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Escolas se tornaram alvo porque abordam questões que podem alimentar o extremismo - Foto: Max Klingensmith / Creative Commons

Como as redes sociais influenciam os ataques a escolas

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Na quarta passada, o Brasil vestiu luto mais uma vez diante do ataque à creche Cantinho do Bom Pastor, em Blumenau (SC). Ela foi invadida por um homem de 25 anos que, de maneira brutal e imotivada, assassinou quatro crianças. O delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, afirmou que não há indícios de que o crime tenha sido coordenado por meio de redes sociais ou games. Mas apesar de ele estar correto ao dizer que não existe vínculo direto no caso, o papel do meio digital em ataques como esse não pode ser ignorado.

A declaração me fez lembrar de um crime semelhante. No dia 13 de março de 2019, dois ex-alunos invadiram a escola estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP). Eles mataram estudantes e funcionários e depois se suicidaram. Autoridades, ainda no local do atentado, sugeriram que a culpa seria do game que os assassinos jogavam.

Especialistas descartam a relação entre jogos digitais e a violência, mas o mesmo não pode ser dito das redes sociais. O aumento de grupos de ódio em suas páginas incentiva pessoas a praticar esses atos bárbaros. A sociedade precisa entender suas dinâmicas, para buscar soluções sustentáveis e eficientes.


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O crescimento desses grupos e dos ataques não é uma coincidência. Nove dias antes do atentado em Blumenau, um aluno de 13 anos assassinou uma professora de 71 anos em uma escola na Vila Sônia, na capital paulista. Em 2021, um homem de 18 anos matou duas funcionárias e três bebês em uma creche na também catarinense cidade de Saudades.

Até 2002, não havia relatos de atentados em escolas brasileiras. De lá para cá, 40 pessoas morreram em casos assim. O primeiro aconteceu em Salvador, em 2002. Depois dele, houve um caso em 2003, dois em 2011, um em 2012, 2017 e 2018, dois em 2019 e um em 2021. Já em 2022 foram seis ocorrências. Em 2023, estarmos ainda em abril, e já aconteceram três atentados, um deles felizmente sem vítimas.

“As escolas se tornaram alvos porque abordam questões que podem alimentar o extremismo, como educação sexual, diversidade, racismo e violência de gênero”, explica Evelise Galvão de Carvalho, mestre em Psicologia Forense e especialista em comportamento antissocial na Internet. “Dessa maneira, é necessário considerar esses ataques como crimes de ódio”, afirma.

Quando atentados assim acontecem, os participantes de um movimento online conhecido como “True Crime Community” se agitam, repercutindo os ataques como se fossem grandes feitos. Eles destacam os nomes dos autores e, quando disponíveis, distribuem fotos e vídeos da ação. Por isso, muitos desses participantes buscam essa perversa “fama”, por mais fugaz e doentia que seja.

O problema fica ainda mais preocupante quando se observa que esses grupos agora podem ser encontrados facilmente nas redes sociais, inclusive naquelas preferidas por adolescentes, como o TikTok. Até pouco tempo atrás, eles trafegavam apenas em áreas restritas nas redes sociais a na chamada “Dark Web”, em que são necessárias ferramentas e autorizações especiais para entrar, o que a torna ideal para criminosos.

Essa nova “liberdade” amplia o efeito de “contagiar” pessoas para que outras ações sejam realizadas. É o que aconteceu em 15 março de 2019, quando um supremacista branco matou 51 pessoas em duas mesquitas na Nova Zelândia. A ação foi transmitida ao vivo pelas redes, sendo massivamente compartilhada depois.

 

Redes de intolerância

Tais grupos são motivados por crenças de superioridade racial, étnica, religiosa ou nacionalista, e consequente inferioridade de quem é diferente. Alguns visam proteger valores tradicionais que consideram ameaçados. Frequentemente promovem suas ideias por desinformação e violência, e chegam a propor uma sociedade em que os outros sejam subjugados ou excluídos.

Esses ataques não são atos terroristas convencionais. As pessoas que os praticam costumam agir sozinhas, incentivadas pelo que veem na Internet, mas não se pode atribuir seus atos exclusivamente a esses grupos.

Os agressores seriam predispostos a cometer os atentados pois viveriam em ambientes violentos. Fatores como agressividade em casa, bullying nas escolas e insucesso em relacionamentos podem contribuir. Vale dizer ainda que a sociedade se tornou muito mais intolerante e radicalizada nos últimos anos, com grupos de poder desvalorizando o afeto, pregando o ódio e até desumanizando quem pensa de forma diferente. Por fim, a pandemia agravou problemas de saúde mental na população.

“Alguns grupos podem enxergar meninos como futuros líderes e tentar doutriná-los desde cedo, para garantir seu engajamento contínuo à medida que envelhecem”, explica Carvalho. “Os meninos são frequentemente socializados para valorizar a força e a agressão, e grupos de ódio podem tentar explorar essas normas culturais para recrutar novos membros.”

Não se trata, portanto, apenas de casos de polícia. Detectores de metal e até policiais das escolas podem reduzir esses ataques, mas não resolvem a violência, que se manifestará de outras formas.

A escola deve ser fortalecida, como um espaço de diversidade e de debate. Professores precisam ser valorizados e pais e mães devem se unir nesse esforço, ao invés de combatê-los por não concordar com algo. Também é um problema de saúde pública, com as autoridades precisando ficar atentas ao crescimento de isolamento social e problemas de saúde mental. As famílias também precisam de apoio para que consigam construir relacionamentos positivos com seus filhos, minimizando o desejo de se unir a esses grupos, por exemplo, por falta de afeto.

A mídia pode contribuir ao não divulgar nomes e imagens dos crimes, dificultando a sua promoção nas redes de ódio, que é o “prêmio” desses criminosos. No atentado de quarta passada, grandes veículos de imprensa agiram assim.

Da mesma forma, as redes sociais precisam fazer mais. Para Carvalho, “é de extrema importância que sejam regulamentadas, e indivíduos e empresas que permitem que esses grupos se organizem e disseminem o ódio e desinformação sejam penalizados”.

Caímos no tema da regulamentação das redes sociais, que tanto debate vem provocando. Qualquer que seja seu desfecho, casos como esses escancaram o tamanho do estrago que essas plataformas causam por se portar apenas como inocentes “mensageiros”: ao não serem responsabilizadas pelo que seus usuários publicam, continuam oferecendo os caminhos para fake news e o ódio destilado.

Se a desinformação política já não fosse ruim o suficiente, a fluidez digital do discurso de ódio agora está literalmente matando crianças.

 

Cena de “Tempos Modernos” (1936), em que Charles Chaplin já criticava a automação do trabalho – Foto: reprodução

Que empregos a inteligência artificial deixará para nós?

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As grandes empresas de tecnologia continuam “passando o facão” em suas equipes no mundo todo. Em 2022, foram cerca de 150 mil demitidos; nesse ano, já são quase 100 mil. A maior parte dos cortes está associada a uma adequação dos times depois de grandes contratações na pandemia e pela crise nos EUA, mas especialistas indicam que podemos estar observando mudanças profissionais patrocinadas pela inteligência artificial em ascensão.

Não se trata de ficção científica distópica. Desde que o ChatGPT, o sistema produtor de textos da OpenAI, foi lançado no dia 30 de novembro, a quantidade de aplicações para a chamada “inteligência artificial generativa” não para de crescer.

Se antes o risco de substituição de trabalhadores humanos por máquinas era restrito a funções menos especializadas e criativas, essa tecnologia agora impacta trabalhadores que se sentiam “protegidos dos robôs” pela sua formação. E como o avanço das capacidades digitais acontece exponencialmente, alguns começam a se perguntar que empregos restarão em breve para humanos diante de máquinas cada vez mais eficientes.


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Na semana passada, a Amazon anunciou o corte de 9.000 funcionários no mundo, totalizando 27.000 vagas a menos desde novembro. Uma semana antes, a Meta (dona do Facebook) disse que demitirá outros 10.000 profissionais e congelará 5.000 contratações, somados aos 11 mil funcionários demitidos globalmente há três meses.

Um estudo divulgado no final de janeiro e feito sobre os cortes de 2022 indicou que supreendentemente a maior parte dos demitidos foi de funções ligadas a recursos humanos –27,8%– e não a tecnologia –que vieram na sequência, com 22,1%. Segundo a consultoria 365 Data Science, responsável pela pesquisa, isso se explica em parte por essas empresas estarem necessitando menos de analistas de RH, mas também porque grande parte do processo de recrutamento (e até de demissões) passou a ser automatizado pela inteligência artificial.

Coincidência ou não, algumas das que mais demitiram estão realizando investimentos massivos no tema. A Microsoft, que cortou 10 mil funcionários no fim de 2022, anunciou ao mesmo tempo um investimento estimado em US$ 10 bilhões na OpenAI. A Alphabet (controladora do Google), que mandou para casa 12 mil pessoas, lançou na semana passada o Bard, seu sistema concorrente do ChatGPT.

Outro estudo, realizado por pesquisadores da Universidade da Pensilvânia (EUA) e da OpenAI, concluiu que 80% dos trabalhadores americanos podem ter pelo menos 10% de suas tarefas afetadas por essa tecnologia, com 19% deles tendo que encarar metade do que fazem sendo tomado pela máquina. A influência abrange todos os níveis salariais, com empregos de renda mais alta sendo mais afetados.

“O importante é não entrar em estado de negação quanto ao avanço da tecnologia e estar aberto ao aprendizado contínuo através da empresa ou autodesenvolvimento”, explica a consultora de carreira Ticyana Arnaud. Isso está em linha com os pesquisadores da 365 Data Science, que afirmam ser essencial possuir a capacidade de se adaptar e se manter atualizado com as mais recentes inovações tecnológicas.

 

Aprender a aprender

“O indivíduo deve ser verdadeiramente protagonista de sua própria aprendizagem”, explica Karen Kanaan, sócia da École 42 no Brasil, uma escola francesa de tecnologia que forma profissionais a partir de projetos em que necessariamente precisam colaborar uns com os outros. “Deve ser uma formação que estimule que ele busque aprender a aprender, a colaborar, a ter empatia, a pensar de forma crítica, a ter criatividade e raciocínio lógico”, completa.

Como acontece com toda nova tecnologia, ela acaba extinguindo profissões inteiras, enquanto cria oportunidades. Isso acontece desde o início da Revolução Industrial, no século XVIII. A diferença é que, em mundos digitais, o tempo para que as pessoas se adaptem é muito menor, o que se agrava porque os novos ofícios exigem habilidades básicas que a maioria da população não tem.

Como disse no sábado ao Estadão o economista José Pastore, “a destruição (de empregos) é rápida e visível; a criação é lenta e é invisível”. Para o professor da FEA-USP, “isso traz impactos sociais imediatos, e apavora todo mundo.”

O mesmo Estadão trouxe uma reportagem sobre novas profissões ligadas a inteligência artificial, cujos salários chegam a R$ 20 mil. Apesar de a maioria estar, de alguma maneira, associada à área de TI, é importante observar que a adoção de inteligência artificial necessita de equipes multidisciplinares, para “treinar” as plataformas em tarefas dos mais diversos setores da economia. Além disso, algum domínio da tecnologia vem se tornando essencial em todas as carreiras.

Isso aparece na origem dos estudantes da École 42, cujo curso equivale a uma formação em engenharia de software. A maioria não vem da área de tecnologia e trazem, na sua bagagem, carreiras tão distintas quanto publicitários, cozinheiros, médicos e cabelereiros. E todos podem adquirir as novas habilidades de TI.

“É preciso conhecer seus limites, valores, o que gosta, o que sabe, o que quer fazer para levar uma vida que seja relevante, antes de tudo, pra si”, explica Kanaan. E isso é algo que a inteligência artificial não consegue fazer. Para ela, “um indivíduo criativo, capaz de imaginar, raciocinar consegue se adaptar a qualquer movimento.”

Em outras palavras, ninguém está “seguro”, mas também não precisa se desesperar. “A inteligência artificial fomenta a importância de uma vida voltada ao aprendizado”, afirma Arnaud. Temos que estar sempre atentos às tendências com implicações em nosso trabalho, aprendendo o que há de novo.

Muitas pessoas podem dizer que “falar é fácil”, e não as julgaria por isso. Talvez fosse mesmo mais confortável o mundo de 30 anos atrás, quando o que se aprendia na faculdade era suficiente para chegar até a aposentadoria.

Isso ficou literalmente no passado. Agora somos obrigados a estar em constante movimento. Mas isso pode ser uma incrível oportunidade, não apenas para continuarmos profissionalmente relevantes, mas para nos tornarmos pessoas melhores. Esse é o melhor caminho para os robôs não nos alcançarem.

 

A Finlândia firmou-se como referência em educação midiática, após mudanças nas escolas em 2016 – Foto: Felicity Weary/Creative Commons

Precisamos de uma boa educação midiática para nossa sociedade não desaguar na barbárie

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Sempre que viajo, costumo analisar a mídia de onde vou. É cristalino que, quanto mais livre e profissional é a imprensa do lugar, mais bem informada é a população e consequentemente mais vibrante é a sociedade. Por essas e outras, governos autoritários combatem a imprensa, algo que vem sendo praticado no Brasil de maneira sistemática e crescente nos últimos anos.

Não se trata apenas de ataques a veículos de comunicação e a jornalistas, inaceitáveis em uma democracia. Como exemplo, na terça passada, a repórter Renata Cafardo e o fotógrafo Tiago Queiroz, do Estadão, foram agredidos física e verbalmente por moradores de um condomínio de luxo em São Sebastião, enquanto cobriam as tragédias causadas pelas chuvas. De onde vem tanto ódio gratuito?

O afastamento das pessoas de boas fontes de informação, substituindo-as por questionáveis redes sociais, coloca a própria democracia em risco à medida que derrete a capacidade do cidadão de discernir entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal. O resultado desse processo em nosso país é a grotesca polarização que nos rachou ao meio, culminando nos abomináveis ataques à democracia de 8 de janeiro.

A reversão do caos em que vivemos passa pela educação midiática, um conjunto de práticas que ensina crianças e adolescentes a desenvolver uma visão crítica sobre o que a mídia –em todos seus formatos– lhes apresenta, para que sejam capazes de consumir, compreender e até produzir informação de qualidade.


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“É mais que preparar para o uso da mídia: é preparar para compreender esse mundo em que a gente vive”, explica Ana Lúcia de Souza Lopes, professora de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “E todo esse universo midiático faz parte dele.”

Um ótimo exemplo dos ganhos da educação midiática para uma sociedade vem da Finlândia. Quando a vizinha Rússia tomou da Ucrânia a região da Crimeia em 2014, os finlandeses começaram a ser bombardeados com altas cargas de desinformação, para influenciar o debate política em favor dos russos.

O governo então reformou seu sistema educacional em 2016, para incluir uma disciplina de alfabetização midiática, que também é abordada de maneira transversal em todas as matérias. Como resultado, a Finlândia tornou-se o país mais resistente à desinformação entre as nações da Europa pelo estudo anual do instituto Open Society, firmando-se como uma referência mundial no combate às fake news.

Se me permitem um abuso de linguagem, uma “boa desinformação” é aquela que parece ser verdadeira e que reforça desejos de quem a lê. É por isso que se espalha rapidamente e ganha ares de fato incontestável. E quanto menos a pessoa tiver uma visão crítica das informações, mais suscetível será a esse controle.

Se já não bastasse esse desafio, especialistas temem que as recém-popularizadas inteligências artificiais generativas, como o ChatGPT, sejam usadas para criar fake news ainda mais críveis. Fiz alguns testes com essa ferramenta e –justiça seja feita– na maioria das vezes, ela respondeu que não poderia entregar o que eu pedia porque era falso. Mas nas ocasiões em que fiz pedidos que já continham várias mentiras, ela pariu obras-primas da desinformação.

Ter uma visão crítica da mídia e do mundo torna-se uma questão de sobrevivência!

 

Mudança de época

Em junho de 2014, em entrevista ao jornal italiano “Il Messaggero”, foi perguntado ao papa Francisco se o aumento da corrupção se deveria à mídia dar mais destaque ao tema. O pontífice explicou que “vivemos não só uma época de mudanças, mas uma mudança de época”. Para ele, isso altera profundamente aspectos culturais.

A digitalização da vida está no centro desse processo. Os mais jovens têm grande acesso a conteúdo, normalmente sem a necessária visão crítica. E assim como podem influenciar positivamente suas famílias com o que aprendem na escola, como respeito ao meio ambiente e diversidade, também podem ser vetores de fake news.

“A criança não só consome a desinformação: ela é uma propagadora”, explica Maria Carolina Cristianini, editora-chefe do “Joca”, um jornal brasileiro dedicado a crianças e adolescentes. Por isso, segundo ela, os pequenos leitores precisam entender a sua responsabilidade sobre o que leem e o que reproduzem em seus círculos sociais.

“Participar de um meio de comunicação é uma das maneiras de dar a dimensão real da importância da imprensa, da conscientização sobre a desinformação, e que informação de qualidade não é uma expressão vaga”, conta Mônica Gouvêa, diretora educacional da Editora Magia de Ler.

Crianças são naturalmente curiosas e participativas, por isso a educação midiática ganha ainda mais importância. “É nessa geração que a gente tem que trazer essa mudança de época, para mudar a sociedade”, explica Lopes. “Senão, cada vez mais, estaremos com uma sociedade alienada”, conclui.

A escola é o melhor lugar para isso, pela visão diversa de mundo que embute. No Brasil, a educação midiática ainda engatinha, com iniciativas pontuais de algumas escolas e redes de ensino. Ainda assim, alguns pais e mães se colocam contra essas práticas, argumentando que a escola estaria doutrinando ideologicamente seus filhos.

Cristianini argumenta que essa reação é inócua, pois é impossível manter a criança em uma “bolha de pensamento único”. É melhor que ela esteja preparada para lidar com pensamentos divergentes, que a impactarão mais cedo ou mais tarde. Além disso, ela explica que as famílias podem usar até conteúdos de que discordem para explicar aos filhos suas visões de mundo. “As notícias podem ajudar nisso, podem ser a base para essa conversa”, acrescenta.

“Alguns pais acham que tem o momento certo para você saber de algumas coisas, mas não existe isso”, explica Gouvêa. Os jovens consomem conteúdo o tempo todo, e sempre é uma oportunidade de se desenvolver seu senso crítico.

Aqueles que lucram com a desinformação atuam maquiavelicamente na contramão disso. Ao invés de dizer o que as pessoas devem fazer, oferecem um mecanismo para que essas pessoas se enredem em uma narrativa profunda que distorce a realidade, acreditando que elas chegaram a essas conclusões, e que não estão sozinhos.

A Finlândia é um exemplo a ser seguido. Governo, escolas, educadores e famílias precisam se unir para a disseminação da educação midiática, para formar gerações saudavelmente críticas e menos suscetíveis à desinformação. Elas construirão uma sociedade melhor e ajudarão as gerações anteriores a fazer o mesmo.

Caso contrário, corremos o risco de ver a democracia se esfacelando, com os ataques de 8 de janeiro parecendo manifestações legítimas.

 

ChatGPT não ameaça educação, mas nos desafia a repensar como aprendemos e ensinamos

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Educadores estão em polvorosa, diante de uma nova plataforma de inteligência artificial. Apesar de ter sido liberada há apenas dois meses, o ChatGPT vem provocando discussões éticas, tecnológicas e profissionais sobre se o digital poderá substituir seres humanos em tarefas intelectuais em que ainda nos sentíamos “seguros”. Nas escolas, esse temor chegou quando estudantes começaram a apresentar trabalhos que haviam sido escritos pela máquina.

Diante da qualidade dos argumentos e da fluência da escrita naquelas tarefas, professores passaram a se perguntar se perderiam a capacidade de identificar “plágios” de seus alunos. Outros, mais fatalistas, já se questionam se a própria profissão poderia desaparecer, sendo substituídos pelas máquinas.

Essas perguntas estão erradas! E a escola, mais que ensinar boas respostas aos alunos, deve ensiná-los a fazer as perguntas certas na vida.

Entendo que professores estejam preocupados. Esse desafio não pode ser ignorado, mas ele não pode servir como motivo para bloquearem a entrada da inteligência artificial nas aulas. Isso, sim, seria uma ameaça à manutenção de seu ofício.


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O ChatGPT é uma plataforma criada pela empresa OpenAI capaz de escrever textos complexos a partir de comandos em linguagem natural. Ele simula uma conversa com uma pessoa, permitindo o encadeamento entre respostas e perguntas. Funciona em vários idiomas, inclusive no português, e suas produções vêm surpreendendo especialistas e o público, pela qualidade.

Os mais entusiasmados dizem que poderia até ameaçar a supremacia do Google como ferramenta de busca. Tanto que, no dia 23, a Microsoft fez um investimento bilionário na empresa (o mercado estima em algo como US$ 10 bilhões), para incluir essas funcionalidades em seus produtos, como o Office e o Bing.

“A tecnologia, desde a invenção de Gutenberg, entra cada vez mais no âmago do humano”, explica Lucia Santaella, professora-titular da PUC-SP. “Com a inteligência artificial, ela penetra nas questões que a gente considera o mais nobre do humano, que é a sua capacidade de pensar e de falar.”

De fato, essa interação como conversa é decisiva para seu sucesso. “Ele é baseado em perguntas, e é da natureza do humano a investigação, a pergunta, a exploração e a conversa”, afirma Ana Paula Gaspar, especialista em tecnologia e educação.

Para muitos, o ChatGPT pode vencer o “teste de Turing”, método criado há 70 anos para descobrir se uma máquina é inteligente. Ele prevê que uma pessoa tenha uma longa conversa por texto e, ao final, não consiga distinguir se falou com outra pessoa ou um robô.

“É uma visão totalmente equivocada achar que a tecnologia é uma mera ferramenta”, sugere Santaella. “Ela é linguagem!”

 

Ferramenta pedagógica

Tanto que o caminho para resolver os temores escolares já citados passa pelos professores se apropriarem da inteligência artificial, ao invés de tentar bloqueá-la.

“Toda tecnologia, quando aparece, muda comportamentos”, afirma Diogo Cortiz, professor da PUC e especialista em IA. “Isso causa medo, espanto, porque a gente não sabe muito bem o que vai acontecer.”

“A grande questão é de educação do humano para utilizar bem esse recurso”, propõe Ana Lúcia de Souza Lopes, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “E o que a escola faz? A escola se retira!”

Os entrevistados são unânimes ao afirmar que tentar impedir que os alunos usem a ferramenta é inócuo, pois encontrarão maneiras de burlar as restrições. Mas manter os processos atuais de aprendizagem e de avaliação é igualmente inadequado.

A tecnologia deve ser usada como aliada para alunos ganharem recursos para entender o porquê do que aprendem, abandonando o infame “decoreba”. “A partir do momento em que tem um desafio que o algoritmo vence, eu preciso liberar o estudante cognitivamente para tarefas mais complexas”, explica Gaspar.

Como exemplo, pode ser usada para uma produção colaborativa dos alunos, em que avaliem a qualidade e a precisão do que o robô gerou. Ela também pode ser usada como apoio para debates e até estudo de idiomas. “Devemos colocar os estudantes para usar essa ferramenta, mas sempre com um olhar muito crítico”, indica Cortiz.

A inteligência artificial faz parte do nosso cotidiano de maneiras que nem suspeitamos, como viabilizando, de maneira transparente, alguns dos recursos mais incríveis de nossos celulares. E ela cresce de maneira exponencial: o ChatGPT deu apenas mais visibilidade ao tema. Ainda assim, essas transformações têm acontecido sem debates com a sociedade sobre suas consequências.

As escolas –as universidades especialmente– têm um papel importantíssimo nesse processo. São elas que realizam as pesquisas sobre seus impactos sem um viés econômico. As empresas criadoras desses recursos deveriam, por sua vez, fazer o mesmo, mas nem sempre isso acontece, preferindo promover inconsequentemente seus lançamentos que podem lhes render bilhões em lucros. “A gente tem que entender qual é a responsabilidade que a gente tem quando a gente põe um conhecimento no mundo”, alerta Lopes.

É nas escolas também onde crianças e adultos precisam entender a se apropriar desses recursos para aprender mais e melhor. Um uso da inteligência artificial que respeite isso favorecerá nossa própria inteligência humana. Como explica Santaella, “a inteligência é metabólica, então ela cresce através do aprendizado.”

Por tudo isso, plataformas como o ChatGPT não podem ser temidas nas escolas. Pelo contrário, precisam ser abraçadas pelos educadores, para prepararem seus alunos para um mundo já inundado pelo digital. Precisamos reaprender a aprender diante de tantas e incríveis possibilidades. E quem melhor que os próprios professores para nos ensinar a fazer isso?

 

“Matemática ruim” e baixa identificação de jovens com TI fazem Brasil importar tecnologia

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Na semana passada, publiquei nesse espaço uma reportagem que indicava como o setor de TI no país “rouba” profissionais de outras áreas para suprir um déficit de formação universitária que pode passar de meio milhão de trabalhadores até 2025. Mas, se a procura é tão grande e essa área paga tão bem, é natural perguntar por que então não temos mais pessoas procurando por essas graduações.

Apesar de a pergunta ser simples, a resposta é complexa. A procura existe, os cursos estão cheios, entretanto poderia ser mais. Isso começa por um interesse relativamente baixo pelo aprendizado de Matemática, passa por questões culturais e familiares, choca-se com barreiras para grupos sociais nessas profissões e desemboca em um Ensino Médio Técnico que poderia suprir muitas dessas necessidades do mercado.

É uma combinação que demonstra como o problema é sistêmico, prejudicando profissionais, empresas e a própria sociedade. Os primeiros perdem oportunidades, as segundas pagam caro por trabalhadores e a última enfrenta o fato de que importa tecnologia ao invés de produzi-la nacionalmente, aproveitando a criatividade brasileira.

Da mesma forma que todos sofrem com o problema, a responsabilidade para sua solução precisa envolver a sociedade como um todo.


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“A escolha da profissão tem a ver, entre outras coisas, com o status social”, explica Ana Paula Gaspar, especialista em tecnologia e educação. “Falta uma dimensão subjetiva e humana na análise desses fenômenos sociais, porque as pessoas não escolhem apenas por conta de quanto vão ganhar.”

Segundo ela, não se pode esperar que jovens se decidam por uma graduação de Engenharia se eles não tiverem acesso a produtos com boa engenharia. “Então é muito natural que uma criança deseje mais ser youtuber que astronauta, porque tem a ver com o que ela consome”, explica. “E há esses dados escabrosos que mostram que muitos ainda têm dificuldade de estar no mercado de trabalho por conta de preconceito de classe ou de raça”, acrescenta.

“É um pressuposto equivocado da cultura brasileira de que o profissional, para trabalhar, precisa sair do ensino universitário”, afirma Marcelo Krokosc, diretor do Colégio FECAP, em São Paulo. Segundo ele, países da América do Norte e da Europa têm um Ensino Técnico muito valorizado, que supre parte da demanda por profissionais. “O aluno que faz o Ensino Técnico sai preparado para o mercado de trabalho com 17 anos, porque já veio aprendendo aquilo que tem interesse”.

Alunos de cursos técnicos de TI levam vantagem se prosseguem na área no Ensino Superior. David de Oliveira Lemes, diretor da Faculdade de Estudos Interdisciplinares da PUC-SP, explica que muitos deles chegam com uma maturidade em Matemática e aspectos técnicos que os demais estudantes não costumam ter. “Já passaram por alguns percalços, já ‘sofreram’ com programação, com Matemática, com Lógica”.

O aprendizado deficiente em Matemática acaba atrapalhando na escolha e no desenvolvimento nessas carreiras. “A educação matemática no Brasil é muito pobre: entre alunos que saem do Ensino Médio, apenas 5% têm a proficiência necessária para essa etapa”, explica Gaspar.

“Nos anos iniciais, a escola deve manter o interesse pela Matemática da mesma forma como mantém pela alfabetização”, afirma Krokosc. Ele conclui que “as famílias devem vibrar quando o filho lê uma palavra, mas também quando faz uma conta”.

Gaspar explica que essa baixa qualidade matemática no país se deve a como ela chegou por aqui, por uma influência francesa de uma “matemática pura”, sem ser aplicada e com a “matemática do dia a dia” desvalorizada. “Se a matemática que chega na escola está muito distante da realidade dos alunos, é um problema”, conclui.

 

Novos caminhos

Lemes acredita que a nova BNCC –a Base Nacional Comum Curricular, o conjunto de regras que determina como escolas devem organizar seus currículos e propostas pedagógicas– pode melhorar o ensino da disciplina. Ele explica que, “com ela, os professores precisam aplicar a Matemática em situações dentro e fora da escola, não só naquele contexto da Matemática pura”.

Isso não pode ser encarado apenas como um problema escolar. Esses desafios afetam a sociedade em geral e todos precisam se unir para sua solução.

“A responsabilidade do governo é a formulação de políticas públicas, e a das instituições de ensino é a oferta, quantidade e qualidade de vagas”, explica Gaspar. Ela afirma que “o mercado ‘lava as mãos’ para a formação, porque acha que seu papel é dar emprego, fazer negócios e gerar renda”.

Mas essa é uma visão míope e ultrapassada, especialmente em uma área tão dinâmica quanto TI, em que o conhecimento envelhece muito rapidamente. Por isso, as empresas devem cuidar da formação contínua de seus profissionais.

Gaspar sugere que um profissional só poderia ser considerado sênior e fosse capaz de formar outras pessoas, mas isso hoje não é feito. “Daí fica todo mundo roubando sênior de todo mundo, ao invés de formar júnior”. E conclui: “se as pessoas não forem parte do resultado das empresas, a gente nunca vai sair desse buraco.”

Não há outro caminho viável: qualquer que seja a sua profissão, se você quiser continuar relevante no mercado, precisará continuar estudando até o último dia. Por outro lado, precisamos ajudar crianças e jovens a desenvolver as competências necessárias, tanto em linguagem, quanto em Matemática. Além disso, precisamos dar a eles exemplos e modelos para que façam escolhas profissionais conscientes.

Se apresentada do jeito certo, a Matemática pode ficar até mais divertida. “É muito interessante ver um aluno com o cubo mágico na mão ao invés do celular”, sugere Krokosc. Precisamos dela para uma leitura crítica do mundo e uma vida melhor.

“Fala-se que vai faltar muito programador, mas para qualquer profissão hoje, para ser cidadão no mundo, é preciso ter fluência em competências digitais”, afirma Gaspar. E não adianta que apenas um pequeno grupo social atinja isso, ou a sociedade não se desenvolverá plenamente, nem diminuiremos nossa dependência tecnológica de fora. Como diz Lemes, “a gente tem que ser o produtor de conhecimento!”

 

Mercado de TI sofre com baixa diversidade nas equipes, dominadas por homens brancos

Setor de TI “rouba” trabalhadores de outras áreas para compensar déficit profissional

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A oferta de empregos de tecnologia vem crescendo de maneira mais acelerada que a de outras áreas no Brasil. Até agosto desse ano, o segmento cresceu 5,1% comparado ao fechamento de 2021, frente a 3,7% de todos os setores. Isso acirra a disputa por talentos em um mercado onde literalmente sobram vagas e para o qual as universidades não conseguem suprir suas demandas.

Com isso, empresas do setor investem na formação dos profissionais que necessitam e até os “roubam” de outras áreas, oferecendo capacitação e condições atraentes para quem tope fazer uma transição de carreira. ONGs e as próprias universidades também investem em capacitações pontuais para diminuir esse déficit e evitar que o setor entre em crise.

Até o momento, isso tem sido suficiente, mas a demanda cresce de forma exponencial. Por isso, não há garantia de que esses movimentos continuem “tapando o buraco” de um segmento cada vez mais crítico para a sociedade. Além disso, eles não resolvem uma dor histórica da área, que é a baixíssima diversidade entre os profissionais, o que leva a entregas menos alinhadas com o que o mercado precisa.

Uma pergunta que surge naturalmente é: se há uma demanda explosiva por esses profissionais, por que o Brasil não consegue formá-los?


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Esses dados fazem parte de um levantamento recente feito pela Brasscom, a associação das empresas de TI e comunicação. Em dezembro, outro estudo da entidade apontou que o mercado brasileiro demandará 797 mil profissionais de TI entre 2021 e 2025, mas nossas universidades formam apenas 53 mil pessoas no setor por ano. Ou seja, se o país depender apenas dessas graduações, faltará mais de meio milhão de profissionais até 2025.

“Já era para a gente ter colapsado, mas não é o que está acontecendo”, afirma Sergio Paulo Gallindo, presidente da Brasscom. Para esse ano, o estudo previa uma demanda de 132.765 profissionais de TI, o que está se concretizando. E a demanda vem sendo atendida. “São profissionais de outras áreas, profissionais que já estão em cursos superiores e fazem uma capacitação em programação, passam por um processo seletivo e pegam um estágio ou um trabalho”, explica Gallindo.

Essa demanda, entretanto, cresce exponencialmente. Para 2025, o cálculo é de que sejam necessários 206.940 profissionais de TI. Para o executivo, a solução paliativa que está funcionando hoje pode não dar conta daqui a pouco: “a gente tem um dever de casa gigantesco para esse negócio não colapsar”.

Não adianta ficar apenas tentando alargar a saída do funil se, na sua boca, ele capta poucas pessoas para o setor. “No Ensino Básico, a gente incentiva pouco essa curiosidade pela ciência, pela engenharia, pela matemática, deixando de criar a vontade no adolescente de buscar uma faculdade nisso”, sugere Gustavo Bodra, CTO da StartSe. “E, se não há demanda, as universidades não criam mais cursos”, conclui.

Se a digitalização de negócios e de nossas vidas já crescia de maneira rápida antes da pandemia, ela fez com que isso explodisse. É como se todas as empresas, de repente, passassem a ser também uma empresa de TI. Para Bodra, “quem ainda pensa que não é, seu concorrente vai passar na frente”.

“Houve esse boom e o mercado de tecnologia como um todo não conseguiu formar pessoas na mesma velocidade”, explica Fernanda Saraiva, diretora de RH da SAP Brasil. Ela acrescenta ainda outro fator para a oferta insuficiente: muitos jovens entram nas faculdades, mas não as concluem porque não conseguem pagar. “Daí fica todo mundo pescando no mesmo aquário para conseguir profissionais”.

“O interesse dos jovens por carreiras de tecnologia é um dos mais baixos”, afirma Gallindo. Quanto à evasão, o estudo da Brasscom aponta que, para graduações presenciais na área tecnologia, chega a 32%. “E ela afeta muito as camadas menos favorecidas, onde você encontra negros e negras”, explica.

 

Baixa diversidade

De fato, o setor de tecnologia no Brasil é fortemente dominado por homens brancos, longe de refletir a diversidade da população. Segundo o Censo do Ensino Superior de 2019, realizado pelo INEP, ligado ao Ministério da Educação, as mulheres são maioria no ensino superior no Brasil, respondendo por 56,1%. Mas se considerarmos apenas as carreiras de tecnologia, essa porcentagem desaba para apenas 14,8%. Além disso, para cada estudante negro, há seis estudantes brancos.

“A diversidade nesse mercado vai fazer com que ele tenha uma visão mais holística para soluções de tecnologia que permitam atender a sociedade tão diversa na qual nós vivemos”, explica Cecília Marshall, fundadora do projeto Ser Mulher em Tech, que incentiva meninas a escolher carreiras no setor. “A liderança feminina traz um olhar diferenciado, como se pôde ver na gestão da pandemia, em que países liderados por mulheres tiveram resultados mais positivos”, acrescenta.

De fato, para um setor que respira inovação, ter equipes em que todos são iguais tende a piorar o negócio. “Não tem forma melhor de inovar que trabalhar com diferentes pontos de vista”, afirma Saraiva.

Gallindo acrescenta que as habilidades para tecnologia são equivalentes em todos os gêneros e raças. O predomínio de homens brancos no setor deriva, portanto, de aspectos culturais e econômicos.

Todos eles afirmam que políticas públicas de ensino devem incentivar o gosto pela área entre os jovens e patrocinar a diversidade, mas as empresas têm um papel decisivo nesse processo. Elas devem não apenas apoiar as escolas e os professores, como também os estudantes. E isso pode ser feito com capacitações, bolsas de estudo e iniciativas que mostrem aos jovens que matemática e ciências podem ser divertidas, e têm o poder de mudar o mundo, mas em linguagens que eles entendam. Dentro de casa, as companhias precisam criar métricas de diversidade e promover modelos de liderança com mulheres e negros: eles servem para inspirar jovens desses grupos que pensam em abraçar essas carreiras.

É um dilema enorme e complexo, mas que precisa ser discutido, em busca de uma solução. O mercado exige profissionais mais completos em todos os setores. Se, de um lado, profissionais de TI não podem mais “fugir”, por exemplo, de habilidades de comunicação, os de Humanidades precisam aprender aspectos técnicos para se destacar.

Essa é uma incrível oportunidade, pois a combinação desses recursos cria uma sociedade melhor, o que tem muito valor para quem deseja crescer no mercado. Todos devem, portanto, se envolver no incentivo dos jovens e no fomento à diversidade.

 

Falta “inteligência natural” para termos uma melhor inteligência artificial

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Tudo que puder ser automatizado será! Costumo responder assim quando me perguntam se determinado setor será impactado pela IA (inteligência artificial). Mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor escala, todo negócio será transformado por ela. A ironia é que isso só não acontece mais rapidamente por falta de “inteligência natural”, de profissionais capacitados para criar esses sistemas.

Apesar do avanço galopante da IA, chegando a um ponto em que as plataformas começam a se “autoprogramar”, ela ainda depende essencialmente de seres humanos para seu desenvolvimento. E com seu uso sendo disseminado para as mais diversas áreas, está faltando gente. No Brasil, essa situação chega a ser dramática!

O estudo “O impacto e o futuro da inteligência artificial no Brasil”, divulgado na semana passada pelo Google for Startups em parceria com a Associação Brasileira de Startups e a agência Box1824, indica que 57% dos gestores dessas empresas que trabalham com inteligência artificial acreditam que a falta de mão de obra qualificada é o que mais prejudica o seu crescimento no país.

Isso acontece porque as escolas formam poucos profissionais, e formam mal. Além disso, apesar de ser uma tecnologia que impacta a vida de todos, esse é um setor com pouquíssima diversidade, o que resulta em plataformas com vieses que comprometem a qualidade de suas entregas. E isso exige muita atenção de todos nós.


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Para o estudo, foram entrevistados profissionais de 702 startups no Brasil. Desse total, 71% afirmam que as escolas apresentam pouquíssimos exemplos de profissionais bem-sucedidos em tecnologia, e 41% dizem que educar e conscientizar o mercado sobre IA é o mais importante para o futuro dessa tecnologia no país. Além disso, para 39% dos entrevistados, a vulgarização do termo, com empresas que entregam soluções ruins no que dizem ser IA, prejudica uma adoção mais ampla pelo mercado.

Sobre a baixa diversidade nessas empresas, 49% delas não têm mulheres em cargos de liderança, assim como 61% no caso de pessoas negras, 71% de pessoas LGBTQIA+ e 90% de pessoas com alguma deficiência. Além disso, essas empresas estão fortemente concentradas nas regiões Sudeste e Sul, que englobam 92,7% do total. O Estado de São Paulo sozinho detém 51,9% delas.

Quando se fala de inteligência artificial, essa baixa diversidade não resulta apenas em um problema social. Esses sistemas precisam ser desenvolvidos e “calibrados”, o processo em que literalmente aprendem os parâmetros para oferecer respostas mais assertivas depois. E equipes homogêneas treinam mal as plataformas.

Por exemplo, se um sistema na área de RH começa a aprender que, de todos os candidatos que ele sugere, a maioria dos que acabam contratados é branca e com menos de 35 anos, ele tende a fazer mais sugestões que reflitam essas escolhas dos recrutadores, eliminando pessoas com mais de 40 ou negras. Ou seja, ele reproduz um viés da equipe. E isso acontece mais quando as equipes são pouco diversas.

Esse é o tipo de problema que não podemos ter, tamanha a crescente influência da inteligência artificial nas tomadas de decisões de pessoas e empresas, e os negócios que isso gera. Segundo estudo global da consultoria McKinsey, divulgado em outubro de 2018, ela deve gerar US$ 13 trilhões no mundo até 2030. Na América Latina, deve responder por um aumento de 5% no Produto Interno Bruto (PIB).

 

Mudança social

Mas há desafios que a sociedade precisa enfrentar para chegar a isso. Segundo a McKinsey, eles podem ser agrupados em três tópicos.

O primeiro é uma implementação consciente. Isso envolve o governo, pois empresas precisam ser incentivadas a desenvolver e adotar a inteligência artificial. Além disso, a sociedade precisa se beneficiar dela de forma ampla.

Outro ponto destacado é o impacto disso no mundo do trabalho. As escolas precisam formar mais profissionais qualificados nessa área. De acordo com levantamento da Brasscom, a associação das empresas do setor digital, o Brasil terá uma demanda de 797 mil profissionais de tecnologia até 2025, mas forma apenas 53 mil deles por ano. Não se pode esquecer como a inteligência artificial impacta diversos setores, impondo mudanças profundas em como as pessoas trabalham, e até extinguindo funções.

Por fim, há o desafio de uma IA responsável. A população não pode perder a confiança na tecnologia por problemas de vieses (como explicado anteriormente), falhas na privacidade de suas informações ou usos mal-intencionados por empresas ou governos. A inteligência artificial só prosperará se trouxer benefícios a todos.

Empresas, escolas, a mídia e até o governo precisam trabalhar para que as pessoas entendam a inteligência artificial como ela é, desmistificando os conceitos da ficção científica, de máquinas inteligentes capazes de fazer tudo, que eventualmente se voltam contra o ser humano. Na sexta, por exemplo, o Estadão publicou uma série de reportagens sobre inteligência artificial, que explica alguns dos mais poderosos sistemas hoje disponíveis.

Não dá para fugir do tema. Na quarta passada, participei de uma mesa-redonda promovida pela lawtech Doc9 durante a Fenalaw, o maior evento da área jurídica da América Latina. No cardápio da transformação digital do Direito, a inteligência artificial apareceu com força. Já existem diversos sistemas que agilizam enormemente tarefas repetitivas dos escritórios, com alto índice de acerto. Essa digitalização só não está mais avançada pelas resistências culturais dos gestores e pela falta de profissionais que consigam combinar as características dos mundos jurídico e digital.

A inteligência artificial não é uma panaceia, nem tampouco uma ameaça a empregos ou à própria vida (na visão apocalíptica da ficção). Ela é uma tecnologia com um potencial de provocar mudanças profundas na sociedade, oferecendo serviços inimagináveis até bem pouco tempo atrás. Mas, para que isso seja conseguido, precisamos fazer os movimentos aqui descritos.

Merecendo atenção destacada, a inteligência artificial elevará a produtividade e o crescimento econômico do mundo, mas milhões de pessoas terão que mudar de ocupação ou aprimorar suas habilidades. Isso exige atualizações na maneira de se fazer negócios e principalmente em políticas educacionais. E infelizmente nós estamos nos mexendo muito pouco, principalmente no último.

Se não fizermos os movimentos necessários, podemos enfrentar, em pouco tempo, um crescimento expressivo do desemprego e o surgimento de uma massa de “inempregáveis”, ou seja, pessoas sem capacitação para qualquer trabalho. Não podemos deixar que uma tecnologia com incrível potencial crie esses problemas.

Se isso acontecer, a culpa não será das máquinas: será de nós mesmos.

 

Na Semana da Criança, perderam os professores e ganharam as armas

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Na quarta passada, Dia da Criança, fiquei abismado quando a prefeitura de Uberaba (MG) montou com a polícia e com o exército, em um evento dedicado aos pequenos, um estande para lhes explicar como funcionam diferentes tipos de armas e bombas. As crianças até mesmo tocavam nos equipamentos.

Já no sábado, Dia do Professor, o Instituto Semesp fez um alerta de que essa profissão, historicamente tão maltratada em nosso país, passa por um momento dramático, com grave insuficiência de profissionais. A carreira há muito deixou de ser atraente pelos baixos salários, por condições deploráveis de trabalho e, de uns anos para cá, por uma abominável perseguição dos professores pelo governo, por pais e até por alunos.

Crianças são fortemente influenciadas pelos adultos, especialmente “autoridades”, como os pais, os professores e até a polícia. Se crescerem vendo que o contato com armas no cotidiano é corriqueiro, aceitarão uma sociedade mais violenta, onde desavenças podem ser resolvidas pela força.

Por outro lado, assistimos a pessoas desqualificadas e sem vocação assumindo o fundamental papel do professor, no espaço deixado por aqueles que seriam bons mestres, mas que foram afugentadas por um ambiente hostil e sem perspectivas. Um bom docente não ensina apenas a parte acadêmica: ele forma melhores cidadãos, mais humanos, empáticos, tolerantes, colaborativos e resilientes.

Diante disso, essa semana nos convida a refletir sobre quais são os exemplos que realmente interessam às crianças, para que cresçam de uma maneira saudável. E, em muitos casos, o que elas precisam difere daquilo que alguns adultos defendem, inflamados por temas do momento ou por uma visão limitada do mundo.


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Segundo a prefeitura de Uberaba, o objetivo do estande da polícia e do exército era “afastar o medo culturalmente imposto nas crianças sobre as forças de segurança”. Achei a justificativa estranha: por que a população teria medo de quem a deveria proteger? Mas infelizmente isso acontece, especialmente entre os mais pobres.

A iniciativa contraria o que educadores defendem há anos. Eles tentam até mesmo tirar armas de brinquedo das mãos das crianças, para construir uma sociedade menos violenta.

E, por falar em educadores, o alerta do Instituto Semesp se baseia em estudo divulgado na última semana de setembro, que indica que o Brasil enfrentará um déficit de 235 mil professores em 2040. Vale notar que, entre 2010 e 2020, os ingressantes nos cursos de Licenciatura aumentaram 61%, mas os formandos cresceram só 4%, indicando uma enorme desistência da carreira antes de se formar.

Outro ponto importante demonstra que a imensa maioria desses estudantes estão em cursos a distância (EAD), o que é temerário, pois professores que terão que lidar com crianças em salas de aula estão sendo formados fora de uma sala de aula. Além disso, boa parte dos formandos já atuam como professores, o que indica uma baixa qualificação de muitos docentes atuais.

Com isso, o Brasil corre sério risco de ficar sem professores, à medida que os existentes abandonam a sala de aula ou se aposentam, sem que haja reposição suficiente. Isso já está acontecendo: a rede estadual de São Paulo não conseguiu preencher todas as vagas de professores temporários para o Novo Ensino Médio.

Isso implicará em salas mais lotadas e professores ainda mais sobrecarregados, com evidente piora na qualidade do ensino.

 

Todos perdem

Não é possível conceber um futuro para o país sem mais e melhores professores, e que eles tenham liberdade para exercer sua carreira em paz e com apoio. Tal liberdade pode chocar alguns pais, pois os professores trazem visões diversas do mundo, o que não tem sido bem aceito por algumas famílias, um sinal de nossos tempos que está na raiz da perseguição sofrida pelos docentes.

Mas as crianças precisam dessa oxigenação nas ideias, e os professores são perfeitos para isso, pois conseguem ver seus alunos de uma maneira diferente e menos idealizada que seus pais. Dessa maneira, as crianças se desenvolvem melhor, com uma visão menos enviesada da vida.

Quando eu tinha 17 anos, entrei na Escola Politécnica da USP, no curso de Engenharia Elétrica. Era o que curso e a escola que eu havia escolhido, enchendo meus pais de orgulho. Mas sentia que algo me faltava.

Lembrei da minha professora de Língua Portuguesa do Ensino Médio, que dizia que eu não deveria ir para a engenharia, e sim para algo na área de Humanas. Então, quando eu estava no segundo ano na Poli, conversando com ela, incentivou-me a tentar uma vaga de trainee na Folha de S.Paulo, apesar de não ter nada que sugerisse que conseguiria. Mas o fato é que deu certo, e aquilo mudou minha vida profundamente!

Se tivesse continuado na engenharia, possivelmente teria progredido bem na carreira. Mas a mudança para o jornalismo foi um dos meus maiores acertos! Em um primeiro momento, aquilo desagradou meus pais, mas sou feliz e grato à minha professora por ter percebido minha vocação e me incentivado a persegui-la.

Coincidentemente na semana passada, assisti ao episódio “O flautista”, da série coreana “Uma advogada extraordinária”, da Netflix. Ele aborda o caso de um jovem que “sequestra” um grupo de crianças da escola de sua mãe para levá-las a brincar durante uma tarde, devolvendo-as felizes e saudáveis no fim do período.

O jovem apenas brincou com elas, sem nenhuma intenção obscura. Para ele, as crianças precisam brincar, ser saudáveis e felizes. Sua ação se deve a uma revolta com o estilo educacional da escola da mãe, em que as crianças precisam estudar diariamente por 12 horas, mal têm tempo para comer e podem ir ao banheiro apenas uma vez por dia. Ainda assim, acabou preso. Afinal, as atividades recreativas foram dadas sem a autorização dos pais, quando seus filhos deveriam estar estudando.

Claro que essa foi uma atitude extrema, ainda que bem-intencionada. Mas serve para a reflexão: afinal, do que as crianças precisam para se desenvolver? Estudar 12 horas por dia? Aprender como funcionam armamentos pesados?

Há o momento de estudar e o de brincar! Sem isso, seu desenvolvimento ficará prejudicado. O brincar é um treino para a vida adulta, por isso educadores defendem que as armas fiquem de fora.

Pais devem se aliar a professores, apoiando esses profissionais, para reforçar o respeito de seus filhos aos mestres. Isso não quer dizer que precisem concordar em tudo! Mas, no caso de divergências ideológicas, culturais ou acadêmicas com algo dito em sala de aula, os pais não devem simplesmente tentar cesurar ou ameaçar os professores. Pelo contrário, devem conversar com eles, entender seu ponto de vista e tentar encontrar um consenso. Além disso, os pais sempre podem apresentar seu ponto de vista aos filhos em casa.

Essa é uma maneira madura e positiva de colaboração entre pais e professores. E assim essas crianças crescerão com uma visão mais real e ampla do que é o mundo.

Crianças precisam ser crianças, e a educação deve sempre permitir isso.

 

Cursos de curta duração podem ensinar habilidades pontuais, mas não oferecem todo o necessário para um mercado cada vez mais exigente

Os desafios na formação de um profissional moderno

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Com a busca pelo emprego cada vez mais competitiva e a educação se tornando um negócio milionário, a formação profissional do brasileiro vem se transformando, com muitos solavancos nos últimos anos. A graduação se tornou condição básica de acesso ao mercado de trabalho, restando à pós-graduação a tarefa de qualificar a mão de obra. E aí muita gente coloca tudo a perder.

Se agora essa etapa cria a diferenciação profissional, poderíamos supor que cursos mais longos, como especializações ou mestrados, em instituições consagradas, seriam os mais procurados. Entretanto, essas turmas estão cada vez mais vazias, dando lugar a cursos de curta duração, muitas vezes ministrados por escolas ou pessoas desconhecidas, e ofertados nas redes sociais a preços módicos.

Isso se deve a duas coisas em falta por aqui: tempo e dinheiro. Por isso, são raros os que conseguem estender seus estudos por mais alguns anos. As pessoas preferem aprender qualquer coisa para usar imediatamente, conseguir um emprego e colocar comida no prato.

Fica difícil criticar alguém por isso. Mas, a longo prazo, o Brasil corre o risco de se deparar com um enorme contingente de profissionais com habilidades limitadas, incapazes de enfrentar os desafios de um mercado cada vez mais exigente.


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Nesse país que parece ter perdido o direito de pensar a longo prazo e busca soluções instantâneas, a educação não foge da regra. “Eu sinto, nessa busca por cursos curtos, o imediatismo de resultado, uma falta de visão de se conectar a repertórios distintos, a vivências, a pensamentos diversos”, adverte Cátia Lassalvia, consultora e doutora na área de linguagens e tecnologias. Ela acrescenta que “os estudantes têm essa necessidade de ‘aprender urgentemente’, aquela coisa da sociedade da rapidez, da fluidez, do mundo líquido, junto com uma crise econômica.”

Celso Kiperman, CEO da +A Educação, concorda. Segundo o executivo, “a geração atual tem uma necessidade de soluções mais imediatas, tem menos paciência e menos tolerância, por isso procuram as que deem respostas mais rápidas e mais efetivas.”

Cursos de curta duração têm naturalmente grande valor. Eles são um caminho eficiente para corrigir falhas na formação profissional ou para adquirir novas habilidades. Mas, por serem muito mais fáceis de serem oferecidos, exigem cuidados adicionais do estudante. É preciso verificar as credenciais da instituição de ensino e dos professores, para evitar cair em verdadeiras arapucas, que proliferam se aproveitando da necessidade e inocência dos candidatos. “Para quem estiver querendo um diploma rápido, vai ter cada vez mais faculdades ofertando”, afirma Lassalvia.

A consultora vê uma precarização de políticas públicas educacionais, com a gestão da carreira deixada maquiavelicamente para uma pessoa às vezes mal preparada e desassistida. “Se ela estudou e se deu bem, é empreendedora de si mesma, mas, se não se deu bem, é problema dela”, explica.

“Pode até ter havido uma diminuição da qualidade, mas houve uma democratização”, contrapõe Kiperman. De fato, esse cenário facilita que mais pessoas adquiram novas habilidades rapidamente e sem gastar muito. “É então algo pontual, pragmático, para preencher lacunas, o que não é formação, mas informação”, afirma Lassalvia.

O problema de se fazer apenas esses cursos é justamente sua proposta de ensinar algo pontual. Isso não confere ao estudante a capacidade de conectar conteúdos complexos e diferentes, dando grandes saltos na carreira. “Essa busca por cursos em formato de pílula é muito bacana como algo complementar, mas não pode ser a formação principal”, explica a consultora. “Se o sujeito estiver fazendo algo e aparecer uma exigência maior, aquele aprendizado não comportará mais.”

 

Aprendendo a aprender

Talvez essa seja a grande diferença entre cursos pontuais e os mais longos, especialmente mestrados e doutorados: a capacidade de desenvolver conhecimento por conta própria, diante de novos desafios. É como ser capaz de misturar ingredientes para criar um novo prato, ao invés de ser restrito a seguir receitas sem questionamentos.

Isso só é possível graças a professores muito capacitados e que não se restringem a atender demandas imediatas, podendo se debruçar na pesquisa. Mas ironicamente uma crítica contundente de muitos profissionais tangencia justamente isso: a distância entre a universidade e o que mercado precisa.

“A academia é muito conservadora, reagindo lentamente às demandas da sociedade, às vezes a reboque delas”, afirma Kiperman. “O desenvolvimento tecnológico, antes capitaneado pela academia, hoje está dentro das empresas: de uma Amazon, de um Google, de um Facebook”.

Lassalvia acrescenta que as instituições de ensino precisam acompanhar a modernização do mundo. E isso não significa apenas investir em tecnologia. “É preciso trabalhar com metodologias ativas, é tentar inserir um pouco da vida fora da escola dentro dela”, sugere. “Não pode ser mais somente ensino baseado em conteúdo, que eu encontro no Google, no livro.”

Kiperman explica que, até 1998, as universidades brasileiras não podiam ter fins lucrativos. Isso fazia com que as poucas universidades então existentes se concentrassem na excelência acadêmica, deixando em segundo plano as necessidades do mercado. Por isso, as empresas pouco colaboravam financeiramente com as instituições. Isso criou um afastamento que permanece, em alguma escala, até hoje, apesar de ser desinteressante para todos.

O Brasil nunca demonstrou apreço pela educação, o que explica em parte a nossa dificuldade de nos consolidarmos como uma nação desenvolvida. Isso aparece, por exemplo, no desprestígio e nas condições de trabalho ruins dos professores, que chegaram a seu nível mais baixo nos últimos anos, com demissões em massa, perseguições e até agressões verbais e físicas.

Acompanho todos esses movimentos com apreensão. O surgimento de novos trabalhos muito bem remunerados e que exigem pouco estudo, como influenciadores digitais, pode diminuir ainda mais o apreço pela educação. Mas não podemos achar que basta ligar uma câmera para ficar rico. “Assim a gente vai ter um abismo de formação maior do que a gente teve nessas últimas décadas”, afirma Lassalvia.

Cursos rápidos são ferramentas modernas e eficientes para a formação profissional, desde que ministrados por professores qualificados, em instituições que se preocupem com a qualidade do ensino. Mas eles não podem levar à extinção de formações mais sofisticadas que, em última instância, são as que impulsionam toda a sociedade a patamares superiores de qualidade de vida e desenvolvimento.

Todos nós temos um papel nisso, ao valorizar a escola como espaço de aquisição de conhecimento e de valores de colaboração, tolerância, inclusão e respeito. As instituições de ensino, por sua vez, precisam se aproximar da sociedade e se modernizar no conteúdo e na forma. Enquanto tudo isso não acontecer, o Brasil continuará andando de lado no seu desenvolvimento.

 

As belezas e as dores do ensino a distância

By | Educação | No Comments

Dizem que, nos últimos anos, a grande agente da transformação digital foi a Covid-19. Infâmias à parte, é um fato que a pandemia nos ensinou a fazer muitas coisas novas ou a usar a tecnologia para recriar atividades cotidianas. Uma das mais impactadas foi a maneira como estudamos. E isso trouxe benefícios, mas também problemas.

Como professor, vi alunos irados em março de 2020, quando seus cursos passaram a ser oferecidos online, por causa da doença. Mas o movimento foi inevitável, atingindo do Ensino Infantil à pós-graduação. Hoje, mesmo com as escolas reabertas há mais de um ano, observo uma crescente preferência por cursos a distância, até mesmo superando os presenciais.

Esse é um movimento sem volta! São inegáveis as vantagens, como comodidade e economia, ao se estudar em casa. Mas o uso inadequado da tecnologia na educação pode piorar muito a qualidade do ensino.


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Não se pode olhar de maneira homogênea para todos cursos e momentos da formação de uma pessoa. “Isso é o futuro para a parte da população que quer se qualificar”, afirma Yuri Lima, pesquisador do Laboratório do Futuro da COPPE/UFRJ. “Mas há uma perda de qualidade do ensino, principalmente para quem está em uma primeira graduação”, explica. Para ele, “existe incoerência se eu disser que o futuro do trabalho virá de trabalho em equipe, empatia, negociação, criatividade ou qualquer outra soft skill, e concordar que um curso online conteudista suprirá tudo isso”.

A opinião é compartilhada por David de Oliveira Lemes, diretor da Faculdade de Estudos Interdisciplinares da PUC-SP. “Na graduação, faz muito mais sentido o presencial, pela convivência universitária, pela troca de experiências, porque é uma idade de transição para a vida adulta”. Ele explica que há habilidades exigidas pelo mercado que o aluno precisa do ensino presencial para desenvolver. “Mas, mesmo para as especializações, alguns momentos presenciais, nem que seja para networking, são fundamentais”, acrescenta.

Essa mudança no público se deve, em parte, às universidades, que ofereceram diversos cursos online gratuitos no começo da pandemia. Isso fez com que muita gente descobrisse que é possível aprender de casa, economizando dinheiro e tempo. Em contrapartida, vimos uma explosão de cursos de qualidade duvidosa, até mesmo de instituições conhecidas. Elas viram no ensino a distância uma maneira de aumentar exponencialmente seus lucros em detrimento da qualidade pedagógica.

O desafio para os alunos é descobrir quais cursos lhes garantirão um aprendizado satisfatório. Já as instituições de ensino precisam se apropriar desses recursos com ética, para levar a educação a um novo patamar de excelência.

A educação não é só erudição, especialmente para os mais pobres. Para essas pessoas, é um caminho para mudar de vida, especialmente –mas não exclusivamente– em um país com grandes desafios sociais, como o nosso.

Segundo o estudo “O Estado da Educação Superior 2022”, produzido pelo Instituo Gallup e pela Fundação Lumina, dos dez motivos para se cursar o ensino superior, seis se relacionam a melhorias no trabalho. De fato, de acordo com a consultoria LABORe, o salário médio no Brasil em dezembro de 2018 saltava de R$ 2.147, pago a quem estudava até o Ensino Médio, para R$ 5.869, para quem concluía a faculdade.

 

A busca pela comodidade

Há alguns dias, realizei uma pesquisa informal no LinkedIn para saber como as pessoas preferem estudar hoje. Com 1.763 votos, o ensino presencial apareceu na frente com 38% das preferências, seguido de perto pelo ensino a distância com aulas ao vivo (33%) e pelo ensino a distância com aulas gravadas (28%).

Isso está em linha com o Censo da Educação Superior 2020, divulgado em fevereiro pelo MEC (Ministério da Educação). Naquele ano, o país registrou, pela primeira vez, mais matrículas em graduações a distância que nas presenciais. Se considerarmos apenas instituições privadas, isso já acontece dede 2019.

“Se for apenas para conteúdo expositivo, o EAD é muito melhor”, afirma Lemes. O professor explica que o tempo em uma sala da aula presencial deve ser aproveitado com metodologias que ajudem na formação do aluno, como debates e projetos.

O alerta acende quando os cursos presenciais são substituídos pelo EAD apenas para aumentar os lucros. “O online ao vivo já passa por uma precarização quando coloca um professor para dar aula para até mil alunos”, afirma Lima, sobre instituições que substituem várias turmas presenciais por uma enorme turma online. Mas a situação fica dramática quando o curso se resume a aulas gravadas, com um tutor (que muitas vezes nem tem a formação acadêmica adequada) “gerenciando” até 5.000 alunos!

Lima explica que, quando se olham listas de profissões do futuro, o professor aparece, pois suas tarefas estão entre as “menos automatizáveis”. Entretanto, esse uso inconsequente do ensino a distância vem provocando uma onda de demissões de professores no Brasil. “A gente está substituindo a educação presencial como um todo por um modelo de negócios que dispensa a existência do professor”, afirma Lima.

Isso aparece claramente no Censo da Educação Superior. A quantidade de professores no Ensino Superior privado vinha estável por volta de 210 mil. Em 2020, houve uma grande queda, para 195 mil. Já o Ministério do Trabalho aponta 30 mil professores demitidos no Ensino Superior entre março de 2020 e dezembro de 2021.

Lima explica que menos turmas presenciais exigem menos professores, sem diminuir a quantidade de alunos nas enormes turmas online, aumentando os lucros das instituições. “Para que eu vou investir no presencial, que me traz a metade da minha margem do online?”

A própria formação de novos professores vem sendo impactada. Levantamento divulgado no dia 18 pelo movimento Todos pela Educação mostra que 61% dos formandos de cursos de Pedagogia e Licenciatura em 2020 no país estudaram a distância. Nos demais cursos superiores, o índice foi de 24,6%. A instituição considera isso “extremamente grave”, pois essa formação seria de baixa qualidade.

“Quando a gente pensa na degradação do trabalho docente, na verdade é porque isso está degradando a qualidade do ensino”, afirma Lima. Mas ele relembra que a culpa não é do ensino a distância, e sim de seu mau uso. “Eu não acho que ele seja uma panaceia e também não acho que seja o fim do mundo.”

Lemes aponta que o professor está tendo que se reinventar o tempo todo. “Sempre vai ter espaço para professor, talvez não aquele que ele tinha antes”, explica, dizendo que não sabe se há uma precarização, mas que há transformação das suas funções.

Sou um defensor da transformação digital nos mais diversos segmentos. A educação obviamente também melhora com a tecnologia. Mas, como em todos os casos, isso precisa ser feito com responsabilidade. O EAD não é vilão, nem tampouco algo a ser abraçado inconsequentemente.

Empresas de educação são negócios muito particulares, pois todos os demais segmentos dependem da qualidade de sua entrega. Naturalmente devem ter lucro, mas elas não podem sacrificar seu crítico papel social por ele.

O Brasil já padece de uma educação de qualidade muito baixa há anos, e que só vem piorando. Não é de se estranhar que soframos com um severo déficit profissional, em quantidade e principalmente em qualidade. Não podemos nos dar ao luxo de isso ficar ainda pior!

 

Um terço dos brasileiros teme ser trocado por um robô

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Cerca de um terço dos trabalhadores no Brasil e no mundo tem medo de perder seus empregos para uma máquina nos próximos três anos. Apesar de esse número estar diminuindo (em 2019, era 50%), ainda é muito alto e demonstra que existem graves falhas na formação profissional.

Esses indicadores fazem parte da “Pesquisa Global de Esperanças e Medos da Força de Trabalho”, realizada pela consultoria PwC e apresentada no último dia 24 durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). Na sua elaboração, foram ouvidas 52.195 pessoas em 44 países, inclusive no Brasil.

Diante desse receio, o estudo traz ainda que os trabalhadores esperam que as empresas os ajudem a desenvolver suas competências digitais e tecnológicas. Isso faz ainda mais sentido em um país como o nosso, em que a educação falha nessa tarefa. Mas 35% dos profissionais no Brasil e 39% no mundo dizem que seus empregadores também não fazem isso bem.


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Um fato curioso do levantamento da PwC é que os que se sentem mais ameaçados pela tecnologia não são os mais velhos, como se poderia imaginar. Entre os trabalhadores da “Geração Z” (nascidos a partir de 1997), 38% temem ser substituídos pela automação digital nos próximos três anos, contra apenas 19% dos “Baby Boomers” (nascidos entre 1946 e 1964). Eles também são os que mais sentem falta de treinamento tecnológico de seus empregadores: 44% contra 29% dos “boomers”.

Não por coincidência, os mais jovens são os menos satisfeitos com seu trabalho. Os pesquisadores afirmam que os profissionais que sentem ter habilidades valorizadas pelo mercado são mais propensos a se sentir satisfeitos com seu trabalho (70%), a ser ouvidos pelos seus gerentes (63%) e a ter dinheiro sobrando após pagar suas contas (56%).

Investir no desenvolvimento de habilidades digitais e capacitação técnica de seus quadros torna-se, portanto, cada vez mais crucial para as empresas. “O investimento deve ser guiado por um princípio de equidade, fortalecendo as capacidades dos funcionários qualificados e fornecendo vias de acesso para aqueles que não possuem essas habilidades”, explica Carol Stubbings, líder global de serviços jurídicos e tributários da PwC. Para a executiva, “o investimento em todo o mix de habilidades é bom para as empresas, bom para os indivíduos e bom para a sociedade.”

O poder de barganha pende para o funcionário, mas, no Brasil, o desemprego alto atrapalha isso. Na terça passada, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que essa taxa foi de 10,5% no trimestre encerrado em abril. Apesar de estar em queda, ainda são desempregados demais para se observar aqui um fenômeno visto em economias mais sólidas, especialmente a dos EUA.

Trata-se da chamada “Grande Renúncia”: muitas pessoas estão de demitindo para facilmente se recolocar em outras empresas, com melhores condições. A PwC explica que, se esse fenômeno nos ensinou alguma coisa, é que não há “lealdade eterna” de funcionários. As empresas precisam estar atentas a essas demandas ou perderão cada vez mais profissionais em diferentes níveis. Mas a maioria não presta atenção nisso!

No Brasil, além dos 11,3 milhões de desempregados, a situação ainda se agrava pela falta de acesso a recursos digitais de qualidade para a maioria da população. Outro estudo, batizado de “O abismo digital no Brasil”, publicado em março pela mesma PwC e pelo Instituto Locomotiva, demonstra que apenas 29% dos brasileiros são “plenamente conectados”. Do outro lado, 20% são totalmente “desconectados”.  Entre eles, estão 26% “parcialmente conectados” e os 25% “subconectados”.

Perdem o profissional, a empresa e a sociedade.

 

Desenvolvendo habilidades

As companhias precisam compreender, de uma vez por todas, que a capacitação digital de seus funcionários se tornou fundamental para seus negócios, que vêm se digitalizando de maneira exponencial há anos. Isso mudou como trabalhamos, estudamos, compramos, nos divertimos e nos relacionamos com tudo e todos!

O estudo sobre o abismo digital brasileiro apontou que profissões tradicionais, que respondiam por 15,4% das vagas em 2020, encolherão para 9% até 2025. Já as ligadas à tecnologia passarão de 7,8% a 13,5%. No Brasil, o setor de tecnologia demandará 800 mil profissionais até 2025, mas o déficit deve ficar em 530 mil vagas não preenchidas.

Como as universidades não estão suprindo essa mão de obra na quantidade e com a qualidade que o mercado pede, resta mesmo às empresas realizarem o “upskilling”, termo em inglês que indica o desenvolvimento de novas habilidades.

A mesma PwC afirma que, se a força de trabalho for devidamente aprimorada até 2028, isso pode resultar em um aumento do PIB latino-americano em 7,7% até 2030, o equivalente a US$ 12,5 bilhões. Mas também estamos “patinando nisso”: globalmente, 40% das empresas estão fazendo “upskilling”, mas, no Brasil, só 27% investem nisso.

Uma terceira pesquisa, essa feita pela escola de negócios francesa Insead, coloca o Brasil como 75º no ranking de competitividade global de talentos, entre 134 países. Ele se baseia na capacidade de os países desenvolverem profissionais e de atrair e reter seus talentos. Na América Latina, ocupamos uma modesta 9ª posição.

Diante de tudo isso, gestores de empresas de todos os portes e segmentos precisam sair de sua zona de conforto. “Os trabalhadores não estão apenas procurando por uma remuneração decente: eles querem mais controle sobre como trabalham e querem obter maior significado do que fazem”, afirma Bob Moritz, presidente global da PwC. “Ao adquirir competências, os trabalhadores podem obter o controle sobre o trabalho que procuram”, conclui.

Apesar de os profissionais desejarem que seus empregadores atuem diretamente na solução de seu desenvolvimento tecnológico, isso não desobriga governos e escolas de igualmente atuarem nisso. Mas essa tarefa precisa ser feita de maneira integrada e inteligente, colocando os recursos onde realmente forem mais necessários.

Essa é uma deficiência estrutural de vários países, mas fica mais grave no Brasil, graças a alguns de nossos problemas históricos, como políticas públicas sem foco e sem continuidade de um governo para outro, e educação deficiente. Enquanto a sociedade não se organizar para trabalhar de maneira coordenada para o crescimento de todos, continuaremos vendo nossa produtividade caindo, tornando nossas empresas e nossos profissionais menos competitivos internacionalmente.

 

Desigualdade digital escancara uma perversa exclusão no Brasil

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Se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre a importância maiúscula da Internet em nossas vidas, a pandemia de Covid-19 acabou com ela. Especialmente no período de mais distanciamento social, trabalhar, estudar, comprar e até se divertir dependiam dela. Mesmo agora, com tudo reaberto, muitas práticas online que desenvolvemos naquele momento permanecem, pois descobrimos enormes ganhos. Mas isso também jogou luz sobre a profunda desigualdade digital na população brasileira.

A pesquisa “O abismo digital no Brasil”, publicada recentemente pela consultoria PwC e pelo Instituto Locomotiva, coloca isso em números. De um lado, temos 29% dos brasileiros “plenamente conectados”; do outro, 20% sem conexão alguma. Isso traz enormes prejuízos às pessoas e ao país, criando “cidadãos de segunda categoria”.


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O acesso à Internet se transformou em um item essencial de infraestrutura, assim como energia elétrica, água, saneamento básico e telefonia. Pessoas com acesso a esses serviços com boa qualidade desenvolvem uma enorme vantagem. Além disso, quanto mais cidadãos assim, mas um país se torna competitivo internacionalmente.

Mas não se trata apenas disso. A guerra na Ucrânia, cuja infraestrutura vem sendo arrasada pela Rússia, mostrou ao mundo como o acesso à Internet pode desenterrar verdades inconvenientes e incomodar poderosos, de maneira que a vida de pessoas pode chegar a depender disso. Tanto que o bilionário Elon Musk, dono da Tesla e da SpaceX, liberou na Ucrânia o acesso à Internet a partir de sua rede de satélites Starlink.

O estudo identifica, entre os 29% “plenamente conectados”, mais moradores das regiões Sul e Sudeste, com celular pós-pago, acesso por notebook, bem escolarizados, integrantes das classes A e B e brancos. Do outro lado, os 20% “desconectados” são compostos principalmente por homens, idosos, não-alfabetizados, das classes C, D e E. Entre eles, estão os 26% “parcialmente conectados”, que são majoritariamente do Sudeste, negros, menos escolarizados e das classes C, D e E, e os 25% “subconectados”, principalmente do Norte e do Nordeste, com celular pré-pago, negros, menos escolarizados e das classes D e E.

Isso desenha um panorama sombrio para o Brasil nos próximos anos. O estudo demonstra que profissões tradicionais, que respondiam por 15,4% da força de trabalho em 2020, encolherão para 9% até 2025. Já as ligadas à tecnologia passarão de 7,8% a 13,5%. E isso é algo que já sentimos em nosso país. O setor de tecnologia demandará 800 mil profissionais de 2021 a 2025, mas o déficit deve ficar em 530 mil vagas não preenchidas. Isso em um cenário de desemprego explosivo!

Outro estudo, feito pela escola de negócios francesa Insead, coloca o Brasil como 75º no ranking de competitividade global de talentos, entre 134 países. Ele se baseia na capacidade de os países desenvolverem pessoas para o mercado e de atrair e reter os melhores profissionais. Na América Latina, estamos na 9ª posição.

O Brasil precisa dar recursos para que os jovens adquiram as habilidades exigidas, e isso passa necessariamente por um bom acesso ao meio digital. Hoje, 81% da população com 10 anos ou mais usam a internet, mas só 20% têm acesso de qualidade.

 

Reflexos na educação e no trabalho

Durante a fase mais aguda do distanciamento pela pandemia, vimos diversos casos de profissionais que foram enviados para trabalhar de casa, mas não conseguiram exercer adequadamente suas tarefas: sua Internet era ruim, sendo que a empresa não lhes ofereceu um plano de dados decente e às vezes nem computador, ficando restritos ao smartphone.

Mais grave ainda foi o observado entre os estudantes. Com acesso precário ou nulo e restritos muitas vezes a um único celular na casa, muitas crianças ficaram sem estudar por quase dois anos. O estudo informa que 21% dos alunos das redes municipais e estaduais estão em escolas sem acesso à banda larga. Isso se reflete em uma pesquisa da organização Todos pela Educação divulgada em fevereiro, que mostrou que o número de crianças entre 6 e 7 anos que não sabia ler ou escrever no Brasil saltou de 25,1% em 2019 para 40,8% em 2021.

Não é de se estranhar, portanto, que o Brasil tenha um dos dez piores desempenhos do mundo em matemática e um fraco resultado em leitura no Pisa, a avaliação feita pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) sobre a educação em 79 países. Com isso, 67% dos nossos estudantes de 15 anos não conseguem diferenciar fatos de opiniões na leitura de textos, algo particularmente problemático em um país em que as pessoas adoram se “informar” por redes sociais.

Segundo a PwC, os principais causadores desse abismo digital são deficiências da infraestrutura de conexão (e aqui entram a qualidade do sinal e custos), limitações de acesso a equipamentos e deficiências do sistema educacional. São problemas profundamente enraizados em nosso país, mas que precisam ser resolvidos, sob risco de termos cada vez mais informalidade do mercado de trabalho, redução da já baixa produtividade do país, atraso no desenvolvimento das pessoas e redução do acesso a serviços públicos.

Para reverter essa situação dramática, a PwC e o Fórum Econômico Mundial sugerem a atuação coordenada de governos, educadores e empresas, com papéis e responsabilidades bem definidos para fortalecer as competências digitais da população.

O governo tem um papel fundamental no processo, com a criação de políticas para impulsionar as iniciativas nacionais de qualificação digital, trabalhando junto com a sociedade civil. As empresas, por sua parte, precisam adotar a capacitação digital da força de trabalho como princípios fundamentais do seu negócio, enquanto as instituições de ensino devem repensar as iniciativas de qualificação profissional, com o conceito de aprendizagem ao longo da vida.

A desigualdade de acesso à Internet vem da desigualdade socioeconômica, e a reforça! Em um mundo hiperconectado, uma nação não pode se dar ao luxo de ter cidadãos desprovidos dos meios necessários para seu desenvolvimento digital, pois dele derivam os demais.

O problema é estrutural e não será resolvido com medidas paliativas, pontuais ou desestruturadas. Trata-se de um gravíssimo problema social, que já impacta pesadamente nossa população. E, se tudo continuar como está, o problema se tornará cada vez maior, empurrando o Brasil para o fosso das nações irrelevantes.

 

Pais que ficam online demais criam filhos com o mesmo problema

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Em nosso mundo hiperconectado, uma queixa comum de muitos pais é que seus filhos ficam tempo demais nos seus celulares e videogames, que estariam “viciados” no digital. Mas pelo menos parte desse problema se deve ao fato de que esses mesmos pais usam a tecnologia de maneira excessiva.

Pesquisa recente da empresa de cibersegurança Kaspersky deixa clara a relação direta entre o tempo de uso de aparelhos digitais pelos pais e por seus filhos. O levantamento ainda aponta que os primeiros têm dificuldade de seguir os limites que eles mesmos determinam aos pequenos.

Mas atire a primeira pedra quem nunca ficou nas redes sociais mais tempo que deveria! O que deve ser entendido é que isso pode causar prejuízos a adultos e crianças, mas que é possível usar o mundo digital sem extrapolar os limites.


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A pesquisa foi realizada no segundo semestre do ano passado, com mais de 11 mil adultos que moram com crianças de 7 a 12 anos. Foram entrevistadas pessoas de 19 países, inclusive do Brasil. O objetivo foi verificar como hábitos digitais dos adultos podem influenciar as crianças e vice-versa.

Dos entrevistados, 60% temem que seus filhos fiquem viciados em jogos, mesma porcentagem dos que se preocupam com privacidade e segurança e como esses equipamentos afetarão mental, física e socialmente os pequenos. Mas contraditoriamente 61% das crianças ganham seus primeiros dispositivos digitais entre 8 e 12 anos, sendo que 11% têm acesso antes de completar 5 anos.

“Muitos pais dão esses aparelhos a seus filhos, mesmo em tenra idade, para que eles ‘fiquem quietos’”, explica Katty Zúñiga, psicóloga integrante do Janus, o Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da PUC-SP, que explica que, mais importante que palavras, são os comportamentos dos próprios pais. “Não adianta os pais reclamarem que as crianças usam aparelhos eletrônicos durante as refeições, se eles mesmos fazem isso.”

De fato, a pesquisa mostra que, nas famílias cujos pais usam seus celulares enquanto estão à mesa, os filhos ficam 39 minutos online a mais que a média. Em nota, Fabiano Tricarico, diretor de consumo da Kaspersky na América Latina, explica que “a educação infantil deve começar com uma autoavaliação e uma reflexão sobre que tipo de ser humano nós, como pais, queremos formar e o que nós mesmos fazemos para sermos desta forma”. Segundo o executivo, os adultos precisam ver o ambiente digital como uma extensão de nossas vidas, e não como um espaço à parte.

Pelo levantamento global, 61% dos pais acham que nem sempre são um bom modelo em hábitos digitais. Entre os brasileiros, 58% acham difícil serem a inspiração para as crianças. Por exemplo, 72% dos pais de todo mundo relatam que enviam mensagens de texto durante as conversas, mas só 10% aceitam isso em seus filhos. Ainda assim, 95% dos pais dizem pelo menos incentivar comportamentos positivos em sua casa, como não permitir que equipamentos digitais sejam levados para a cama, adotado por 55%. Além disso, 54% dizem estabelecer regras que se aplicam não apenas às crianças, mas a toda a família (47% no Brasil).

Uma de suas conclusões mais importantes é a correlação entre o tempo de uso de dispositivos digitais entre pais e filhos. Os 18% dos pais que usam os aparelhos menos de duas horas por dia inspiram 29% dos filhos a fazer o mesmo. O grupo mais numeroso é o das pessoas que os usam de três a cinco horas por dia, respondendo por 48% dos pais e também dos filhos. Entre os que usam entre seis e oito horas diárias, estão 23% dos pais e 17% dos filhos.

Nada disso chega a ser uma surpresa. Crianças aprendem por imitação e os pais são seus principais modelos. Logo, o comportamento online das crianças deriva do dos adultos.

 

A sedução das redes sociais

Um ponto crucial é, portanto, entender por que os adultos estão ficando tanto online. Mesmo quem trabalha com o meio digital e entende os mecanismos dos algoritmos acaba às vezes “passando do ponto”.

“Quando não controlo racionalmente o que estou fazendo, no impulso eu vou para a rede, e isso me assusta um pouco”, explica Fernanda Nascimento, diretora da agência Stratlab Inteligência Digital. Ela sente que as redes estão ocupando seu tempo livre mais do que gostaria. “Quanto mais a gente consome, mais a gente quer consumir.”

Segundo a edição 2022 da pesquisa Global Digital Report, organizada pelas consultorias Hootsuite e We Are Social, o brasileiro é um dos povos que fica mais tempo em redes sociais no mundo. São 3 horas e 41 minutos todos os dias, contra uma média global de 2 horas e 27 minutos.

Zúñiga explica que a medida do “excesso” se dá quando estar nas redes sociais começa a atrapalhar outras atividades do cotidiano. Segundo ela, a Internet é sedutora. “As redes sociais foram feitas para estimular a produção de dopamina pelas pessoas, para nos dar prazer”, explica. “É por isso que a gente usa cada vez mais, e pode causar uma dependência se a pessoa não se policiar.”

Nascimento concorda: “Ali eu estou dentro de um espaço que eu conheço. Talvez ele faça sentir algum tipo de segurança que eu não reconheça racionalmente, mas que emocionalmente está instalado.”

Se esse uso excessivo pode ser angustiante para um adulto, nas crianças pode até impactar o seu rendimento escolar. Zúñiga diz que elas podem ainda se tornar irritadas, impacientes e até querer sair menos de casa e interagir com outras crianças de maneira presencial, preferindo fazer isso online.

Ela explica que não adianta simplesmente proibir o uso de recursos digitais pelas crianças, pois elas encontrarão uma maneira de burlar restrições muito estritas. Ao invés disso, os pais devem passar mais tempo com os pequenos, também acompanhando o que eles fazem no mundo digital e mostrando que há opções interessantes fora dele. “Eles devem convidar seus filhos a fazer atividades ao ar livre, ler um livro juntos, coisas que os estimulem a perceber que isso também dá prazer”, explica.

Os próprios adultos devem fazer mais atividades concretas para não perder o controle diante das redes digitais. Zúñiga diz que não adianta simplesmente desligar os aparelhos, pois isso pode resultar em uma sensação de se estar deixando de saber “algo importante”, uma síndrome conhecida pela sigla em inglês FOMO (em português, o “medo de estar perdendo algo”).

Contra isso, a pessoa deve resgatar aquilo que gosta, como trabalhos manuais, caminhar, cozinhar ou praticar esportes, “algo que ela goste de fazer e se sinta imersa naquilo”, explica a psicóloga. “Quando a gente está focado no que gosta, deixa de lado outras coisas, até mesmo a necessidade premente de estar nas redes sociais.”

Nessa semana, Nascimento prestou mais atenção para ficar menos nas redes sociais e conseguiu. “E eu fiquei bem melhor, menos estressada, menos nervosa, menos cansada”, conclui.

 

As redes metem o dedo em nossas “feridas morais”

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Com os números da vacinação crescendo e os de casos e mortes por Covid-19 diminuindo, a sociedade tenta reencontrar seu caminho para uma vida que se poderia chamar de “normal”. Mas, para algumas pessoas, isso pode ser bem difícil, pois foram “feridas em sua alma”, uma ferida moral, por motivos que vão muito além da pandemia. E o meio digital agrava esse quadro.

Não se trata de depressão (apesar de poderem estar associadas), nem de burnout, um esgotamento causado por trabalhar sem limites. Esses dois problemas de saúde mental explodiram durante os últimos anos, e muito se fala deles. Já as feridas morais são menos debatidas e, por isso mesmo, menos compreendidas. Mas seus efeitos podem ser igualmente perigosos.

As feridas morais surgem quando algo em que a pessoa acredita profundamente, seus valores ou sua visão de mundo são violentados em um nível ou com uma frequência que ela não consegue assimilar. Isso produz sentimentos negativos dolorosos, como impotência, culpa, vergonha, e, em casos mais graves, raiva e desorientação.

Isso pode acontecer quando o indivíduo faz ou deixa de fazer algo muito sério e que considera correto por imposição de regras ou de superiores. Esse dano também pode surgir quando a pessoa convive em um ambiente em que seus valores são atacados continuamente, sem que possa os defender. Justamente nesse segundo caso, as redes sociais podem funcionar como um agravante.

Não se trata de uma psicopatologia, pois a ferida moral vem de uma resposta humana normal a um evento traumático anormal. Em outras palavras, o problema vem de fora, não de dentro.

O termo foi cunhado na década de 1990 pelo psiquiatra americano Jonathan Shay a partir de narrativas apresentadas por veteranos de guerra com percepção de injustiça por negligência de suas lideranças militares. Em 2002, ele definiu “ferida moral” como decorrente da “traição do ‘que é certo’ em uma situação de risco por alguém que detém o poder.” Em 2009, o conceito foi ampliado por outro psiquiatra americano, Brett Litz, que o definiu como “perpetrar, deixar de prevenir ou testemunhar atos que transgridam crenças e expectativas morais profundamente arraigadas, que podem ser deletérios a longo prazo”.

Não é de se estranhar que essas pesquisas tenham surgido entre militares e, posteriormente, entre profissionais da saúde. Afinal, eles precisam lidar continuamente com decisões morais profundas.

Mas vivemos em um mundo polarizado moralmente. Ele é inundado por pessoas com um enorme poder concedido pelas redes para destruir valores sociais sob o falso pretexto da liberdade de expressão. E essas mesmas plataformas lhes permitem angariar multidões barulhentas em torno dessas ideias, tornando a situação de suas vítimas às vezes intolerável.

Sobre isso tudo, vem a pandemia de Covid-19. Literalmente centenas de milhares de famílias precisam enfrentar a dor das mortes de entes queridos por uma doença que “veio do nada” e levou, até agora, mais de 5 milhões de vidas. Há também aqueles que viram seus negócios ou empregos arruinados. Outros tantos desenvolveram depressão ou quadros de burnout.

O mundo que conheciam e sobre o qual construíram suas vidas pareceu ruir sob seus pés. Para agravar o quadro, alguns grupos de poder deflagraram uma guerra ideológica para lucrar com a desinformação. Como resultado, muitos sucumbiram diante da pressão das próprias dores que tinham que enfrentar, combinadas com um grande senso de desorientação moral.

Os especialistas afirmam que uma boa autoestima, resiliência e a crença na hipótese de um mundo justo ajudam a proteger alguém de feridas morais. Mas haja resiliência para enfrentar isso tudo!

 

Uma ferida de todos

Diante desse quadro, as feridas morais extrapolaram os grupos sociais que normalmente afetavam. Hoje virtualmente qualquer pessoa pode desenvolver esse quadro em algum grau. Mas alguns profissionais ficam ainda mais suscetíveis a ele.

A característica do mundo atual de apresentar velozmente às pessoas grande quantidade de informações, muitas vezes sem filtros, além de expor o trabalho desses mesmos indivíduos, torna sua situação bem mais dramática. Muitos desses profissionais vêm desempenhando suas funções sem qualquer rede de proteção e sob ataques crescentes desses mesmos grupos de poder, que inflamam as massas contra eles. É o caso, por exemplo, de profissionais de saúde, jornalistas e professores.

Já mencionei aqui, nesse espaço, quando Pedro Bial entrevistou William Bonner para seu programa. À determinada altura da conversa, que foi ao ar no dia 26 de maio do ano passado, o editor-chefe do Jornal Nacional explicou como tem dificuldade de ir até a uma padaria, não pelo assédio dos fãs, mas pela hostilidade de haters. Morador do Rio de Janeiro, em um passado recente, teve que viajar de carro todos os finais de semana para visitar o pai doente em São Paulo, porque não conseguia mais pegar um avião. E isso tudo é resultado de uma sistemática campanha do governo para atacar o jornalismo profissional.

Isso aparece com mais força no documentário “Cercados”, produzido pelo Globoplay. Ele mostra o cotidiano do trabalho jornalístico (e, em alguns momentos, também o de profissionais de saúde) no auge da pandemia e como, apesar de estarem buscando fazer o certo, eram continuamente atacados por parte das autoridades e da população.

Muitos desses profissionais desenvolveram severas feridas morais. Eles lidavam com a morte cotidianamente, de uma maneira para a qual não haviam sido preparados. E faziam isso justamente para proteger a vida da população. Entretanto, em troca por essa função mais que louvável, recebiam todo tipo de hostilidade, até mesmo vindas da autoridade máxima do país ou em seu nome.

O mesmo se dá com os educadores. Assim como os jornalistas, os professores já vinham sob forte ataque em suas funções muito antes da pandemia. Mas a crise sanitária fez com que eles aumentassem exponencialmente, mesmo tendo que se desdobrar para continuar oferecendo o melhor a seus alunos, normalmente sem qualquer apoio.

As redes sociais têm um papel central nessa crise, pois elas oferecem todas as ferramentas usadas por esses detratores para ampliar a sua voz e os ataques. E, como sugerem os “Facebook Papers”, os milhares de documentos vazados pela ex-gerente do Facebook Frances Haugen, a empresa faz muito menos que pode ou deve.

Muitos profissionais poderiam simplesmente mandar tudo às favas, diante de tamanha ingratidão, e muitos fizeram exatamente isso. Jamais os julgaria por essa decisão, pois a pressão pode se tornar insuportável. Por outro lado, tantos outros persistem heroicamente, pois não conseguem abandonar aquilo que é certo e que pode resgatar seu bairro, o país e o mundo desse período de trevas, mesmo que isso lhes custe muito.

Especialistas afirmam que as feridas morais são curadas quando o indivíduo é ouvido e aceito, reencontrando seu lugar na sociedade. Apesar de a maior parte da literatura se aplicar a ex-combatentes, isso vale para qualquer profissional no atual cenário. Os feridos precisam ser aceitos pelo que fazem, valorizados e respeitado por isso.

No final das contas, um dos melhores tratamentos contra feridas morais consiste em enfrentar persistentemente o pior que a humanidade tem para oferecer. Mas essa tarefa é muito pesada. Empresas, famílias e toda a sociedade precisam se empenhar nisso.

Se profissionais de saúde, jornalistas e professores ficarem demasiadamente feridos, todo a sociedade perecerá, e não por Covid-19, mas de uma dor imobilizante na alma. Não é coincidência que as nações mais desenvolvidas sejam aquelas em que essas carreiras são muito valorizadas e admiradas por todos.

 

Guarda da série “Round 6”, que se tornou a mais vista na Netflix, cujos jogos violentos estão sendo simulados em escolas

O que pode haver de mortal em brincadeiras infantis

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Na semana passada, “Round 6” se tornou a série mais vista da história da Netflix. Mais de 111 milhões de pessoas assistiram à produção sul-coreana nas primeiras quatro semanas no ar. Ela retrata uma macabra competição entre 456 endividados, que se dispõem a participar de versões de seis jogos infantis. O vencedor leva um prêmio equivalente a R$ 213 milhões. Todos os demais morrem ao longo dos jogos.

Mas algo sinistro se formou em torno da série, indicada para maiores de 16 anos. Crianças de vários países, inclusive do Brasil, estão simulando a competição nas escolas. No caso, os perdedores são surrados pelos vencedores.

Esse comportamento não chega a ser surpreendente, e é um reflexo do mundo em que vivemos. E, ao contrário do que alguns estão se apressando a dizer, a culpa não é da Netflix, nem dos produtores da série. Mas temos que entender o problema para resolvê-lo.


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Originalmente escrito em 2008, “Round 6” se tornou um fenômeno de mídia. Além da enorme audiência na plataforma de streaming, seus atores, até então desconhecidos fora da Coreia do Sul, ganham milhões de seguidores nas redes sociais.

Também é um fenômeno comercial. Os tênis brancos Slip-On, da marca Vans, usados pelos jogadores, viram suas vendas aumentarem em incríveis 7.800%. Além disso, o uniforme dos guardas da série se tornou a fantasia mais buscada. Isso lembra o que aconteceu com o macacão vermelho e a máscara de Salvador Dali usados pelos assaltantes de “La Casa de Papel”, outra série da Netflix, há quatro anos.

Diante desse frenesi, seria, portanto, inocência assumir que crianças e adolescentes não assistiriam à série apenas pela sua classificação etária. Muitos fazem isso até junto com seus pais, o que, dentro das circunstâncias, pode até uma alternativa menos pior, se bem aproveitado esse convívio em torno da história.

Todos nós nascemos com capacidades para discernir o certo do errado e o verdadeiro da fantasia. Mas essa habilidade só amadurece ao longo dos anos, precisa ser “treinada” com estímulos, com exemplos e com explicações de pessoas e de instituições que os pequenos têm como referência, como seus pais e a escola.

“Round 6” (que no resto do mundo é chamado de “Squid Game”, ou “Jogo da Lula”) obviamente é uma fantasia perturbadora. Traz uma feroz crítica social sobre a diferença entre as classes sociais e a dependência que as pessoas desenvolvem do dinheiro, até o ponto de algumas morrerem por ele em situações extremas.

Fica a pergunta: isso poderia acontecer de verdade em algum lugar do mundo?

 

Violência relativizada e normalizada

Às vezes, tenho a impressão de que o mundo ando louco demais.

Acho pouco provável que alguém se dispusesse a criar uma “brincadeira” tão distópica, em que pessoas morressem para sua diversão. Se bem que já tivemos algo assim em vários lugares do mundo ao longo da história, como nas arenas romanas.

Por outro lado, não me espantaria se, caso isso se concretizasse, um bando de malucos topasse arriscar a própria vida pela adrenalina e pelo dinheiro. Como sempre abordo nesse espaço, a dinâmica das redes sociais vem criando uma geração de pessoas “viciadas” em dopamina e com uma percepção fugaz da própria realidade, sempre a busca de novos estímulos.

Se isso impacta decisivamente até os adultos, adolescente e crianças se tornam presas fáceis desse ambiente. Seu senso crítico ainda não está desenvolvido para digerir tantos estímulos. Eles não têm as experiências de vida para colocar tudo na sua devida perspectiva.

No caso de “Round 6”, a profundidade da crítica social desaparece, permanecendo apenas o jogo puro. E a própria violência, que culmina na morte de pessoas, fica relativizada e perde força. Corre-se o risco de achar que tudo aquilo é normal.

O criador de “Round 6”, Hwang Dong-hyuk, disse que estava perplexo que crianças estivessem assistindo à série. Em entrevista a uma emissora sul-coreana, ele disse que espera que os pais e os professores ao redor do mundo sejam prudentes, para que os pequenos não sejam expostos a esse tipo de conteúdo.

 

Como proteger as crianças

“Round 6” é a bola da vez, mas, nos últimos anos, as crianças vêm sendo impactadas por diferentes conteúdos que levam muitas delas a dor, violência e até morte.

Em 2017, a “Baleia Azul” teve grande repercussão. Consistia de 50 tarefas que adolescentes recebiam de “curadores”, envolvendo automutilação e culminando no suicídio. Até hoje, há controvérsias sobre sua origem. Aparentemente, no início, não passava de um boato. Entretanto, diante da exposição que teve, acabou se “concretizando”, e várias mortes estariam associadas à Baleia Azul.

Dois anos depois, surgiu a Momo, uma boneca fantasmagórica que estaria invadindo o YouTube Kids para convencer crianças a fazer coisas como se cortar e até mesmo matar os próprios pais. Não passava de uma combinação de “fake news” com “efeito manada”, mas o movimento criado levou algumas crianças a realmente se automutilar.

Não podemos deixar de mencionar a suposta influência maligna dos games. Ela ressurge em casos de adolescentes que matam colegas, como aconteceu em 2019 na escola estadual Professor Raul Brasil, na cidade de Suzano, na Grande São Paulo. Mas estudos sérios demonstram que esses jogos não incentivam assassinatos reais. Pelo contrário, profissionais de psicologia explicam que esse tipo de criminoso é movido por outros problemas, muito mais profundos, que ele já carrega dentro de si.

Muitos propõem que “Round 6” seja sumariamente retirada do ar. Isso é algo totalmente inócuo: o buraco é muito mais embaixo!

Especialistas da área de saúde mental e de educação afirmam que a solução desses problemas passa por pais mais presentes na vida de seus filhos, para lhes oferecer carinho e orientação diante de tantos estímulos. Além disso, devem se unir a professores para ajudar a escola na tarefa de educar crianças e adolescentes.

Proibir o acesso raramente é eficiente. As crianças sempre darão um jeito, especialmente aquelas que têm acesso a smartphones e computadores. Mesmo que não vejam a série na Netflix, algumas cenas aparecem fora do contexto, no YouTube e até no TikTok. Além do mais, tudo que proibido desperta ainda mais o interesse.

Pais e educadores devem abordar esses temas com sinceridade e paciência, para explicar às crianças o que tudo aquilo significa e por que não devem fazer algumas coisas. Crianças, mesmo as pequenas, têm uma capacidade de compreensão que pode surpreender os próprios pais, quando eles se dispõem a oferecer essa orientação.

Elas devem se sentir acolhidas pelos seus pais. E esses devem criar, desde pequenos, um canal sincero de confiança com seus filhos, para que se sintam à vontade para compartilhar suas dúvidas e seus medos. Mas é importante entender que a confiança é uma via de mão-dupla: os pais também devem oferecer confiança e ser confiáveis.

A educação midiática se torna cada vez mais crítica em nosso mundo. Pais e educadores têm um papel central nisso. E devem sempre pedir ajuda a profissionais, como psicólogos, quando necessário.

Mas nada substitui o carinho, a presença e a confiança entre pais e filhos.