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A ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos - Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Brasileiros abraçam a IA, mas precisam vencer desafios para sua implantação plena

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Os brasileiros têm fama de abraçar novas tecnologias rapidamente, especialmente as digitais. Isso se vê, por exemplo, no amplo uso de smartphones e redes sociais no país, que sempre lidera rankings internacionais nisso. Também vem sendo observado no nosso uso entusiasmado da inteligência artificial. Mas essa euforia enfrenta severos obstáculos que podem prejudicar resultados, especialmente nos negócios.

A pesquisa “Inteligência artificial no mundo corporativo”, divulgada no dia 11 pela gigante de software alemã SAP, mostra que 52% dos gestores brasileiros têm percepção muito positiva sobre essa tecnologia e outros 27% a encaram de forma favorável, mas com ressalvas. Na América Latina, esses números são 43% e 38%.

Para 29% desses gestores, o maior desafio é não saber como incorporar a IA no negócio, enquanto 28% afirmam que não há profissionais qualificados para isso, problemas que caminham de mãos dadas. Mas o Brasil enfrenta outra grande barreira nesse setor: dependemos demais de tecnologias importadas.

A princípio, isso não pareceria tão grave. O Brasil historicamente consome tecnologia digital de fora, graças ao sucateamento de nossa indústria e de nossa ciência, principalmente a de base. Continuaremos fazendo isso com a inteligência artificial. Mas suas características tornam essa dependência mais perigosa.

O quadro piora com o posicionamento errático da administração Donald Trump, que já usa a IA como arma geopolítica. No dia 13, a OpenAI, criadora do ChatGPT, apresentou uma série de propostas ao governo americano para supostamente manter a liderança dos EUA no setor. Entre elas, sugere uma restrição de exportações da IA a países “democráticos” (conceito que varia com o vento nos cabelos de Trump).

Isso cria uma divisão geopolítica artificial, condicionando o acesso à IA à subordinação de nações a interesses americanos, reforçando essa dependência tecnológica e perpetuando desigualdades globais. Esse é um risco que o Brasil não pode manter.


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Sendo uma tecnologia altamente disruptiva, a IA já transforma diversos setores da economia. Para isso, requer infraestrutura avançada e capacitação de profissionais qualificados. Sem investimentos significativos, o Brasil pode ficar para trás em ambos, dificultando a absorção e o uso eficaz dessa tecnologia, o que pode também aumentar os riscos de segurança e privacidade, pois dados sensíveis ficam sujeitos a leis estrangeiras.

Isso também limita nossa capacidade de inovar e ajustar soluções às nossas necessidades, além de comprometer a autonomia tecnológica do país. Como a IA automatiza muitas funções, a falta de investimentos em capacitação impõe ao Brasil desafios adicionais no mundo do trabalho e na adaptação ao avanço tecnológico.

Diante desse cenário, as empresas se mobilizam. Segundo a pesquisa da SAP, 62% dos gestores locais já capacitam seu pessoal para sanar este gargalo e outras 35% pretendem fazer isso ainda em 2025. “As empresas brasileiras trazem inovação no seu DNA, tanto na geração de diferencial competitivo, quanto na otimização de processos”, afirma Rogério Ceccato, diretor de pré-vendas da SAP Brasil. “Isso se explica com a maior maturidade do mercado brasileiro no cenário latino-americano.”

A IA generativa pode ajudar a reduzir esse problema, dispensando os profissionais de dominarem aspectos técnicos da tecnologia. Ceccato explica que assistentes, como a Joule da SAP, ajudam um profissional de vendas, por exemplo, a criar agentes de IA sem apoio técnico, concentrando-se no seu conhecimento do negócio. “Soluções com estratégia low-code/no-code (sem programação) permitem que mais profissionais dominem a IA”, acrescenta.

Além disso, alguns exemplos internacionais recentes animaram empresários e pesquisadores brasileiros a investirem mais em inteligência artificial. O mais marcante foi o chinês DeepSeek, que em janeiro demonstrou ser possível desenvolver um LLM (modelo de linguagem de grande porte) com qualidade comparável aos melhores do mundo, como o ChatGPT, por uma pequena fração dos seus investimentos.

Criou-se, assim, um novo paradigma, que retirou das big techs o “direito a dominar sozinhas” esse mercado.

 

Investimentos brasileiros

Na época, a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos (foto), disse que o Brasil desenvolverá seu próprio modelo de IA, citando o DeepSeek como exemplo. Ela lembrou que existia a ideia de que os investimentos para competir nessa tecnologia seriam proibitivos para países emergentes, mas os chineses mudaram isso, mesmo impedidos pelos EUA de comprar processadores mais poderosos.

Antes disso, no dia 30 de julho, o governo brasileiro anunciou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Ele detalha uma estratégia ambiciosa para os padrões brasileiros, com investimento de R$ 23 bilhões até 2028, para o desenvolvimento e aplicação ética e sustentável da IA no país.

O plano prevê a compra de um dos cinco supercomputadores mais avançados do mundo, que deve ser alimentado por energias renováveis. Também propõe o desenvolvimento de modelos de linguagem em português, treinados com conteúdo nacional, que contemplem nossas características culturais, sociais e linguísticas.

Sensível à falta de profissionais no setor, o projeto também destaca a capacitação em larga escala para atender a essa demanda. Por fim, reforça que o desenvolvimento da IA seja ético e responsável, promovendo a transparência algorítmica e a proteção de dados, itens críticos para o setor, mas pouco observados nos produtos americanos.

As propostas são interessantes e muito bem-vindas, mas a sociedade precisa acompanhar sua implantação, para que não se torne mais uma ideia populista que se perca na burocracia. A IA não pode ser mais uma revolução tecnológica que o Brasil apenas observe de longe.

Um esforço coordenado entre governo, academia e setor privado é imprescindível! Os programas já existentes precisam ser ampliados, especialmente para a formação de talentos e o desenvolvimento de propriedade intelectual nacional. Ainda podemos nos tornar protagonistas em nichos do ecossistema de IA.

As atuais restrições podem se traduzir em inovação acelerada. Mas, para isso, o Brasil precisará mobilizar recursos e talentos com a velocidade necessária para superar esse fosso tecnológico antes que se torne intransponível ou que eventuais restrições abalem decisivamente nossa transformação digital.

 

Lara (Ellen Parren) vive drama em “Eu Não Sou um Robô”, por não conseguir passar por um teste em seu computador - Foto: reprodução

Curta vencedor do Oscar alerta sobre nossa desumanização pela dependência tecnológica

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No domingo de Carnaval, com os brasileiros comemorando o Oscar de Melhor Filme Internacional para “Ainda Estou Aqui” e lamentando que sua protagonista, Fernanda Torres, não levou o de Melhor Atriz, a vitória do holandês “Eu Não Sou um Robô” (“I’m Not a Robot”) no prêmio de Melhor Curta-Metragem, dirigido por Victoria Warmerdam, passou praticamente despercebido. Mas ele promove uma importantíssima reflexão sobre o nosso tempo: estamos nos tornando muito dependentes da tecnologia, e isso pode ameaçar nossa humanidade.

Há décadas, a ficção nos alerta sobre esse risco, mas nunca imaginaríamos que uma validação automática pudesse nos fazer questionar quem somos. É exatamente esse o dilema vivido por Lara (Ellen Parren), a produtora musical protagonista da obra, que mergulha em uma crise existencial após falhar repetidamente em testes CAPTCHA, aqueles desafios online usados para distinguir humanos de robôs, nos quais é preciso clicar, por exemplo, nas “imagens com hidrantes”.

A sociedade vem sendo profundamente influenciada pelas big techs para abraçar a tecnologia como algo quase mágico, sem medir as consequências. Poucas vozes questionam esse movimento. Quem ousa fazer isso recebe rótulos de antiquado ou resistente ao progresso, normalmente injustos.

Apesar de ser uma ficção, o curta toca em questões muito reais. Vivemos em uma era em que sistemas cada vez mais eficazes e surpreendentes nos ajudam muito, mas também trazem consequências nocivas que às vezes ignoramos. Se nada for feito para corrigir essa dependência excessiva, podemos ultrapassar um limiar perigoso, onde a tecnologia não mais nos serve, mas nos define.


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Warmerdam criou uma sátira angustiante sobre nossa relação com a tecnologia. A incapacidade de Lara passar nos testes a coloca em uma jornada surreal, levando-a a questionar crescentemente sua própria humanidade. Assim, a obra explora temas como identidade, autonomia e o impacto da tecnologia na percepção humana.

Parren equilibra perfeitamente o humor absurdo com uma crítica social afiada, tornando a personagem ainda mais marcante. Afinal, ela é realmente um robô que desconhece sua verdadeira natureza? Ou será que a tecnologia falha ao identificar o que é ser humano? Esses dilemas existenciais são os elementos mais potentes do curta, reforçando sua crítica à dependência da validação digital, tornando a proposta ainda mais cortante! O absurdo da situação nos faz rir, mas também nos obriga a refletir sobre nossos comportamentos frente à digitalização da vida.

Já terceirizamos nosso pensamento para buscadores, dependemos de GPS para nos locomover e deixamos algoritmos influenciarem nossas decisões diárias, ainda mais com o avanço da inteligência artificial. Quando não têm acesso a essas tecnologias, muitos se sentem perdidos, como se parte de sua identidade tivesse sido removida.

Em alguns casos, um erro técnico pode bloquear nosso acesso a serviços essenciais, tornando-nos praticamente “invisíveis” para a sociedade. Mas precisamos encarar nossa atitude frente a essa dependência tecnológica, que pode prejudicar habilidades cognitivas cruciais, como memória, raciocínio e criatividade. Resolver problemas por conta própria é fundamental para o desenvolvimento humano.

Não dá para dizer que “isso só acontece com os outros”. Quem nunca ficou ansioso por perder o acesso à Internet? A incapacidade de lembrar informações básicas sem consultar o celular, a preferência por interações digitais em detrimento das presenciais, ou a sensação de que nossas realizações só valem quando publicadas e validadas nas redes sociais são outros sinais de que “passamos do ponto”.

Se um sistema de reconhecimento facial falha em nos identificar, um algoritmo de busca não entende nossa pergunta ou quando um assistente virtual não compreende nosso sotaque, sentimos uma frustração que vai além do incômodo prático. É quase uma negação de nossa existência!

 

Recuperando o controle

Para evitar que percamos o controle do que somos, precisamos adotar estratégias conscientes. E isso passa por questionar recomendações das plataformas digitais, tomar decisões sem depender delas e exercitar a memória. Ou seja, lembrar a nós mesmos que podemos também viver sem as máquinas, como sempre fizemos!

O contato humano e o mundo físico precisam ser valorizados. Participar de encontros presenciais e realizar atividades ao ar livre são antídotos eficazes contra a digitalização excessiva da vida. Além disso, falar com pessoas em vez de chatbots preserva o elemento humano nas interações.

Devemos também variar as fontes de informação e usar a tecnologia com propósito claro, em vez de consumir passivamente o que as plataformas sugerem: isso nos ajuda a manter o senso crítico. E pausas regulares no uso desses serviços permitem reavaliar nossa relação com o mundo digital.

“Eu Não Sou um Robô” nos ensina que a tecnologia deve ser uma ferramenta para ampliar nossas capacidades, não um fator determinante da nossa identidade e muito menos da nossa humanidade. Se confiarmos demais nela a ponto de comprometer nossa autonomia, corremos o risco de nos tornarmos reféns daquilo que criamos.

A obra é uma metáfora poderosa sobre a burocracia digital, a vigilância algorítmica e a automação excessiva, que nos transformam em dados e perfis, em vez de seres humanos complexos e autônomos. A tecnologia pode e deve ser usada para facilitar a vida, mas precisamos garantir que ela continue sendo um meio, e não um fim.

Em tempos de IA galopante, a verdadeira inteligência está na capacidade de equilibrar o poder do mundo digital com a experiência humana. Essa é a lição mais valiosa desse pequeno grande filme.

No fim das contas, somos muito mais do que aquilo que um teste CAPTCHA pode definir.

 

Para Kant (esquerda), não se pode ser imoral, mesmo para um bom fim; já Maquiavel defendia que o fim justifica os meios - Foto: reproduções

Como equilibrar a ética, a competitividade tecnológica e a liberdade de expressão

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Estamos chegando ao final de um ano em que o debate sobre o equilíbrio entre a ética, a competitividade tecnológica e a liberdade de expressão ganhou novos contornos com o avanço da inteligência artificial, de práticas questionáveis das big techs e com as discussões em torno do Marco Civil da Internet. Enfrentamos uma grande dificuldade para encontrar um caminho razoável para, ao mesmo tempo, proteger as pessoas da voracidade irresponsável das plataformas digitais, evitar a censura, fazer um uso seguro da tecnologia e garantir a competitividade pessoal, nos negócios e até de nações, em uma geopolítica cada vez mais determinada pela tecnologia.

Esse é um dos grandes desafios dessa geração, pois a sociedade não está conseguindo processar as mudanças na velocidade em que estão sendo impostas. Insistimos em medir essa transformação com réguas que foram criadas para um mundo que já não existe. Esse é um processo fadado ao fracasso!

O exemplo mais claro é o impacto social das casas de aposta online, as infames “bets”. Elas crescem exponencialmente no mundo todo, mas no Brasil se tornaram um problema de saúde pública, com pessoas perdendo economias de uma vida e indivíduos das camadas mais pobres gastando o dinheiro da comida na jogatina.

Alguns podem dizer que “aposta quem quiser”. Só que atribuir toda a culpa ao livre arbítrio é um reducionismo de tudo que se discute aqui. A facilidade de se apostar pelo smartphone fica irresistível com a influência dos algoritmos dessas plataformas, com a promessa mentirosa de ganhos fáceis (ampliada por influenciadores pagos), com a interface gamificada e até com um senso de pertencimento no grupo de amigos apostadores.

Em outras palavras, nosso livre arbítrio é manipulado pelas mais diversas plataformas digitais, e engana-se quem acredita ser totalmente imune a isso. A sedução digital insidiosa vence mesmo mentes afiadas, em algum momento. É disso que temos que tratar, sem perder os inegáveis benefícios da tecnologia ou ferir direitos fundamentais.


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Agora o Supremo Tribunal Federal (STF) debate a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. “Inconstitucionalidade” é uma palavra forte, mas não me parece ser o caso do referido artigo. Ainda assim, os votos já dados por ministros do STF indicam que ele acabará sendo classificado dessa forma.

Historicamente, defendo o artigo 19. Ele determina que cada um seja responsável pelo que publica nas plataformas digitais, que elas não sejam corresponsáveis por isso, e que elas devem retirar do ar apenas conteúdos que a Justiça tenha julgado ofensivos. Já o artigo 21 abre uma exceção para conteúdo com nudez ou sexo não autorizados, quando basta uma notificação extrajudicial para que as redes sejam obrigadas a remover a publicação. Essa combinação de artigos valoriza a liberdade de expressão.

Não há dúvida sobre qualquer um ser responsável, para o bem e para o mal, pelo que publica na Internet. Mas há uma simplificação muito grande sobre o papel das empresas. Elas já retiram sumariamente o que consideram inadequado seguindo seus critérios, muitas vezes questionáveis. O processo ocorre majoritariamente de forma automática, e seus algoritmos erram muito na sua decisão, tanto ao retirar conteúdos legítimos, quanto ao preservar outros, que ferem leis e seus próprios termos de uso.

As plataformas oferecem sistemas de denúncia contra conteúdos inadequados, mas eles são muito falhos. Eu mesmo já fui vítima de diversos delitos digitais, como discurso de ódio e roubo de conteúdo. Sempre utilizo essas ferramentas de denúncia, mas é muito raro que isso produza qualquer resultado.

Pela redação do artigo 19, eu e pessoas vítimas de afrontas online muito mais graves precisamos entrar na Justiça para nos defender, um processo complexo, caro e muito longo. Enquanto isso, o problema continuará no ar, infligindo severos danos. Como as plataformas ficarão isentas, não farão nada, apesar de viabilizarem o crime.

Em sua defesa, elas argumentam que, se tomarem para si a decisão de o que pode ser publicado, correm o risco de promover censura. O argumento é verdadeiro, mas é cínico, pois as mesmas plataformas promovem ostensivamente conteúdos claramente nocivos, pois são os que lhes rendem maiores ganhos. E nada lhes acontece!

Esse é o tipo de conflito que esses tempos digitalmente acelerados nos impõem.

 

A superinteligência digital

Esse debate também se aplica à inteligência artificial.

Na sexta (20), a OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou o OpenAI o3, seu novo modelo de IA, com capacidades cognitivas ainda mais impressionantes. A empresa não mede esforços em incensar seus novos produtos como passos em direção à Inteligência Artificial Geral, um estágio teórico em que o sistema deixaria de ser especializado em uma coisa e passaria a pensar como um ser humano, dispensando comandos e sendo capaz de resolver qualquer coisa sem ter sido criado para aquilo, de pintar um quadro a dirigir um carro. Algumas pessoas afirmam que o o3 seria algo ainda maior: o caminho para a superinteligência artificial, um conceito teórico ainda mais ousado, em que a máquina superaria largamente as capacidades humanas em qualquer área.

Todos esses holofotes são ótimos para os negócios da OpenAI, que lidera essa indústria, mas sofre forte concorrência de empresas como o Google e a Anthropic. Mas mostra também que essas empresas parecem dispostas a acelerar contra uma parede, se isso lhes garantir o protagonismo nessas tecnologias.

Alguns dos maiores especialistas do setor, como Geoffrey Hinton, considerado o “padrinho da IA”, demonstram sérias preocupações com isso. Alguns afirmam que nunca chegaremos a esse estágio tecnológico, mas o maior temor é que percamos o controle desses sistemas, que passariam a se autoatualizar seguindo seus interesses, e não mais os da humanidade, algo conhecido no setor como “desalinhamento”.

Caímos novamente na questão de regulações. Como de costume, a Europa saiu na frente, com sua Lei da Inteligência Artificial, focada em proteger os cidadãos de maus usos dessa tecnologia e de abusos de empresas e de governos.

Muita gente acredita que ela reduzirá a competitividade do continente cada vez mais, especialmente diante de nações que regulam pouco ou nada a IA, como a China. No caso dos EUA, há uma grande expectativa de como o país se comportará nisso com o início, em janeiro, do segundo mandato presidencial de Donald Trump, fortemente influenciado pelo libertário Elon Musk, publicamente contrário a regulamentações.

A verdade é que ninguém sabe como equilibrar a ética, a competitividade e os direitos individuais nessa corrida desenfreada e irresponsável da tecnologia. Ela naturalmente deve continuar sendo desenvolvida e precisamos aprender a fazer usos produtivos dela. Mas isso não pode passar por cima da segurança e do bem-estar das pessoas.

O mundo atual vem sendo guiado por princípios do filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527), que defendia que o sucesso e a manutenção do poder justificariam os métodos empregados, mesmo imorais, desde que fossem eficazes. Mas talvez devêssemos olhar mais para as ideias de outro filósofo, Immanuel Kant (1724-1804). Para ele, mentir ou agir imoralmente nunca é justificável, mesmo para alcançar um bom fim.

Temos que fazer isso logo, antes que a sociedade se esfacele irreversivelmente.

 

David Furlonger, VP do Gartner: “a IA é uma disrupção combinatória, não perca tempo tentando separá-la” - Foto: Paulo Silvestre

Euforia e desconhecimento empacam avanços da IA

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A essa altura, ninguém diria que a inteligência artificial não passa de uma tendência incerta: seu uso cresce sem parar entre profissionais diversos, nos mais variados segmentos do mercado. Porém enquanto os investimentos nessa tecnologia avançam exponencialmente, executivos reclamam dos seus resultados. Isso vem muitas vezes de uma combinação de euforia e de desconhecimentos sobre a IA.

Durante a conferência Gartner CIO & IT Executive, que aconteceu em São Paulo na semana passada, especialistas da consultoria demonstraram isso em números. Segundo levantamento desse ano, 47% dos CIOs no mundo disseram que suas iniciativas corporativas de IA não atingiram seus objetivos. Ainda assim, 87% deles planejam investir mais nessa tecnologia em 2025. No Brasil esse índice chega a 92%!

As expectativas são altas e crescentes. Segundo o Gartner, em 2022, apenas 18% dos executivos de negócios acreditavam que a IA impactaria significativamente sua indústria. No ano seguinte, esse índice cresceu para 21%, saltando para 59% em 2024 e devendo chegar aos 74% até o fim do ano!

Apesar disso, são poucos os que parecem ter apetite para criar usos disruptivos com ela. Segundo a consultoria, metade das iniciativas com IA se concentram em ferramentas de produtividade para as equipes, enquanto 30% agem nos processos. Propostas para verdadeiramente transformar o negócio são apenas 20% dos casos.

Para melhorar esse quadro, as empresas devem parar de ver a inteligência artificial apenas como uma mera ferramenta digital capaz de dar respostas quase mágicas. Ela precisa ser encarada como uma tecnologia disruptiva para o negócio. E isso também exige estudo, planejamento e envolvimento profundo das diferentes equipes da empresa, que muitas vezes se dividem entre o medo e o deslumbramento com a IA.


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“A IA é uma disrupção combinatória, não perca tempo tentando separá-la”, disse na conferência David Furlonger, vice-presidente do Gartner. “Em vez disso, crie uma inteligência artificial estratégica”, sugeriu.

Ele trouxe previsões envolvendo a IA para os próximos anos, surpreendendo pelas suas abrangências e intensidades. A maior parte envolvia pessoas, como um risco de desenvolvimento de vício e vínculos emocionais com a IA, seu uso em convencimento, eliminação de níveis hierárquicos e uso da IA em decisões de alto nível nos negócios.

Outro ponto destacado é o consumo de energia. Apesar de usarmos alegremente o ChatGPT e afins, poucas pessoas têm consciência da brutal capacidade de processamento e de energia que ele consome. Cada resposta que ele nos dá, seria suficiente para fazer uma lâmpada elétrica piscar. Considerando que o ChatGPT cria algo como 500 milhões de respostas por dia, poderíamos dizer grosseiramente que seu consumo seria suficiente para as necessidades energéticas de uma cidade de médio porte.

Furlonger sugeriu que as empresas devem considerar até a geração de sua própria energia (ou parte dela), para atender as necessidades da IA. Segundo ele, até 2027, as maiores empresas do mundo devem transferir US$ 500 bilhões em iniciativas assim.

Em outra fala, Henrique Cecci, diretor-sênior de Pesquisa do Gartner, disse que muitos países não se beneficiam mais da IA por limitações energéticas. Segundo ele, o consumo desses datacenters deve dobrar nos próximos cinco anos. “E não dá para aumentar a capacidade energética de um dia para o outro”, lembrou.

Esse é só uma das despesas associadas ao uso da inteligência artificial. E o custo é justamente uma das maiores ameaças ao sucesso dessa tecnologia. Levantamentos do Gartner indicam que mais da metade das organizações estão desistindo de seus projetos de IA por erros na estimativa de investimentos necessários.

Ironicamente o principal foco nas iniciativas de uso da IA generativa, segundo a consultoria, é a redução de custos dos negócios.

 

IA sob ataque

Outro aspecto que as empresas precisam investir mais é a cibersegurança. A inteligência artificial traz inegáveis benefícios aos negócios, mas ela também abre sérias brechas na sua proteção.

Furlonger destacou os riscos associados aos agentes de inteligência artificial. Eles são sistemas criados para realizar tarefas específicas, e seu uso vem crescendo, até pelo incentivo dos desenvolvedores dessas plataformas. Mas os agentes podem ser enganados por pessoas de fora ou de dentro da organização. Segundo ele, até 2028, um quarto das falhas de segurança digitais podem estar associadas a eles.

Para Oscar Isaka, analista-diretor-sênior do Gartner, “100% de segurança só existe quando há 0% de funcionalidade”. Ele diz que o profissional de cibersegurança moderno deve ser capaz de explicar claramente os riscos para os diferentes públicos. “Vivemos uma batalha contra a desinformação, que desorienta todos”, acrescentou.

Felizmente a mesma inteligência artificial pode ajudar no combate a esses males. Furlonger afirmou que, até 2028, 48% dos CIOs trabalharão com “anjos da guarda digitais”, que automaticamente vasculharão a totalidade das ações dos agentes, identificando e bloqueando ataques. Essa é uma tarefa que os humanos não conseguirão desempenhar sozinhos.

E por falar em tarefas dos humanos, ele também mencionou o impacto da IA nas lideranças alta e média das empresas. Segundo o executivo, até 2026, 20% das empresas usarão IA para eliminar níveis hierárquicos, demitindo mais da metade dos gerentes atuais. Além disso, essa tecnologia será cada vez mais usada para os conselheiros das companhias exigirem melhores resultados do corpo de executivos.

Nenhuma dessas mudanças é trivial, mas já estão acontecendo em passo acelerado. As empresas tentam encontrar o seu caminho, muitas vezes “construindo o avião da IA em pleno voo”. E isso vem causando tantas decepções com resultados.

O melhor a se fazer, portanto, é investir em pessoas e em planejamento. A tecnologia funcionará muito melhor, qualquer que seja sua aplicação, com esses investimentos no lugar. De nada adianta termos sistemas revolucionários, se não soubermos obter resultados palpáveis deles, contornando seus inevitáveis riscos.

 

Para a futurista Amy Webb, não devemos estar preparados para tudo, mas estar preparados para qualquer coisa - Foto: Paulo Silvestre

Superciclo tecnológico atual só faz sentido se gestores mantiverem o foco no cliente

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Desde o arado, novas tecnologias transformam indivíduos e a sociedade como um todo, oferecendo-lhes maneiras de melhorar o que já fazem ou descobrindo novas possibilidades. Algumas promovem mudanças tão profundas e prolongadas que geram um “superciclo tecnológico”. Estamos vivenciando a aurora de mais um deles, protagonizado pela inteligência artificial. Mas ela não está sozinha na transformação!

Isso pode variar muito na forma, mas uma verdade é imutável: os benefícios para as pessoas são sempre mais importantes que a tecnologia em si. Aqueles que querem surfar nessa onda, ao invés de serem tragados por ela, não podem perder isso de vista, especialmente em um mundo tão volátil e ao mesmo tempo tão poderoso, graças à própria tecnologia.

Isso se reforça pelo fato de o intervalo entre os superciclos e sua duração ficarem cada vez menores. Por exemplo, tivemos a Revolução Industrial, que começou ainda no século XVIII e durou cerca de 200 anos. Depois vieram outros, como os superciclos da eletricidade, da química, da computação, da Internet e da mobilidade.

Se suas durações e os intervalos entre eles eram medidos em séculos, agora não chegam a uma década! Isso não os torna menos importantes, mas os faz mais intensos.

Nesse cenário crescentemente complexo, nem sempre há tempo para se apropriar de todas as novidades. Portanto, um dos principais desafios de gestores públicos e privados é não se deixar seduzir pelo brilho próprio da tecnologia, limitando-se a ela, e sim usá-la para transformar a vida das pessoas.


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Na quinta passada, a futurista americana Amy Webb abordou a capacidade de transformação social do superciclo tecnológico atual, durante a palestra mais aguardada da Febraban Tech, o principal evento de tecnologia bancária da América Latina, que aconteceu em São Paulo de terça à quinta.

Webb, que também é professora da Universidade de Nova York (EUA), explicou que essa é a primeira vez que um superciclo não é motivado por uma única tecnologia, e sim pela combinação de três: inteligência artificial, sensores por toda parte e biotecnologia. “Não são três superciclos separados, e sim um superciclo que combina as três tecnologias”, afirmou. “Isso vai reformar a existência humana!”

Disso deriva uma classe de produtos impulsionados pela chamada “Geração Aumentada por Recuperação de Dados” (da sigla em inglês RAG). Ela combina recursos sofisticados para extrair a informação que o usuário quiser de diferentes bancos de dados e serviços, apresentando-a de uma maneira facilmente compreensível graças à IA generativa.

Isso reforça os produtos com “tecnologia de propósito geral”, ou seja, que podem ser usados para funções muito distintas, algumas nem previstas no momento de seu lançamento. Por isso, chega a ser surpreendente os problemas enfrentados pela Alexa, um produto da Amazon que reinou nessas categorias nos anos de uma IA primitiva, mas que agora não está conseguindo fazer frente ao avanço do ChatGPT.

“Essa combinação entre o transacional e a IA generativa, não importa em qual dispositivo, em qual comunicador, em qual fornecedor, é a curva evolutiva da IA, que permeará tudo”, afirma Thiago Viola, diretor de inteligência artificial, dados e automação da IBM Brasil. Segundo ele, “se você simplesmente responde, sem integrar com um serviço, você faz o que a gente chama de IA parcial”, e aí se deixa de oferecer ao cliente o valor agregado de produtividade.

 

Assistente digital permanente

As tecnologias que compõem o superciclo tecnológico atual devem, portanto, ser usadas para oferecer uma assistência digital automática, permanente e cada vez mais personalizada às pessoas. E as empresas precisam assumir o seu papel nisso.

“Vejo essa tecnologia sendo usada para mudar a forma como uma empresa interage com seus clientes ou parceiros, gerando novos tipos de produtos e serviços digitais”, sugere o britânico Matthew Candy, diretor global de IA generativa na IBM Consulting, que também participou da Febraban Tech.

Ele explica que as empresas não podem fazer isso se limitando a um único modelo de IA (como o GPT), devendo criar experiências únicas e ajustadas às necessidades de seus clientes, pela combinação de vários pequenos modelos próprios. “Como vou conseguir uma diferenciação competitiva quando todos os meus concorrentes têm acesso e fazem a mesma coisa que eu, com o mesmo material”, questiona Candy.

Tudo isso pode parecer muito distante, como uma obra de ficção científica. Mas o superciclo atual está diante de nós, impondo suas incríveis oportunidades e apresentando novos desafios, não apenas tecnológicos, mas também éticos e de governança. Isso também impulsiona gestores a ousar em seus movimentos, mas sem desprezar os cuidados com segurança e privacidade dos dados dos clientes.

Em um mundo em que a inteligência artificial está cada vez mais integrada a nossas vidas, até no que vestimos, a personalização se torna um fator crítico de sucesso. Para isso ser possível, usuários concedem acesso cada vez mais irrestrito a suas informações, o que garante um enorme poder às organizações. Sem uma governança madura em seus processos, isso pode desequilibrar o relacionamento entre empresas e seus clientes, o que pode parecer tentador, mas, a longo prazo, é ruim para todos.

Gestores de tecnologia e de negócios devem, portanto, manter um olho na operação e outro na inovação. Em um ambiente de competição complexa, concentrar-se em qualquer dos lados dessa equação, diminuindo o outro, pode ser um erro fatal. Se prestarem muita atenção à operação, podem ser atropelados por concorrentes mais ousados; se privilegiarem apenas a inovação, podem construir sistemas frágeis ética e tecnologicamente.

Como disse Web em sua palestra, “nosso objetivo não deve ser estarmos preparados para tudo, mas estarmos preparados para qualquer coisa”. A diferença parece sutil, mas é enorme!

Em outras palavras, ninguém tem recursos para antecipar todas as possibilidades de seu negócio, mas precisamos estar abertos e prontos para abraçar criativa e cuidadosamente o imprevisto. Esse é o caminho para o sucesso e para relações mais saudáveis nesse superciclo tecnológico.

 

Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, que acaba de aprovar a Lei da Inteligência Artificial - Foto: PE/Creative Commons

Europa regulamenta a IA protegendo a sociedade e sem ameaçar a inovação

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O Parlamento Europeu aprovou, na quarta passada (13), a Lei da Inteligência Artificial, uma legislação pioneira que visa a proteção da democracia, do meio ambiente e dos direitos fundamentais, enquanto promove o desenvolvimento dessa tecnologia. As novas regras, que devem entrar em vigor ao longo dos próximos dois anos, estabelecem obrigações para desenvolvedores, autoridades e usuários da IA, de acordo com potenciais riscos e impacto de cada aplicação.

Na semana anterior, a Europa já havia aprovado uma lei que regula a atuação das gigantes da tecnologia, favorecendo a competição. Tudo isso consolida a vanguarda do continente na organização do uso do mundo digital para proteger e beneficiar a sociedade, inspirando leis pelo mundo. O maior exemplo é a GDPR, para proteção de dados, que no Brasil inspirou a LGPD, nossa Lei Geral de Proteção de Dados.

Legislações assim se tornam necessárias à medida que a digitalização ocupa espaço central em nossas vidas, transformando profundamente a sociedade. Isso acontece desde o surgimento da Internet comercial, na década de 1990. De lá para cá, cresceu com as redes sociais, com os smartphones e agora com a inteligência artificial.

O grande debate em torno dessas regras é se elas podem prejudicar a sociedade, ao atrapalhar o desenvolvimento tecnológico. A preocupação é legítima, mas ganha uma dimensão muito maior que a real por influência dessas empresas, que se tornaram impérios por atuarem quase sem regras até agora, e gostariam de continuar assim.

Infelizmente essas big techs abusaram dessa liberdade, sufocando a concorrência e criando recursos que, na prática, podem prejudicar severamente seus usuários. Portanto, essas leis não devem ser vistas como ameaças à inovação (que continuará existindo), e sim como necessárias orientações sociais para o uso da tecnologia.


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A nova lei proíbe algumas aplicações da IA. Por exemplo, o uso de câmeras fica restrito, sendo proibido o “policiamento preditivo”, em que a IA tenta antecipar um crime por características e ações das pessoas. Também são proibidos a categorização biométrica e a captação de imagens da Internet ou câmeras para criar bases de reconhecimento facial. A identificação de emoções em locais públicos, a manipulação de comportamentos e a exploração de vulnerabilidades tampouco são permitidos.

“O desafio é garantir que tecnologias de vigilância contribuam para a segurança e bem-estar da sociedade, sem prejuízo das liberdades civis e direitos individuais”, explica Paulo Henrique Fernandes, Legal Ops Manager no Viseu Advogados. “Isso requer um diálogo contínuo para aprimoramento de práticas e regulamentações que reflitam valores democráticos e éticos”, acrescenta.

A lei também disciplina outros sistemas de alto risco, como usos da IA em educação, formação profissional, emprego, infraestruturas críticas, serviços essenciais, migração e Justiça. Esses sistemas devem reduzir os riscos, manter registros de uso, ser transparentes e ter supervisão humana. As decisões da IA deverão ser explicadas aos cidadãos, que poderão recorrer delas. Além disso, imagens, áudios e vídeo sintetizados (os deep fakes) devem ser claramente rotulados como tal.

A inovação não fica ameaçada pela lei europeia, porque ela não proíbe a tecnologia em si, concentrando-se em responsabilidades sobre aplicações que criem riscos à sociedade claramente identificados. Como a lei prevê um diálogo constante entre autoridades, desenvolvedores, universidades e outros membros da sociedade civil, esse ambiente pode até mesmo favorecer um desenvolvimento sustentável da IA, ao criar segurança jurídica a todos os envolvidos.

A nova legislação também aborda um dos temas mais polêmicos do momento, que é o uso de conteúdos de terceiros para treinar as plataformas de IA. Os donos desses sistemas vêm usando tudo que podem coletar na Internet para essa finalidade, sem qualquer compensação aos autores. A lei aprovada pelo Parlamento Europeu determina que os direitos autorias sejam respeitados e que os dados usados nesse treinamento sejam identificados.

 

Evitando Estados policialescos

Um grande ganho da nova lei europeia é a proteção do cidadão contra o próprio Estado e seus agentes. A tecnologia digital vem sendo usada, em várias partes do mundo, para monitorar pessoas e grupos cujas ideias e valores sejam contrárias às do governo da vez, uma violação inaceitável a direitos fundamentais, além de criar riscos enormes de injustiças por decisões erradas das máquinas.

Em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, muitas pessoas foram presas por terem sido confundidas pelos sistemas com criminosos. Em São Paulo, a primeira proposta do programa Smart Sampa, implantado em 2023 pela Prefeitura e que monitora os cidadãos com milhares de câmeras, previa que o sistema indicasse à polícia pessoas “em situação de vadiagem”, seja lá o que isso significasse.

A ficção nos alerta há muito tempo sobre os problemas desses abusos. O filme “Minority Report” (2002), por exemplo, mostra que mesmo objetivos nobres (como impedir assassinatos, nessa história) podem causar graves danos sociais e injustiças com a tecnologia. E há ainda os casos em que as autoridades deliberadamente a usam para controlar os cidadãos, como no clássico livro “1984”, publicado por George Orwell em 1949.

O Congresso brasileiro também estuda projetos para regulamentar a inteligência artificial. O mais abrangente é o Projeto de Lei 2.338/2023, que propõe o Marco Legal da Inteligência Artificial. “Enquanto a União Europeia estabeleceu um quadro regulatório detalhado e abrangente, focando na gestão de riscos associados a diferentes usos da IA, o Brasil ainda está definindo seu caminho regulatório, com um enfoque aparentemente mais flexível e menos prescritivo”, explica Fernandes.

É inevitável a profunda transformação que a inteligência artificial já promove em nossa sociedade, um movimento que crescerá de maneira exponencial. Os benefícios que ela traz são imensos, mas isso embute também muitos riscos, especialmente porque nem os próprios desenvolvedores entendem tudo que ela vem entregando.

Precisamos estar atentos também porque muitos desses problemas podem derivar de maus usos da IA, feito de maneira consciente ou não. Por isso, leis que regulamentem claramente suas utilizações sem impedir o desenvolvimento são essenciais nesse momento em que a colaboração entre pessoas e máquinas ganha um novo e desconhecido patamar. Mais que aspectos tecnológicos ou de mercado, essas legislações se tornam assim verdadeiros marcos civilizatórios, críticos para a manutenção da sociedade.

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, fala sobre inteligência artificial no Fórum Econômico Mundial desse ano, em Davos - Foto: reprodução

Enquanto a IA melhora a produtividade de alguns, torna outros “inempregáveis”

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No dia 14, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um estudo que indica que cerca de 40% dos trabalhos do mundo serão impactados pela inteligência artificial. Isso não se dará de maneira homogênea: enquanto ela trará grande produtividade a alguns, pode eliminar postos de trabalho e até deixar muitas pessoas “inempregáveis”, ou seja, sem capacidade de assumir qualquer ocupação com o que sabem fazer.

Por que uma mesma tecnologia provoca consequências tão opostas no mercado de trabalho de um mesmo país, ao mesmo tempo? A resposta passa pelas capacidades dos profissionais de se adaptar para tirar proveito do que ela oferece.

Enquanto isso, o Brasil comemora mais uma queda na taxa de desemprego, que terminou novembro em 7,5%, a menor desde fevereiro de 2015. Ainda assim, o país continua tendo 8,2 milhões de desempregados. Apesar de muito bem-vinda essa retração, é preciso estar atento à qualidade desses empregos. Afinal, com o avanço da IA, muitos deles podem desaparecer em breve por falta de capacitação. A sociedade brasileira precisa se mobilizar para que isso não aconteça com força.

A IA escancara, portanto, algo que já se observa há anos: o futuro do trabalho passa pelo futuro da educação. Os robôs estão se tornando auxiliares valiosos, mas as pessoas precisam de uma melhor formação para não serem substituídas por eles.


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Segundo o estudo do FMI, nos países mais ricos, a IA afetará 60% dos postos de trabalho: metade será beneficiada, enquanto a outra pode experimentar desemprego, queda de salários e até extinção de profissões inteiras. Já nos emergentes, o impacto deve atingir 40% dos trabalhadores, mas apenas 26% devem ser beneficiados.

Segundo os autores, essa diferença entre países se dá pela falta de infraestrutura e de mão de obra qualificada para aproveitar bem a IA nos emergentes. Por isso, com o tempo, a inteligência artificial pode aumentar a desigualdade entre nações, e o mesmo se pode esperar entre ricos e pobres de um mesmo país.

A IA vem despertando tanto deslumbramento quanto medo. Não devemos sentir nenhum deles: precisamos entendê-la para nos apropriarmos do que els oferece de bom e nos esquivarmos de eventuais armadilhas, inclusive no mundo do trabalho.

Novas tecnologias extinguem profissões e criam oportunidades desde o início da Revolução Industrial, no século XVIII. A sociedade se ajusta e faz as mudanças para o novo. A diferença é que agora a adaptação precisa ser muito mais rápida, exigindo habilidades básicas que muitos não têm e que não conseguem adquirir a tempo. Por isso, pessoas no seu auge profissional estão vendo sua empregabilidade derreter, de uma maneira que elas não conseguem controlar, algo desesperador a qualquer um.

Ao contrário do que se via há alguns anos, quando apenas as pessoas menos qualificadas eram impactadas pela automação, a inteligência artificial também atinge carreiras mais nobres e criativas. Portanto, apesar de uma boa educação continuar sendo absolutamente fundamental, é preciso saber o que e como estudar.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV) divulgado em setembro demonstrou que os brasileiros que estudaram mais foram os que perderam mais renda na última década, com um aumento abrupto na informalidade. Isso obviamente não está associado à explosão da IA, que ainda é muito recente, mas demonstra que ninguém mais está “seguro”.

Na semana passada, o LinkedIn divulgou quais são as profissões em alta em vários países. No Brasil, várias estão intimamente ligadas ao mundo digital e à própria IA, como analista de privacidade, de cibersegurança e de dados. Outro estudo, da Universidade da Pensilvânia (EUA) e da OpenAI, concluiu que 80% dos trabalhadores americanos podem ter pelo menos 10% de suas tarefas afetadas pela IA.

Isso fica dramático no Brasil, com sua educação tecnológica ruim e um acesso limitado ao mundo digital. Segundo a mais recente pesquisa TIC Domicílios, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 20% dos domicílios (15 milhões) e 14% dos brasileiros com 10 anos ou mais (27 milhões) nem têm acesso à Internet.

 

Futuros do trabalho e da educação juntos

Muitas das “profissões do futuro” paradoxalmente existem desde a Antiguidade, como professores e médicos. Elas assim se classificam porque continuarão existindo e sendo muito importantes para a sociedade. Mas mesmo elas já sofrem e continuarão sofrendo grande mudanças pela digitalização. Querer continuar as exercendo como se fazia há alguns anos é um convite para ser colocado para fora do mercado. Por outro lado, profissionais que se atualizem com as novas tecnologias, como a inteligência artificial, se tornarão ainda mais relevantes.

O avanço galopante da IA atropela uma sociedade que não consegue medir as transformações que ela trará em pouco tempo. Em dezembro, o fundador da Microsoft Bill Gates disse que o avanço dessa tecnologia em breve permitirá semanas de trabalho de três dias, com as pessoas ganhando o mesmo. Tecnicamente pode ser verdade, mas, para que isso aconteça, os gestores teriam que fazer esse movimento magnânimo, ao invés de simplesmente demitir metade de sua força de trabalho para aumentar muito seus lucros. Não se trata, portanto, só de uma mudança tecnológica.

No Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) do ano passado, os líderes mundiais estavam deslumbrados com as oportunidades da IA. Na edição desse ano, que terminou na sexta, a euforia foi substituída por uma busca de como usá-la de forma responsável e segura, e qual o papel de cada um nisso.

Toda tecnologia deve ser usada para o bem de todos, e não apenas para o benefício de alguns. Um dos temores sobre a IA, que indubitavelmente fará a humanidade dar vários saltos, é que ela também seja usada para o mal. O mundo do trabalho é apenas um dos elementos mais críticos disso na vida das pessoas.

Governos, empresas e demais atores da sociedade civil devem fazer os ajustes necessários antes que essa bomba exploda, pois seu efeito pode ser devastador. Aqueles que estão na parte beneficiada pela IA não podem se acomodar e fingir que esse problema não lhes pertence, pois acabarão impactados de uma ou outra forma.

Precisamos de uma revolução educacional que ensine as pessoas a usarem melhor as tecnologias, não como meros apertadores de botões ou criadores de comando para o ChatGPT. Elas precisam entender o porquê de tudo isso para fazer escolhas conscientes, sem se tornar consumidores com senso crítico achatado pela máquina. De uma maneira um tanto paradoxal, isso acontecerá apenas com uma educação que também fortaleça seus aspectos humanos.

E precisamos disso já, pois a inteligência artificial não esperará pela lerdeza natural.

 

Ilustração: Creative Commons

Esse será de novo o ano da inteligência artificial, mas de uma forma diferente

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Quando 2022 começou, o mundo da tecnologia só falava de metaverso, grande promessa incensada por Mark Zuckerberg, que até trocou o nome de sua empresa de Facebook para Meta. Mas, passados 12 meses, nada verdadeiramente útil aconteceu em torno dele. Já 2023 começou com a inteligência artificial ocupando os grandes debates tecnológicos, e, ao final do ano, ela superou todas as expectativas. Agora, que estamos começando 2024, ressurge a pergunta: esse será o ano do que, no cenário tecnológico?

Conversei com diferentes especialistas e executivos e a resposta passa novamente pela inteligência artificial. Mas nada será como era antes! O que aconteceu em 2023 e deixou o mundo de queixo caído ficará para trás como iniciativas embrionárias, quase protótipos. Os entrevistados foram unânimes em afirmar que o ano que passou foi de aprendizado e que agora, em 2024, o mundo deve começar a ver a inteligência artificial movendo produtos realmente profissionais.

Outras mudanças em curso se consolidarão a reboque disso. O mercado de trabalho continuará sendo impactado, com oportunidades para profissionais mais atualizados e ameaças para quem permanece em tarefas repetitivas. Além disso, a liderança de TI ocupará cada vez mais o espaço de decisão de negócios, e questões éticas do uso da tecnologia ganharão destaque no cotidiano empresarial.

Esse será o ano em que a inteligência artificial se tornará verdadeiramente produtiva!


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“Quando eu olho 2024, continua sendo um ano de inteligência artificial, mas será um ano de muito mais inteligência de transformar o caso de uso em realidade”, afirma Thiago Viola, diretor de Inteligência Artificial e Dados da IBM Brasil. “As empresas vão começar a amadurecer, para garantir que as soluções funcionarão, que não vão ‘alucinar’, que não vão dar nenhum problema.”

“Em 2023, a gente teve alguns ‘brinquedinhos’, não eram ainda algo que se pudesse chamar de uma aplicação corporativa”, explica Cassio Dreyfuss, vice-presidente de análise e pesquisa do Gartner Brasil. “Em 2024, isso vai decolar e você tem que estar preparado para isso!”

Essa também é a percepção de Marcelo Ciasca, CEO da Stefanini. Para ele, “apesar de em 2023 a inteligência artificial ter sido a pauta principal em termos de tecnologia, ninguém sabia exatamente ainda como aplicá-la efetivamente.”

“’Automação’ é uma palavra importante para o ano”, sugere Gilson Magalhães, presidente da Red Hat Brasil. Apesar do deslumbramento que a IA provocou em 2023, as empresas passam a entender que ela é uma ferramenta para processos mais robustos e poderosos. “A automação vai entrar mais nas casas, melhorar nossa percepção de temas pessoais, mas a gente vai ver também automação industrial, no campo, fabril, a automação entrando como uma grande meta”, acrescenta.

A OpenAI, criadora do afamado ChatGPT, deu um passo importante nessa direção no final de 2023, ao liberar a possibilidade de seus usuários pagantes criarem os seus próprios assistentes virtuais, especializados em um tema e alimentados com dados próprios. Esse é o prelúdio de inteligências artificiais capazes de realizar tarefas mais amplas a partir de comandos complexos, conectando-se a diferentes serviços e até tomando decisões em nome do usuário.

A primeira vez que vi isso foi ainda em novembro de 2019, em uma demonstração da Microsoft, Adobe, Accenture e Avanade. Em uma época que o ChatGPT parecia uma miragem, um sistema controlado por voz em frases muito simples comprava passagens aéreas, reservava hotéis e até pedia comida para o usuário. Mas o que mais me chamou a atenção foi que ele tomava decisões comerciais com base no que sabia do usuário, sem o consultar, como por exemplo, escolher em qual hotel faria a reserva e até pedir um sanduíche sem queijo, pois a pessoa era intolerante à lactose.

Perguntei na época qual a garantia que eu, como usuário, teria que essas decisões seriam as melhores para mim, e não para as empresas envolvidas. E isso toca em um ponto que deve nortear os sistemas com IA nos próximos anos: a ética! Questionei também quando poderíamos ter algo como aquilo disponível.

A resposta: por volta de 2024!

 

Máquinas éticas

“Haverá um encapsulado de gestão e governança muito mais forte do que vimos em 2023”, afirma Viola. Segundo o executivo, “será um ano que vai ter que realizar se preocupando com fatores éticos, de governança, de proteção da IA como um todo”.

Esse debate ganhou força em 2023 e deve se cristalizar em 2024. Não se quer uma tecnologia incrível que, para ser assim, passe por cima da privacidade ou ameace direitos e até o bem-estar das pessoas. A regulamentação da IA é um grande desafio, pois ela não deve coibir seu desenvolvimento, mas precisa encontrar maneiras de responsabilizar empresas e usuários por maus usos e descuidos na sua criação.

Esse cenário abre ótimas oportunidades a empresas e profissionais. “TI se transformou no grande divisor de águas de diferenciação das empresas”, explica Magalhães. “Se você tem uma boa TI, você se diferencia”, conclui.

Em uma vida cada vez mais digitalizada e dependente da IA para decisões pessoais e empresariais, essas equipes ficam ainda mais importantes. “A TI muda de papel: ao invés de receber requisitos para gerar soluções, vai fornecer, de uma maneira consultiva, recursos nas áreas de clientes”, explica Dreyfuss. Ciasca corrobora essa ideia: “isso não vai eliminar o emprego das pessoas, mas vai redirecionar muitos para que as pessoas tenham a capacidade de fazer isso de forma adequada.”

Não há dúvida de que será um ano estimulante e de desenvolvimentos exponenciais. Precisamos apenas nos manter atentos porque todas essas novidades galopantes, que tanto nos impressionam, acabam sendo difíceis de assimilar pela nossa humanidade (o que não deixa de ser emblemático). Não podemos achar que o fim justifica os meios e partir em uma corrida irresponsável, mas tampouco podemos ficar travados por temores de máquinas que nos dominem (ou coisas piores).

Cada vez mais, a inteligência artificial será nossa parceira pessoal e de negócios, e isso ficará mais consolidado e profissional em 2024. É hora de nos apropriarmos de todo esse poder, para nos beneficiarmos adequadamente do que bate a nossa porta!

 

O CEO da OpenAI, Sam Altman, que ganhou a briga contra o antigo conselho da empresa - Foto: Steve Jennings/Creative Commons

Esse foi o ano da inteligência artificial, sem dúvida

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Todo ano uma tecnologia desponta como inovadora, capturando mentes e manchetes. Ao final de 2023, poucas pessoas destacariam outra coisa que não fosse a inteligência artificial. Ela deixou de existir apenas em debates acadêmicos e de especialistas para ocupar rodas de conversas de leigos em mesas de bar. Mas o que fez uma tecnologia septuagenária e que já integrava nosso cotidiano (ainda que a maioria não soubesse disso) ganhar tamanha importância?

A resposta passa pelo lançamento de um produto: o ChatGPT. Apesar de ter sido liberado em 30 de novembro de 2022, nesse ano se tornou o produto de mais rápida adoção da história (e não me restrinjo a produtos digitais), com 100 milhões de usuários em apenas quatro meses! Mas a despeito de suas qualidades, sua grande contribuição foi demonstrar ao cidadão comum o poder da IA. E isso detonou uma corrida frenética para inclusão dessa tecnologia em todo tipo de produtos.

O ChatGPT faz parte de uma categoria da inteligência artificial chamada “generativa”. Isso significa que ele é capaz de gerar conteúdos inéditos (no seu caso, textos) a partir do que sabe. Parece mágica para muita gente, mas uma outra característica sua talvez seja ainda mais emblemática: o domínio da linguagem humana, e não termos truncados ou computacionais. E uma linguagem complexa, estruturada e consciente nos diferenciava dos outros animais e das máquinas.

Agora não mais das máquinas! Ao dominar a linguagem humana, a IA praticamente “hackeou” o nosso “sistema operacional”. E essa é a verdadeira explicação para 2023 ter sido o ano da inteligência artificial.


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Como é preciso quebrar alguns ovos para fazer uma omelete, toda essa transformação trouxe algumas preocupações. Uma das primeiras veio da educação, com professores temendo que perderiam a capacidade de avaliar seus alunos, que passariam a usar o ChatGPT para fazer seus trabalhos. Alguns professores chegaram até a temer que fossem substituídos de vez por máquinas inteligentes. Felizmente nada disso aconteceu, mas o debate serviu para educadores perceberem que precisavam reciclar a maneira como ensinavam e avaliavam seus alunos.

O medo de ser substituído pela máquina também atingiu funções que antes se sentiam imunes a isso, por serem trabalhos criativos. E esse é um temor legítimo, pois muita gente já está perdendo mesmo o emprego para a IA. Mas há “esperança”!

A inteligência artificial realmente cria coisas incríveis depois de processar quantidades obscenas de informação, encontrando soluções que nem o mais experiente profissional conseguiria. Mas ela também erra, e erra muito! São as chamadas “alucinações”, termo que entrou em nosso cotidiano em 2023 com essa acepção.

Trata-se de informações incorretas (às vezes muito erradas) que as plataformas inventam e incluem em suas produções, para tentar atender aos pedidos dos usuários. Por conta delas, muita gente se deu mal em 2023, até perdendo o emprego, por apresentar trabalhos com esses erros grosseiros. Portanto, bons profissionais ainda são necessários, para verificar se a IA não está “mentindo” desbragadamente.

As big techs abraçaram a IA! Depois que o ChatGPT foi chamado inicialmente de “assassino de Google” (outra bobagem que não se concretizou), o próprio Google correu para lançar em fevereiro o seu produto, o Bard, tentando deixar para trás a sensação de que tinha perdido a corrida de algo que já pesquisava havia muitos anos. No segundo semestre, a Meta incorporou seu Llama 2 a suas plataformas.

Mas quem acabou aparecendo com força mesmo foi a Microsoft, que teria investido algo como US$ 12 bilhões na OpenAI, criadora do ChatGPT. Com isso, essa tecnologia foi incorporada em muitos de seus produtos, como o Bing e o Word.

A inteligência artificial parece estar em toda parte. Mas isso é só o começo!

 

“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”

A IA realmente deslumbrou todos. Não é exagero afirmar que, mesmo em seu estágio atual, para muitos ainda embrionário, ela já está transformando o mundo. Mas para muita gente, ela está indo rápido demais.

Hoje há um embate entre dois movimentos. De um lado, temos o “Altruísmo Eficaz”, que defende que o desenvolvimento da IA seja bem regulado, para evitar que ela se torne muito poderosa e destrua a humanidade. Do outro, há o “Aceleracionismo Eficaz”, que defende justamente o contrário: que seu desenvolvimento aconteça totalmente livre, sem regras. Para esses, os benefícios da IA superam eventuais riscos que traga, por isso deve acontecer o mais rapidamente possível.

Esse embate provocou um abalo sísmico no dia 17 de novembro, quando o conselho da OpenAI sumariamente demitiu Sam Altman, fundador e CEO da empresa. Os conselheiros alegaram que Altman não era mais “confiável”. Isso porque a OpenAI nasceu como uma organização sem fins lucrativos, para criar uma IA “que beneficiasse a humanidade”. Com o tempo, Altman percebeu que, se não criasse produtos comerciais para captar novos investimentos, a empresa não evoluiria. Foi quando se juntou à Microsoft!

O que se viu nos cinco dias seguintes foi uma reviravolta cinematográfica, com Altman recebendo apoio massivo dos funcionários da empresa e dos investidores, especialmente da Microsoft. Nesse curtíssimo tempo, reassumiu o cargo e o antigo conselho renunciou. No novo, a Microsoft ganhou um assento.

Por tudo isso, o ano que começou com uma mistura de deslumbramento e temor em torno da inteligência artificial termina com um debate fortíssimo em vários países, inclusive no Brasil, se essa tecnologia deve ser regulamentada. A preocupação é que, se empresas de redes sociais, que não respondem pelos problemas que causam, racharam sociedades ao meio, a IA poderia criar danos potencialmente muito maiores, se usada para o mal e sem nenhuma responsabilização dos usuários e das plataformas.

Com tudo isso, esse definitivamente não foi um ano típico na tecnologia! As mudanças promovidas pela inteligência artificial foram tantas e tão intensas que é como se todo esse debate estivesse acontecendo há muitos anos. Mas não: ele aconteceu todo em 2023. Portanto, não há como negar à inteligência artificial o título de tecnologia mais impactante do ano, para não dizer da década! Precisamos nos apropriar adequadamente dela!

 

Alunos precisam de 20 minutos para se reconectar ao estudo depois de usar smartphones para outras coisas - Foto: RDNE/Creative Commons

Pais e educadores devem “fazer as pazes com o não” para combater excesso de telas

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Ganha força a tese de que crianças e adolescentes fazem um uso excessivo de telas na escola e em casa, e que isso provoca grandes prejuízos ao seu desenvolvimento. No dia 26 de julho, um relatório da Unesco (a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) destacou pela primeira vez o problema e como um quarto dos países já faz alguma restrição de celulares em sala de aula. Mas ainda se fala pouco sobre como professores sem autoridade e até coibidos por pais de alunos podem ser levados a contribuir com essa situação.

Isso aparece no recém-lançado estudo “Educando na era digital”, da consultoria educacional OPEE. Ele indica que 97% dos educadores brasileiros concordam que há “uso excessivo de telas sem acompanhamento”, mas paradoxalmente apenas 9,7% deles acham que elas devem ser proibidas na sala de aula.

O exagero digital dos jovens vai além da escola. Outra pesquisa, a TIC Kids Online Brasil, divulgada no dia 25 de outubro pelo Cetic.br (órgão de pesquisa ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil), indica que 95% dos brasileiros entre 9 e 17 anos estão online, e que isso acontece cada vez mais cedo: no ano passado, 24% tiveram seu primeiro acesso até os seis anos de idade; em 2015, eram 11% nessa faixa etária.

Todos esses fatos estão interligados e se retroalimentam. Enquanto pais e educadores não resgatarem a consciência de sua autoridade para impor limites aos mais jovens, esse quadro tende a se agravar. É impensável negar o acesso à tecnologia digital no nosso mundo hiperconectado, mas é preciso ensinar crianças e adolescentes a usarem-na de maneira construtiva e responsável.


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“Muitos educadores nem podem dizer ‘não’, porque a escola está muito refém da ‘carteirada’, no caso da escola particular, e até da agressão ou da humilhação, na escola pública”, afirma Leo Fraiman, mestre em psicologia educacional e autor da metodologia OPEE. “O professor hoje é tido, por muitas famílias, como um funcionário, um empregado seu, e não mais como uma autoridade.”

Segundo o psicoterapeuta, existe uma esquizofrenia entre famílias e escolas. As primeiras exigem das segundas o ensino de limites, de valores, de humanidade. Mas quando surge algum limite, até em uma simples nota baixa, os pais reagem negativamente.

“Viemos de um modelo mais rígido, de onde muitos adultos saíram ressentidos, até machucados emocionalmente”, explica o pesquisador. “E hoje, como pais, é como se quisessem se vingar das suas próprias feridas, superprotegendo os filhos.”

As telas de crianças e adolescentes são subprodutos dessa cultura. Muitos pais argumentam que elas desenvolvem, nos mais jovens, necessárias habilidades digitais, o que não deixa de ser verdade, desde que feito com orientação. Entretanto, o que se observa é que principalmente o celular se tornou um “companheiro” que ocupa o tempo dos pequenos, uma “babá eletrônica” (posto que foi ocupado pela TV há 30 anos) que falsamente desobriga os pais de dar mais atenção aos filhos.

Isso se reflete na escola, com pais exigindo a possibilidade de falar com seus filhos a qualquer momento, mesmo nas horas em que estiverem em aula. Com o smartphone, os alunos acabam impactados pelas incontáveis notificações, além da sedução das redes sociais, destacadas pela Unesco como fortes fatores de distração. E os alunos podem levar até 20 minutos para se concentrar novamente no que estavam aprendendo depois de usarem o smartphone para atividades não-educacionais.

É importante que fique claro que ninguém está dizendo que os jovens não devem usar a tecnologia, e sim que façam isso de forma comedida e sob orientação de adultos. A Unesco aponta que o excesso e a falta de critérios podem levar ao surgimento de problemas de alimentação, sono, saúde mental e saúde ocular.

 

Cyberbullying e outras agressões digitais

Outro estudo do Cetic.br, o TIC Educação, divulgado em 25 de setembro, indica que um terço dos professores brasileiros disseram que seus alunos pediram ajuda após terem sofrido assédio ou agressões pelo meio digital, ou terem suas fotos publicadas sem consentimento. Em um ano, os casos de vazamento de fotos saltaram de 12% para 26% e os de cyberbullying passaram de 22% para 34% dos estudantes. Esses números estão em linha com as observações dos educadores ouvidos pela pesquisa da OPEE: 80,9% deles acreditam que o acesso às telas favorece o cyberbullying.

É muito bom observar que os alunos recorrem a seus professores para lidar com problemas gravíssimos criados ou agravados pelo meio digital. Isso demonstra uma relação de confiança diante de algumas das maiores agressões que eles podem sofrer. Entretanto os professores precisam ter autonomia para atuar como necessário, até mesmo limitando o uso das telas e das redes sociais. A escola ganha também um novo papel, que é o de educar os pais no convívio digital, uma habilidade que possivelmente eles mesmos não dominem.

Fraiman alerta que estamos “contraindo uma dívida enorme para as próximas gerações” ao não as educar para um uso construtivo do meio digital, abrindo brechas para o surgimento de todos esses problemas educacionais e emocionais. E provoca: “diante de um mundo que vai ser cada vez mais competitivo, exigente, caro, acelerado, complexo, qual é a chance de uma criança, de um adolescente realmente se tornar ativo e inserido na sociedade e no mercado de trabalho, se ele for uma pessoa rasa, individualista, narcisista, acomodada e amedrontada?”

Isso vem de quebras de paradigmas sociais que a tecnologia continuamente nos impõe. As potencialidades oferecidas são fabulosas e surgem em escala exponencial, assim como problemas da nossa inadequação a tantas novidades. Começou com o surgimento da Internet comercial, foi seguida pela explosão das redes sociais e posteriormente dos smartphones. Agora a inteligência artificial é a bola da vez. É muito difícil absorver adequadamente tanta mudança!

A Unesco defende o uso de telas nas escolas, desde que claramente destinadas ao apoio ao ensino, e não como distração dos alunos. Além disso, nunca podem substituir o papel dos professores. Esses, por sua vez, precisam ter sua autonomia e autoridade resgatadas por boas políticas educacionais e pelas próprias instituições de ensino. Quanto às famílias, cabe a elas trabalharem em parceria com as escolas para a criação de limites a seus filhos, respeitando e valorizando os educadores.

A escola é um espaço de aquisição de conhecimento, mas também de respeito a diferenças e de fortalecimento de uma cidadania inclusiva, com um uso inteligente de todos os recursos disponíveis. Isso só acontecerá com a colaboração de todos os envolvidos, e nossos jovens precisam desesperadamente disso.

 

Metrô de São Paulo lotado após fracasso de “big techs” que revolucionariam a mobilidade urbana - Foto: Wilfredor / Creative Commons

Como as big techs querem substituir instituições da sociedade por tecnologia

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Todos nós usamos produtos do Google, da Meta, da Apple e de outras “big techs”. De fato, eles facilitam enormemente a nossa vida e ainda são rotulados como “grátis”.

Sabemos que não há nada de graça nisso. A explicação tradicional é que pagamos por eles com nossos dados, que permitem que essas empresas ganhem dinheiro, por exemplo, nos entregando anúncios hiperpersonalizados. É o chamado “capitalismo de vigilância”.

Mas a ascensão da inteligência artificial e a guerra aberta que as “big techs” travam contra qualquer forma de limitação de suas atividades, como estamos vendo no Brasil no embate contra o “PL das Fake News”, revela que esse controle que elas têm sobre nós é muito mais complexo, a ponto de que muita gente as defende nesses casos. E a tentativa de regulação da inteligência artificial fará nosso fracasso em impor limites razoáveis às redes sociais parecer algo pífio.

O que essas empresas realmente desejam é uma liberdade não-regulada para, entre outras coisas, substituir instituições da sociedade em áreas como saúde, educação, transporte ou segurança por soluções tecnológicas que, segundo elas, superariam a “ineficiência” do que temos hoje. Ao ocupar um espaço tradicionalmente sob cuidados do Estado, alcançariam um poder inimaginável, muito maior que o atual.

Eles só não dizem que tudo nessa vida tem um custo. Esse não será pago com publicidade em nossos celulares. Então “como essa conta fecha”?


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O avanço da inteligência artificial é inevitável e muito bem-vindo: ela tem o potencial de oferecer à sociedade benefícios até então inimagináveis. Mas isso significará que entregaremos muitas de nossas escolhas às máquinas, que decidirão o que elas acreditam ser o melhor para cada um de nós.

Em uma sociedade já encharcada de algoritmos, eles passam a controlar muito de nossa vida, de maneiras que nem percebemos. Nós não temos a menor ideia de quais são suas regras que decidem cada vez mais por nós. Diante de tanto poder, a falta de transparência das “big techs” e de explicabilidade de seus produtos se torna inaceitável e perigoso para nossas vidas e para a democracia. É justamente isso que essas empresas lutam para manter, pois, se soubermos detalhadamente o funcionamento de seus algoritmos, elas perdem o poder que têm sobre os cidadãos.

Tudo isso vale para os algoritmos atuais, bem conhecidos e controlados pelas “big techs”. A inteligência artificial torna esse debate ainda mais importante, pois nem seus criadores entendem completamente as novas estratégias criadas pelas máquinas para solucionar problemas.

Se essas companhias lograrem criar a chamada “inteligência artificial geral”, aquela que não se limita mais a tarefas específicas e passa a se comportar de maneira semelhante à mente humana, tomando decisões sobre qualquer assunto, a situação pode ficar realmente dramática.

Imagine um sistema como esse que tenha assumido, com nosso consentimento, decisões críticas sobre a saúde pública. Em nome de deixar todo o sistema mais “eficiente”, ele pode passar a privilegiar cirurgias com mais chance de sucesso ou lucrativas, em detrimento das mais difíceis ou com menos ganhos. Mas todos merecem a chance de serem tratados, mesmo quem tem baixa possibilidade de sucesso. Essa é a visão humana de um médico, que uma máquina que acha que o fim justifica os meios pode ignorar.

Agora multiplique esses riscos acrescentando, na equação, segurança pública, educação e até economia de um país.

 

Nem sempre dá certo

O discurso do Vale do Silício enaltece o inegável poder transformador da tecnologia. É praticamente impossível viver hoje sem smartphones, buscadores ou redes sociais. Mas seus gurus adoram perpetuar as histórias de sucesso, enquanto ignoram os fracassos. E eles muitas vezes acontecem quando se tenta substituir uma instituição social por uma tecnologia.

Podemos pensar, como exemplo, no caso da Uber. Conceitualmente acho sua proposta muito interessante, mas ela parece “estar fazendo água”, particularmente no Brasil. Vocês devem se lembrar como a empresa chegou prometendo revolucionar a mobilidade urbana, como um substituto vantajoso ao transporte público, com suas corridas baratas e a possibilidade de se ganhar dinheiro dirigindo.

Foi um sucesso instantâneo: muita gente chegou a vender seu carro! Mas, para aquilo ser possível, a empresa queimava milhões de dólares em subsídios. Quando os investidores se cansaram de perder dinheiro e exigiram lucros, o modelo ruiu, com a consequente queda enorme na qualidade do serviço, que agora sentimos.

Porém o mais educativo desse exemplo é mostrar que nunca se propôs resolver o verdadeiro problema social, no caso as deficiências no transporte público. Substituía-se uma “gestão governamental ineficiente” por uma “solução tecnológica mágica”, cujo verdadeiro objetivo era sedimentar a dominância da empresa em seu setor. Quando a realidade bateu à porta, ficamos sem nada!

O grande desafio da nossa geração é tomar consciência de que somos cada vez mais dependentes da tecnologia e das empresas que as criam. Elas têm suas próprias agendas e narrativas de como estão melhorando e até “salvando” o mundo com seus produtos. Mas às vezes a sua necessidade de lucrar chega antes de salvarem qualquer coisa.

Não nos enganemos: como qualquer outra empresa, seu objetivo real é aumentar seus lucros, e, a princípio, não há nada de errado nisso. Mas esse objetivo não pode ser atingido às custas do desmantelamento das instituições da sociedade e dos mecanismos de proteção dos interesses da população.

Não estou propondo a interrupção do avanço tecnológico: ele é essencial para melhorarmos nossas vidas. Mas precisamos parar de acreditar candidamente que a tecnologia resolverá todos nossos problemas e melhorará magicamente a sociedade. Temos que ter consciência de como isso será feito e qual será o verdadeiro o custo social que pagaremos.

Tudo isso deve acontecer preservando os legítimos interesses das pessoas, o que muitas vezes conflitam com os dessas empresas. É por essas e outras que elas precisam ser reguladas. Elas não podem ser mais poderosas que os governos eleitos no mundo todo, nem mesmo substituir suas instituições.

 

Imagem: composição por Paulo Silvestre

Chamamos de “magia” muitas coisas que simplesmente não entendemos

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Em 1985, eu e três amigos começamos a nos interessar por computadores, em uma época em que pouquíssimas pessoas sabiam o que eles eram ou para que serviam. Fomos a uma pioneira “escola de computação” no bairro para saber se poderíamos aprender mais sobre aquilo. A recepcionista nos levou a um TK-85 (um pequeno computador como o da imagem) e digitou o seguinte programa:

 

10 PRINT "Qual é o seu nome?"
20 INPUT nome$
30 PRINT "Olá, " + nome$ + "."
40 END

 

Quando ela rodou aquele código “espantoso”, a tela da TV preto-e-branco exibiu “Qual o seu nome?” Cada um de nós digitou o seu, ao que a máquina respondeu (para mim) “Olá, Paulo.”

Assombro geral com a “inteligência” do computador! Suficiente para aqueles pré-adolescentes se matricularem no cursinho de BASIC.

Não é preciso ser um programador para perceber que aquilo era algo extremamente simples. Mas para quem nunca tinha tocado em um computador (1985, lembra?), foi o suficiente para abrir as portas que me permitiram, a partir dali, olhar para o digital como forma de ampliar meus horizontes, procurando entender o que acontece no mundo dos bits.

O ser humano tem medo do desconhecido, porque não o pode controlar. Mesmo que algo aconteça incontestavelmente diante de seus olhos, se não compreender o fenômeno com o que sabe, recai sobre obra do divino ou –pior– vira “bruxaria”. Por conta disso, muitas mulheres e homens geniais foram, ao longo da história, calados, presos ou mortos por suas ideias, mesmo as mais benéficas à humanidade.

Por outro lado, quando adquirimos conhecimento, qualquer coisa, mesmo aquelas até então tidas como mágicas, deixa o campo do desconhecido e passa a ser uma ferramenta sob nosso domínio. E de tempos em tempos, uma nova tecnologia disruptiva surge para “testar a nossa fé”.

A bola da vez é a inteligência artificial, que já está revolucionando muitos negócios, mas igualmente desperta medo, pois o cidadão médio não consegue entender como ela funciona. Para ficar ainda mais confuso, temos pesquisadores e executivos da própria área revelando publicamente restrições a ela.

Talvez exista exagero nesses temores; talvez não. A dúvida se dá porque essa, que é uma das mais poderosas tecnologias já criadas, ainda seja majoritariamente incompreendida pela massa, que a vê, portanto, como “mágica”.

Precisamos desmistificar a IA, assim como qualquer outra tecnologia. Essa é a melhor maneira de tirarmos bom proveito do que ela pode nos oferecer, enquanto escapamos de eventuais armadilhas. Não quer dizer que teremos que ser todos programadores ou cientistas de dados: entendermos o que é, como funciona e para que serve já ajudará muito!

 

PS: tenho até hoje o meu TK-85 (foto a seguir), testemunha daquele momento histórico do nascimento da microinformática no país, nos anos 1980.

Foto: Paulo Silvestre

Foto: Paulo Silvestre

 


Vídeo relacionado:

Joan, protagonista do primeiro episódio da sexta temporada de “Black Mirror”, surta por causa de um mau uso da IA - Foto: divulgação

“Black Mirror” explica ludicamente os riscos da inteligência artificial

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Em uma sociedade polarizada pelo poder descontrolado dos algoritmos das redes sociais, cresce o debate se a inteligência artificial vai exterminar ou salvar a humanidade. Como costuma acontecer com esses extremismos, a verdade provavelmente fica em algum lugar no meio do caminho. Agora a sexta temporada da série “Black Mirror”, que estreou na Netflix na última quinta (15), surge com uma explicação lúdica de como essa tecnologia pode ser incrível ou devastadora, dependendo apenas de como será usada.

A icônica série, criada em 2011 pelo britânico Charlie Brooker, é conhecida pelas suas perturbadoras críticas ao mau uso de tecnologias. Sem correr risco de “dar spoiler”, o primeiro episódio da nova temporada (“A Joan É Péssima”) concentra-se na inteligência artificial generativa, mas guarda espaço para apontar outros abusos do mundo digital pela sociedade. Sobra até para a própria Netflix, a vilã do episódio!

Como fica claro na história, o poder da inteligência artificial cresce de maneira que chega a ser assustador, alimentando as teorias pessimistas ao redor dela. Se até especialistas se pegam questionando como essas plataformas estão “aprendendo”, para uma pessoa comum isso é praticamente incompreensível, algo ainda no campo da ficção científica.

Mas é real e está a nossa volta, começando pelos nossos smartphones.


Veja esse artigo em vídeo:


Como acontece em tantos episódios de “Black Mirror”, algo dá muito errado. E a culpa não é do digital, mas de como ele é usado por seres humanos movidos por sentimentos ou interesses condenáveis. A lição é que, quanto mais poderosa for a tecnologia, mais incríveis serão os benefícios que ele pode trazer, mas também maiores os riscos associados à sua desvirtuação.

É nesse ponto que estamos com a inteligência artificial. Mas ela não estraga a vida da protagonista do episódio sozinha: tem a “ajuda” de celulares (que estão captando continuamente o que dizemos e fazemos), dos algoritmos das plataformas de streaming (que nos dizem o que assistir), da “ditadura das curtidas”, do sucesso de discursos de ódio e até de instalarmos aplicativos sem lermos seus termos de uso.

A indústria de tecnologia costumava ser regida pela “Lei de Moore”, uma referência a Gordon Moore, um dos fundadores da Intel. Em um artigo em 1965, ele previu que a quantidade de circuitos em chips dobraria a cada 18 meses, pelo mesmo custo. Em 1975, reviu sua previsão para 12 meses. Hoje, o poder da inteligência artificial –que é software, mas depende de um processamento gigantesco– dobra a cada três meses.

O “problema” é que nossa capacidade humana não cresce no mesmo ritmo. E quando não conseguimos acompanhar uma evolução, ela pode nos atropelar. Essa é a gênese de muitos desses problemas, pois tanto poder à disposição pode fazer com que as pessoas deixem cuidados de lado e até passem por cima de limites morais.

É como diz o ditado: “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza!”

 

Faça a coisa certa

Na quarta, participei do AI Forum 2023, promovido pela IBM e pela MIT Sloan Review Brasil. As palestras demonstraram o caminho desse avanço da inteligência artificial e de como ela está se tornando uma ferramenta essencial para empresas de qualquer setor.

De fato, com tantos recursos incríveis que novas plataformas movidas pela IA oferecem aos negócios, fica cada vez mais difícil para uma empresa se manter relevante no mercado sem usar essa tecnologia. É como procurar emprego hoje sem saber usar a Internet ou um smartphone. Por mais experiente e qualificado em outras áreas que se seja, não haveria chance de ser contratado, porque esses pontos fortes seriam facilmente suplantados por outros candidatos que dominassem esses recursos.

Um estudo recém-divulgado pela IBM mostra que, se em 2016 58% dos executivos das empresas estavam familiarizados com a IA tradicional, agora em 2023 83% deles conhecem a IA generativa. Além disso, cerca de dois terços se sentem pressionados a acelerar os investimentos na área, que devem quadruplicar em até três anos.

A mesma pesquisa aponta que o principal fator que atravanca essas decisões é a falta de confiança na tecnologia, especialmente em aspectos de cibersegurança, privacidade e precisão. Outros problemas levantados foram a dificuldade de as decisões tomadas pela IA generativa serem facilmente explicadas, a falta de garantia de segurança e ética, a possibilidade de a tecnologia propagar preconceitos existentes e a falta de confiança nas respostas fornecidas pela IA generativa.

Conversei no evento com Marcela Vairo, diretora de Automação, Dados e IA da IBM (a íntegra da entrevista pode ser vista no vídeo abaixo). Para ela, três premissas devem ser consideradas para que a inteligência artificial nos ajude efetivamente, resolvendo essas preocupações.

A primeira delas é que as aplicações movidas por IA devem ser construídas para tornar as pessoas mais inteligentes e produtivas, e não para substituí-las. Deve existir também um grande cuidado e respeito com os dados dos clientes, que pertencem apenas a eles e não podem ser compartilhados em outra plataforma ou com outros clientes. E por fim, as aplicações devem ser transparentes, para que as pessoas entendam por que elas estão tomando uma determinada decisão e de onde ela veio, o que também ajuda a combater os possíveis vieses que a IA desenvolva.

O que precisamos entender é que essa corrida tecnológica está acontecendo! Não sejamos inocentes em achar que ela será interrompida pelo medo do desconhecido. Os responsáveis por esse desenvolvimento devem incluir travas para que seus sistemas não saiam do controle, garantindo essas premissas.

O que nos leva de volta a “Black Mirror”: tampouco podemos ser inocentes em achar que todos os executivos da indústria serão éticos e preocupados em fazer a coisa certa. É por isso que a inteligência artificial precisa ser regulamentada urgentemente, para pelo menos termos a tranquilidade de continuar usufruindo de seus benefícios incríveis sem o risco de sermos dominados pela máquina.

E no final, sempre temos que ter uma tomada para puxar e desligar a coisa toda se ela sair completamente dos trilhos.


Íntegra de entrevista com Marcela Vairo (IBM):

Matt Hicks, CEO da Red Hat, durante a abertura do Red Hat Summit 2023: “esse é o momento da IA” - Foto: Paulo Silvestre

Inteligência artificial produz coisas incríveis, mas não podemos perder nosso protagonismo

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Estive na semana passada em Boston (EUA), participando do Red Hat Summit, maior evento de software open source do mundo. Apesar desse modelo de desenvolvimento de programas aparecer a todo momento, a estrela da festa foi a inteligência artificial. E algo que me chamou a atenção foi a preocupação da Red Hat e de seus executivos em demonstrar como essa tecnologia, por mais poderosa que seja, não deve fazer nada sozinha, precisando ser “treinada” com bons dados, com o ser humano ocupando o centro do processo.

O próprio CEO, Matt Hicks, abriu a conferência dizendo que esse é o “momento da IA”. Muitos dos principais anúncios do evento, como o Ansible Lightspeed e o OpenShift AI, embutiam um incrível poder da inteligência artificial na automação de tarefas, como geração de código a partir de pedidos simples em português, liberando o tempo das equipes para funções mais nobres.

Isso não quer dizer, entretanto, que os profissionais possam simplesmente “terceirizar” o raciocínio e a sua criatividade para as máquinas. Pelo contrário, por mais fabulosas que sejam essas ferramentas, elas pouco ajudam se o usuário não conhecer pelo menos o essencial do que os sistemas produzem.

Tanto é verdade que assistimos a casos de pessoas e de empresas que enfrentam grandes contratempos por usar plataformas generalistas de inteligência artificial (como o ChatGPT) de maneira descuidada. Precisamos ter em mente que, por mais que ela chegue a parecer mágica, não é infalível!


Veja esse artigo em vídeo:


Foi o que aconteceu recentemente com o advogado americano Steven Schwartz, da firma Levidow, Levidow & Oberman, com mais de 30 anos de experiência: ele enfrentará agora medidas disciplinares por usar o ChatpGPT para pesquisas para o caso de um cliente que processava a Avianca. Tudo porque apresentou à corte um documento com supostos casos semelhantes envolvendo outras empresas aéreas.

O problema é que nenhum desses casos existia: todos foram inventados pelo ChatGPT. Schwartz ainda chegou a perguntar à plataforma se os casos eram reais, o que ela candidamente confirmou. É o que os especialistas chamam de “alucinação da inteligência artificial”: ela apresenta algo completamente errado como um fato, cheia de “convicção”, a ponto de conseguir argumentar sobre aquilo.

“Nessa nova fase, temos que conhecer a pergunta para qual queremos a resposta”, explicou-me Hicks, em uma conversa com jornalistas durante o Summit. “Se você for um novato, poderá criar melhor, mais rápido; se for um especialista, poderá melhorar muito o que faz e usar seu domínio para refinar a entrega”, concluiu.

Para Paulo Bonucci, vice-presidente e gerente-geral da Red Hat para a América Latina, “não adianta você chegar com inteligência artificial assustando a todos, dizendo que vai faltar emprego”. Para o executivo, a transformação que a inteligência artificial promoverá nas empresas passa por uma transformação cultural nos profissionais. “A atenção principal enquanto se desenvolvem os códigos e as tecnologias de inteligência artificial são as pessoas, são os talentos”, acrescenta.

Chega a ser reconfortante ver lideranças de uma empresa desse porte –a Red Hat é a maior empresa de soluções empresariais open source do mundo– demonstrando essa consciência. Pois não se enganem: a inteligência artificial representa uma mudança de patamar tecnológico com um impacto semelhante ao visto com a introdução dos smartphones ou da própria Internet comercial.

A diferença é que, no mundo exponencial em que vivemos, as transformações são maiores e os tempos são menores. E nem sempre as empresas e ainda mais as pessoas têm sido capazes de absorver esse impacto.

 

Corrida do ouro

Infelizmente o que se vê é uma corrida tecnológica, que pode estar atropelando muita gente por descuido e até falta de ética de alguns fabricantes. “Existem empresas grandes que fazem anúncios quando sua tecnologia não está madura”, afirma Victoria Martínez, gerente de negócios e data science da Red Hat para a América’ Latina. “Essa corrida tornou-se muito agressiva”.

É interessante pensarmos que as pesquisas em inteligência artificial existem há décadas, mas o assunto se tornou um tema corriqueiro até entre não-especialistas apenas após o ChatGPT ser lançado, em novembro. Não é à toa que se tornou a ferramenta (de qualquer tipo) de adoção mais rápida da história: todos querem usar o robô para passar para ele suas tarefas. E, graças a essa corrida, isso tem sido feito de maneira descuidada, pois alguns fabricantes parecem não se preocupar tanto com perigos que isso pode representar.

“Isso é uma coisa que a gente deveria estar discutindo mais”, sugere Eduardo Shimizu, diretor de ecossistemas da Red Hat Brasil. “Entendo que nós, não só como especialistas em segurança ou em tecnologia, mas como seres humanos, precisamos discutir esses temas éticos da forma de usar a tecnologia”, acrescenta.

Martínez lembra das preocupações que educadores vêm apresentando sobre o uso de plataformas de IA generativas, como o próprio ChatGPT por crianças. “Não podemos esquecer de aprender o processo”, alerta. Em uma situação limite, seria como entregar uma calculadora a uma criança que não sabe sequer conceitualmente as quatro operações básicas. Ela se desenvolveria como um adulto com seríssimos problemas cognitivos e de adaptação à realidade.

Por isso, a qualquer um que não saiba fazer uma divisão deveria ser proibido usar uma calculadora. Por outro lado, para quem domina suficientemente a matemática, a calculadora e mais ainda uma planilha eletrônica são ferramentas inestimáveis.

É assim que devemos encarar essa mudança de patamar tecnológico. Como escreveu Hicks em um artigo recente, “não sabemos o que o futuro reserva –nem mesmo o ChatGPT é precognitivo ainda. Isso não significa que não podemos antecipar quais desafios enfrentaremos nos próximos meses e anos.”

Quaisquer que sejam, quem deve estar no comando somos nós. Os robôs, por sua vez, serão ajudantes valiosíssimos nesse processo.


Você pode assistir à íntegra em vídeo das minhas entrevistas com os quatro executivos da Red Hat. Basta clicar no seu nome: Matt Hicks, Paulo Bonucci, Victoria Martínez e Eduardo Shimizu.

 

“Montanha russa virtual” da Rilix: equipamento possui vibração e até gerador de vento para aumentar a imersão - Foto: divulgação

Evento mostra como a tecnologia pode levar setor de festas a um novo patamar

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Esqueça as decorações caseiras improvisadas! O setor de festas já usa há anos a alta tecnologia, não apenas para a produção de itens para celebrações de todo tipo e porte, como também no que é oferecido aos clientes finais. A ideia é transformar esses encontros, sejam pessoais ou corporativos, em momentos memoráveis.

Na semana que vem, o maior evento do setor promete mostrar tudo isso em São Paulo. A Celebra Show acontecerá entre 31 de maio e 3 de junho no Expo Center Norte. Contará com a participação de 180 fabricantes, importadores, exportadores e distribuidores de um setor que representa 4,32% do PIB Nacional, segundo a ABCasa (Associação Brasileira de Artigos para Casa, Decoração, Presente, Utilidades Domésticas, Festas e Flores), organizadora da feira.

A associação calcula que o setor deve movimentar algo como R$ 40 bilhões nesse ano. Isso é 62% a mais que em 2019, o último ano antes da pandemia de Covid-19.

“O nosso objetivo é reunir todos os segmentos que compõem o setor de celebrações em um único evento e que este seja uma referência no mercado nacional e Internacional e onde os visitantes possam verificar tendências, fazer contatos importantes e conhecer novos fornecedores”, explica Eduardo Cincinato, presidente da ABCasa.

Resultado da união das antigas ABCasa Natal e Festas e Expo Festas e Parques, a Celebra Show receberá expositores dos segmentos de Natal, festas, Halloween, eventos sociais, confeitaria, balões, parques e outros. Além de itens mais tradicionais e já conhecidos do público nesses setores, os visitantes poderão ver produtos inovadores, como partes mecânicas e diferentes sensores, que criam verdadeiros efeitos especiais nas celebrações.

A tecnologia também gera oportunidades de negócios novas no setor. É o caso de usos criativos da realidade virtual. Um dos expositores do evento, a Rilix, oferece equipamentos de “montanhas russas virtuais”, que podem ser instaladas em festas ou em espaços públicos (como shoppings) para clientes que queiram pagar para “fazer um passeio”.

O sistema possui uma estrutura em que até duas pessoas podem se sentar. Graças aos óculos de realidade virtual, elas podem olhar para qualquer lado durante a simulação. Para aumentar o envolvimento, o equipamento ainda possui vibração e gerador de vento.

Para a Celebra Show, a empresa prepara um novo recurso que é a captura da posição das mãos dos clientes. “Antes, a pessoa colocava os óculos e fazia um passeio em algum dos 12 cenários”, explica Rafaela Sedlacek, gestora comercial da Rilix. “Agora teremos interação com as mãos, com alvos para atirar durante o passeio, gerando uma pontuação no final.”

A ABCasa tem incentivado seus associados na adoção de tecnologia para incrementar os setores de produção, comercialização e distribuição. Para o evento, a inteligência artificial está sendo usada na logística, garantindo o suprimento e o abastecimento de tudo o que for necessário. Também foram criados microsserviços na nuvem, que oferecem informações em tempo real, podendo ser acessados por computadores, tablets e smartphones.

 

Colaboração entre decoradores

O evento oferecerá, logo na sua entrada, um espaço “instagramável” construído de maneira colaborativa por grandes decoradores e influenciadores brasileiros e da América Latina: o Collab Celebra.

O espaço ocupará mais de 2.500 metros quadrados. O investimento em sua execução se aproximou de R$ 2 milhões. Serão representados os segmentos de confeitaria, festas, Natal, eventos sociais, Halloween e balões.

A feira oferecerá ainda diversos tipos de conteúdos sobre os mercados que representa, incluindo palestras, estudos de caso, workshops e até um seminário para profissionais e apaixonados por balões, o Baloon Meeting Brazil. O credenciamento para participar da Celebra Show é gratuito.