Terra plana

Alfie (Lucien Laviscount) e Emily (Lily Collins), com a torre Eiffel ao fundo, em cena de “Emily em Paris” – Foto: reprodução

O que “Emily em Paris” diria sobre o câncer de mama

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Que o apreço pela verdade anda em baixa, não é surpresa. Há muitos anos, a pós-verdade, aquela que prega que a versão dos fatos que interessam às pessoas é mais importante que os fatos em si, tornou-se uma muleta que justifica que pensem e façam o que quiserem, por mais absurdo que seja. Mas observo apreensivo uma nova fase dessa “paranoia coletiva”, em que alguns esperam que a própria realidade se curve aos seus devaneios, como se fossem o centro de seus próprios universos.

Isso se manifesta de maneira mais ou menos escancarada. Um dos exemplos mais emblemáticos e antigos é aquela turma que insiste que a Terra seja plana, contrariando evidências tão enormemente abundantes, que tornam essa crença caricata e patética.

Às vezes, esse descolamento da realidade se torna tragicômico. Por exemplo, a série “Emily em Paris”, sucesso adolescente da Netflix, mostra uma França “perfeita”, que parece gravitar em torno da torre Eiffel, sem moradores de rua, sujeira, crimes ou ratos. Disso surgiram turistas abobalhados que vão a Paris e ficam indignados quando descobrem que ela –como qualquer cidade– não é daquele jeito, e tem problemas!

Em outros casos, as consequências podem ser graves, como em episódios recentes no Brasil de uma médica afirmando nas redes sociais que o câncer de mama não existe e de um médico que disse que a doença pode ser causada por mamografias. Se o fato de profissionais de saúde dizerem algo que pode literalmente matar pessoas não fosse grave o suficiente, esses posts legitimaram que uma legião de pessoas que, por qualquer motivo “não acreditam na doença”, viesse a público “expor essa verdade”.

Os três exemplos, apesar de muito diferentes entre si, guardam uma raiz comum que corrói a sociedade há anos: quando qualquer um pode arrebanhar uma multidão com distorções deliberadas do real, os ganhos civilizatórios começam a colapsar.


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Uma pergunta que surge naturalmente é por que alguém comete um desatino desses?

O caso dos médicos é ilustrativo. Eles realmente acreditam naquilo, o que faria deles reprodutores inocentes de um processo anterior de desinformação, ou têm interesses próprios e, portanto, se configurariam como criadores? Os casos estão sendo investigados pelos respectivos Conselhos Regionais de Medicina. No caso da médica, ela também está sendo processada pelo Colégio Brasileiro de Radiologia.

O câncer de mama é a principal neoplasia maligna entre as brasileiras, com mais de 70 mil novos casos por ano por aqui. Em 2022, matou 19.130 mulheres no Brasil. Quanto à mamografia, ela é a principal forma de prevenção de mortes pela doença.

Também podemos aprender com “Emily em Paris”. A série conta a vida de uma jovem publicitária americana que desembarca na Cidade-Luz para trabalhar. Atrapalhada e bem-intencionada, ela colhe tanto vitórias no trabalho, quanto confusões em relacionamentos. Mas chama atenção as locações e figurinos brilhantes, novos, limpos, com cores saturadas. A protagonista sempre veste alta-costura, troca de roupa várias vezes a cada episódio e nunca repetiu um modelo em quatro temporadas no ar!

Pode-se argumentar –com razão– que se trata apenas de entretenimento. Os roteiristas da série não buscam promover a desinformação. Entretanto, acabam contribuindo para um caldo de degradação cognitiva de pessoas que cada vez menos toleram que a vida não seja como imaginam ou esperam. Perdem a capacidade de separar fantasia de realidade, e atacam quem lhes mostra os fatos.

Não se pode desprezar as causas e as consequências de nada disso.

 

Sociedade autodestrutiva

Um estudo de 2021 do instituto britânico Alan Turing detalhou como uma sociedade pode ameaçar a própria sobrevivência, com ataques deliberados à capacidade de se adquirir conhecimento. Para a líder do estudo, Elizabeth Seger, da Universidade de Cambridge, “mesmo que estivesse claro como salvar o mundo, um ecossistema de informações estragado e não-confiável poderia impedir que isso acontecesse”.

Segundo a pesquisa, há quatro ameaças a isso, e nenhuma ao acaso. A primeira são pessoas que atrapalham as decisões com desinformação, algumas agindo de maneira consciente, outras inocentemente. Há ainda um excesso de informação que sobrecarrega nossa concentração, dificultando separar verdades de mentiras. As pessoas também se acostumaram a rejeitar o que desafia suas ideias, particularmente se houver uma forte identidade no grupo, criando o que os pesquisadores chamaram de “racionalidade limitada”. E, por fim, as redes sociais tornaram mais difícil avaliar a confiabilidade das fontes. O estudo conclui que, quando não sabemos em quem acreditar, confiamos naquilo que nos mostra o mundo como queremos.

Há alguns dias, discordei do professor da Universidade de Oxford William Dutton. Ele acredita que as mídias digitais podem disseminar informações enviesadas, mas afirma que as pessoas não são passivas, podendo encontrar facilmente a verdade na Internet ou com amigos e familiares, se assim desejarem. Até diminuiu a importância dos “filtros de bolha”, a que chamou de um “mito tecnológico determinista”. Afirmou ainda que o problema não são as plataformas, e sim os usuários. “Se quiserem, então sabem que podem obter o que desejarem deste canal de televisão e deste site, e ficarão felizes”, acrescenta.

Outro estudo, organizado em 2017 pelo Conselho da Europa e liderado por Claire Wardle, da Universidade de Harvard, trata da “desordem informacional”. Ela se divide em desinformação (informação deliberadamente errada para causar danos), informação falsa (errada, mas sem intenção de causar danos) e informação maliciosa (correta, mas usada para causar danos). Também explica que é preciso considerar quem são os agentes (quem cria e distribui a mensagem, e qual sua motivação), as mensagens em si, e os intérpretes (quem as recebe e suas interpretações).

Essas pesquisas demonstram, entre tantas outras, que as pessoas não conseguem sair facilmente da desinformação, especialmente quando 47% dos brasileiros deliberadamente se recusam a consumir notícias, como demonstrou o Digital News Report 2024, publicado em junho pelo Instituto Reuters e pela Universidade de Oxford. O estudo diz ainda que apenas 43% dos brasileiros confiam no noticiário, o pior índice já registrado no país.

Em um mundo antes da pós-verdade, a vida fantasiosa de Emily seria apenas deleite para os olhos. Mas no cenário de negação em que vivemos, ela inadvertidamente contribui para a desordem informacional. Ainda assim, a jovem personagem, que sempre busca o melhor para todos, jamais negaria a existência do câncer de mama! Pelo contrário: provavelmente encontraria uma forma genial de usar as redes sociais para a conscientização da sociedade para esse gravíssimo problema de saúde.

 

O presidente russo, Vladimir Putin, discursou em um estádio lotado de apoiadores na sexta sobre sua visão do que é certo e verdadeiro

O nosso papel na guerra de Putin e na Terra Plana

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Nessa sexta, o presidente russo, Vladimir Putin, discursou em um Estádio Lujniki lotado de apoiadores, em comemoração ao oitavo aniversário da anexação da Crimeia pela Rússia. Muitos se perguntam indignados como ele consegue encher o palco da final da Copa do Mundo de 2018 com um discurso ultranacionalista, enquanto o mundo assiste aterrorizado à destruição da Ucrânia.

Cada um de nós participa um pouco dessa resposta. Ela contém os mesmos elementos que fazem com que parcelas significativas da população sejam contrárias a vacinas e até mesmo acreditem que a Terra seja plana.

Os que se sentem ultrajados com o “sucesso” de Putin zombam dos terraplanistas sem perceber que se trata do mesmo mecanismo de distorção da realidade e sem fazer nada para combatê-lo. E aí reside um dos grandes riscos atuais para a humanidade.


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Putin falou da guerra na Ucrânia, que ele insiste em chamar de “operação militar especial”, e prometeu que continuará até atingir seus objetivos. Mas escondeu da população o que realmente quer e principalmente que está enfrentando grandes revezes na invasão. Enquanto isso, protestos contra a guerra continuam em várias cidades, inclusive na capital Moscou, resultando em quase 20 mil pessoas já presas. Pode parecer muito, mas a imensa maioria dos russos continua alheia ao que realmente acontece e, assim, apoiam Putin.

Claro que essa é uma situação extrema: uma guerra em que o agressor é uma potência militar, dona do maior arsenal nuclear do mundo. Existe também uma força bruta de manipulação do governo, que asfixia os veículos de comunicação independentes e censura as redes sociais.

Mas a distorção da realidade permeia o nosso cotidiano em coisas aparentemente inofensivas e até divertidas. Muitas vezes, ela começa como uma brincadeira ou uma bravata de um grupo. Mas o meio digital tem o poder de transformar mesmo a mais completa loucura em uma bandeira para muita gente. E aqueles que percebem o problema acabam sendo parte dele, quando não se posicionam adequadamente.

Foi assim que a ideia de que a Terra é plana ficou tão forte. Ela contraria um fato científico fartamente demonstrado e observado. Ainda assim, 2% dos americanos afirmam que a Terra é um disco, enquanto outros 5% não têm certeza do formato.

No Brasil, a situação é ainda mais dramática: em 2019, 7% dos brasileiros afirmavam que a Terra era plana, e 3% não tinham certeza. Apenas dois anos depois, uma pesquisa do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação constatou que os terraplanistas brasileiros haviam saltado para 22,2% da população, quase 50 milhões de pessoas!

A despeito da histórica baixa qualidade de educação brasileira, não se pode creditar apenas a ela essa aberração social, mesmo porque muitos terraplanistas cursaram faculdades. O ser humano tem uma tendência a acreditar e apoiar aquilo que mais lhe convier, mesmo que seja uma estupidez. Mas, de uns anos para cá, observa-se o uso das redes sociais para legitimar qualquer ideia, com grande apoio popular. Entre elas, estão racismo, homofobia e machismo.

 

O poder do “based”

Qualquer um pode lançar uma dessas teorias nas redes. Quanto mais alicerçadas em fortes convicções, preferencialmente se se contrapuserem ao pensamento dominante científico, progressista e politicamente correto, mais chance de atingirem sucesso. Criou-se até um gíria para definir essa capacidade de defender cegamente uma ideia, sem se preocupar com o que outras pessoas pensarão: “based”, que não é traduzida nem em publicações em português.

Essa postura ficou muito popular entre jovens em comunidades online e se espalhou para diversos temas. O domínio da linguagem e das plataformas digitais promoveu essas pessoas, que se apresentam como “genuínas” e que falam sem medo aquilo que consideram certo, ignorando quem pense de maneira divergente. Disso vem o combustível do terraplanismo e movimentos contrários a vacinas. E muitos políticos perceberam o incrível poder de convencimento e adotaram uma postura “based”.

Outro estudo de 2021 detalhou muito bem como uma sociedade pode tomar decisões que coloquem em risco sua sobrevivência, citando, como exemplo, a resistência às vacinas. Organizado pelo Instituto Alan Turing, órgão de ciência de dados e inteligência artificial do Reino Unido, explica o ataque deliberado à capacidade de se adquirir conhecimento. Para a líder do estudo, Elizabeth Seger, da Universidade de Cambridge, “mesmo que estivesse claro como salvar o mundo, um ecossistema de informações degradado e não confiável poderia impedir que isso acontecesse”.

Segundo a pesquisa, existem quatro principais ameaças nesse cenário, e nenhuma delas acontece ao acaso. A primeira são pessoas que atrapalham as tomadas de decisão, usando a desinformação. E nisso algumas pessoas agem de maneira consciente, enquanto outras espalham mentiras de forma inocente. Há ainda o excesso de informação a que somos submetidos, que sobrecarrega nossa capacidade limitada de concentração, dificultando separar verdades de mentiras. As pessoas também se acostumaram a rejeitar informações que desafiam seus pontos de vista, particularmente se houver uma forte identidade no grupo, criando o que os pesquisadores chamaram de “racionalidade limitada”. E, por fim, as redes sociais tornaram mais difícil avaliar a confiabilidade das fontes.

Em outras palavras, quando não sabemos em quem confiar, confiamos naquilo que nos mostra o mundo como gostaríamos que fosse. E isso nos leva a outro termo dessas comunidades: “red pill”, uma referência ao filme “Matrix” (1999), que desnudava, a quem a tomasse, o mundo como ele realmente era, e não como o “sistema” mostrava. Isso esconde uma incrível ironia, pois os autodenominados “redpillados” querem forçar um mundo como gostariam que fosse, e não a realidade.

Não se pode deixar de relacionar tudo isso com aquele que deve ser um dos temas mais quentes dessa semana: as consequências do pedido de bloqueio do Telegram pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que acabou caindo nesse domingo, depois que o aplicativo resolveu acatar os pedidos da Justiça. Por sua política de tradicionalmente não interferir nas conversas de seus usuários e de não colaborar com autoridades, a plataforma se transformou no destino preferido de pessoas adeptas a teorias da conspiração e crimes, apesar de obviamente a imensa maioria de seus usuários ser composta de pessoas decentes.

A motivação da corte é combater a desinformação, que pode causar enormes danos ao Brasil, especialmente em um ano eleitoral. Mas combater as fake news, apesar de necessário, é apenas cuidar do sintoma, deixando a causa intocada. Enquanto novas pessoas forem aliciadas para as colunas das realidades distorcidas, sempre haverá novas formas para retroalimentar suas teorias e se atingir os mais nefastos objetivos.

E que fique claro: essas pessoas não são “um bando de ignorantes” ou “palhaços inofensivos”. Muito menos são inimigos! Não devem ser ridicularizados e, em hipótese alguma, desprezados. Precisam ser trazidas para o debate para que lhes seja explicado, com termos que entendam e analisando seus valores, por que aquelas ideias são nocivas para a sociedade e como aquilo lhes prejudicará a longo prazo.

E isso é algo que todos nós podemos e devemos fazer.

Pode parecer uma tarefa inglória, que exige uma energia e uma paciência quase infinitas. Mas não se pode desistir, pois a vitória desses grupos significaria a ruína da civilização. E, se serve de modelo, pode-se olhar para a Alemanha, berço do nazismo e hoje um país que combate fortemente aqueles valores, que nas décadas de 1930 e 1940 foram abraçados pela população: tudo em nome de um líder “based”.