No dia 10, o jornal britânico “The Guardian” publicou uma série de reportagens que exibem, de maneira sem precedentes, práticas condenáveis da Uber para consolidar seu negócio em cerca de 40 países, entre 2013 e 2017. Batizada de “Uber Files”, elas foram feitas a partir de mais de 124 mil documentos vazados pelo ex-executivo Mark MacGann.
Não seria exagero dizer que a empresa praticamente criou e popularizou o conceito de transporte por aplicativo. Ela é também um dos principais expoentes da chamada “economia compartilhada”, que vem revolucionando diversos mercados desde os primeiros anos deste século.
Mas, pela lógica de mercado, se alguém estiver ganhando desproporcionalmente, alguém pode estar perdendo. Por isso, muita gente crítica a “economia compartilhada”, chegando a chamá-la de “concorrência desleal” e até de “pirataria”. No caso da Uber, quem perdeu muito foram os taxistas. Ganharam os motoristas de aplicativo, os passageiros e naturalmente a companhia.
Com isso, a Uber se tornou uma empresa “queridinha” dos clientes. Agora os “Uber Files” colocam em questão se ela teria tido o mesmo sucesso se não se valesse desses subterfúgios.
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Um dos principais destaques dos “Uber Files” é o trabalho de representantes da empresa junto a autoridades de diversos países, para que eles flexibilizassem leis locais trabalhistas e de transporte, para que a Uber pudesse operar sem problemas, especialmente frente aos protestos de taxistas e à não-regulamentação da “economia compartilhada”. Pelo menos 233 autoridades foram envolvidas, incluindo o então vice-presidente americano Joe Biden (hoje presidente dos Estados Unidos), o chanceler alemão Olaf Scholz, quando era prefeito de Hamburgo, o primeiro-ministro de Israel na época, Benjamin Netanyahu, e o então ministro da Economia da França, Emmanuel Macron (hoje presidente do país).
Alguns deles teriam resistido aos apelos dos lobistas. Foi o caso de Scholz, que sugeriu um salário-mínimo aos trabalhadores, e que, por isso, foi rotulado como “um verdadeiro comediante” por um executivo da Uber. Outros apoiaram a ideia explicitamente, como Macron. Por isso, a oposição francesa agora quer instalar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Nacional francesa.
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Os “Uber Files” trazem ainda acusações mais graves. Em uma delas, Travis Kalanick, um dos criadores da Uber e CEO na época, rejeitou as preocupações de outros executivos de que enviar motoristas para um protesto na França os colocaria em risco diante de taxistas furiosos. No documento, ele diz: “acho que vale a pena, a violência garante o sucesso, e esses caras (os taxistas) devem ser confrontados”. No lançamento do serviço na Índia, Kalanick disse aos executivos locais que “abraçassem o caos”, pois isso “fazia parte do negócio da Uber”, em referência a eventuais protestos.
Ao “The Guardian”, um porta-voz de Kalanick disse que o ex-CEO nunca quis tirar vantagem da violência. Ele deixou o cargo em 2017, por relatos de uma cultura corporativa antiética, incluindo assédios sexuais e morais. Ele ainda ficou no conselho de administração até 2019, quando vendeu 90% de suas ações por cerca de US$ 2,5 bilhões.
Os arquivos também documentam ferramentas criadas especificamente para atrapalhar investigações. Uma delas, chamada “Greyball”, consistia em uma versão do aplicativo criada para usuários específicos, como policiais, que mostrava carros falsos, que jamais chegariam se fossem chamados. Outro, a “Kill Switch”, bloqueava o acesso a dados, se estivessem sendo realizadas batidas de órgãos reguladores nos escritórios da companhia.
Os “Uber Files” ainda indicam que a empresa manteria dinheiro em paraísos fiscais, para pagar menos impostos. O material mostra também como executivos debochavam das autoridades e se consideravam “piratas”. Em um deles, um executivo diz: “somos ilegais para caramba!”
Os limites da legalidade
Sobre a Uber ter tentado influenciar autoridades, é importante que fique claro que fazer lobby não é crime e, de certa forma, faz parte da própria sociedade. Empresas, instituições e até indivíduos podem tentar convencer agentes públicos a abraçar seus interesses, desde que legítimos, e eles podem concordar ou não. A prática só se torna corrupção se o agente público receber algo para decidir em favor da causa.
Os outros pontos são bem mais delicados. Mas fica a pergunta: a Uber precisaria ter feito isso tudo para ter sucesso?
Sempre que a empresa chegava a um país, os passageiros a abraçavam efusivamente. Afinal, ela supria demandas de transporte reprimidas há muito tempo: oferecia um transporte público individual confortável, rápido e confiável, com um preço justo e transparente, uma combinação inexistente em táxis, ônibus, metrôs ou trens até hoje. Para os motoristas, era uma oportunidade de se ganhar dinheiro com o próprio carro.
Essa é a essência da “economia compartilhada”. Ela substitui a necessidade de se possuir algo pela chance de se usar aquilo quando necessário. Diminui-se a compra de muita coisa que se usaria apenas eventualmente. Por outro lado, quem já tiver aquilo pode ganhar dinheiro alugando-o por um tempo limitado, ou prestando um serviço com ele.
A tecnologia é essencial nesse processo para se criar um ecossistema digital que combine os interesses de todos os envolvidos. As companhias que criam essas plataformas são remuneradas por isso, mas os fornecedores e vendedores não têm qualquer vínculo empregatício com essas empresas.
Esse é um movimento positivo e sem volta, que hoje ocupa um espaço enorme em nossas vidas e na economia. Além de transporte, incontáveis exemplos de “economia compartilhada” podem ser encontrados no varejo, na alimentação, na hospedagem, em finanças, na saúde e na prestação de todo tipo de serviço.
Nem todo mundo gosta disso. Assim como os taxistas sofreram com a Uber, hotéis perderam hóspedes para Airbnb, e lojas convencionais perderam vendas para Mercado Livre, só para citar alguns exemplos óbvios. Mas, apesar do ranger de dentes de alguns, não há nada de errado nisso, desde que as operações estejam regulamentadas e impostos sejam pagos. Trata-se apenas de uma nova maneira de se fazer negócios, que subverteu modelos cristalizados há muito tempo, amplamente aprovado pelos respectivos clientes.
Tentei contato com a Uber para falar sobre isso tudo. A empresa se limitou a enviar uma nota global em inglês, em que admite que foram cometidos erros e explica o que tem feito nos últimos cinco anos para que aquilo não se repita. Ela termina dizendo que “não demos e não daremos desculpas para comportamentos passados que claramente não estão alinhados com nossos valores atuais”.
Parece pouco e até soberbo diante da gravidade dos fatos, como se pudessem ser ignorados. Por mais que tenha mudado seus valores, ainda é a mesma empresa e deve responder por erros passados, ainda que não os cometa mais.
A “economia compartilhada” revolucionou o mundo e a tendência é que ela ocupe espaços cada vez maiores em nossas vidas. A Uber é uma das grandes responsáveis pela sua popularização. Que os tais “erros do passado” sirvam de lição do que não deve ser feito em qualquer negócio: ele pode dar certo sem nada disso!