Quem deve ser o “dono” da inteligência artificial?

By 5 de agosto de 2024 Tecnologia No Comments
Sam Altman, CEO da OpenAI, durante o Fórum Econômico Mundial 2024, que aconteceu em Davos (Suíça), em janeiro - Foto: reprodução

A inteligência artificial generativa é uma tecnologia diferente de tudo criado antes dela. Ao contrário de ferramentas mecânicas ou digitais, que nos ajudam a realizar melhor as mais diversas tarefas, ela se propõe a “entregar o trabalho pronto”. Se por um lado isso é realmente incrível, por outro exige que sejamos muito criteriosos sobre o criador das plataformas que usarmos e sobre suas produções.

Tudo porque essa tecnologia pode efetivamente, a longo prazo, alterar a maneira como pensamos e encaramos o mundo! O problema é que as pessoas não têm consciência disso, e usam essas plataformas despreocupadamente.

Não proponho que os responsáveis por esses sistemas tenham uma motivação maquiavélica de domínio do mundo. Mas as respostas da IA generativa não apenas trazem o conteúdo das fontes usadas em seu treinamento: também refletem a maneira de falar, a cultura e até os valores dos países que mais contribuíram para tal treino. No momento, isso cabe à Europa Ocidental e principalmente aos Estados Unidos, pelo simples fato de a maior parte do conteúdo na Internet ter essas nações como origem.

Isso pode mudar em pouco tempo! Países do Oriente, especialmente a China, investem pesadamente e com regras muito mais frouxas para criarem suas próprias inteligências artificiais generativas, treinadas com seu conteúdo e sua visão de mundo.

No último dia 25, Sam Altman, cofundador e CEO da OpenAI (criadora do ChatGPT), publicou um artigo no The Washington Post (reproduzido em português no Estadão) questionando qual país deve controlar o futuro da IA. Apesar do tom desbragadamente ufanista em favor dos Estados Unidos, ele faz provocações válidas.

Afinal, a nação que dominar a IA dominará o mundo! E isso não pode ser ignorado.


Veja esse artigo em vídeo:


Não concordo com tudo que Altman escreve em sua publicação, a começar pelo seu ímpeto em apresentar os Estados Unidos como um defensor ilibado da liberdade e dos direitos individuais. Sim, isso faz parte dos valores fundamentais daquele país, mas repetidos escândalos de espionagem digital de seus governos e de abusos de poder econômico de empresas americanas, por manipulação e usos indevidos de dados de seus clientes, desqualificam essa premissa de Altman.

Por outro lado, obviamente os Estados Unidos e principalmente a Europa estão muito mais bem-posicionados na defesa da democracia e de liberdades individuais que nações autoritárias, como a China e a Rússia. E a primeira vem forte na corrida da IA.

“Estamos diante de uma escolha estratégica sobre o tipo de mundo em que viveremos”, escreveu Altman. Considerando o poder sem precedentes de influência e até de dominação cultural que a IA generativa cria, essa é uma preocupação legítima. “O ditador russo Vladimir Putin avisa que o país que vencer a corrida da IA ‘se tornará o governante do mundo’, e a China diz que pretende se tornar o líder global em IA até 2030”, completa.

Ele adverte que, se isso acontecer, empresas do mundo todos seriam obrigadas a compartilhar os dados de seus usuários, o que criaria formas de espionagem e recursos para armas cibernéticas sofisticadas. Novamente o temor é válido, mas, em alguma escala, isso já vem sendo feito com as big techs americanas.

O CEO da OpenAI elenca pontos que considera essenciais para se manter a liderança na inteligência artificial: segurança cibernética, infraestrutura física robusta, investimento substancial em capital humano, diplomacia comercial para a IA, e normas para o desenvolvimento seguro dessa tecnologia. É interessante notar que, nesse ponto, ele defende que se conceda mais protagonismo para países do sul global, tradicionalmente deixados para trás nas decisões econômicas e tecnológicas.

Mas isso implica em trazer a China para a mesa.

 

Dominação pela IA

Desde a Antiguidade, as nações mais avançadas dominam as outras. A Grécia, apesar de ter sido anexada ao Império Romano, influenciou fortemente a cultura do invasor, até em seus deuses! No século XIX, a Inglaterra difundiu suas ideias, seguida pela França. E desde o fim da 2ª Guerra Mundial, o Ocidente é fortemente influenciado pelos Estados Unidos.

O principal mecanismo da dominação cultural dos Estados Unidos é o cinema, a televisão e a música. Basta olhar ao redor e ver como nos vestimos, comemos e até nos comportamos.

A IA pode levar a dominação cultural a um patamar inédito, ao incorporarmos suas respostas diretamente e sem filtros a nossas ações. De uma tacada só, passamos a consumir e a disseminar conceitos e valores de outro país.

A própria interface dessas plataformas favorece isso. Pela primeira vez na história, algo que não é humano consegue conversar consistente e convincentemente, como se fosse outra pessoa. Isso favorece a antropomorfização da IA, ou seja, passamos a atribuir características humanas a uma máquina, e assim absorvemos o que ela nos dá de maneira ainda mais direta, sem questionamentos.

De uma forma bastante ampla e talvez nociva, a IA pode nos aproximar da “aldeia global” do filósofo canadense Marshall McLuhan, que propôs em 1962 o fim de fronteiras geográficas e culturais. Ele acreditava que isso aconteceria pela influência dos meios de comunicação, o que aconteceu apenas timidamente. Agora, com a IA, isso pode finalmente acontecer, com o que tem de bom e de ruim.

Altman sabe disso! Seu artigo defende abertamente que os Estados Unidos liderem uma coalização internacional para manter sua hegemonia contra a ascensão de valores de nações autoritárias, graças à IA.

Para aqueles, como nós, que estão muito mais em posição de dominados que de dominadores, esse alerta serve para entendermos como a nova ordem mundial será construída nos próximos anos.

Qualquer que seja o vencedor dessa corrida, é preciso que existam leis em todos os países que exijam responsabilização no uso e desenvolvimento da inteligência artificial, seja pelas empresas, pelos governos e pelos usuários. Não podemos repetir o erro cometido com as redes sociais, que racharam a sociedade ao meio por não se sentirem responsáveis pelo que acontece em suas páginas.

Quanto a nós, resta investirmos pesadamente em letramento digital das pessoas, para que elas possam aproveitar consciente e criativamente os recursos dessa incrível tecnologia, tentando evitar tal dominação cultural. E essa não é uma tarefa fácil!