O evento oferecerá, logo na sua entrada, um espaço “instagramável” construído de maneira colaborativa por grandes decoradores e influenciadores brasileiros e da América Latina: o Collab Celebra.

O espaço ocupará mais de 2.500 metros quadrados. O investimento em sua execução se aproximou de R$ 2 milhões. Serão representados os segmentos de confeitaria, festas, Natal, eventos sociais, Halloween e balões.

A feira oferecerá ainda diversos tipos de conteúdos sobre os mercados que representa, incluindo palestras, estudos de caso, workshops e até um seminário para profissionais e apaixonados por balões, o Baloon Meeting Brazil. O credenciamento para participar da Celebra Show é gratuito.

 

Os personagens Theodore e Samantha (no smartphone em seu bolso), no filme “Ela” (2013) - Foto: divulgação

Inteligência artificial começa a substituir pessoas com suas ideias, personalidades e vozes

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Enquanto o mundo discute o impacto da inteligência artificial no mercado de trabalho, outra revolução, possivelmente mais profunda ainda, começa a tomar forma graças a essa tecnologia: pessoas estão criando representações digitais de si mesmas, simulando suas ideias, vozes e até suas personalidades.

O objetivo é usar esses avatares para conversar com muita gente, como se fossem o indivíduo em si. Isso é particularmente interessante para celebridades com enormes bases de fãs online, mas abre uma série de discussões éticas e até filosóficas sobre a substituição do ser humano por robôs.

Por um lado, eles podem representar um grande avanço no relacionamento com seguidores e clientes, criando uma experiência incrivelmente imersiva e convincente, o que pode ser ótimo para os negócios. Entretanto especialistas temem que esses chatbots hiper-realistas possam provocar estragos na saúde mental de algumas pessoas.


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No começo do mês, a influenciadora digital americana Caryn Marjorie, 23, que tem aproximadamente dois milhões de seguidores no Snapchat, lançou um desses avatares. Batizado de CarynAI, ele é construído sobre a tecnologia do GPT-4, motor do afamado ChatGPT.

Mas ele vai muito além de escrever textos a perguntas de seus fãs. O robô simula a voz, personalidade e até maneirismos de Caryn, conversando com os fãs sobre qualquer assunto. Para uma base de seguidores em que 98% são homens, ninguém se surpreendeu que muitas dessas conversas acabaram tendo cunho sexual, apesar de a influenciadora dizer que espera que esse não se torne o assunto principal.

Os fãs sabem que não estão falando com a verdadeira Caryn. Ainda assim não se importam de pagar US$ 1 por minuto de conversa. Não há limite de tempo, mas quando o papo se aproxima de uma hora, CarynAI sugere que o fã continue em outro momento.

Com isso, na primeira semana, o sistema rendeu nada menos que US$ 100 mil à influenciadora. Quando ela conseguir dar acesso a uma lista de espera de milhares de interessados, ela calcula que faturará algo como US$ 5 milhões por mês! Negócios à parte, Caryn disse que “espera curar a solidão de seus fãs” com a ajuda de seu avatar.

“Entrar na fantasia não é errado: isso nos proporciona criatividade, curiosidade, alegria”, explica Katty Zúñiga, psicóloga especializada em comportamento e tecnologia. “Mas, ao mesmo tempo, a gente precisa entrar em contato com nosso lado mais racional, mais consciente, para encontrar o equilíbrio, e não nos perdermos na fantasia, que é o que essa inteligência artificial está nos apresentando.”

 

Vencendo a morte?

CarynAI foi criada pela empresa Forever Voices. Seu CEO e fundador, John Meyer, disse ao The Washington Post que começou a desenvolver a plataforma no ano passado, para tentar “conversar” com seu pai, que faleceu em 2017. Segundo ele, conversar com o robô que tinha a voz e a personalidade do pai foi “uma experiência incrivelmente curativa”.

É inevitável lembrar do episódio “Volto Já” (2013), o primeiro da segunda temporada da série “Black Mirror”, conhecida por promover reflexões sobre usos questionáveis da tecnologia. Nessa história, a personagem Martha (Hayley Atwell) usa um serviço que cria um chatbot com informações, personalidade e trejeitos de seu recém-falecido marido, Ash (Domhnall Gleeson). Como aquilo parecia aplacar sua saudade e solidão, ela atualiza o serviço para uma versão em que o sistema conversa com ela com a voz dele.

Emocionada com os resultados, parte para um terceiro nível, em que compra um robô fisicamente idêntico a Ash, que passa a interagir com ela, até sexualmente. Claro que, nesse momento, a experiência desanda! Quanto mais ampla pretende ser a simulação, maior a chance de ela dar errado. Martha não consegue lidar com as diferenças, e decide tomar uma atitude extrema.

Impossível não pensar também no filme “Ela” (2013). Nele, Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor deprimido, se apaixona por Samantha (Scarlett Johansson), a “personalidade” do novo sistema operacional de seu computador e smartphone. Se isso não fosse estranho o suficiente, ela corresponde a seu amor. Aqui também a história não termina bem, pois, apesar de Samantha agradar a Theodore em tudo, ela ainda não consegue ser humana.

As duas histórias são muito impactantes. No caso de Samantha, é muito fácil se apaixonar por ela, mesmo não sendo Theodore. Afinal, ela é dona de uma ternura rara, sempre “ao lado” de Theodore, disposta a dar a ele o que ele precisa. Mas isso é amor ou apenas as ações estatisticamente mais relevantes para cada momento, envelopadas com muito carinho?

É nessa hora que essas plataformas podem se tornar um problema psíquico. A vida real é composta de contraposições entre coisas positivas e negativas, alegrias e tristezas, tensões e distensões. Ao enfrentarmos isso, amadurecemos. Mas se começarmos a viver relacionamentos que nos “protegem” de dissabores, isso pode prejudicar nosso desenvolvimento.

“A gente está vivendo em um mundo de adultos imaturos, por isso as pessoas não aceitam o diferente”, explica Zúñiga. “É como a criança, que vive despreocupada momentos de prazer o tempo todo, porque tem um adulto por trás para cuidar dela”, acrescenta. Mas a vida não funciona dessa forma.

Meyer acredita que, em poucos anos, todos terão um “assistente humanizado por IA” em seu bolso, que poderá ser um parceiro romântico, um personal trainer ou um professor. Resta saber até onde eles poderão ir e como poderemos nos proteger de “abusos” da tecnologia.

No dia 18, Sam Altman, CEO da OpenAI, criadora do ChatGPT, deu uma palestra no Rio de Janeiro. Contrariando o que muito poderiam pensar, ele defende que a inteligência artificial seja regulamentada logo e, de preferência, de maneira única em todos os países.

Infelizmente a chance de isso acontecer é mínima. Afinal, não conseguimos chegar a um consenso nem com o “PL das Fake News”. De qualquer jeito, o debate não pode ficar restrito aos interesses dos fabricantes, ou correremos o risco de parar de nos apaixonar por humanos chatos, preferindo avatares hipersedutores.

 

Mark Zuckerberg, CEO da Meta: redes sociais entraram na briga contra o “PL das Fake News” - Foto: Anthony Quintano / Creative Commons

O poder das redes antissociais

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No começo, as redes sociais eram espaços divertidos, para encontrarmos antigos amigos e conhecer gente nova. Eram os bons tempos do Orkut, do MySpace e do Friendster. O próprio Facebook surgiu em 2004 como um simples diretório de alunos da Universidade de Harvard. Mas isso mudou na última década, e essas redes têm ficado cada vez menos sociais.

No lugar dos conteúdos inocentes de amigos e de familiares, as páginas dessas plataformas foram tomadas de publicidade, publicações de influenciadores e conteúdo de interesse das próprias empresas. Os feeds, que prendem nossa atenção, se transformaram em ferramentas de convencimento fabulosas, que nos induzem desde comprar todo tipo de quinquilharia até em quem votar. O espaço social deu lugar à máquina publicitária mais eficiente já criada.

A redução no aspecto social teve um custo para usuários e para as próprias redes.

Há semanas, o Brasil vem debatendo o Projeto de Lei 2.630/20, apelidado de “PL das Fake News”, que busca regulamentar essas plataformas. E agora elas entraram de sola na briga, combatendo explicitamente a proposta em suas páginas.

Não é de se espantar: são elas as mais impactadas pelo projeto, e não os usuários, os negócios, as igrejas ou mesmo os políticos. As redes, cada vez mais poderosas e menos sociais, não podem mais se eximir de suas responsabilidades, e precisarão fazer muito mais que atualmente para a manutenção saudável da sociedade.


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Nada disso chega a ser novo, mas a magnitude do espaço que ocupa em nossas vidas tornou-se alarmante. Como disse o professor da Universidade de Yale Edward Tufte, no documentário “O Dilema das Redes” (Netflix, 2020), “existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software”.

Algumas pessoas questionam o aumento desse poder em detrimento dos aspectos sociais. Isso vem provocando sangrias de usuários desencantados. Por isso, essas empresas também são prejudicadas, pois os usuários acabam migrando para plataformas menores e nichadas, onde o aspecto social ainda é relevante. Com isso, o sonho megalomaníaco de moguls como Mark Zuckerberg e Elon Musk de ter uma plataforma onde todos fariam de tudo, fica cada vez mais distante.

“Não é do interesse das redes sociais mudarem o formato de como operam e muito menos abrirem as caixas pretas com algoritmos”, explica Magaly Prado, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. “É notório verificar o espalhamento desenfreado de assuntos polêmicos e, principalmente, quando sacodem emoções.”

Isso explica atitudes como as vistas nos últimos dias, como quando o Google colocou um link para defender sua posição contrária à regulamentação na sua página de entrada, ou quando o Telegram enviou uma mensagem para todos seus usuários no Brasil, com o mesmo fim. Para fazer valer seu ponto de vista, não economizaram em afirmações falsas ou distorcidas. No caso do último, ainda carregou em frases de efeito e falsas, como dizer que “a democracia está sob ataque no Brasil”, que “a lei matará a Internet moderna” ou que “concede poderes de censura ao governo”.

Essas iniciativas provocaram reações no mundo político, jurídico e empresarial. A própria Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, correu para dizer que não concordava com as afirmações do Telegram.

 

Abuso de poder?

Muitos argumentaram que essas atitudes das plataformas digitais poderiam ser consideradas “abuso de poder econômico”, pela enorme penetração que essas empresas têm na sociedade e pelo poder de convencimento de seus algoritmos. Apesar disso, juridicamente não se pode sustentar isso.

“O abuso de poder econômico pode ser resumido como a situação em que uma entidade dominante em um setor empresarial viola as regras da concorrência livre, impedindo que seus concorrentes, sejam eles diretos ou indiretos, conduzam seus negócios”, explica Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). Para ele, as iniciativas do Google e do Telegram não se enquadram nisso. “Diferente seria se houvesse uma manipulação algorítmica que privilegiasse conteúdo alinhado com seu posicionamento, em detrimento de posições contrárias”, contrapõe.

De toda forma, esses episódios podem ser educativos. Eles ilustram muito bem o poder que as plataformas digitais desenvolveram, a ponto de se contrapor a governos eleitos e de jogar parte da população contra eles.

Ninguém ganha nada com isso!

“As redes perdem ao entulhar o feed dos internautas com mensagens falsas de interesses escusos, fugindo da ideia da Internet em unir as pessoas em uma esfera de sociabilidade e troca de saberes”, afirma Prado. De certa forma, leis como o “PL das Fake News” ao redor do mundo, como da União Europeia, China e Austrália, são reações aos descuidos com os aspectos sociais pelas plataformas, com a explosão das fake news, do discurso de ódio e de outros crimes nesses ambientes. Se essas empresas tivessem levado mais a sério esses cuidados, assim como os aspectos nocivos de seus algoritmos na saúde mental dos usuários, a sociedade não chegaria a essa cisão e talvez nada disso fosse necessário.

Talvez todos possamos aprender algo com a forma como as redes sociais cresceram. A liberdade nos permite criar coisas incríveis, mas ela não nos permite tudo! A liberdade de um termina quando começa a do outro, e o meio digital não se sobrepõe às leis de um país.

Não é um exagero dizer que as redes sociais são um invento que modificou nossas vidas profundamente, abrindo grandes oportunidades de comunicação e exposição. Mas se perderam pelo caminho. Ficaram demasiadamente poderosas, e isso subiu à cabeça de alguns de seus criadores.

Tristemente as grandes plataformas estão se tornando redes antissociais, onde o dinheiro supera os interesses daqueles que viabilizam o negócio: seus usuários. Por mais que não paguem por seus serviços (quem faz isso são os anunciantes), esse e qualquer negócio só prosperam se forem verdadeiramente benéficos a todos os envolvidos. Se a balança se desequilibra, como se vê agora, os clientes sempre encontrarão quem se preocupe de verdade com eles.

 

Mercado brasileiro terá até 2025 um déficit de 530 mil profissionais na área de TI - Foto: Creative Commons

Edtech combate déficit de profissionais de TI com capacitação gratuita

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Há anos, o Brasil enfrenta um déficit de trabalhadores na área de TI. Apesar de o mercado demandar cada vez mais pessoas em diferentes funções no setor, as faculdades não dão conta de prepará-las. Atenta a essa demanda, e edtech BePRO Institute pretende capacitar 800 pessoas por ano, sem custo para os estudantes.

Em dezembro de 2021, a Brasscom, associação das empresas de TI e comunicação, calculou que o mercado brasileiro demandaria 797 mil profissionais de TI entre 2021 e 2025, mas apenas 53 mil pessoas se formavam no setor por ano. Ou seja, se o país dependesse apenas dessas graduações, faltariam mais de meio milhão de profissionais até 2025. Outro estudo, feito pela consultoria McKinsey em 2019, indicou que 68% dos recrutadores do Brasil têm dificuldade de preencher vagas de nível básico em TI.

“Um dos grandes entraves que se tem hoje na educação é o dinheiro para fazer o curso”, explica Leandro Torres, fundador da BePRO. “Então um curso rápido dá oportunidade de a pessoa se empregar”, acrescenta.

A edtech oferece uma formação a distância de 140 horas, divididas em quatro semanas. Os estudantes são capacitados na plataforma “low-code” da Outsystems. Esse tipo de sistema permite que aplicativos sejam desenvolvidos com pouca ou nenhuma programação, graças a um ambiente que permite visualmente organizar recursos disponíveis em sua biblioteca de funções.

Torres afirma que isso é suficiente para que o estudante ingresse rapidamente no mercado de TI como um desenvolvedor júnior, com salários em torno de R$ 3.000. Com isso, a pessoa pode até mesmo viabilizar uma graduação na área e ampliar mais seus conhecimentos.

O público-alvo da BePRO são profissionais em transição de carreira ou que buscam um primeiro emprego na área de TI. Na primeira turma, realizada em abril com 26 participantes, a média de idade era de 32 anos, sendo que oito eram mulheres.

Para participar do processo seletivo, o candidato deve ter feito um curso técnico ou estar nos primeiros semestres de uma faculdade na área de TI. Além disso, é preciso ter um inglês pelo menos básico, pois, apesar de as aulas gravadas e da mentoria serem em português, o material oficial do fabricante é nesse idioma.

As primeiras três semanas do curso são de teoria e prática. Na quarta, cada aluno realiza um projeto final. O acompanhamento da evolução de cada um é diário. A instituição também oferece conteúdo comportamental e acompanhamento psicológico.

Torres investiu do próprio bolso quase R$ 500 mil para criar a edtech. Agora busca diferentes parcerias para seguir com o projeto. Ele já fechou acordos de divulgação com diferentes faculdades, para que seus alunos aprendam a plataforma “low-code” da Outsystems, de maneira complementar a seus estudos.

A próxima turma acontecerá em junho. As inscrições podem ser feitas pelo site da edtech: https://www.beproinstitute.com . A expectativa de Torres é realizar mais seis turmas até o fim do ano.

Para isso, o empreendedor espera agora conseguir parcerias com empresas, em um movimento em que todos ganhariam. Para fabricantes de software, por exemplo, isso aumentará a quantidade de profissionais capacitados a trabalhar com suas plataformas.

Mas Torres busca também apoio financeiro de grandes companhias para continuar capacitando gratuitamente pessoas, que poderão suprir demandas por profissionais das próprias organizações. “Uma das formas que eu vejo que vai resolver esses pontos é a entrada do empresariado ajudando cada vez mais a financiar esses estudos, seja ele uma formação acelerada, como a gente está propondo, seja numa formação mais tradicional, como uma graduação superior”, conclui.

 

Ian Wilmut, biólogo do Instituto Roslin (Escócia), e a ovelha Dolly, primeiro clone bem-sucedido de um mamífero - Foto: divulgação

Corrida pela inteligência artificial não pode driblar leis ou ética

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Diante do acalorado debate em torno do “PL das Fake News”, muita gente nem percebeu que outro projeto de lei, possivelmente tão importante quanto, foi apresentado no dia 3 pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG): o PL 2338/23, que propõe a regulação da inteligência artificial. Resta saber se uma lei conseguirá conter abusos dessa corrida tecnológica ou sucumbirá à pressão das empresas, como tem acontecido no combate às fake news.

Talvez um caminho melhor seria submeter o desenvolvimento da IA aos limites da ética, mas, para isso, os envolvidos precisariam guiar-se por ela. Nesse sentido, outro acontecimento da semana passada foi emblemático: a saída do Google de Geoffrey Hinton, conhecido como o “padrinho da IA”. Ele disse que fez isso para poder falar criticamente sobre os caminhos que essa tecnologia está tomando e a disputa sem limites que Google, Microsoft e outras companhias estão travando, o que poderia, segundo ele, criar algo realmente perigoso.

Em entrevista ao The New York Times, o pioneiro da IA chegou a dizer que se arrepende de ter contribuído para esse avanço. “Quando você vê algo que é tecnicamente atraente, você vai em frente e faz”, justificando seu papel nessas pesquisas. Hoje ele percebe que essa visão pode ser um tanto inconsequente.

Mas quantos cientistas e principalmente homens de negócios da “big techs” também têm essa consciência?


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Isso me lembrou do início da minha carreira, como repórter de ciência, quando o mundo foi sacudido, em fevereiro de 1997, pelo anúncio da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado com sucesso. Apesar de sua origem incomum, ela viveu uma vida normal por seis anos, tendo até dado à luz seis filhotes. Depois dela, outros mamíferos foram clonados, como porcos, veados, cavalos, touros e até macacos.

Não demorou para que fosse levantada a questão se seria possível clonar seres humanos. Ela rendeu até a novela global “O Clone”, de Glória Perez, em 2001. Em 2007, Ian Wilmut, biólogo do Instituto Roslin (Escócia) que liderou a equipe que criou Dolly, chegou a dizer que a técnica usada com ela talvez nunca fosse eficiente para uso em humanos.

Muitas teorias da conspiração sugerem que clones humanos chegaram a ser criados, mas nunca revelados. Isso estaria em linha com a ideia de Hinton da execução pelo prazer do desafio técnico.

Ainda que tenha se materializado, a pesquisa de clones humanos não foi para frente. E o que impediu não foi qualquer legislação: foi a ética! A sociedade simplesmente não aceitava aquilo.

“A ética da inteligência artificial tem que funcionar mais ou menos como a da biologia, tem que ter uma trava”, afirma Lucia Santaella, professora-titular da PUC-SP. “Se não os filmes de ficção científica vão acabar se realizando.”

 

A verdade irrelevante

Outro ponto destacado por Hinton que me chamou a atenção é sua preocupação com que a inteligência artificial passe a produzir conteúdos tão críveis, que as pessoas não sejam mais capazes de distinguir entre o que é real e o que é falso.

Ela é legítima! Já em 2016, o Dicionário Oxford escolheu “pós-verdade” como sua “palavra do ano”. Muito antes da IA generativa e quando as fake news ainda engatinhavam, esse verbete da renomada publicação alertava para “circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”. De lá para cá, isso se intensificou exponencialmente: as pessoas acreditam naquilo que lhes for mais conveniente e confortável. As redes sociais levaram isso às raias da loucura e a IA generativa pode complicar ainda mais esse quadro.

“Não é que a verdade não exista: é que a verdade não mais importa”, acrescenta Santaella. “Esse é o grande problema!”

Ter ferramentas como essas abre incríveis possibilidades, mas também exige um uso responsável e consciente, que muitos não têm. Seu uso descuidado e malicioso pode ofuscar os benefícios da inteligência artificial, transformando-a em um mecanismo nefasto de controle e de desinformação, a exemplo do que foi feito com as redes sociais. E vejam como isso está destruindo a sociedade!

Se nenhum limite for imposto, as empresas desenvolvedoras da IA farão o mesmo que fizeram com as redes sociais. É uma corrida em que ninguém quer ficar para trás, pois o vencedor dominará o mundo! Para tornar a situação mais dramática, não se trata apenas de uma disputa entre companhias, mas entre nações. Ou alguém acha que a China está parada diante disso tudo?

Eu jamais serei contra o desenvolvimento de novas tecnologias. Vejo a inteligência artificial como uma ferramenta fabulosa, que pode trazer benefícios imensos. Da mesma forma, sou um entusiasta do meio digital, incluindo nele as redes sociais.

Ainda assim, não podemos viver um vale-tudo em nenhuma delas, seja clonagem, IA ou plataformas digitais. Apesar das críticas ao “PL das Fake News” criadas e popularizadas pela desinformação política e resistência feroz das “big techs” (as verdadeiras prejudicadas pela proposta), ele oferece uma visão equilibrada de como usar bem as redes sociais. Mas para isso, essas empresas precisam se empenhar muito mais, inclusive agindo de forma ética com o negócio que elas mesmas criaram.

Não percamos o foco no que nos torna humanos, nem a capacidade de distinguir verdade de mentira. Só assim continuaremos evoluindo como sociedade e desenvolveremos novas e incríveis tecnologias.

Nesse sentido, o antigo lema do Google era ótimo: “don’t be evil” (“não seja mal”). Mas em 2015, a Alphabet, conglomerado que incorporou o Google, trocou o mote por “faça a coisa certa”, bem mais genérico.

Bem, a coisa certa é justamente não ser mal.

 

Chacrinha, dono de bordões memoráveis, como “quem não comunica se trumbica” - Foto: divulgação

Precisamos resgatar a arte de conversar

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O brasileiro moderno e digital poderia aprender algo com o Chacrinha. Abelardo Barbosa foi um dos maiores comunicadores do país entre as décadas de 1950 a 1980 por conseguir se conectar com o seu público e por saber fazer boas leituras de cada momento da sociedade. Com isso, ajustava seus programas e suas falas. E dentre seus memoráveis bordões, um sempre captou minha atenção: “quem não comunica se trumbica!” Ou seja, a arte de conversar é essencial para termos sucesso no que for.

Na sociedade polarizada, egoísta e impaciente das redes sociais, muitos parecem estar esquecendo de como fazer isso. Todos querem falar, mas poucos aceitam ouvir. Porém uma conversa exige, por definição, trocas entre pessoas. Para que seja boa, os interlocutores precisam estar dispostos a ouvir genuinamente o que o outro tem a dizer e demonstrar empatia. E –claro– ter algo útil a compartilhar ajuda nessa atividade.

Quando isso não é observado, tudo piora. Um exemplo emblemático aconteceu há duas semanas, na tentativa do Governo Federal de taxar compras em sites asiáticos, como a Shein, Aliexpress e Shopee. A medida é inescapavelmente impopular, pois deixará mais caras transações adoradas pela classe média. Mas uma comunicação falha e até arrogante tornou tudo mais confuso, gerando uma crise desnecessária.


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Entre idas e vindas, pessoas do governo dando declarações descontextualizadas e distantes do público, e a tradicional enxurrada de desinformação das redes sociais, muita gente continua sem entender como ficarão suas compras vindas do outro lado do mundo. Isso dói no bolso da população.

Ignorar isso nas comunicações é ignorar as necessidades do interlocutor, no caso, o povo. Por isso, a declaração do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de que não conhecia a Shein, só a Amazon “onde compra todo dia um livro, pelo menos”, foi entendida como elitista e arrogante. Graças a tudo isso, levantamento da consultoria Quaest mostrou que, naqueles dias, 83% das menções ao tema nas redes sociais foram negativas para o governo. A oposição tripudiou!

Mesmo sendo impopular, a comunicação poderia ter seguido outro caminho. Como os produtos ficarão mesmo mais caros, o governo deveria reforçar o discurso de que esse dinheiro extra será revertido para a própria população, melhorando a saúde e a educação, por exemplo. Além disso, precisa explicar por que a evasão de impostos dos portais asiáticos prejudica seriamente varejistas brasileiros, que pagam corretamente seus impostos e empregam muita gente.

Para se ter uma ideia da magnitude da “invasão asiática” no comércio de vestuário, levantamento do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV) mostra que, em 2019, a Shein nem aparecia entre os principais nomes do setor. Dois anos depois, já abocanhava 16,1% do mercado, muito mais que marcas brasileiras tradicionais, que não param de cair. Por isso, elas apoiam a ideia de taxação das asiáticas.

Toda a gritaria resultante dessa falha de comunicação fez o governo recuar na proposta de eliminar o imposto de importação de produtos até US$ 50 entre indivíduos, mecanismo que as asiáticas usam para escapar da taxação (como empresas, não poderiam aproveitar isso). A ideia agora é forçar essas empresas a cobrar os impostos já na compra, o que a encarecerá do mesmo jeito. Mas nem isso foi bem comunicado à população.

O que não dá é insistir no discurso de que “nada mudou, pois o imposto sempre existiu, apenas era ignorado”. Na visão do consumidor, continua a sensação de que comprar da China é mais barato que do Brasil, e que a iniciativa do governo tornará isso mais caro e sua vida mais difícil.

 

Fazendo concessões

Uma boa conversa também implica em fazer concessões. Quem tenta impor seu ponto de vista, acaba ficando sozinho.

Em muitos casos, há interesses conflitantes no debate, mas isso não quer dizer que não se possa chegar a um consenso. No exemplo acima, a inabilidade na comunicação colocou os consumidores do lado dos portais asiáticos e contra os varejistas brasileiros e o próprio governo.

Poderia ter sido diferente!

Não dá para agradar todo mundo! Insistir nisso é um erro de muitas pessoas e empresas. Todos precisam conhecer quem forma seu público, pois as pessoas têm gostos, valores e visões de mundo diferentes. Ao se tentar abarcar muita gente, o que acontece é que se cria uma comunicação genérica e sem graça, que não agrada verdadeiramente ninguém.

Isso não quer dizer que devamos sair por aí cometendo “suicídios de imagem” ao dizer, sem nenhum cuidado, o que precisa ser dito. Precisamos expor as ideias e as informações necessárias, mas levando em consideração as necessidades de todos os envolvidos, negociando o que pode ser concedido em cada caso, sem que isso desfigure o objetivo original.

Sobre isso tudo, precisamos exercitar nossa sensibilidade e nossa empatia. Demonstrar esses sentimentos genuinamente pode pelo menos suavizar uma má notícia.

É uma pena que, em tempos de redes sociais, que criam bolhas que reforçam nossos pontos de vista (mesmo os piores), a empatia se tornou artigo de luxo. Isso acontece porque ela exige tempo e energia, duas coisas que as pessoas não querem conceder.

Em uma situação complexa como essa da taxação das compras nos portais asiáticos, em que há interesses diametralmente opostos, a empatia fica ainda mais importante. O governo precisa trazer a população para o seu lado, ao invés de afastá-la. Não é uma tarefa simples, pois a medida dói no bolso das pessoas, que ainda são incendiadas pela oposição.

Ainda assim, é possível, pelo menos, melhorar um pouco esse quadro. Mas, para isso, é preciso de conversa e de empatia.

Afinal, como diz a sabedoria popular, “é conversando que se entende”. Isso vale para o governo, para empresas e para cada um de nós.

Chacrinha que o diga!