A desconfiança se tornou o sentimento padrão de nossa sociedade. Se o bom senso e até a legislação definem que todos são inocentes até que se prove o contrário, a maioria das pessoas hoje rejeita algo novo até que se demonstre confiável. Como resultado, elas estão perdendo a sua capacidade de debater e de colaborar em torno de temas que discordem. E elas discordam de muitas coisas em um mundo que se tornou absurdamente polarizado.
Essas são algumas das principais conclusões do recém-lançado relatório anual Trust Barometer, da consultoria americana Edelman. A pesquisa global, que está na sua 22ª edição, provoca algumas importantes reflexões sobre como chegamos a um ponto de ruptura da democracia e possíveis caminhos para melhorarmos.
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A Edelman entrevistou mais de 36 mil pessoas de 26 países, inclusive do Brasil. Desse total, 59% afirmam desconfiar até ver evidências de que algo é confiável e 64% disseram não conseguir debater construtivamente sobre questões sobre as quais discordam. Entre as diferentes categorias profissionais pesquisadas, os cientistas são aqueles em quem as pessoas mais confiam, enquanto os políticos são os menos confiáveis, números claramente em linha com as ações de cada um durante a pandemia.
A pesquisa identificou quatro forças desestabilizando a sociedade e impedindo o progresso: o constante embate entra mídia e governo, a confiança excessiva nas empresas, a polarização do povo e as falhas de liderança.
“As pessoas ainda querem que o governo enfrente os grandes desafios, mas apenas quatro em cada dez dizem que ele pode executar e obter resultados”, explica Richard Edelman, CEO da consultoria. Além disso, as preocupações com notícias falsas bateram um recorde histórico na média global, alcançando 76% dos entrevistados. No Brasil, isso chega a 81%, dois pontos a mais que no ano anterior.
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No relatório, “mídia” se refere não apenas a veículos de comunicação tradicionais, mas também a buscadores, publicações próprias de diferentes instituições e redes sociais. Esses dois últimos puxam a média do grupo para baixo e são vistos como pouco confiáveis, enquanto os outros são neutros.
Quase metade dos entrevistados vê o governo e a mídia como divisores na sociedade: 48% e 46% respectivamente. Além disso, líderes governamentais têm a confiança de apenas 42% da população, enquanto jornalistas ficam com 46%. No Brasil, 47% confiam na mídia e apenas 34% no governo, esse último com uma expressiva queda de 5 pontos em um ano. Por outro lado, empresas e ONGs são vistas como entidades unificadoras.
“Temos um governo que está semeando a divisão, porque leva a votos. A mídia infelizmente segue com informações que se adequam às polaridades, e está causando instabilidade social entre divisão e desinformação”, explica Edelman. “O que temos que fazer é encontrar uma maneira de quebrar esse ciclo com informações de qualidade.”
A pesquisa indica que há um colapso de confiança nas grandes democracias. Entre os brasileiros, ela se manteve em 51% de 2020 para 2021, ano de coleta dos dados dessa edição. O país em que a população é mais confiante é a China, que crava 83%. Já os Estados Unidos, autoproclamado a maior democracia do mundo, amargam uma queda de 10 pontos desde 2017, e, nesse último ano, a confiança caiu de 48% para apenas 43% por lá.
Vale destacar que, em nenhum país desenvolvido, a população acha que estará melhor em cinco anos! Os medos sociais estão se tornando mais fortes, com 85% preocupados em perder o emprego e 75% tensos com as mudanças climáticas.
O papel das empresas
Dos quatro grandes grupos estudados, governo, mídia, ONGs e empresas, essas últimas são as em que a população mais confia, com um índice de 61%. As empresas superam o governo em elásticos 53 pontos no quesito competência e em 26 pontos na ética. Por isso, as pessoas querem que as companhias assumam um papel maior em questões como mudanças climáticas, desigualdade econômica, qualificação da força de trabalho e injustiça racial. E ainda esperam que se posicionem publicamente sobre esses temas.
“O fracasso do governo criou uma dependência excessiva das empresas para preencher o vazio, um trabalho que a iniciativa privada não foi projetada para entregar”, diz Edelman. Assim, ações e posicionamentos nessas áreas impactam até na escolha de profissionais sobre onde querem trabalhar.
As pessoas acham que as companhias fazem pouco nessas áreas. Os negócios devem reconhecer que seu papel social veio para ficar e as lideranças devem assumir esse discurso. Por isso, ganham pontos personalidades como Luiza Trajano, por exemplo com suas iniciativas de apoiar a vacinação contra Covid-19 e combater desigualdades raciais no Magazine Luiza. Do outro lado, perdem líderes como Mark Zuckerberg, com suas respostas frequentemente evasivas, mesmo diante de graves acusações contra o Facebook, como as feitas em 2021 por Frances Haugen, ex-gerente da empresa.
Não chega a ser, portanto, uma surpresa que, dos 16 setores da economia avaliados, a mídia social é a única que apresentou queda (de 2%) e a única que está na faixa de desconfiança, com apenas 44% da população lhe dando crédito.
Como sair desse atoleiro
Para revertermos esse quadro, precisamos de união, seriedade e de informações bem apuradas. “O governo deve finalmente se comprometer contra a pandemia e a mídia precisa voltar a um modelo de negócios que substitua a indignação pela sobriedade, o caça-clique pela autoridade”, afirma Edelman. “Achamos que a qualidade da informação é o construtor de confiança mais poderoso entre as instituições.”
Segundo o Trust Barometer, mesmo pessoas com baixa renda confiam mais nas instituições (um ganho de 10%) se forem bem informadas. Por outro lado, uma pessoa com alta renda porém mal informada perde sete pontos na confiança. Segundo o executivo, “se você lê três ou quatro fontes de notícias por dia e também verifica a informação com outras fontes, você está, em suma, diminuindo a divisão social, está ajudando a reparar a sociedade.”
Está claro que a distribuição de informações confiáveis deixou de ser trabalho só da mídia. Todos nós temos hoje o poder de combater as fake news, algo crucial para a democracia.
De toda forma, como sempre digo, a imprensa precisa resgatar o vínculo com seu público, em seu papel fundamental de fiscalizar o poder, mas prestando atenção nas demandas e mudanças da sociedade.
Entendo que às vezes fique difícil para a imprensa manter o equilíbrio quando se vive sob ataques constantes, cada vez mais violentos. Mas, ao partir para o conflito aberto, seu agressor vence, pois esse embate mina a confiança do seu público. E não há jornalismo sem confiança do público.
A manutenção de uma sociedade que ofereça boas condições de vida a todos está sob seríssimo risco, e a imprensa tem um papel central em resgatar a confiança da população em quem a merece. Sem isso, continuaremos nessa espiral de destruição, que só deve piorar nesse ano eleitoral.