As salas de aula brasileiras estão se transformando em um campo de batalha ideológico. De um lado, grupos exigem que professores sejam proibidos de discutir política, religião ou sexualidade com os alunos. Do outro, professores resistem. Mas será possível uma escola que ignore completamente esses temas? Na resposta a essa pergunta, reside o futuro de cada um de nós e do país.
Somos seres essencialmente políticos. Mesmo se nos posicionássemos contrários à sua prática ou discussão, estaríamos exercendo uma postura política. O mesmo vale para a religião e para o sexo: não há como escapar totalmente disso. Portanto, negar essas discussões é como negar nossa humanidade. Esses assuntos são poderosas ferramentas para transmissão de conhecimento, mesmo daqueles que não estejam diretamente ligados a eles. E a escola lança mão desses recursos desde os tempos de Aristóteles, de uma ou outra forma. Mas então o que mudou agora?
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Acontece que estamos nos tornando cada vez mais intolerantes. E isso é algo extremamente perigoso para a educação e para a sociedade como um todo.
A discussão vem ganhando força graças ao Movimento Escola Sem Partido, criado pelo advogado Miguel Nagib em 2004, mas que está aparecendo mais desde o ano passado. Ele defende que os professores sejam proibidos de discutir com os estudantes suas convicções políticas, religiosas ou sexuais. Segundo o advogado, isso funcionaria como a usurpação do direto dos pais da educação moral dos filhos, além de constituir um abuso contra os alunos, que não têm a opção de não querer ouvir o que o professor tem a dizer. Além disso, pela própria natureza da relação mestre-aprendiz, as palavras dos professores teriam grande influência sobre os estudantes.
O grupo vai mais longe, e propõe que sejam criadas leis que institucionalizem tais proibições. Mais que isso, querem que a Base Nacional Comum Curricular, atualmente em discussão, também inclua mecanismos no mesmo sentido. Dessa forma, não apenas o que os professores dizem, mas também o que os livros didáticos trazem seria controlado. E já conseguiram o apoio de muitos senadores, e deputados federais e estaduais para sua causa.
Mas, afinal de contas, há doutrinação nas escolas?
Os dois lados da mesma moeda
Resposta simples e direta: claro que sim!
Um desavisado poderia então achar que as propostas do movimento são válidas. Afinal, muitos professores discutem mesmo questões políticas, religiosas e sexuais com seus alunos, e, em muitos casos, isso é feito de uma maneira exagerada e tendenciosa. O mesmo vale para diversos livros didáticos, que prestam um verdadeiro desserviço à educação.
Entretanto o que o Escola Sem Partido propõe troca algo ruim por outra coisa tão ruim quanto. O movimento tem inspirações política e religiosa claramente conservadoras. Por isso, na prática, sua guerra declarada é contra conteúdos “de esquerda” e que contrariem dogmas das religiões cristãs dominantes.
Consideremos, por hipótese, que o movimento tivesse sucesso absoluto em suas propostas. Então os professores não debateriam mais questões como o homossexualismo e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, condenados pelas igrejas, mas que, queiram elas ou não, existem em todo lugar.
Que espécie de cidadãos essas escolas formariam? Um bom cidadão só nasce quando ele é exposto à diversidade de ideias. Dou um exemplo pessoal para ilustrar o caso. Acho o Criacionismo uma bobagem, e não nego que me causa estranheza que ele apareça lado a lado à Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin, nos livros de Ciências de meus filhos. Mas nem por isso vou criar uma guerra contra os livros, a escola ou os professores.
Apesar de não concordar com isso, sei que é importante que meus filhos conheçam as diferentes ideias sobre o assunto, para que possam crescer tomando decisões embasadas. Além disso, precisam saber que o mundo é feito de visões conflitantes, mas que elas podem coexistir em paz. Em contrapartida, debato com meus filhos sobre tudo, de cabeça e coração abertos.
Se esse tipo de “ensinamento moral” ficasse restrito à minha casa, como defende o Escola Sem Partido, talvez meus filhos tivessem uma visão limitada daquilo que eu não concordo. E isso seria muito ruim. Como pai, eu tenho a obrigação de permitir que meus filhos conheçam opiniões diferentes das minhas.
Na esfera política, os livros sempre trazem a visão do grupo que está no poder. É verdade que hoje temos uma clara inclinação aos conteúdos “de esquerda”, que vem se fortalecendo desde que os militares desceram a rampa do Planalto, e que acelerou com a ascensão do PT à presidência. Mas quem tem mais que 40 anos deve se lembrar que, na época da ditadura, esses mesmos livros eram recheados de temas ufanistas, do “Brasil gigante”, dos heróis nacionais. É só pensarmos na figura de Tiradentes se parecendo a Jesus Cristo, uma clara aberração histórica (um alferes jamais teria aquela barba e aquele cabelo), mas que servia muito bem para transformar um personagem menor da nossa história em um grande herói nacional.
Mas então o que pode ser feito para melhorar de verdade a educação?
Equilíbrio e tolerância
Professores que se preocupam mais em doutrinar que educar fazem de seus alunos pessoas piores. Mas querer lavar todo esse cenário com água sanitária, abrindo caminho para exageros em sentido oposto, é igualmente horrível.
Uma educação de qualidade só pode ser conseguida com uma visão ampla do mundo, e com equilíbrio de posições que se contrapõem. E um futuro positivo para o Brasil só pode ser moldado por uma ótima educação. Para isso, temos que exercitar uma das mais nobres características humanas: a tolerância.
Lembro-me que, quando casei, o sacerdote nos disse: “o segredo para um casamento duradouro é a tolerância às diferenças do outro e o perdão”. “Tolerância” e “perdão”: duas palavras que todos conhecem e que sabem o seu significado, mas que são observadas cada vez menos no comportamento das pessoas.
Escolas deveriam ser locais de tolerância e perdão. E elas também são casas de formação acadêmica e de cidadania. Portanto as pessoas nos diferentes papeis ali devem expor o que pensam, mas aproveitar isso para genuinamente ensinar a ouvir e a tolerar opiniões divergentes, sem radicalismos ou histórias que maquiem a verdade para qualquer um dos lados. Pois alguém só pode ser considerado um bom cidadão se as conhecer bem e se for capaz de analisá-las desapaixonadamente, inclusive vendo o que cada uma tem de bom e de ruim.
Você consegue fazer isso?
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Gostei muito do texto, equilibrado e ecertivo, sem agressividade. A razão está no meio. Parabéns
Muito obrigado, Maria da Graça. É um prazer compartilhar ideias e fomentar debates que ajudem a nossa sociedade a progredir. Um grande abraço.
[…] Como a briga sobre a política e a religião nas escolas determinará o nosso futuro […]
Realmente, esse é um dos grandes debates na educação no momento, só gostaria que fosse por motivos melhores
Eu até acho que surgiu de uma preocupação legítima, mas a solução proposta pelo Escola sem Partido, como dito pelo Karnal é uma asneira gigantesca. É simplesmente impossível isolar os alunos das crenças e visões de mundo dos professores. Inclusive, a analogia da àgua sanitária foi ótima.
O que precisamos não é menos política nas escolas mas, muito pelo contrário, mais diversidade política nas escolas.
Perfeito, Renato! Os alunos não podem ser isolados do mundo em que vivem, e isso nem é possível. Eles precisam aprender a conviver com as diferenças, sem radicalismos, sem doutrinação. Sei que muitos professores “pesam na mão” em alguns momentos, mas a solução não é uma inócua tentativa de calá-los, e sim os pais fomentarem o debate em casa e na própria escola, expondo os seus pontos de vista, eventualmente contrários. Assim, as crianças crescem com uma visão mais crítica e mais ampla do mundo. Grande abraço.