guerra

Soldados ucranianos exibem drone russo capturado em agosto passado - Foto: Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia/Creative Commons

Como vencer uma guerra sem disparar um único tiro

By | Tecnologia | No Comments

Para mim, as guerras representam a falência da humanidade. Quando governos recorrem a armas para impor pontos de vista ou obter ganhos às custas de incontáveis vidas humanas e enorme destruição, algo dramaticamente deu errado, partindo para a força. A tecnologia vem abrindo novos caminhos para a guerra, em que as armas dividem seu protagonismo com o mundo digital.

Talvez cheguemos a um cenário em que se vença um conflito sem que nenhum tiro seja disparado, o que não quer dizer que não mais existirão prejuízos e sofrimento. Ainda não estamos lá, mas a brutal invasão russa na Ucrânia fez dos dois anos desse teatro de guerra um campo de testes tecnológicos de drones, novos materiais e inteligência artificial para fins militares, que estão transformando o conceito da guerra.

Ela sempre esteve associada à ciência, para o desenvolvimento de melhores estratégias e armamentos. Grandes avanços para a humanidade também se derivaram disso, como a penicilina e até os fornos de micro-ondas.

Agora a Ucrânia vivencia uma guerra de algoritmos, inteligência artificial e satélites. O desconhecido se torna claro, previsível e muitas vezes evitável. Por outro lado, tropas e civis se tornam mais vulneráveis. Generais criam assim suas estratégias com o apoio de algoritmos preditivos e de armas que cumprem “suas missões” sozinhas.

Mas então por que o conflito da Ucrânia chegou a um impasse, sem conclusão aparente? Por que as cidades seguem sendo destruídas e as pessoas continuam sendo mortas? Como se pode ver, nesse videogame, ninguém tem vida extra.


Veja esse artigo em vídeo:


A resposta passa, em parte, por essas novas tecnologias serem relativamente portáteis, baratas e disponíveis para ambos os lados do conflito. Em janeiro, dois comandantes veteranos, o general Yuri Baluievski, ex-chefe do Estado-Maior russo, e o general Valeri Zaluzhni, chefe do Estado-Maior ucraniano, fizeram publicações em que abordam a digitalização da guerra, respectivamente na publicação russa “Army Standard” e no site do Ministério de Defesa da Ucrânia.

As tropas de ambos os países estão aprendendo as mesmas lições. Entre elas, está que a tecnologia favorece mais a defesa. A exceção são os drones, veículos aéreos e aquáticos não-tripulados, que conseguem causar danos aos inimigos de maneira barata, eficiente e preservando tropas, enquanto tanques, aviões e navios têm sido mais facilmente interceptados. Eles são as estrelas desse conflito sangrento.

Não se trata dos sofisticados drones militares americanos. Os veículos usados no conflito são baratos, às vezes equipamentos de mercado, que podem ser adquiridos em grande quantidade. Eles são modificados para carregar explosivos e para tentarem ser menos suscetíveis aos sistemas do inimigo que embaralham as frequências que usam, fazendo com que os pilotos percam seu controle. E nessas contramedidas digitais, a Rússia vem levando vantagem, com sua massiva máquina de guerra.

Mas uma nova geração de drones tenta resolver esse problema. Graças à inteligência artificial, eles são capazes de cumprir sua missão, mesmo que seu piloto remoto perca o contanto com eles. Nesse caso, o sistema no próprio veículo assume o controle e faz tudo que for necessário para atingir seu alvo, mesmo que ele se mova.

Nem sempre dá certo. Em uma simulação no ano passado, um “drone inteligente” atacou seu próprio centro de comando depois de receber dele um comando para cancelar a missão. O robô entendeu que essa ordem atrapalhava o objetivo de destruir o inimigo, e por isso atacou a própria base. Felizmente era apenas uma simulação.

Às vezes, soluções simples podem ser mais eficientes. As armas antigas, sem inteligência ou guiadas por GPS, ganham uma sobrevida com o apoio da tecnologia, que indica com precisão onde os disparos devem acontecer. Os ucranianos também têm usado celulares espalhados pelo território para captar o zunido típico dos drones. Dessa forma, identificam sua aproximação melhor que caros sistemas de radar.

Smartphones nas mãos dos soldados tornaram-se, por outro lado, uma perigosa ameaça a sua segurança. A Ucrânia infligiu pesadas baixas aos russos ao atacar locais em que identificaram grande concentração de sinais de celulares, WiFi ou Bluetooth.

 

Uma guerra sem disparos

A guerra do futuro tem outras formas, igualmente ligadas ao avanço da tecnologia. Ela pode viabilizar confrontos que acontecerão sem disparos e uso de tropas militares, mas ainda assim criarão grandes prejuízos ao inimigo.

Além dos já citados drones, mais fáceis de compreender e implantar, Forças Armadas de diversos países investem no desenvolvimento de ataques cibernéticos, capazes de inutilizar digitalmente a infraestrutura de inimigos. Em um mundo cada vez mais digital, isso pode colocar uma nação de joelhos em curtíssimo tempo. Militares estão atentos a isso e tratam de proteger seus equipamentos. Mas atacar sistemas civis, muito mais vulneráveis, podem trazer resultados catastróficos.

A inteligência artificial, especialmente modelos de linguagem amplos (como o ChatGPT), está sendo usada para identificar fragilidades em inimigos, analisar fotos de satélite e até decifrar suas mensagens cifradas, o que pode conceder uma vantagem tática incrível. Isso teve um papel decisivo na vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, quando uma equipe de matemáticos britânicos, liderada por Alan Turing, construiu um rudimentar computador mecânico capaz de decifrar a máquina Enigma, usada pelos nazistas para suas transmissões militares codificadas.

Rompendo a tradição de se manterem afastadas de desenvolvimentos militares, algumas big techs e startups americanas, como Microsoft, Amazon Web Services, OpenAI e Scale AI, têm trabalhado com os militares do país para que sua tecnologia seja usada com esse fim. O Google também fazia isso, mas encerrou sua colaboração com o Pentágono em 2019, após protestos de seus funcionários.

A mistura de IA com armamentos desperta medo em muita gente, alguns oriundos da ficção científica, como nos filmes do “Exterminador do Futuro”. Espero que não cheguemos àquilo, mas uma guerra cibernética pode envolver a contaminação de bases de dados dessas plataformas no inimigo, para que elas tomem decisões erradas e potencialmente devastadoras.

O militar prussiano Carl Von Clausewitz (1790-1831), especialista em estratégias militares, escreveu em sua obra “Sobre a Guerra” (1832) que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Segundo ele, trata-se de “um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade.”

Para isso, ao longo da história, o ser humano usou porretes, flechas, rifles, canhões e bombas, armas químicas e biológicas, e dispositivos nucleares. A tecnologia da vez vem do mundo digital. Mas qualquer que seja o meio, a guerra continua sendo o que é, conduzida por homens que desprezam qualquer vida que não seja a sua própria, para atingir objetivos no mínimo questionáveis.

 

Ilustração oficial do Comitê Nobel no anúncio do Nobel da Paz de 2023 concedido à iraniana Narges Mohammadi - Foto: reprodução

Como a verdade desejável para alguns pode ser um ato abominável para outros

By | Educação | No Comments

Provavelmente você a as pessoas que conhece defendem os direitos das mulheres. Isso parece ser algo tão óbvio, que o oposto nem passa pela sua cabeça. Mas você se surpreenderia com a quantidade de pessoas que discordam disso, ainda que parcialmente, em pleno ano de 2023! Como justificar então um Estado e uma parcela significativa de sua população negando direitos básicos às mulheres?

Tivemos um bom exemplo na sexta, quando o Comitê Norueguês concedeu o Prêmio Nobel da Paz à iraniana Narges Mohammadi, pelo seu trabalho como defensora dos direitos das mulheres. Ela está presa no seu país, sentenciada a 31 anos de reclusão e a 154 chibatadas. O governo de Teerã protestou contra a escolha, classificando-a como “tendenciosa e política”, uma “pressão do Ocidente” que favorece alguém que, para eles, praticou “reiteradas violações da lei e cometeu atos criminosos”.

Como se pode ver, o “óbvio” pode ser construído. O fenômeno de convencimento de massas existe desde que os humanos desceram das árvores e se organizaram em sociedade, e seus métodos vêm se refinando de lá para cá. Seu ápice se deu com as redes sociais que manipulam bilhões, mas a inteligência artificial pode sofisticar esse processo ainda mais.

Agressões contra mulheres podem parecer um exemplo extremo, mas não podemos esquecer que isso acontece diariamente no Brasil. E, apesar de aqui ela não ser apoiada pelo Estado, vale lembrar que apenas recentemente, no dia 1º de agosto, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra” como defesa para feminicídio e outras agressões contra mulheres.


Veja esse artigo em vídeo:


É interessante notar que, antes da Revolução Islâmica de 1979, liderada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, o Irã era uma das nações mais progressistas do Oriente Médio. Comandado pelo xá Mohammad Reza Pahlavi, o país desfrutava de um razoável desenvolvimento econômico e tecnológico, com avanços na industrialização, na educação e na saúde pública. Havia modernização do código de vestimenta, a promoção dos direitos das mulheres e a ocidentalização da cultura.

Mas nem tudo eram flores. O governo do monarca era autoritário e corrupto, o que gerava um descontentamento crescente na população. Khomeini soube capitalizar isso com apelo religioso, tornando-se o principal opositor ao xá, que acabou deixando o país em 1979. A população então votou para tornar o Irã uma república islâmica teocrática e antiocidental, tendo o aiatolá como líder supremo do país.

A Revolução Iraniana é apenas um exemplo entre incontáveis casos de persuasão de grandes massas populares, alguns por motivos nobres, outros para satisfação de desejos mesquinhos de alguns grupos, muitas vezes ligados à política.

Coincidentemente, na semana passada terminei de rever a série “Irmãos de Guerra” (“Band of Brothers”, 2001) na Netflix. Ela conta a história real das missões de um grupo de paraquedistas americanos na Segunda Guerra Mundial, desde o “Dia D” até o fim do conflito. Menos preocupada na ação e mais em retratar os dramas humanos da guerra, a série se presta muito bem a nos fazer pensar o que leva milhões de pessoas a embarcar voluntariamente em um confronto assassino e suicida ao mesmo tempo, com controle mínimo das próprias ações.

Cada episódio começa com breves entrevistas atuais com os próprios soldados representados na produção. No penúltimo episódio, um deles afirma: “Nós pensávamos que os alemães eram o pior povo do mundo, mas, com o desenrolar da guerra, descobrimos que não era bem aquilo.” Outro sugere que “muitos daqueles soldados alemães, em circunstâncias diferentes, poderiam ter sido bons amigos meus, poderíamos ter muito em comum”.

Mas na loucura da guerra, a preocupação de todos era apenas “matar o inimigo”. Se eles pudessem pensar em tudo aquilo, talvez não houvesse guerra por falta de tropas.

 

O poder da narrativa única

Precisamos ter muito cuidado antes de apontar dedos. Aqueles que nos querem convencer de algo abusam do recurso de silenciar ou desqualificar vozes dissonantes, pois seu público não pode ter acesso “ao outro lado” e conhecer seus argumentos. A narrativa única é essencial para o convencimento. Por isso, costuma-se dizer que, “em uma guerra, a verdade é a primeira vítima”.

Temos experimentado isso nas últimas eleições, com as redes sociais sendo usadas pelos diferentes grupos políticos para manter seu “curral eleitoral” dentro de uma bolha que apenas exalta suas virtudes e demoniza seus adversários. A imprensa profissional e livre, nesse e em todos os casos de convencimento de massa, deve ser combatida, pois ela insiste em explicar a realidade à população.

No final, tudo recai sobre nossos valores. A escolha em quem votaremos afeta nosso cotidiano pelos próximos quatro anos, mas é algo bem menor que a decisão de ir para uma guerra pronto para matar ou morrer, ou apoiar um regime que abertamente assassina opositores e violenta mulheres.

É verdade que o governo teocrático iraniano foi instalado por escolha popular, o que lhe dá legitimidade. Ele ascendeu ao poder atendendo a necessidades e desejos dos iranianos da década de 1970, trabalhando habilmente, com aspectos religiosos, suas emoções e um apelo à construção da identidade de um povo.

Mas tudo tem limites e eles começam a aparecer mais fortemente à medida que o tempo passa. O regime dos aiatolás está no poder há 44 anos, mas vem enfrentando oposição aberta nos últimos tempos, que é reprimida com grande violência. Os maiores movimentos contrários aconteceram no ano passado, depois que a Polícia da Moralidade matou em setembro Mahsa Amini, de 22 anos, por deixar uma mecha de seu cabelo aparecer fora do seu véu.

Isos é demais, até mesmo para uma sociedade oprimida pelo medo ou cega pela religião. O regime dos aiatolás sabe que, da mesma forma que foi guindado ao poder por revoltas populares contra o xá Reza Pahlavi, pode ser apeado dali assim. Por isso, não pode dar espaço a vozes contrárias ou a uma população bem-informada. Nesse cenário, o Prêmio Nobel da Paz para Narges Mohammadi funciona como um perigoso convite a fazer as pessoas pensarem.

Assim caminha a humanidade! Quero crer que, na média, evoluímos, apesar de enormes retrocessos que teimam em aparecer de tempos em tempos, como a ascensão do nazismo e de outros regimes totalitários políticos ou religiosos.

Crescemos mais fortemente quando a sociedade tem acesso amplo a uma educação de qualidade e a uma imprensa forte, profissional e livre. Precisamos desses recursos! Afinal a verdade costuma fugir dos extremos e abraçar o diálogo e o respeito.

 

Tom Cruise viveu pela segunda vez o intrépido piloto da Marinha dos EUA Pete Mitchell, em “Top Gun: Maverick” (2022) - Foto: divulgação

Inteligência artificial pode mandar “Top Gun” para o museu

By | Tecnologia | No Comments

Em 1986, plateias do mundo todo prenderam a respiração diante das acrobacias aéreas de Tom Cruise nas telas de cinema em “Top Gun”. Ele repetiu a dose em “Maverick”, a segunda maior bilheteria de 2022, rendendo US$ 1,4 bilhão, logo atrás de “Avatar 2”. Agora a inteligência artificial pode fazer essas peripécias virarem peças de museu, ao tornar pilotos de caça obsoletos e desnecessários.

Duas notícias recentes, uma do The New York Times e outra do The Washington Post, revelam planos dos militares de usar essa tecnologia em novas gerações de aviões e de drones. Ela seria capaz de tomar decisões mais rápidas e precisas que os pilotos, até os mais experientes.

A ideia é controversa. Muito se tem debatido sobre a substituição das mais diversas categorias profissionais por robôs, considerando o impacto social dessa mudança. Mas o que se propõe agora é uma máquina tomar decisões que efetivamente visam a morte de pessoas.

Diversos aspectos éticos são levantados nessa hora. Os próprios pilotos veem isso com ressalva, e não apenas porque podem perder seu emprego daqui um tempo. Afinal, uma máquina pode decidir sobre a vida ou a morte de um ser humano? E se isso realmente acontecer no controle de aviões de combate, quanto faltará para vermos robôs policiando nossas ruas e tomando as mesmas decisões letais por sua conta na vizinhança?


Veja esse artigo em vídeo:


Não estamos falando da atual geração de drones militares, que, apesar de úteis, são bem limitados. Um bom exemplo do que vem por aí é o veículo aéreo não tripulado experimental XQ-58A, conhecido como “Valkyrie”, da Força Aérea americana. Ele, se parece muito mais a um caça furtivo futurista, apesar de ser bem menor que os aviões de combate. É impulsionado por um motor de foguete e é capaz de voar de um lado ao outro da China, carregando munições poderosas.

Mas seu grande diferencial é o controle por inteligência artificial, podendo tomar decisões sozinho, apesar de os militares afirmarem que só executará ações letais se autorizado por um ser humano. Ele pode voar diferentes tipos de missões, inclusive apoiando pilotos em seus caças, aumentando o sucesso e preservando suas vidas.

Como sempre, uma guerra não se ganha apenas com os melhores soldados, mas também com a melhor tecnologia. Mas até agora a decisão de matar sempre recaiu sobre os primeiros. O que pode estar diante de nossos olhos é o surgimento de armas que tomem essa decisão seguindo seus critérios, um ponto sensível para os EUA, pelo seu histórico de ataques ilegais com drones convencionais que mataram civis.

Diante disso, o general Mark Milley, principal conselheiro militar do presidente americano, Joe Biden, afirmou que os EUA manterão “humanos à frente da tomada de decisões”. Ele recentemente conclamou forças armadas de outros países a adotar o mesmo padrão ético.

Nesse ponto, caímos em um outro aspecto crítico desse avanço. Países que adotem essas “boas práticas” poderiam ficar em desvantagem diante de outras potências militares e tecnológicas não tão “comprometidas”, com o maior temor recaindo sobre a China. Como a guerra é, por definição, algo “sujo”, seguir as regras poderia então criar uma desvantagem catastrófica.

Outra mudança trazida pela IA ao tabuleiro armamentista é a entrada de novas empresas fornecedoras de equipamentos. No caso da Força Aérea americana, dois nomes surgem quando pensamos na indústria de caças: a Lockheed Martin e a Boeing. Esses casamentos comerciais são tão antigos e poderosos que sua tecnologia jamais chega, por exemplo, a países menores ou –pior– a grupos guerrilheiros.

Com a pulverização de drones com IA relativamente baratos, muitas outras empresas passam a disputar esses bilionários orçamentos. O “Valkyrie”, produzido pela Kratos (fundada em 1994) custa cerca de US$ 7 milhões. Pode parecer muito, mas é bem menos que os US$ 80 milhões de um F-35 Lightning II, da Lockheed Martin. Outros modelos podem custar ainda menos, na casa de US$ 3 milhões.

O receio é que esses fabricantes passem depois a oferecer tecnologia militar de ponta a terroristas e ditadores. E aí o medo de maus usos pela China vira “café pequeno”.

 

Campo de testes

O poder da inteligência artificial contra exércitos poderosos está sendo colocado à prova na invasão da Ucrânia. Seu exército vem usando drones bem mais simples que os citados, mas que já contam com recursos de IA, para atacar tropas russas. Mesmo quando essas aeronaves perdem o contato com seus pilotos remotos, devido aos sistemas de interferência do inimigo, ainda completam sua missão por conta própria.

De fato, a Ucrânia vem se tornando um frutífero campo de testes desses armamentos, que vêm sendo produzidos aos milhares. Além de poderem refinar seus equipamentos em situações reais de combate, os fabricantes podem fazer testes que dificilmente podem acontecer em um país que não esteja em guerra.

Os militares sabem que a inteligência artificial toma decisões erradas. Basta ver as falhas –algumas fatais– de carros autônomos nos últimos anos. Mesmo a tecnologia militar sempre sendo muito mais refinada e cara que a civil, não há garantias quanto a sua precisão. E há outros aspectos a serem considerados.

O primeiro é que a IA pode ser excelente em decisões a partir de padrões conhecidos, mas pode se confundir bastante diante do desconhecido e do inesperado, algo que permeia qualquer campo de batalha. Além disso, máquinas não possuem uma bússola moral, que norteia algumas das melhores decisões de um soldado.

É inevitável pensar no filme RoboCop (1987), em que um policial dado como morto é praticamente transformado em um robô. Apesar de ser obrigado a seguir diretivas em seu sistema, o que o tornava realmente eficiente era a humanidade que sobreviveu em seu cérebro. Isso lhe permitia vencer robôs de combate mais poderosos.

Tudo isso me faz lembrar da Guerra do Golfo, que aconteceu entre 1990 e 1991, quando os americanos invadiram o Iraque. Os militares invasores exterminavam o inimigo de longe, quase sem entrar em combate. Na época, um especialista criticou “soldados que querem matar, mas não querem morrer”.

A inteligência artificial pode potencializar isso. É claro que ninguém quer morrer e todos querem vencer um conflito, de preferência logo. Mas quem ganha algo com isso, além da indústria armamentista? Se a Rússia tivesse essa tecnologia, talvez a Ucrânia tivesse deixado de existir em poucas semanas dessa nefasta invasão atual.

Esse é um dos casos em que a inteligência artificial nunca deveria ser usada. Mas seria uma ilusão pueril acreditar que isso não acontecerá. Talvez o futuro da guerra pertença mesmo às máquinas autônomas. Só espero que isso não aconteça também em policiais-robôs nas ruas de nossos bairros.

 

Mark Zuckerberg, CEO da Meta: e-mails vazados da empresa propunham aceitar ações violentas contra russos durante a guerra

Como seria nossa vida sem as redes sociais

By | Tecnologia | No Comments

Não é exagero afirmar que as redes sociais estão entre os produtos de maior sucesso da história. Poucas criações foram usadas por tanta gente, ocupando um espaço tão relevante em suas vidas. O que aconteceria então se, de repente, essas plataformas digitais fossem sumariamente tiradas de nós?

De certa forma, é o que os russos estão descobrindo agora. A combinação da censura imposta por Vladimir Putin com o posicionamento das próprias empresas contra a guerra na Ucrânia está bloqueando parcial ou completamente o acesso a redes no país. Por exemplo, desde esta segunda, a Rússia restringe o acesso ao Instagram, como já vem fazendo com o Facebook e com o Twitter há dez dias.

A guerra não acontece apenas no campo de batalha. Mas agora, os mecanismos para o domínio da narrativa, que sempre foram importantes em qualquer conflito, afetam diretamente o cotidiano digital de pessoas e empresas.


Veja esse artigo em vídeo:


Uma polêmica decisão da Meta, empresa dona do Facebook, jogou lenha nessa fogueira: e-mails internos vazados na semana passada indicavam que a companhia decidiu permitir que usuários em alguns países, incluindo Ucrânia e a própria Rússia, defendam atos de violência contra russos no contexto da guerra. Contrariando suas próprias políticas também aceitará temporariamente publicações que defendam a morte do presidente da Rússia, Vladimir Putin, ou de Belarus, Alexander Lukashenko.

A Meta não comentou o assunto até o momento.

Isso fez o Kremlin classificar a empresa como uma “organização extremista”, bloqueando o Instagram. Facebook e Twitter já vinham sendo restritos desde o dia 4, por estarem limitando o acesso a veículos de comunicação governamentais russos, além de marcar alguns de seus conteúdos como “fake news”.

Outras redes digitais, como o YouTube, estão impedindo que canais que apoiem Putin possam ganhar dinheiro com suas publicações nessas plataformas. O TikTok, por sua vez, está proibindo que usuários na Rússia façam publicações, pois o governo ameaça com prisões de até 15 anos a quem publicar conteúdo que o Kremlin considere como falsas. Ainda assim, YouTube e TikTok continuam acessíveis na Rússia até agora.

É incrível ver como o poder dessas empresas chega a rivalizar com o de governos, inclusive o da maior nação do mundo, dono do principal arsenal nuclear do planeta. E quem lhes garante isso somos nós mesmos, com nosso uso incessante de seus produtos, que supostamente deixam nossas vidas mais divertidas e mais fáceis. De fato, muitos profissionais e empresas dependem hoje umbilicalmente desses recursos para a manutenção de seus negócios.

Não é pouca coisa: segundo o relatório Digital 2022 Global Overview, publicada pelas consultorias Hootsuite e We Are Social, o mundo terminou 2021 com 4,62 bilhões de usuários de redes sociais, que ficam, em média, 2 horas e 27 minutos nessas plataformas todos os dias. No Brasil, usamos ainda mais: 3 horas e 41 minutos em média!

Vale notar que a Internet russa sempre foi bastante livre, apesar do caráter autoritário de Putin. Isso é muito diferente do que se vê em uma de suas principais aliadas: a China. Lá o governo sempre controlou a rede com mão de ferro. Tanto que as grandes plataformas digitais sempre foram restritas no país. Os chineses têm que se contentar com produtos locais, que são censurados e adaptados à sua cultura.

Portanto, cabe uma pergunta: e se o Brasil, de repente, banisse o Facebook, o Instagram, o WhatsApp, o Twitter, o YouTube e o Google, como ficaria sua vida?

 

Censura ou proteção?

O WhatsApp já foi bloqueado quatro vezes no Brasil, por determinação da Justiça: duas em 2015 e duas em 2016. De lá para cá, o relacionamento da Meta com a Justiça brasileira melhorou. Hoje ela faz parte de um acordo contra a desinformação, especialmente em um cenário eleitoral, uma iniciativa que também conta com outras empresas, como Google, Twitter e TikTok.

Desde o ano passado, o Telegram está sob os holofotes por se recusar a colaborar nesse sentido, o que o deixa em risco de ser bloqueado no Brasil. Com sua política de não interferir nas publicações de seus usuários, tornou-se a principal ferramenta de desinformação no mundo. Assim muita gente ficou surpresa quando a plataforma suspendeu a conta do blogueiro Allan dos Santos no último dia 26, atendendo a pedido do STF (Supremo Tribunal Federal) no seu combate às fake news.

Muitos questionam qual a diferença de um eventual bloqueio do Telegram no Brasil do que se pratica agora na Rússia. Afinal, os mecanismos pareceriam os mesmos, executados pelos poderes centrais de cada país. Mas existe uma diferença essencial: na Rússia, o bloqueio está sendo feito para permitir que o governo continue disseminando sua desinformação; aqui, o bloqueio aconteceria para justamente evitar a desinformação.

A legislação brasileira oferece bons recursos para esse combate: precisam apenas ser aplicados. O Marco Civil da Internet é um ótimo exemplo: equilibrado e construído a partir de um debate amplo com a sociedade. Por outro lado, vemos iniciativas para novas leis, que, apesar de bem intencionadas, estão sendo feitas sem o devido debate, deixando brechas que podem levar a censura de conteúdos legítimos que desagradem o governo e à liberação do que lhe interesse, mesmo que ruim. É o caso do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como o “Projeto de Lei das Fake News”.

A “virtualização” de nossas vidas acontece com força desde que a Internet comercial foi lançada, em 1994. A popularização dos smartphones, há uma década, acelerou muito esse processo e a pandemia reforçou isso ainda mais.

No momento de distanciamento social mais severo, no primeiro semestre de 2020, muitas pessoas e muitas empresas só conseguiram continuar operando graças às redes sociais. Apesar da grande dor que isso causou inicialmente, muitas desenvolveram novos e poderosos recursos de relacionamento com seu público. Tanto que hoje, com tudo já reaberto, continuam com essas boas práticas.

Fica difícil imaginar alguém completamente fora do mundo digital hoje. É possível não se gostar de uma ou outra plataforma, mas sempre existe aquela que combina mais com cada um de nós, trazendo benefícios reais a nossas vidas. Por isso, estar completamente off line, faz de alguém quase um “cidadão de segunda categoria”, pelos recursos que deixa de usufruir.

Temos que usar o que essas plataformas nos oferecem, e ficar atentos aos riscos associados a elas. Da mesma forma, temos que cuidar para não abusar dos poderes que elas nos dão, que poderia causar restrições evitáveis por serem transformadas em armas para se atacar os direitos alheios.

As redes sociais são um caminho sem volta! Usemos, então, seus recursos com inteligência.

O negócio agora é matar o mensageiro

By | Jornalismo | No Comments

Alguns acontecimentos recentes demonstram que muita gente, diante da incapacidade de resolver problemas ou do simples desejo de manter as coisas como estão, prefere que a verdade não apareça. Esse comportamento reflete um retrocesso social, em que alguns grupos entendem que podem impor sua visão de mundo sem diálogo.

O primeiro foi o endurecimento da censura do governo russo. Veículos de comunicação foram proibidos de trazer notícias sobre a guerra, e o Facebook e o Twitter foram bloqueados na Rússia. Enquanto isso, na Ucrânia, jornalistas ingleses foram baleados por milicianos russos.

Mas se engana quem acha que isso acontece apenas em terras distantes e por causa da guerra. Na quarta, uma equipe da Rede Globo foi agredida por um homem em São Paulo, que os atacou gratuitamente com uma corrente.


Veja esse artigo em vídeo:


A expressão “não mate o mensageiro” se aplica perfeitamente a tudo isso. Ela vem do provérbio latino “ne nuntium necare”, que teria sido criado a partir do ato intempestivo do rei da Pérsia Dario III, que, em 331 a.C., mandou executar o mensageiro que lhe havia trazido a notícia de que seu exército havia sido derrotado pelo de Alexandre, o Grande. Criou-se um código de honra em que o mensageiro, mesmo enviado pelo inimigo, deveria ser preservado.

Matar o portador de más notícias não faz com que elas desapareçam, mas pode fazer bem ao ego ferido do governante. Além disso, se a informação negativa for silenciada antes que se espalhe, isso pode permitir que ele continue distorcendo a realidade segundo seus interesses.

Trazendo para um contexto atual, “matar o mensageiro” seria silenciar, a qualquer custo, a imprensa livre e, mais recentemente as redes sociais. E é exatamente o que se observa hoje, inclusive nos exemplos citados.

Na sexta, o parlamento russo aprovou leis que, na prática, criminalizam a cobertura da guerra na Ucrânia, com penas de 1 a 15 anos de prisão e interrupção de atividades de veículos. Não é permitido sequer usar os termos “guerra” ou “invasão” ou mencionar o total de civis mortos.

Como consequência, Facebook e Twitter, que vinham restringindo os canais oficiais russos, foram banidos do país. O mesmo deve acontecer com outras redes sociais, cujos usuários mostram os horrores da guerra, até mesmo de dentro da Ucrânia.

A rede britânica BBC, que vinha sendo restrita na Rússia, encerrou suas operações no país para salvaguardar seus profissionais. Ela foi seguida pelas americanas CNN e Bloomberg, a espanhola Efe, a italiana RAI e a canadense CBC. O jornal russo Novaya Gazeta –de Dmitri Muratov, ganhador do Nobel da Paz em 2021– e o canal alemão Deutsche Welle foram bloqueados pelo governo.

Suas coberturas da guerra continuarão normalmente fora da Rússia. Não se sabe como essa censura impactará os movimentos que combatem a guerra no quintal do presidente Vladimir Putin, mas ele já deixou claro que não vai facilitar a vida dos mensageiros.

 

A verdade como inimiga

Que ninguém duvide da disposição de autocratas como Putin de impor seus desejos sobre a verdade. É um movimento semelhante ao visto em ditadores e se transformou em ferramenta de governos autoritários no mundo todo.

A prisão, o fechamento de veículos de comunicação e a violência moral e física –incluindo assassinato– são os mecanismos usados. Mas uma das facetas mais assustadoras é que eles não são aplicados apenas por agentes repressores do Estado. Incentivados por governantes que atacam abertamente a imprensa, muitas pessoas aliadas ideologicamente a eles se investem do “dever” de calar as vozes dissonantes.

Foi o que aconteceu na sexta com uma equipe de cinco pessoas da TV britânica Sky News, cujo carro foi alvejado por uma milícia russa na Ucrânia. Apesar de gritarem que eram jornalistas para que os agressores parassem de atirar, o correspondente Stuart Ramsay foi atingido na parte inferior das costas, enquanto o operador de câmera Richie Mockler levou dois tiros em seu colete à prova de balas.

Aqui no Brasil, o exemplo mais recente aconteceu na quarta passada, quando os repórteres da Rede Globo Renato Biazzi e Ronaldo de Souza foram agredidos enquanto gravavam uma reportagem na região do Brás, em São Paulo. Um homem que segurava um cachorro preso por uma corrente se aproximou dos dois e começou a xingá-los, sem nenhum motivo aparente. Depois atacou os jornalistas com a corrente. Souza foi atingido na mão e terá que fazer uma cirurgia por isso.

A narrativa dominante sempre foi incrivelmente importante para qualquer grupo de poder. Não é à toa que a imprensa é uma das primeiras coisas atacadas por qualquer governo autoritário, seja qual for sua ideologia. Ter o povo a seu lado aumenta o poder de qualquer um. Mas a verdade acaba se sobrepondo em algum momento, por mais eficiente que seja a história.

Por exemplo, quem tem mais de 40 anos talvez se lembre dos “fiscais do Sarney”, cidadãos comuns que, a pedido do então presidente, procuravam estabelecimentos que estariam aumentando seus preços em uma época de congelamento. Alguns chegavam a baixar a porta de lojas, como se tivessem autoridade para isso. Mas todos os malfadados planos econômicos daquele governo terminaram catastroficamente.

De lá para cá, todos os presidentes brasileiros abusaram desse recurso, uns mais, outros menos. E, de 20 anos para cá, tenta-se criar por aqui o controle da imprensa como política de Estado, com eufemismos como “controle social da mídia” ou com agressões explícitas partindo do próprio presidente da República.

É uma pena observar que o poder seja usado para turvar a verdade, com o único objetivo de se ampliar o próprio poder, mesmo às custas de diminuição da qualidade de vida, de sofrimento e até da morte de inocentes. E é ainda mais triste observar como isso eficientemente convence parcelas significativas da população, seja com uma censura marcial, seja com pregações ideológicas.

Quando temos uma sociedade em que cada indivíduo tenta impor suas ideias sobre todos os demais, temos o caos. Por outro lado, quando um grupo usa da força para calar pensamentos diferentes e institucionalizar suas visões de mundo, temos um regime de natureza fascista. Os dois casos não se sustentam a longo prazo e levam a sociedade à ruína. O ditador italiano Benito Mussolini, pai do fascismo, que o diga.

Precisamos da verdade chegando livremente a todos para não rumarmos a esse abismo social. O mensageiro deve ser salvo, para que ela prevaleça.

O desafio de se manter bem informado em tempos de guerra

By | Jornalismo | No Comments

Alguém saberia dizer o que fez Vladimir Putin invadir a Ucrânia? Para muitos, a resposta parece óbvia, e pessoas que se informam por veículos de comunicação profissionais e independentes seriam capazes de enumerar vários motivos.

Mas quem pode garantir com certeza o que se passa na cabeça do presidente russo?

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Afinal, todo mundo recebe necessariamente mais informações de um dos lados do conflito, e elas são filtradas, até mesmo porque nem sempre jornalistas conseguem chegar ao front para apurar melhor os fatos.

Mas o atual conflito na Ucrânia consolidou um novo tipo de guerra, que, ao lado de tanques e aviões no campo de batalha, acontece nas plataformas digitais. Ela foi criada para conquistar corações, mesmo entre os inimigos. E todos nós estamos sendo alvejados por essa artilharia.


Veja esse artigo em vídeo:


As razões de Putin estariam mais claras se as pessoas recorressem regularmente a um bom jornalismo para se informar, ao invés das redes sociais. Assim como os músculos, o senso crítico precisa ser continuamente exercitado, e nossa mente precisa ser alimentada com boas informações.

Mas muita gente vem sendo convencida que toda imprensa é ruim, restringindo sua “dieta informativa” ao pão mofado servido mas redes sociais, normalmente por seus políticos de estimação. E isso abre caminho para essa guerra digital, que, não por acaso, tem na Rússia seu maior expoente, que busca apoio para qualquer causa ou ideia, mesmo as mais estapafúrdias.

Por exemplo, uma parcela expressiva da sociedade americana defende as ações russas e o próprio ataque à Ucrânia, algo inimaginável poucos anos atrás. Muitos dizem até confiar mais em Putin que no próprio presidente, Joe Biden.

Misturando opinião com fatos distorcidos e mentiras deliberadas, as narrativas de apoio à Rússia se disseminam em plataformas digitais e em parte da mídia dada a teorias da conspiração, muitas “plantadas” por agentes russos. Por exemplo, desde o início da invasão, circula a ideia de que ela seria legítima porque a Otan (a aliança militar do Ocidente) teria violado acordos territoriais com a Rússia, que não existem.

Mas, como toda guerra, a que acontece nas plataformas digitais tem dois lados, e os opositores a Putin também usam esses recursos para se fortalecer, mesmo dentro da “Mãe Rússia”. O mandatário está tendo que enfrentar protestos em diversas cidades russas e em outros países, que pedem pelo fim da invasão. No caso das manifestações em seu próprio país, Putin as reprime com violência e prisões.

Ele quer agora bloquear qualquer visão contrária a sua. No sábado, o órgão de controle das comunicações da Rússia determinou que a imprensa pare de chamar o conflito de “guerra”, “invasão” ou “ofensiva”. O permitido é “operação militar especial em Donbass, destinada a manter a paz”. Também fica proibido dizer que a Rússia ataca cidades ucranianas ou qualquer referência a civis mortos. Quem não cumprir a regra, pode ter o veículo fechado.

O Kremlin também resolveu mostrar os dentes para empresas de tecnologia globais, como Google, Meta e Apple, cruciais nessa batalha. Elas devem se submeter imediatamente a uma nova legislação que dá poder ao governo russo para censurar conteúdos contrários aos seus interesses. As que não concordarem podem ser multadas, seus funcionários podem ser presos e suas operações impedidas no país.

Putin deseja ter o controle da Internet como acontece na ditadura chinesa, em que as empresas devem se submeter aos caprichos do governo, se quiserem operar no maior mercado do mundo. É por isso que lá praticamente não existe Google, Facebook, Instagram, Wikipedia e até Netflix, substituídos por produtos locais censurados.

Fica claro que a verdade está cada vez mais distante das plataformas digitais, restando ao jornalismo profissional encontrá-la onde quer que esteja.

 

“Não me morra!”

A principal ferramenta para isso é a reportagem, principalmente aquela feita no local dos fatos. Em uma guerra, tudo isso fica muito mais complicado, pois o teatro das operações é literalmente mortífero. Por isso, poucos veículos mandaram repórteres para cobrir a guerra na Ucrânia de perto, menos ainda são os que têm pessoal no país. O Estadão, por exemplo, enviou o jornalista Eduardo Gayer, que está na capital Kiev.

Esses jornalistas seguem um caminho aberto por Joel Silveira, primeiro correspondente de guerra brasileiro, enviado à Itália em 1944 para cobrir a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Antes de despachá-lo, seu patrão, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, fez a seguinte recomendação: “O senhor vai pra guerra, seu Silveira, vai matar alemão! Só lhe peço uma coisa: não me morra, repórter é pra mandar notícia, não é pra morrer!”

É verdade! Nesses dias, vi repórteres brasileiros e de outras nacionalidades mostrando o que está acontecendo na Ucrânia e nos países vizinhos, conversando com pessoas. Apesar de se comoverem com as vítimas da guerra, mantiveram-se firmes em seu trabalho, algo que nenhum “comentarista de rede social” sequer imagina.

Aprendemos que precisamos ouvir diversos lados de um fato para nos aproximarmos da verdade. Essa premissa –uma das bases do bom jornalismo– continua valendo. Mas cada um de nós tem que tomar muito cuidado com esses tipos que crescem nos últimos anos feito ervas daninhas, que manipulam as plataformas digitais e usurpam a liberdade para destruir a própria liberdade.

Não tenho amigos ucranianos ou russos, e muito menos conheço os presidentes Volodimir Zelenski ou Vladimir Putin. Mas, nessa situação absolutamente extrema, podemos sempre nos fiar em valores inegociáveis e imutáveis, como o direito à vida.

Partindo desse princípio, não dá para justificar o ataque militar de grandes proporções que hoje destrói um país e ceifa incontáveis vidas, muito menos em nome de ameaças hipotéticas contas a segurança nacional. Assim, não há dúvida de quem está do lado errado nesse conflito, de quem é o agressor.

Essa guerra já respinga em nós e isso aumentará, não apenas pela subida dos preços de commodities, como petróleo, gás e trigo, mas também pela crescente desinformação, que carcome nossa sociedade, como cupins.

Temos que fazer a nossa parte, combatendo essa última. Não dá para continuar se informando por redes sociais. Elas devem ser usadas principalmente para amenidades e até promoções, coisas para as quais foram criadas. Se, em tempo de paz, devemos buscar a notícia entre aqueles que vão até ela com uma apuração séria e profissional, em tempos de guerra, isso pode se tornar caso de vida ou morte.

Como será quando um robô tomar seu trabalho?

By | Tecnologia | 2 Comments

Foto: Visualhunt/Creative Commons

Podemos estar assistindo à gestação de uma crise de empregos global sem precedente. A troca de pessoas por máquinas na indústria não é uma novidade, mas isso já se observa também em todos os setores da economia, e com uma taxa de adoção cada vez mais intensa. Não se trata só do velho embate “máquina versus humanos”: chegará o momento em que a maioria das atividades produtivas será feita por robôs? Mais dramático que isso: quando isso acontecer, as pessoas ainda terão uma função na sociedade e meios para se sustentar?

Já debatemos aqui o fato de muitos profissionais e empresas estarem se tornando obsoletos diante de novas iniciativas que oferecem produtos ou serviços melhores e mais baratos. O enfoque, naquele outro artigo, era de pessoas ocupando o lugar de outras pessoas, auxiliadas pela tecnologia. E já foi o bastante para muita gente conversar comigo sobre sua preocupação com o tema. Mas a revolução mais comovente deve vir das máquinas, justamente por tirarem o ser humano da equação.


Vídeo relacionado:


Na semana passada, a Foxconn, empresa chinesa que monta os iPhones, substituiu 60 mil postos de trabalho da sua unidade na província de Kunshan por robôs. Mesmo em um país acostumado a quantidades superlativas, é muita gente perdendo o emprego: 55% do total da fábrica.

A empresa diz que, “a longo prazo”, não haverá diminuição de postos de trabalho, pois funcionários poderão passar a fazer atividades mais nobres e menos repetitivas. Esse é o discurso típico de quem automatiza uma linha de montagem. Mas o fato é que, a curto prazo, o pessoal foi para a rua mesmo! Tudo para reduzir custos e atender metas de produção da Apple. E não há nenhuma garantia que essas pessoas sejam reaproveitadas pela empresa. Pior: não se sabe sequer se serão mesmo capazes de aprender as tais tarefas “mais nobres”.

Naturalmente algumas profissões estão mais em risco que outras. A BBC criou um infográfico interativo a partir de uma pesquisa da Universidade de Oxford, que avalia os riscos de automação de 365 profissões nos próximos 20 anos. Apesar de levar em consideração dados do Reino Unido, os resultados podem ser extrapolados para profissionais de todo o mundo. Mais cedo ou mais tarde, a automação impactará quase todos, mas a pesquisa de Oxford demonstra que, para algumas profissões, isso já acontece e de uma maneira absolutamente determinante, forçando categorias inteiras de profissionais a se reinventar.

Impossível não pensar na Revolução Industrial, cujos raízes remontam na Inglaterra do século 18, e os processos industriais acabaram por quase extinguir os artesãos de diferentes segmentos. A transição para um novo formato social e econômico foi traumática, contando até com o surgimento de movimentos que resistiam à automação, como o ludismo.

Porém, apesar de todo aquele drama, o mundo acabou se reorganizando, com uma grande evolução da humanidade. Os artesãos realmente ficaram para trás, mas as pessoas encontraram um novo caminho.

Mas qual será o caminho a seguir agora?

 

Futuro Blade Runner?

A mesma tecnologia que extingue profissões cria outras completamente novas.

Por exemplo, estamos assistindo ao fortalecimento do Movimento Maker, em que pessoas começam a produzir, até mesmo em casa, coisas incríveis e tecnologicamente sofisticadas. Além disso, a tecnologia digital também permite que paradigmas sejam quebrados, subvertendo modelos de negócios consolidados há décadas. O fenômeno dos youtubers, por exemplo, já pode ser considerado uma ameaça à TV, especialmente se olharmos para o público mais jovem. E a economia compartilhada já deixou de ser uma tendência para fazer parte da vida de milhões de pessoas, para desespero de donos de negócios tradicionais, que ganharam novos e eficientíssimos concorrentes (a guerra do Uber contra os táxis é um dos exemplos mais notáveis disso).

Seria ótimo se todo esse pessoal que perdeu o emprego para os robôs conseguisse pular nesse novo barco. Mas sejamos realistas: são poucos aqueles que conseguiriam fazer isso. E haveria mercado para todos? Usando o próprio YouTube como exemplo, existem uns poucos milionários da plataforma, e um mar de microprodutores de vídeos que nunca ganharão dinheiro com isso, nem mesmo sairão do anonimato.

A turma de 40 anos ou mais deve se lembrar do filme Blade Runner, de 1982, em que as ruas de uma Los Angeles decadente de 2019 eram tomadas por engenheiros genéticos que criavam seres artificiais para lucrar ou simplesmente se divertir. É isso que nos espera?

E qual a saída para quem não se encaixa em nada disso?

 

Sobrevivendo à automação

No dia 5 de junho, 78% dos suíços rejeitaram, em plebiscito, uma ideia de renda mínima para todo cidadão do país. Pela proposta, cada adulto receberia mensalmente 2.500 francos suíços (R$ 9.000), estando empregado ou não, enquanto cada criança receberia 625 francos suíços (R$ 2.260). Para quem trabalha, a medida faria diferença apenas para quem ganhasse menos que os R$ 9.000 (o salário médio na Suíça gira em torno de R$ 21.700).

Para os criadores da proposta, ela permitiria que as pessoas pudessem se concentrar em atividades que gostassem, e até mesmo voluntariado. E, de quebra, resolveria o problema de desempregados pela adoção de robôs. Acabou sendo rejeitada porque os suíços preferiram manter outros benefícios sociais que já têm (que seria substituídos pela renda mínima). Além disso, o governo temia que a proposta enfraquecesse o serviço público, aumentasse impostos e prejudicasse o consumo.

É pouco provável que uma proposta como essa seja viável no Brasil. Apesar de já ser lei aqui desde 2004, ainda não está valendo porque não foi regulamentada. Os principais entraves são caixa para se pagar um valor que permita um bem-estar efetivo aos eventuais beneficiados, o tamanho da população brasileira e a nossa corrupção endêmica.

Então, já que a renda mínima não passou nem na rica Suíça, os profissionais precisam dar seu jeito para fazer frente à invasão dos robôs no mercado de trabalho. E ironicamente a melhor maneira de se fazer isso é ser cada vez mais humano.

Os robôs são imbatíveis em tarefas que exigem precisão, repetição e montagens complexas. Mas eles são muito fracos em qualquer atividade que envolva relacionamento social, decisões diante de imprevistos, correr riscos e valer-se de sentimentos.

Trocando em miúdos, vale a pena investir em profissões cujas tarefas não possam ser descritas e controladas por algum tipo de programa de computador. Todo o resto caminhará cada vez mais rapidamente para os robôs.

Ou seja, faça o que os robôs não podem fazer. Pelo menos não ainda.

Além disso, profissionais têm a obrigação de se manter atualizados. Foi-se o tempo em que o que se aprendia na faculdade era garantia de um bom desempenho profissional até a aposentadoria. Com avanços tecnológicos e sociais galopantes, é preciso estar sempre estudando. Essa ação é inegociável.

Da mesma forma, as empresas têm o dever de incentivar a iniciativa e a inovação em seus quadros. Prestar atenção no que seus próprios funcionários e consumidores dizem pode ser muito mais valioso que qualquer robô. O mundo está em constante mudança e novas oportunidades podem estar a uma quadra ou do outro lado do planeta.

Por tudo isso, a melhor maneira de garantir seu lugar ao sol em uma sociedade cada vez mais automatizada é exercendo sua humanidade. Não será necessário se comportar como os luditas, e sair quebrando todas as máquinas pelo caminho para passar por mais essa Revolução Industrial.


Artigos relacionados:

 

 

Por que os taxistas nunca vencerão o Uber (e o que você pode tirar disso)

By | Jornalismo, Tecnologia | 5 Comments
Taxistas protestam contra a regulamentação do Uber em São Paulo – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Taxistas protestam contra a regulamentação do Uber em São Paulo

No dia 11, o prefeito Fernando Haddad regulamentou os aplicativos de transporte, como o Uber, em São Paulo. Isso desencadeou uma nova onda de protestos violentos dos taxistas, que acusam a empresa de concorrência desleal. Mas é uma luta que eles jamais vencerão, pois o Uber redefiniu o transporte de pessoas, “commoditizando” o serviço dos taxistas. E esse é um fenômeno social e econômico que pode atingir qualquer negócio ou categoria profissional.

Mas o que é essa “commoditização” de produtos e serviços? Isso acontece quando novas empresas, novas tecnologias ou novos modelos de negócios começam a oferecer a mesma coisa de maneira inovadora, acrescentando uma camada inédita de valor sobre algo que já existe. Nesse processo, o produto ou o serviço original continua lá e até pode ser essencial no novo formato, mas o público deixa de ver valor naquilo, passando a pagar apenas pela novidade.


Vídeo relacionado:


É o que o Uber fez com os táxis. Trocando em miúdos, os passageiros passaram a querer mais que o simples transporte em quaisquer condições, oferecido pelos taxistas. Para esses consumidores, o verdadeiro valor é ter esse serviço em um carro novo, limpo e confortável, com um motorista educado, treinado e bem vestido, com serviço de bordo. É por tudo isso que cada vez mais pessoas estão dispostas a pagar. E é isso que o Uber oferece, e os taxistas não conseguem –ou não querem– entender e fazer.

É claro que o que os taxistas e o Uber vendem é transporte de passageiros. Mas o Uber tirou o valor disso, que virou apenas o básico, aquilo que o público nem vê, por mais que seja a essência do serviço: foi “commoditizado”. O valor foi transferido para a camada de serviços extra.

O que os taxistas oferecem não vale mais. É por isso que não vencerão o Uber.

 

“Commoditizando” tudo

Mas isso pode afetar qualquer um, inclusive você, seja lá o que você faça. Isso porque, quando menos se espera, alguém pode chegar oferecendo a mesma coisa, só que de uma maneira que faça mais sentido para o seu público.

Qualquer jornalista já sentiu isso na pele. Com a popularização das redes sociais e a explosão de oferta de conteúdo de qualquer tipo, muitos colegas chegam a achar que a profissão encontrou o seu fim, com uma massa enorme e crescente de desempregados. Eles não estão sozinhos: veículos de comunicação tradicionais quebram um após o outro no mundo todo, incapazes de fazer frente à fuga de público e de anunciantes.

Assim como os taxistas, esses profissionais e essas empresas ficam em um “mimimi” eterno, reclamando que são eles que sabem fazer esse trabalho direito, que são eles que produzem o conteúdo de qualidade, e que isso custa muito caro! E que não é justo que novos veículos digitais cheguem e acabem com o seu monopólio da notícia, que durava mais de um século.

Oras, mas esses novos veículos, como a Vice, vão muito bem, e o que eles oferecem, na base, é conteúdo jornalístico. Mas eles tiveram sucesso em criar aquela “camada de valor extra”. Ou seja, o conteúdo jornalístico está mesmo “commoditizado”, mas ele serve para viabilizar esses novos títulos e profissionais.

Outro exemplo que gosto muito de citar é o da indústria fonográfica. Há uns 20 anos, ela era bilionária, com lucros calcados principalmente sobre a venda de CDs. Surgiram então os serviços de compartilhamento de MP3, como o Napster, que mostraram ao público que aquele modelo da indústria já havia caducado. Eventualmente isso acabou perdendo força, com as gravadoras processando os serviços e até seus clientes (o que demonstra como estavam dissociadas desse novo mundo).

Mas então a Apple lançou o iTunes, oferecendo a possibilidade de compra digital de cada faixa por uma fração do valor do álbum, e jogou a pá de cal no modelo de negócios de CDs. Só que esse modelo também já está perdendo força, sendo substituído pelo do Spotify, onde se paga um valor fixo por mês e se consome à vontade do seu gigantesco acervo de músicas online.

A música foi “commoditizada”: sorte do Spotify! Azar dos vendedores de CDs…

Agora pense com carinho: o seu produto ou serviço já está sendo “commoditizado” por alguém ou isso ainda vai acontecer?

 

Como escapar da “commoditização”

A Apple também poderia ficar rangendo os dentes, como as gravadoras, os jornais, revistas ou os taxistas. Mas, ao invés disso, ela reinventou seu serviço! O iTunes ainda existe, mas a empresa já lançou a Apple Music, exatamente nos mesmos moldes do Spotify. Porque, como diz o filósofo, “quem fica parado é poste!”

Esse deveria ser o mantra de todos os gestores, de qualquer negócio. Mais cedo ou mais tarde, isso que eles fazem tão bem e que parece essencial à sociedade perderá o valor. Se continuarem insistindo, serão substituídos por alguém com uma visão mais moderna dos negócios e do mundo.

Então voltemos ao caso dos taxistas, para entender como sobreviver à “commoditização”.

Não é o Uber que ameaça os taxistas, e por vários motivos. Primeiramente porque existe espaço para todos. Como a Prefeitura de São Paulo não emite novos alvarás para táxis comuns desde 1996, há um déficit estimado de 20 mil carros para transporte particular na cidade. O Uber pode triplicar a sua frota atual em São Paulo, que isso mal fará cócegas nessa demanda reprimida.

No final das contas, a verdadeira ameaça aos taxistas são o seu sindicato, a máfia dos alvarás e os próprios taxistas! O primeiro porque promove o ódio entre os motoristas e incentiva essa baderna que temos visto nas cidades. O resultado disso é um sentimento de rejeição ao serviço de táxi como um todo entre a população, seja pelos recorrentes transtornos causados por aquela parcela dos motoristas, seja pela repulsa à violência injustificável que alguns criminosos praticam contra motoristas e até passageiros do Uber.

Sobre a máfia dos alvarás (que chega a cobrar R$ 150 mil por algo que é uma concessão municipal), ela é uma facção do crime organizado que lesa a população e o poder público por manipular essas autorizações para obter lucros milionários. Os próprios taxistas são os principais prejudicados por esses bandidos, pois, para que consigam trabalhar, precisam comprar ou alugar essa licença, pagando valores astronômicos.

Portanto, se os taxistas realmente quiserem sobreviver à “commoditização”, não deveriam se organizar contra Uber, muito menos do jeito que estão fazendo. A solução dos seus problemas passa por ficar livres justamente desse sindicato, que os manipula, e dessa máfia, que os explora ao extremo. Os dois são dignos representantes do pior que existe na sociedade brasileira. Além disso, os taxistas precisam repensar o seu serviço: se o que eles oferecem não é mais o que as pessoas estão dispostas a pagar, é hora de se reinventar. E o Uber, ao invés de algoz, pode ser o modelo a ser seguido.

Não há como resistir à evolução do mercado. Ranger os dentes, distribuir pancada ou desqualificar novos concorrentes não resolverá o problema de nenhum negócio. A única solução é melhorar: ficar parado é o mesmo que piorar.


Vamos falar sobre a linguagem certa para público certo na Social Media Week? Esse é o segredo do sucesso nas redes sociais. É só entrar nesta página e clicar no botão verde de CURTIR abaixo da minha foto.


Artigos relacionados: