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A ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos - Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Brasileiros abraçam a IA, mas precisam vencer desafios para sua implantação plena

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Os brasileiros têm fama de abraçar novas tecnologias rapidamente, especialmente as digitais. Isso se vê, por exemplo, no amplo uso de smartphones e redes sociais no país, que sempre lidera rankings internacionais nisso. Também vem sendo observado no nosso uso entusiasmado da inteligência artificial. Mas essa euforia enfrenta severos obstáculos que podem prejudicar resultados, especialmente nos negócios.

A pesquisa “Inteligência artificial no mundo corporativo”, divulgada no dia 11 pela gigante de software alemã SAP, mostra que 52% dos gestores brasileiros têm percepção muito positiva sobre essa tecnologia e outros 27% a encaram de forma favorável, mas com ressalvas. Na América Latina, esses números são 43% e 38%.

Para 29% desses gestores, o maior desafio é não saber como incorporar a IA no negócio, enquanto 28% afirmam que não há profissionais qualificados para isso, problemas que caminham de mãos dadas. Mas o Brasil enfrenta outra grande barreira nesse setor: dependemos demais de tecnologias importadas.

A princípio, isso não pareceria tão grave. O Brasil historicamente consome tecnologia digital de fora, graças ao sucateamento de nossa indústria e de nossa ciência, principalmente a de base. Continuaremos fazendo isso com a inteligência artificial. Mas suas características tornam essa dependência mais perigosa.

O quadro piora com o posicionamento errático da administração Donald Trump, que já usa a IA como arma geopolítica. No dia 13, a OpenAI, criadora do ChatGPT, apresentou uma série de propostas ao governo americano para supostamente manter a liderança dos EUA no setor. Entre elas, sugere uma restrição de exportações da IA a países “democráticos” (conceito que varia com o vento nos cabelos de Trump).

Isso cria uma divisão geopolítica artificial, condicionando o acesso à IA à subordinação de nações a interesses americanos, reforçando essa dependência tecnológica e perpetuando desigualdades globais. Esse é um risco que o Brasil não pode manter.


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Sendo uma tecnologia altamente disruptiva, a IA já transforma diversos setores da economia. Para isso, requer infraestrutura avançada e capacitação de profissionais qualificados. Sem investimentos significativos, o Brasil pode ficar para trás em ambos, dificultando a absorção e o uso eficaz dessa tecnologia, o que pode também aumentar os riscos de segurança e privacidade, pois dados sensíveis ficam sujeitos a leis estrangeiras.

Isso também limita nossa capacidade de inovar e ajustar soluções às nossas necessidades, além de comprometer a autonomia tecnológica do país. Como a IA automatiza muitas funções, a falta de investimentos em capacitação impõe ao Brasil desafios adicionais no mundo do trabalho e na adaptação ao avanço tecnológico.

Diante desse cenário, as empresas se mobilizam. Segundo a pesquisa da SAP, 62% dos gestores locais já capacitam seu pessoal para sanar este gargalo e outras 35% pretendem fazer isso ainda em 2025. “As empresas brasileiras trazem inovação no seu DNA, tanto na geração de diferencial competitivo, quanto na otimização de processos”, afirma Rogério Ceccato, diretor de pré-vendas da SAP Brasil. “Isso se explica com a maior maturidade do mercado brasileiro no cenário latino-americano.”

A IA generativa pode ajudar a reduzir esse problema, dispensando os profissionais de dominarem aspectos técnicos da tecnologia. Ceccato explica que assistentes, como a Joule da SAP, ajudam um profissional de vendas, por exemplo, a criar agentes de IA sem apoio técnico, concentrando-se no seu conhecimento do negócio. “Soluções com estratégia low-code/no-code (sem programação) permitem que mais profissionais dominem a IA”, acrescenta.

Além disso, alguns exemplos internacionais recentes animaram empresários e pesquisadores brasileiros a investirem mais em inteligência artificial. O mais marcante foi o chinês DeepSeek, que em janeiro demonstrou ser possível desenvolver um LLM (modelo de linguagem de grande porte) com qualidade comparável aos melhores do mundo, como o ChatGPT, por uma pequena fração dos seus investimentos.

Criou-se, assim, um novo paradigma, que retirou das big techs o “direito a dominar sozinhas” esse mercado.

 

Investimentos brasileiros

Na época, a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos (foto), disse que o Brasil desenvolverá seu próprio modelo de IA, citando o DeepSeek como exemplo. Ela lembrou que existia a ideia de que os investimentos para competir nessa tecnologia seriam proibitivos para países emergentes, mas os chineses mudaram isso, mesmo impedidos pelos EUA de comprar processadores mais poderosos.

Antes disso, no dia 30 de julho, o governo brasileiro anunciou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Ele detalha uma estratégia ambiciosa para os padrões brasileiros, com investimento de R$ 23 bilhões até 2028, para o desenvolvimento e aplicação ética e sustentável da IA no país.

O plano prevê a compra de um dos cinco supercomputadores mais avançados do mundo, que deve ser alimentado por energias renováveis. Também propõe o desenvolvimento de modelos de linguagem em português, treinados com conteúdo nacional, que contemplem nossas características culturais, sociais e linguísticas.

Sensível à falta de profissionais no setor, o projeto também destaca a capacitação em larga escala para atender a essa demanda. Por fim, reforça que o desenvolvimento da IA seja ético e responsável, promovendo a transparência algorítmica e a proteção de dados, itens críticos para o setor, mas pouco observados nos produtos americanos.

As propostas são interessantes e muito bem-vindas, mas a sociedade precisa acompanhar sua implantação, para que não se torne mais uma ideia populista que se perca na burocracia. A IA não pode ser mais uma revolução tecnológica que o Brasil apenas observe de longe.

Um esforço coordenado entre governo, academia e setor privado é imprescindível! Os programas já existentes precisam ser ampliados, especialmente para a formação de talentos e o desenvolvimento de propriedade intelectual nacional. Ainda podemos nos tornar protagonistas em nichos do ecossistema de IA.

As atuais restrições podem se traduzir em inovação acelerada. Mas, para isso, o Brasil precisará mobilizar recursos e talentos com a velocidade necessária para superar esse fosso tecnológico antes que se torne intransponível ou que eventuais restrições abalem decisivamente nossa transformação digital.

 

IA pode agravar situação de pessoas já marginalizadas digitalmente - Foto: Freepik/Creative Commons

A desigualdade social faz com que a mesma IA que impulsiona carreiras tire empregos

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A inteligência artificial pode maximizar nossas habilidades, mas também amplia contradições de nosso tempo. Isso aparece com muita força no âmbito profissional.

Já se tornou quase um mantra do mercado dizer que as pessoas que não abraçarem essa tecnologia perderão os empregos para colegas que o fizerem, e é verdade. Mas ironicamente quem a usar também pode ir para o olho da rua, se não fizer isso direito.

Cria-se então uma zona de contato bastante estreita, entre um “superpoder” para voar aos céus da carreira e a queda em um abismo profissional resultante de uma má educação no uso da IA. E esse não é um mero exercício intelectual. Ela já aumenta, agora mesmo, as vantagens de muitos profissionais e empresas. Do outro lado, vemos cerca de 14% da população brasileira sem qualquer acesso à Internet.

Surgem alguns dilemas sociais profundos. Talvez algumas pessoas gostariam de simplesmente não usar essa tecnologia, e esse seria um direito legítimo. Mas ainda dá para se almejar isso? Na ponta oposta, outras desejariam aproveitá-la, mas estão completamente alijadas desses recursos. Como lhes garantir isso, que já se configura como um direito fundamental?

Quem está no topo da pirâmide social deve parar de olhar para a sociedade como se todos estivessem na mesma situação frente à IA. Existe uma muralha a ser transposta para que se tenha pelo menos algum acesso digital, mas o presente nos empurra para uma desigualdade ainda mais ostensiva. Esse é o dilema que precisa ser solucionado.


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Estudo da consultoria Gallup divulgado em outubro indicou que 45% dos profissionais que usam a IA disseram que ela melhorou sua produtividade e eficiência, 26% se disseram mais criativos e inovadores e 23% apontaram melhora nas suas entregas. Apesar disso, 67% dos profissionais entrevistados disseram que nunca usaram a IA no trabalho, e apenas 4% fazem isso diariamente.

Infelizmente o “buraco é mais embaixo”. A pesquisa TIC Domicílios 2023, publicada em novembro passado pelo Cetic.br, órgão de pesquisas ligado ao CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), indicou que, apesar de os 156 milhões de usuários de Internet representarem um recorde de brasileiros conectados, 29,4 milhões de pessoas nunca ficaram online em nosso país.

É importante ressaltar que não basta apenas dar acesso à Internet e à IA: é preciso ensinar as pessoas a fazerem bom uso desses recursos. O levantamento do Cetic.br apontou uma clara correlação entre o uso da Internet e os graus de educação e de renda: dos 29,4 milhões de pessoas desconectadas no Brasil, 24 milhões têm apenas até o Ensino Fundamental e 17 milhões são das classes D ou E.

Os pesquisadores apontaram que o pleno aproveitamento das oportunidades online depende ainda da qualidade da conexão e de dispositivos adequados. Ele é maior entre quem fica online tanto pelo computador quanto pelo smartphone, frente aos que se conectam só por dispositivos móveis. E se 99% dos domicílios da classe A têm computador, isso acontece apenas em 11% dos das classes D e E.

Para se colocar isso na devida perspectiva, é preciso entender que a inteligência artificial generativa não se trata de só mais uma tecnologia, como tantas outras que são lançadas a todo momento. Ela efetivamente oferece a possibilidade de se ampliar as capacidades de qualquer um que esteja disposto a fazer um uso consciente dela.

Mas tanto poder também guarda armadilhas.

 

Benefícios e riscos

A IA generativa embute recursos muito bem-vindos. Certamente o que a distingue de todo o resto é a capacidade de nos entender e dar suas respostas em linguagem natural, como se estivéssemos falando com outra pessoa. Além disso, ela é capaz de processar quantidades imensuráveis de informação para encontrar respostas e padrões. Por fim, ela efetivamente aprende e melhora com o uso.

Essa combinação a torna extremamente poderosa e flexível. Mas nesse funcionamento quase mágico, reside um de seus maiores riscos.

Quando o ChatGPT foi lançado e assombrou o mundo há dois anos, muitos diziam que ele poderia gerar uma “geração de preguiçosos”. Passado esse breve período, esse medo pode estar se concretizando em algumas pessoas.

Assim como uma simples calculadora agiliza as operações matemáticas que fazemos, mas não nos dispensa de sabermos como realizá-las, a inteligência artificial, por mais incrível e eficiente que seja, não pode tirar de nós a compreensão do que está sendo feito e principalmente as decisões que tomemos a partir desses resultados.

Além disso, as entregas em si da IA generativa normalmente têm uma qualidade mediana (na melhor das hipóteses), sofrendo de repetições e estilos limitados. E há ainda o maior de seus problemas: as “alucinações”, quando, diante de não saber o que dizer, entrega absurdos como se fossem verdades, sem qualquer ressalva.

Outra grave falha é a privacidade dos dados, pois essas plataformas podem aprender e depois replicar para estranhos informações confidenciais que usemos com elas. E isso flerta com outro conhecido problema dessa tecnologia: a violação de direitos autorais de conteúdos usados durantes suas etapas de treinamento.

Entre os que já usam a IA profissionalmente, a maioria se descuida em pelo menos um desses problemas, quando não em todos. É nessa hora que a IA deixa de ser uma poderosa aliada e passa a ser uma ameaça. Apesar de serem falhas intrínsecas da tecnologia, os riscos vêm da má utilização pelas pessoas. A revolução da IA invadiu nossas vidas sem manual de instrução, e por isso usos indevidos aparecem a toda hora.

Pior que isso são aqueles que terceirizam sua criatividade e decisões para os robôs: esses profissionais se colocam na posição de dispensáveis. Afinal, se eles não acrescentam nada sobre o que a IA faz, então basta a máquina para fazer o trabalho!

Antes vistos em obras de ficção científica, esses agora são dilemas da vida real! As pessoas precisam ser educadas não apenas para aproveitar os incríveis benefícios da IA, mas também para não cair em suas armadilhas.

Empresas, escolas, mídia, governo devem cuidar disso, mas não podem esquecer daqueles que já são marginalizados digitais. Caso contrário, teremos, em bem pouco tempo, uma “casta” com “superpoderes da IA” e uma massa de pessoas cada vez mais inabilitadas profissionalmente pela mesma tecnologia.

 

IA pode ampliar capacidades de profissionais de diversas áreas, mas apenas 21% dos brasileiros a usam - Foto: Freepik/Creative Commons

Inteligência artificial pode ampliar abismo social no Brasil

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Cresce o consenso de que a inteligência artificial pode oferecer um grande salto de produtividade para profissionais das mais diferentes áreas. Ironicamente isso pode ampliar o abismo social no Brasil. Somos um país em que pouca gente tem acesso a essa tecnologia, o que pode fazer com que a produtividade dos profissionais mais bem preparados se distancie ainda mais da dos menos capacitados.

Uma pesquisa da Genial/Quaest, divulgada na semana passada, indica que apenas 21% dos brasileiros já usaram alguma ferramenta de inteligência artificial. A grande maioria deles está entre pessoas com curso superior e em classes sociais mais altas.

São os mesmos indivíduos que já têm um acesso mais amplo e de melhor qualidade a equipamentos eletrônicos e à Internet. Em um mundo profundamente digital, isso representa um inegável ganho competitivo.

Ainda há muita gente sem acesso a elementos essenciais de bem-estar no Brasil, como saneamento básico e eletricidade. Assim, preocupar-se com isso pode parecer luxo e até futilidade. Mas se encararmos a Internet e a inteligência artificial como as ferramentas de transformação social que são, entenderemos por que devem ser incluídas no pacote civilizatório que precisa ser oferecido a todos os cidadãos.

O abismo digital que reforça o social é um problema de décadas em nosso país, que não dá sinais de melhoria. A popularização dos smartphones, que poderia indicar um aspecto positivo, não resolve verdadeiramente o déficit digital da população.


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“A desigualdade social no Brasil se revela na diferença entre escolas públicas e privadas no acesso a computadores e Internet, por exemplo, e saltou aos olhos na pandemia, quando as crianças e jovens mais pobres não tinham como ter aulas online, por não terem computador ou acesso à internet em casa”, explica Felipe Nunes, fundador da Quaest. “O resultado da pesquisa é mais um dado dessa desigualdade.”

De fato, quando as escolas estavam fechadas por conta do Covid-19, mesmo as públicas ofereciam aulas online. Mas muitos alunos não conseguiam aproveitar bem esse recurso, porque não tinham computador em casa, e a experiência na tela pequena dos smartphones não era tão boa. Outros problemas enfrentados eram os pacotes de dados limitados e a residência ter apenas um aparelho, que precisava ser compartilhado entre todos os membros, para suas atividades diárias.

A pesquisa da Genial/Quaest também indica forte correlação do uso da IA com as faixas etárias, pendendo para os mais jovens: 33% dos brasileiros entre 16 e 34 anos já usaram a inteligência artificial, contra 19% entre 35 e 59 anos, e apenas 6% entre os que tem 60 ou mais.

A criação de textos é, de longe, a aplicação mais conhecida, tendo sido usada por 48% dos brasileiros que já aproveitaram a IA, seguido pela organização de arquivos (18%) e geração de imagens (16%). Sobre a percepção sobre os resultados, 76% dos usuários acharam a experiência positiva, 19% disseram que foi regular, e apenas 3% não gostaram.

Entre os usuários, 46% acharam que a IA é uma oportunidade para a humanidade, enquanto 37% a viram como uma ameaça e 17% não souberam o que dizer sobre isso. Há também medos em relação à IA, como ela ser usada para aumentar a desinformação (apontado por 82% das pessoas), para tornar grupos perigosos mais poderosos (81%), controle da população por governos autoritários (80%), manipulação da opinião pública (76%) e justamente piora na desigualdade social (76%).

Esses números sobre medos são expressivos, ainda mais se considerarmos que a maioria acha a IA uma oportunidade, com ampla vantagem para os que a veem como positiva. Mas uma coisa é sentir os benefícios da tecnologia em seu cotidiano, outra é entender os riscos que ela oferece.

“A IA é um campo imenso de possibilidades, que ainda estamos longe de compreender inteiramente”, explica Nunes. “Acredito que todo mundo tem atualmente apenas uma pequena ideia do que está por vir”, afirma.

 

Inclusão digital

Segundo a edição mais recente da TIC Domicílios, pesquisa sobre o uso de tecnologia nas residências no país, divulgada em agosto de 2023 pelo Cetic.br, 29,4 milhões de brasileiros não têm acesso à Internet, sendo 17,2 milhões deles das classes DE e 10,3 milhões na classe C.

O acesso feito exclusivamente pelo smartphone acontece em 58% da população conectada, mas esse número chega a 87% no caso da classe DE. Isso impacta diretamente as habilidades digitais dos usuários. Por exemplo, 71% das pessoas que estão online pelo computador e pelo smartphone verificam se uma informação que receberam é verdadeira, contra apenas 37% das conectadas apenas pelos celulares.

Dar acesso à Internet e à inteligência artificial é, portanto, cada vez mais crítico para o desenvolvimento pessoal e profissional do indivíduo. Mas é preciso também melhorar o nível do letramento digital das pessoas, para que façam um uso verdadeiramente positivo desses recursos tão poderosos.

Isso está se tornando um direito humano, considerando a digitalização galopante de nossas vidas e como esses recursos melhoram praticamente todas as atividades em que são usados. Governos, escolas, empresas e outros membros da sociedade civil precisam se engajar para a oferta de acesso à tecnologia, mas também para sua compreensão e domínio consciente e ético.

Caso contrário, veremos a inteligência artificial empurrando ainda mais para o fundo aqueles que já ocupam uma posição mais baixa na sociedade. Afinal, não é essa tecnologia que roubará seus empregos, e sim aquelas pessoas que estiverem se apropriando e usando melhor seus recursos.

 

Rotuladores de dados realizam um trabalho essencial para a IA, porém estressante e mal pago - Foto: Drazen Zigic/Creative Commons

Para nos beneficiarmos da IA, uma multidão ameaça a própria saúde mental por trocados

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Não cansamos de nos deslumbrar com as capacidades da inteligência artificial generativa. Quando foi apresentado no dia 13 de maio, o GPT-4o, versão mais recente do “cérebro” do ChatGPT, parecia mágico, com suas capacidades cognitivas refinadas e conversas bem-humoradas. Mas ironicamente, apesar de essa data estar associada à lei que formalizou o fim da escravidão no Brasil, o “milagre da IA” das grandes empresas de tecnologia depende de um trabalho muitas vezes estressante e mal remunerado, feito por uma multidão de pessoas subcontratadas em países pobres.

Conhecidos como “data taggers” (ou “rotuladores de dados”), esses trabalhadores desempenham o papel crucial de ajudar os modelos de IA no que eles não conseguem distinguir por conta própria, de modo que, a partir daquela informação, eles saibam decidir corretamente. Por exemplo, em um conjunto de fotos, o que é um gato, um tigre, um leão e um cachorro? Um texto está com linguagem jornalística, publicitária ou acadêmica? Uma foto apresenta uma mulher amamentando, um nu artístico ou não passa de pornografia?

São sutilezas fáceis para uma pessoa entender, mas impossíveis para uma plataforma digital ainda destreinada. Mas depois que o rotulador de dados explica o que cada coisa é para a máquina, ela passa a ser capaz de identificar padrões para que tome boas decisões no futuro.

Como se pode ver, as respostas da IA dependem desse trabalho para serem adequadas. E como a humanidade usa cada vez mais esses sistemas, o descuido com o processo e com as pessoas nessa etapa pode trazer impactos significativos em tudo que fazemos. Portanto, se essas pessoas atuarem em condições degradantes, podemos estar confiando nosso futuro a uma forma de precarização de trabalho que pode trazer perigosos impactos para todos.


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A IA precisa de uma quantidade brutal de dados na fase de seu treinamento para que funcione. Só assim ela consegue identificar padrões e criar vínculos entre elementos de informação para que tire suas conclusões depois. Nem todos esses dados passam por um processo de rotulação por humanos, mas os que passam são fundamentais para que o sistema desenvolva uma base sobre a qual trabalhará.

A rotulação pode ser feita por cientistas de dados ou profissionais especializados. Isso resulta em um modelo mais preciso, porém custa mais e demora para ser concluído. O custo e a qualidade podem cair com um serviço terceirizado, e caem muito mais no modelo de “crowdsourcing”. E esse último formato tem sido escolhido pelas big techs para rotular as bases de dados colossais de suas plataformas de IA. Com ele, a classificação de dados é transformada em uma infinidade de microtarefas.

Você certamente já participou, sem saber, de inúmeras delas, quando precisou comprovar que era um ser humano. Essa tecnologia se chama reCAPTCHA, na qual ajudamos plataformas a identificar elementos em fotos ou palavras digitalizadas. Com isso, estamos rotulando dados para o sistema, que compara nossas respostas com a de muitos outros usuários para ter uma informação de qualidade.

Mas dizermos que partes de uma foto têm semáforos não é suficiente para treinar uma base como a que faz um ChatGPT funcionar. Para isso, um exército de pessoas subcontratadas por empresas especializadas realiza milhões dessas microtarefas.

Elas não têm contato com outros indivíduos, trabalhando de casa e gerenciadas por um software. Tudo isso pode prejudicar a qualidade das entregas. Assim algumas técnicas são usadas para compensar isso e minimizar problemas, como interfaces intuitivas, a busca de um consenso na rotulação de vários profissionais para um mesmo conteúdo e uma auditoria dos rótulos, que verifica sua precisão.

Esses trabalhadores normalmente são pouco qualificados e vivem em países pobres, como Quênia ou Índia, recebendo apenas de US$ 1 a US$ 2 por hora. Pessoas nos EUA ou na Europa Ocidental não aceitam tão pouco. Mas, apesar de ser aviltante nessas regiões, esse valor pode ser significativo nas partes mais pobres do globo.

E aí reside uma perversidade no sistema. Quando precisam que alguma informação seja rotulada por um americano, por exemplo, a plataforma paga muito mais pela mesma tarefa. Por isso, muitos trabalhadores de países pobres tentam enganar o sistema sobre onde estão. Se são descobertos, suas contas são bloqueadas e podem até ficar sem receber seu pagamento.

 

Saúde mental comprometida

Eventualmente esses trabalhadores precisam rotular textos ou imagens com violência, discurso de ódio e elementos grotescos. Por isso, podem desenvolver problemas como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. Uma exposição prolongada a esses conteúdos pode levar ainda a uma perda de sensibilidade e de empatia.

Além dos óbvios e graves problemas para a saúde mental desses trabalhadores, a exposição contínua a dados tóxicos pode comprometer a qualidade das entregas, introduzindo vieses e discriminação nos modelos. E isso pode depois se propagar em uma sociedade que cada vez mais confia nas informações oferecidas pela IA.

As empresas que gerenciam essas plataformas precisam, portanto, oferecer suporte psicológico a esses trabalhadores e mecanismos para que eles indiquem se algo está mal. Mas isso normalmente não acontece. As big techs, por sua vez, não se importam em forçar que isso seja seguido pelas empresas que contratam.

É irônico que um negócio multibilionário tenha na sua base uma legião de anônimos trabalhando em condições tão degradantes. A sociedade deve pressionar as gigantes da tecnologia para que criem políticas de trabalho éticas e transparentes envolvendo os rotuladores de dados, e que determinem que as empresa que lhes prestem serviços cumpram essas regras. E em tempos em que se discutem leis para reger a inteligência artificial, inclusive no Brasil, esse tema não pode ficar de fora.

Sabemos que preocupações sociais nem sempre provocam mudanças em processos de produção, especialmente quando isso impactará nos seus custos. Mas se não for por isso, as empresas deveriam, pelo menos, entender que essa precarização da mão de obra implicará em produtos piores para seus clientes.

Quanto a nós, os usuários de toda essa “magia” da inteligência artificial, precisamos entender e não esquecer que, quando conversamos com o ChatGPT, aquelas respostas incríveis só são possíveis porque alguém lhe disse o que cada coisa é.

 

Zack Kass (esquerda) e Uri Levine dividem o palco principal no fim do primeiro dia do VTEX Day, que aconteceu em São Paulo - Foto: divulgação

Mais que aumento do desemprego, IA pode levar a uma crise de identidade

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A enorme visibilidade em torno da inteligência artificial desde que o ChatGPT foi lançado, há um ano e meio, reacendeu o velho temor de que, em algum momento, perderemos os nossos empregos para as máquinas. Mas para o futurista em IA Zack Kass, a tecnologia pode provocar outras mudanças no mundo do trabalho, que podem levar a verdadeiras crises de identidade nas pessoas.

Kass, um dos primeiros profissionais da OpenAI (criadora do ChatGPT), onde atuou por 14 anos, acredita que as pessoas continuarão trabalhando. Mas em muitos casos, elas não poderão fazer o que gostam ou no que foram formadas, porque a função será realizada por um robô. E aí nasce o problema!

“Nós conectamos intrinsicamente nossa identidade de trabalho à nossa identidade pessoal”, explica o executivo, que esteve no Brasil na semana passada para participar do VTEX Day, um dos maiores eventos de e-commerce do mundo. Segundo ele, mesmo que as necessidades das pessoas sejam atendidas, não poderem trabalhar com o que desejam pode lhes causar fortes reações. “Esse é meu maior medo”, disse.

Se nada for feito, essa previsão sombria pode mesmo se concretizar. Diante dessa perspectiva, os profissionais experientes e os recém-formados devem fazer os movimentos certos para não ficarem desempregados ou para não serem jogados nessa crise profissional e de identidade, o que seria ainda mais grave.


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O futurista naturalmente não é o único a se preocupar com os impactos da inteligência artificial no mundo do trabalho. “Sempre há o medo de que ela tire nosso emprego”, disse Uri Levine, cofundador do Waze, que dividiu o palco com Kass. “Mas o que sempre aconteceu foi um aumento da produtividade e, portanto, do tamanho do mercado, ocasionalmente mudando os tipos de empregos”, afirmou.

Para Neil Patel, outro palestrante internacional do evento e referência global em marketing, “a inteligência artificial afetará as profissões e algumas pessoas perderão seus empregos”. Ele pondera que a IA também aumentará a produtividade das pessoas, mas, para isso, “elas precisarão ter conhecimento de IA para poderem fazer melhor seu trabalho.”

A aceleração de nossas vidas aumenta a chance do temor de Kass acontecer. “Somos constantemente levados a demonstrar resultados, a aparecer, a aprender coisas diferentes, em um ritmo cada vez mais intenso”, adverte Katty Zúñiga, psicóloga especializada nas interações entre o ser humano e a tecnologia. Ela explica que não podemos perder a nossa essência pessoal e profissional diante de tanta pressão.

Kass afirma que será muito difícil para algumas pessoas entenderem que haverá trabalho disponível, mas não o que elas gostariam de fazer. E mesmo que elas continuem ganhando seu dinheiro, isso poderá deixá-las sem propósito.

Segundo Zúñiga, nossa formação e experiência profissional são fortalezas que podem ajudar a nos posicionar diante do avanço dos robôs sobre nossas funções. Mesmo com máquinas mais eficientes, nossa essência continuará nos acompanhando e nada do que sabemos se perde. “Isso nos torna seres mais estruturados e completos”, explica. A nossa humanidade acaba sendo, portanto, o nosso diferencial!

A psicóloga lembra que isso não é uma briga contra a tecnologia. Ela observa que muitas pessoas estão se entregando a usos indevidos da IA, quando, na verdade, o que precisamos fazer e nos apropriarmos do que ela nos oferece de bom, reforçando o que somos e nossas profissões.

 

Desenvolvimento responsável

De fato, a inteligência artificial deve funcionar apoiando o ser humano, e não representando ameaças a sua integridade física e mental.

Kass ressalta que todo o desenvolvimento dessa tecnologia deveria atender a dois princípios essenciais: o alinhamento e a explicabilidade. O primeiro se refere a quanto as propostas das plataformas estão preocupadas com os interesses dos seres humanos. Já a explicabilidade, como o nome sugere, indica se os sistemas são capazes de explicar ao usuário, com clareza, suas decisões.

Ele diz que essa é uma busca contínua e interminável. “Se pudermos fazer essas duas coisas, então todo o resto torna-se totalmente aceitável, muito menos importante”, afirma Kass.

O futurista defende a regulação internacional da tecnologia para garantir esses dois conceitos, prevenindo desenvolvimentos irresponsáveis. “Qualquer coisa que não esteja falando sobre alinhamento e explicabilidade está introduzindo oportunidades para corrupção e interesses especiais”, conclui.

Todas essas considerações refletem um cenário de transição em que estamos envolvidos com a inteligência artificial. Os avanços dessa tecnologia são galopantes e invadem os mais diversos setores. Por outro lado, de tempos em tempos, os próprios desenvolvedores demonstram surpresa com os resultados de suas criações.

Isso alimenta incertezas e até medos em torno da IA, o que pode levar a decisões desastrosas que impeçam uma adoção construtiva e consciente dessa tecnologia transformadora. Kass possui uma posição privilegiada nessa indústria para poder fazer essas afirmações conscientemente.

Apesar disso (e de certa forma, principalmente por isso), precisamos encontrar mecanismos para garantir esse desenvolvimento responsável, para as máquinas buscarem o melhor para a humanidade, e não apenas para grupos específicos. Isso se dá por legislações maduras e por grandes debates sociais, para conscientização de usuários e de empresas desenvolvedoras.

Esses são caminhos necessários para que a inteligência artificial ajude a humanidade a atingir um novo patamar de produtividade, sem ameaçar a saúde mental das pessoas. E isso deve acontecer não porque as máquinas cuidarão de tudo, mas porque nós mesmos deveremos continuar realizando aquilo que gostamos, porém de maneira mais fácil, rápida e eficiente, com a ajuda delas. A nossa humanidade deve prevalecer!


Assista às íntegras em vídeo das minhas entrevistas com os três executivos. Basta clicar sobre os seus nomes:

Zack Kass, futurista de IA

Neil Patel, referência global em marketing

Uri Levine, cofundador do Waze

 

Sam Altman, CEO da OpenAI, fala sobre inteligência artificial no Fórum Econômico Mundial desse ano, em Davos - Foto: reprodução

Enquanto a IA melhora a produtividade de alguns, torna outros “inempregáveis”

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No dia 14, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um estudo que indica que cerca de 40% dos trabalhos do mundo serão impactados pela inteligência artificial. Isso não se dará de maneira homogênea: enquanto ela trará grande produtividade a alguns, pode eliminar postos de trabalho e até deixar muitas pessoas “inempregáveis”, ou seja, sem capacidade de assumir qualquer ocupação com o que sabem fazer.

Por que uma mesma tecnologia provoca consequências tão opostas no mercado de trabalho de um mesmo país, ao mesmo tempo? A resposta passa pelas capacidades dos profissionais de se adaptar para tirar proveito do que ela oferece.

Enquanto isso, o Brasil comemora mais uma queda na taxa de desemprego, que terminou novembro em 7,5%, a menor desde fevereiro de 2015. Ainda assim, o país continua tendo 8,2 milhões de desempregados. Apesar de muito bem-vinda essa retração, é preciso estar atento à qualidade desses empregos. Afinal, com o avanço da IA, muitos deles podem desaparecer em breve por falta de capacitação. A sociedade brasileira precisa se mobilizar para que isso não aconteça com força.

A IA escancara, portanto, algo que já se observa há anos: o futuro do trabalho passa pelo futuro da educação. Os robôs estão se tornando auxiliares valiosos, mas as pessoas precisam de uma melhor formação para não serem substituídas por eles.


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Segundo o estudo do FMI, nos países mais ricos, a IA afetará 60% dos postos de trabalho: metade será beneficiada, enquanto a outra pode experimentar desemprego, queda de salários e até extinção de profissões inteiras. Já nos emergentes, o impacto deve atingir 40% dos trabalhadores, mas apenas 26% devem ser beneficiados.

Segundo os autores, essa diferença entre países se dá pela falta de infraestrutura e de mão de obra qualificada para aproveitar bem a IA nos emergentes. Por isso, com o tempo, a inteligência artificial pode aumentar a desigualdade entre nações, e o mesmo se pode esperar entre ricos e pobres de um mesmo país.

A IA vem despertando tanto deslumbramento quanto medo. Não devemos sentir nenhum deles: precisamos entendê-la para nos apropriarmos do que els oferece de bom e nos esquivarmos de eventuais armadilhas, inclusive no mundo do trabalho.

Novas tecnologias extinguem profissões e criam oportunidades desde o início da Revolução Industrial, no século XVIII. A sociedade se ajusta e faz as mudanças para o novo. A diferença é que agora a adaptação precisa ser muito mais rápida, exigindo habilidades básicas que muitos não têm e que não conseguem adquirir a tempo. Por isso, pessoas no seu auge profissional estão vendo sua empregabilidade derreter, de uma maneira que elas não conseguem controlar, algo desesperador a qualquer um.

Ao contrário do que se via há alguns anos, quando apenas as pessoas menos qualificadas eram impactadas pela automação, a inteligência artificial também atinge carreiras mais nobres e criativas. Portanto, apesar de uma boa educação continuar sendo absolutamente fundamental, é preciso saber o que e como estudar.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV) divulgado em setembro demonstrou que os brasileiros que estudaram mais foram os que perderam mais renda na última década, com um aumento abrupto na informalidade. Isso obviamente não está associado à explosão da IA, que ainda é muito recente, mas demonstra que ninguém mais está “seguro”.

Na semana passada, o LinkedIn divulgou quais são as profissões em alta em vários países. No Brasil, várias estão intimamente ligadas ao mundo digital e à própria IA, como analista de privacidade, de cibersegurança e de dados. Outro estudo, da Universidade da Pensilvânia (EUA) e da OpenAI, concluiu que 80% dos trabalhadores americanos podem ter pelo menos 10% de suas tarefas afetadas pela IA.

Isso fica dramático no Brasil, com sua educação tecnológica ruim e um acesso limitado ao mundo digital. Segundo a mais recente pesquisa TIC Domicílios, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 20% dos domicílios (15 milhões) e 14% dos brasileiros com 10 anos ou mais (27 milhões) nem têm acesso à Internet.

 

Futuros do trabalho e da educação juntos

Muitas das “profissões do futuro” paradoxalmente existem desde a Antiguidade, como professores e médicos. Elas assim se classificam porque continuarão existindo e sendo muito importantes para a sociedade. Mas mesmo elas já sofrem e continuarão sofrendo grande mudanças pela digitalização. Querer continuar as exercendo como se fazia há alguns anos é um convite para ser colocado para fora do mercado. Por outro lado, profissionais que se atualizem com as novas tecnologias, como a inteligência artificial, se tornarão ainda mais relevantes.

O avanço galopante da IA atropela uma sociedade que não consegue medir as transformações que ela trará em pouco tempo. Em dezembro, o fundador da Microsoft Bill Gates disse que o avanço dessa tecnologia em breve permitirá semanas de trabalho de três dias, com as pessoas ganhando o mesmo. Tecnicamente pode ser verdade, mas, para que isso aconteça, os gestores teriam que fazer esse movimento magnânimo, ao invés de simplesmente demitir metade de sua força de trabalho para aumentar muito seus lucros. Não se trata, portanto, só de uma mudança tecnológica.

No Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) do ano passado, os líderes mundiais estavam deslumbrados com as oportunidades da IA. Na edição desse ano, que terminou na sexta, a euforia foi substituída por uma busca de como usá-la de forma responsável e segura, e qual o papel de cada um nisso.

Toda tecnologia deve ser usada para o bem de todos, e não apenas para o benefício de alguns. Um dos temores sobre a IA, que indubitavelmente fará a humanidade dar vários saltos, é que ela também seja usada para o mal. O mundo do trabalho é apenas um dos elementos mais críticos disso na vida das pessoas.

Governos, empresas e demais atores da sociedade civil devem fazer os ajustes necessários antes que essa bomba exploda, pois seu efeito pode ser devastador. Aqueles que estão na parte beneficiada pela IA não podem se acomodar e fingir que esse problema não lhes pertence, pois acabarão impactados de uma ou outra forma.

Precisamos de uma revolução educacional que ensine as pessoas a usarem melhor as tecnologias, não como meros apertadores de botões ou criadores de comando para o ChatGPT. Elas precisam entender o porquê de tudo isso para fazer escolhas conscientes, sem se tornar consumidores com senso crítico achatado pela máquina. De uma maneira um tanto paradoxal, isso acontecerá apenas com uma educação que também fortaleça seus aspectos humanos.

E precisamos disso já, pois a inteligência artificial não esperará pela lerdeza natural.

 

Thiago Araki, diretor-sênior de Tecnologia da Red Hat na América Latina, no palco do Summit Connect, no dia 18 – Foto: Red Hat

Negócios e empregos mudam exponencialmente com novas tecnologias e modelos

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O ano de 2023 será lembrado como o momento em que a inteligência artificial ganhou as ruas. O lançamento do ChatGPT, no final de 2022, disparou uma corrida em que todos os negócios parecem ser obrigados a usar a IA, quase como se ela fosse um selo de qualidade, o que obviamente não passa de uma distorção do que ela representa. O grande desafio reside, portanto, em conhecer e se apropriar dessa tecnologia, para tirar proveito dela adequadamente.

As empresas têm um papel central em ajudar nessa tarefa, não apenas com o lançamento de produtos que tragam soluções consistentes com a IA, mas também na educação do mercado. Isso ficou claro durante o Red Hat Summit: Connect, principal evento de tecnologia open source da América Latina, que aconteceu em São Paulo no dia 18.

É curioso pensar que a inteligência artificial já está em nosso cotidiano há muitos anos, em incontáveis aplicações empresariais e até em nosso celular, ajudando-nos a fazer escolhas melhores. A diferença é que, até então, ela se escondia nas entranhas desses sistemas. Agora ganhou a luz do sol, exposta em conversas que temos com a máquina, que nos responde como se fosse outra pessoa.

Ainda há deslumbramento demais e conhecimento de menos sobre a inteligência artificial entre consumidores e empresas. O próprio lançamento de tantas plataformas de inteligência artificial generativa, na esteira do sucesso explosivo do ChatGPT, indica um certo descuido de alguns desenvolvedores de soluções, liberando um enorme poder para pessoas que não sabem como usá-lo corretamente.

Nesse sentido, a Red Hat, que é a maior empresa do mundo no fornecimento de soluções empresariais open source, entende que deve ir além do seu papel de desenvolver produtos que tiram proveito da IA: deve também educar seus usuários, seja pelas suas próprias iniciativas, seja pela colaboração com o mundo acadêmico. “As empresas não só podem como devem colaborar na formação de profissionais”, explica Alexandre Duarte, vice-presidente de Serviços para a América Latina na Red Hat. “Nós temos que juntar esforços do mundo corporativo com o mundo educacional, estando alinhados.”

A versão latino-americana do Summit, que também acontece em Buenos Aires (Argentina), Santiago (Chile), Tulum (México), Lima (Peru) e Montevidéu (Uruguai), traz para esses mercados produtos e conceitos que foram apresentados em maio no evento global da empresa, realizado em Boston (EUA). Entre eles, o Ansible Lightspeed e o OpenShift AI, que usam a inteligência artificial na automação de tarefas, como geração de códigos a partir de pedidos simples em português, liberando o tempo das equipes para funções mais nobres.

E assim como pude ver em Boston, aqui a empresa também deixa claro que a inteligência artificial não chega para substituir profissionais, e sim para melhorar suas rotinas. “Se você for um novato, poderá criar melhor, mais rápido; se for um especialista, poderá melhorar muito o que faz e usar seu domínio para refinar a entrega”, explicou-me Matt Hicks, CEO global da Red Hat, em uma conversa com jornalistas durante o Summit na cidade americana. “Nessa nova fase, temos que conhecer a pergunta para a qual queremos a resposta”, concluiu.

É auspicioso observar essa visão em uma das empresas de software mais respeitadas do mundo, em um momento em que muita gente teme pelo seu emprego pelo avanço da inteligência artificial. “Essas ondas tecnológicas não tiram o emprego das pessoas, os profissionais precisam se acomodar”, acalma Duarte. Mas ele faz uma ressalva: é preciso querer aprender! “Se você tem propensão a aprender coisas novas, eu não acredito que a inteligência artificial vai tirar seu emprego, e ainda vai gerar novas oportunidades de trabalho”, acrescenta.

 

O poder da “coopetição”

Em março deste ano, a Red Hat completou 30 anos. Ele cresceu a partir de sua distribuição do sistema operacional Linux, provavelmente o software open source mais famoso do mundo. Nessa modalidade, o produto e o código-fonte ficam disponíveis gratuitamente. A regra fundamental é que, se alguém fizer uma melhoria no sistema, ela deve ser compartilhada de volta com a comunidade.

Essa forma de pensar inspira seu próprio modelo de trabalho, que ficou conhecido como “open business”, uma abordagem empresarial em que equipes, a comunidade e até concorrentes são convidados a cooperar de maneira transparente. Ela valoriza a transparência e a responsabilização, distribuindo os benefícios para todos. “Há 30 anos a gente fala sobre essa abertura, essa transparência, essa possibilidade de diferentes perspectivas”, afirma Sandra Vaz, diretora-sênior de Alianças e Canais para a América Latina na Red Hat.

Surge então a chamada “coopetição”, um neologismo que une “cooperação” e “competição”. “Nada mais é que dois competidores cooperando e criando novas soluções para o bem de seus clientes”, explica Vaz. “Nós colaboramos, nossas equipes de desenvolvimento se conectam e criam o melhor dos mundos, simplificando soluções já existentes.”

A “coopetição” também é uma poderosa ferramenta para ampliar a base de clientes, pois um dos participantes pode trazer consumidores a que o outro lado não teria acesso. Sandra dá, como exemplo, um provedor de serviços na nuvem, como a AWS ou a Microsoft, que podem até ter produtos concorrentes aos da Red Hat, mas que se associam a ela justamente nessas soluções, se assim for o desejo do cliente.

A tecnologia avança a passos muito rápidos, assim como modelos de negócios inovadores. Qualquer que seja o mercado ou a função, está claro que profissionais precisam estar não apenas abertos à inovação, como também dispostos a aprender como tirar proveito dela de maneira eficiente e ética.

A inteligência artificial talvez não acabe com os empregos das pessoas que não a adotem, mas isso pode acabar acontecendo pelas mãos daquelas que passarem a usá-la.


Você pode assistir à íntegra em vídeo das minhas entrevistas com os executivos da Red Hat. Basta clicar no respectivo nome: Alexandre Duarte, Sandra VazMatt Hicks.

 

Troca de empregos formais pela flexibilidade da “gig economy” pode levar a queda nos rendimentos - Foto: Ono Kosuki/Creative Commons

Estudar tem dado menos dinheiro, mas não investir na sua formação é uma armadilha

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O mercado de trabalho brasileiro vem criando mais vagas de baixa qualidade, mesmo com a população estudando mais. Isso empurra profissionais bem-preparados para posições que pagam menos e para a informalidade, e arma uma perigosa arapuca.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), divulgado recentemente com dados do IBGE, demonstrou que os brasileiros que estudaram mais foram os que perderam mais renda na última década, com um aumento abrupto na informalidade. O levantamento aponta ainda que despencou a vantagem dos seus rendimentos frente aos dos que estudaram muito pouco.

Outra pesquisa, essa da consultoria IDados sobre a população “sobre-educada”, indica que 5,4 milhões de brasileiros com ensino superior trabalham fora de sua área de formação ou em atividades que não tiram proveito de todo o seu potencial. Esse número vem crescendo desde 2019, quando os “sobre-educados” eram 4,5 milhões.

Esses levantamentos contrastam com a mais recente taxa de desemprego no país, divulgada pelo IBGE na sexta (29), que foi de 7,8%. É o menor índice desde fevereiro de 2015, quando era de 7,5%.

Isso se explica por uma economia sem dinamismo, com empresas que investem pouco, acostumadas a uma produtividade baixa. O grande perigo nisso tudo é se criar uma ideia errada de que não vale a pena estudar, ou pelo menos estudar muito.

Apesar dessas evidências, as pessoas que caem nessa armadilha colocam em risco a própria sobrevivência profissional, especialmente em um cenário de grande automação.


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Segundo a pesquisa do Ibre-FGV, os profissionais com mais de 16 anos de estudo viram sua renda média cair, entre 2012 e 2023, de R$ 7.211 para R$ 6.008, em valores corrigidos pela inflação. Nessa faixa, a informalidade saltou de 1,9 milhão para 4,1 milhões de trabalhadores entre 2015 e 2023. Vale apontar que percentualmente, o aumento não foi tão grande: de 14% para 19,5%, o que indica que mais pessoas chegaram a esse patamar superior de estudo no período.

De todas as faixas avaliadas no levantamento, a única que viu sua renda crescer sensivelmente de 2012 a 2023 foi justamente a dos com menos de um ano de ensino: de R$ 1.094 a R$ 1.396. Para quem estudou de 1 a 11 anos, permaneceu praticamente estável, caindo a partir daí. A informalidade também diminuiu para quem estudou até 8 anos, permaneceu estável na faixa de 9 a 11 anos de escola, e cresceu entre os que estudaram a partir de 12 anos.

O achatamento salarial é velho conhecido dos brasileiros, especialmente em momentos de crise, como a que estamos mergulhados há anos. A recente digitalização galopante agora afeta camadas profissionais mais especializadas, que antes se sentiam mais protegidas.

Mariane Guerra, vice-presidente de Recursos Humanos para a América Latina da ADP, acredita que a chamada “gig economy” também pode estar influenciando nesse processo. Por esse modelo, profissionais trocam empregos regulares por trabalhos pontuais, muitas vezes por tarefas. Se antes o grande expoente disso era a Uber, hoje temos profissionais em todos as áreas adotando o modelo, em busca de flexibilidade.

“Quando você passa a ser um trabalhador autônomo, você tem uma flutuação de renda”, afirma a executiva. “Demora até você ter uma carteira de clientes que permite ter uma renda constante, sólida, no mesmo patamar”, explica.

Para aqueles que insistem em um emprego, a situação econômica pode provocar um impacto perverso. Cresce o número de profissionais que “diminuem sua formação” no currículo (por exemplo, omitindo um doutorado) para conseguirem ser contratados.

“A gente tem a necessidade de pessoas com um perfil mais preparado, mais aculturado, mais transdisciplinar, para atender demandas mais sofisticadas”, afirma Marcelo Graglia, professor da PUC-SP e coordenador do Observatório do Futuro do Trabalho. “E a gente vê essa prática arcaica, que não faz mais sentido”, acrescenta.

 

Investindo no que importa

Os especialistas são unânimes em reafirmar a importância do estudo. Mas é preciso escolher no que focar.

O diploma de graduação deixou de ser suficiente para o sucesso profissional há muito tempo. É um consenso no mercado que se deve estudar continuamente, porque novas metodologias, recursos tecnológicos e modelos de negócios surgem a todo momento.

No cenário atual de pouco dinheiro e tempo, vemos o crescimento de busca por cursos de curta duração, para aprender habilidades técnicas específicas e de uso imediato no cotidiano profissional. É uma maneira rápida de se conseguir algum destaque no currículo.

Apesar de seu inegável valor, eles não substituem os cursos mais longos, como especializações, MBAs e até mestrados e doutorados. São eles que formam profissionais verdadeiramente diferenciados, capazes de enfrentar os desafios de um mercado cada vez mais exigente e em constante transformação.

“Os profissionais que enxergam esse momento do mercado como uma mudança estrutural cometem um equívoco estratégico para a carreira”, afirma Graglia. Ele e Guerra destacam ainda a importância das “soft skills”, competências interpessoais e emocionais para o trabalho. Para ele, “as pessoas muito especializadas, sem essas outras habilidades, são as mais suscetíveis à substituição pela tecnologia”.

Não se pode esperar que o governo resolva isso sozinho, apesar de seu papel fundamental na criação de novas políticas educacionais, que formem melhores cidadãos e profissionais mais alinhados ao mundo atual, desde o Ensino Básico até a universidade. As empresas precisam também assumir seu papel na solução, não apenas valorizando profissionais com boa formação, mas também investindo, elas mesmas, em cursos de capacitação e reciclagem. E naturalmente cada um de nós deve assumir o protagonismo da própria carreira, estudando para melhorar sempre.

“Conhecimento é perecível, então quem vai produzir mais, quem vai continuar fazendo pesquisa, se todo mundo acha que não precisa estudar mais”, questiona Guerra. Em um cenário de competição tecnológica cada vez mais acirrada, ela provoca: “quem vai dar o próximo passo qualitativo, desenvolver a próxima tecnologia?”

O mercado de trabalho e a educação caminham de mãos dadas. Quando um vai mal, a outra sente, e vice-versa. Não se pode, diante do cenário ruim que o país passa, esquecer do ensino e da valorização profissional como pilares para o crescimento de qualquer sociedade. Isso colocaria nosso futuro ainda mais em risco.

 

Muitos motoristas não querem se contratados como CLT pela Uber - Foto: Paul Hanaoka/Creative Commons

Decisão contra a Uber escancara o envelhecimento das leis trabalhistas

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No último dia 14, a Justiça Trabalhista de São Paulo determinou que a Uber contrate todos os motoristas ligados à plataforma pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e pague R$ 1 bilhão por danos morais coletivos. A decisão vale para todo o Brasil e a empresa tem seis meses após o fim de recursos para implantar as medidas.

A Uber já disse que não pretende cumprir a decisão! Em nota, a empresa afirma que não vai adotar nenhuma medida antes que todos os recursos estejam esgotados. A grande pergunta é: o que acontecerá se a decisão for mantida após isso?

Suprema ironia, associações de motoristas se manifestaram dizendo que eles não querem ser contratados pela CLT! Mas isso não quer dizer que estejam satisfeitos com as atuais condições de trabalho.

Qualquer que seja o resultado desses recursos, o caso serve para debatermos a aplicabilidade das leis trabalhistas brasileiras ao mundo atual. A Uber e diversas empresas que fazem parte de nossas vidas seguem os conceitos da economia compartilhada. Ela prevê o engajamento de vendedores e prestadores de serviço com seus clientes, viabilizado por plataformas digitais.

O problema é que esse modelo se choca com a CLT em muitos pontos. Em um momento em que o Governo Federal busca resgatar elementos como o imposto sindical, é de se questionar qual formato regerá as relações trabalhistas de milhões de brasileiros em um futuro próximo.


Veja esse artigo em vídeo:


A legislação brasileira é uma das que mais protege o trabalhador no mundo. Entre muitos itens de segurança social, benefícios como férias remuneradas de 30 dias (e ainda com um adicional de um terço) já a partir de um ano de admissão são luxos inimagináveis em outros países. Tudo isso tem um custo, pago pelos próprios profissionais e principalmente pelas empresas. Via de regra, para cada real pago em salário ao funcionário, a empresa gasta outro com os encargos trabalhistas.

“Essa é uma decisão feita para não ser cumprida”, afirma José Isaías Hoffmann, diretor de Controladoria da Corporate Consulting. “Operacionalmente, como a Uber vai admitir via CLT mais de um milhão de motoristas”, questiona. Ele acredita que, se ela for obrigada a fazer isso, acabará saindo do país, deixando um rastro de desemprego.

O peso dos encargos e de outras obrigações trabalhistas já provoca mudanças no perfil de contratações no Brasil há cerca de duas décadas. Cada vez mais, empresas procuram, sempre que possível, trocar o modelo da CLT por terceirizações de empresas com um único funcionário, os famosos “PJ”. Com isso, os empregadores se livram de encargos e burocracia, e têm o profissional à disposição.

Alguns trabalhadores também preferem esse formato, principalmente quando isso lhes proporciona flexibilidade, com destaque ao horário. É o caso dos profissionais por aplicativos, como motoristas e entregadores. “As pessoas querem uma vida flexível”, afirma a estrategista de carreira Ticyana Arnaud. “Se for para trabalhar CLT, então eles voltam a procurar emprego, vão ser motoristas numa empresa”, sugere.

O principal conflito entre as regras da CLT e as da economia compartilhada é que a primeira considera o profissional um empregado, enquanto a segunda o tem como um autônomo e às vezes nem isso: atua como um prestador informal, que pode trabalhar ao mesmo tempo para incontáveis contratantes. Essa flexibilidade tornou-se tão valorizada por trabalhadores de diferentes áreas (afinal, há uma enormidade de serviços na economia compartilhada), que muitos abrem mão da proteção e dos benefícios generosos da CLT por ela.

Apesar disso, é preciso ter cuidado, pois nem tudo que brilha é ouro!

 

Bondades podem esconder abusos

Não há dúvida que a economia compartilhada é um fenômeno consolidado e que traz muitos benefícios a prestadores e a clientes. A Uber é um exemplo tão didático quanto popular, por ter redefinido a mobilidade urbana e por ser usada por uma porcentagem considerável das populações das grandes cidades. Mas há muitos outros ótimos nomes, como Airbnb, Mercado Livre, iFood ou Rappi. Fica difícil pensar a vida moderna sem eles, e a pandemia deixou isso ainda mais evidente.

Ainda assim, não se pode deixar deslumbrar por suas inegáveis vantagens. O Laboratório de Pesquisa DigiLabour investiga continuamente o impacto das plataformas e de tecnologias disruptivas (como a inteligência artificial) no mundo do trabalho. Eles criticam, por exemplo, essas plataformas chamarem os motoristas de “parceiros” ou de “autônomos”, quando, na verdade, não têm autonomia nem para definir o valor das corridas ou a porcentagem que receberão por elas. Afirmam também que o “empreendedorismo de si mesmo” mascara uma relação de trabalho desigual, em que o profissional assume todos os riscos de um empreendedor, mas atua como um empregado, porém sem nenhum benefício ou proteção.

Já o Instituto Fairwork, ligado à Universidade de Oxford (Reino Unido), criou cinco princípios que seriam necessários para um trabalho decente: remuneração justa, condições justas de trabalho, contratos justos, gestão justa e representação dos funcionários na operação. Em uma pesquisa realizada por eles em 2021, as plataformas no Brasil ficaram entre as piores do mundo: em uma escala até 10 pontos nesses quesitos, iFood e 99 marcaram 2, Uber ficou em 1, enquanto Rappi, GetNinjas e UberEats não saíram do zero. Os resultados são semelhantes aos de outros países da América Latina, mas ficam atrás dos de operações na África, Ásia e Europa.

É importante lembrar que, quando a Uber começou a operar no Brasil, em 2016, dirigir para ela parecia um bom negócio: a empresa ficava com apenas 7% das corridas (hoje pode chegar a 50%) e oferecia muitos bônus aos motoristas. As corridas eram baratas e o serviço de alta qualidade.

Isso explica a “economia compartilhada que dá certo”: ela precisa ser boa para todos os envolvidos, ou seja, o cliente, o vendedor ou prestador, e a plataforma. Quando os motoristas da Uber passaram a receber muito pouco, tudo desmoronou!

“Precisa, de fato, de uma atualização na legislação para entender essa nova dinâmica de mundo”, afirma Hoffmann. “Ela requer que seja justo para quem faz o serviço, para quem recebe, para a economia, que ninguém seja prejudicado com isso”, conclui.

“É preciso tentar uma negociação para reduzir essas taxas e ser uma coisa que valha a pena para todos, e não só para um lado”, explica Arnaud. Para ela, “se a Uber for forçada a aderir à CLT, outras empresas também terão que fazer o mesmo”.

É um momento de mudança de paradigma na maneira como trabalhamos. Insistir na rigidez da CLT, criada em 1943, pode ir contra os interesses de muitos trabalhadores. Por outro lado, deixar tudo na mão das plataformas seria “pedir que a raposa tome conta do galinheiro”. É preciso buscar esse equilíbrio perdido, pois a economia compartilhada, sim, funciona. E nós, como clientes, precisamos pressionar para que essa solução seja encontrada.

 

Recurso de visualização acelerada de conteúdos nos dá mais tempo, mas pode nos deixar ansiosos - Foto: Akshay Gupta/Creative Commons

A tecnologia tenta nos acelerar, mas nossa natureza tem limite de velocidade

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Atire a primeira pedra quem nunca clicou no botão “2X” para ouvir mais rapidamente uma mensagem de áudio do WhatsApp. Quando foi lançado, em maio de 2021, esse recurso foi festejado por aqueles que não aguentam ouvir falas que duram vários minutos. Mas longe de ser um fenômeno isolado, essa possibilidade de “acelerarmos nosso cotidiano” está cada vez mais presente em diversas plataformas digitais.

Reflexo do sucesso da possibilidade de “encurtarmos” todo tipo de conteúdo para termos mais tempo livre, isso dispara alguns questionamentos. O primeiro é descobrir se há algum efeito colateral nesse processo. Outro se trata de um dilema do tipo “ovo e galinha”: as plataformas digitais nos oferecem isso cada vez mais porque é algo que desejamos, ou nós queremos e usamos a funcionalidade porque está mais disponível?

Pesquisadores se debruçam sobre o tema para entender até seu impacto fisiológico em nossos cérebros. Mas não é necessário ser um neurocientista para perceber que essa ânsia pela aceleração transforma nosso cotidiano há muitos anos. Hoje fazemos muitas coisas de maneira diferente e mais rápida, como estudar, trabalhar, nos divertir e até nos relacionar com outras pessoas. E o que começou nas diferentes telas agora também transforma essas mesmas atividades quando feitas presencialmente.

Como era de se esperar, algumas coisas ficaram pelo caminho. Ganhamos na velocidade, mas podemos perder em entendimentos deficientes e no aumento de ansiedade. E disso surge a pergunta: será que vale a pena?


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O conceito foi brilhantemente explicado no filme “Click” (2006), estrelado por Adam Sandler. Na história, seu personagem ganha um controle remoto mágico capaz de manipular o mundo a sua volta. Dessa forma, ele podia, por exemplo, acelerar as partes de sua vida pelas quais tinha que passar, mas de que não gostava. O problema é que o aparelho aprendia essas preferências, começando a “pular” automaticamente todos esses momentos. Como resultado, o personagem de Sandler acabou perdendo informações importantes de sua vida.

Ainda não chegamos a esse ponto de acelerar os acontecimentos reais, mas o que já temos no mundo digital vem alterando nossa percepção. É comum dizermos que os dias parecem estar ficando mais curtos, mas não pensamos na quantidade de coisas diferentes que fazemos a cada 24 horas, muito mais que nossos pais. Há uma sensação de aumento de produtividade, mas até onde isso é real e saudável?

A tecnologia digital combina perfeitamente com o conceito de sucesso da vida contemporânea, fortemente ligada à produtividade. Não basta fazer mais: é preciso brilhar mais e isso precisa ser visto por todos. Trocamos os benefícios de contemplar a vida pela sensação de uma suposta vitória pela hiperpodutividade.

Quem se dispõe a deixar a correria do cotidiano de lado para se dedicar, por alguns minutos que seja, a calmamente apenas ouvir músicas de que se gosta? Esse exemplo é muito emblemático, porque o que se observa é exatamente o contrário: pessoas que aceleram as músicas, para que acabem mais rapidamente, não se importando com a óbvia mutilação da obra.

Isso vem provocando alterações em com as próprias músicas são compostas atualmente. Introduções melodiosas e solos instrumentais desaparecem para que o ouvinte chegue ao clímax rapidamente. A própria duração da faixa fica limitada a três minutos, para evitar que a pessoa passe para outra música antes de se chegar ao final. Se isso acontece, os algoritmos das plataformas de streaming podem entender que a música não é tão interessante, passando a tocá-la menos daí em diante.

 

Crescimento da ansiedade

A comunidade científica ainda não chegou a uma conclusão sobre todos os impactos da aceleração de nosso cotidiano. Muitos estudos se concentram em descobrir quanto isso afeta a nossa compreensão de conteúdos que consumimos.

Em 2021, uma equipe da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA), liderados por Dillon Murphy, publicou um estudo na revista “Applied Cognitive Psychology”. Eles observaram que as pessoas conseguiam compreender vídeos acelerados em até 2X. Acelerações maiores já prejudicavam o processo. Concluíram também que pessoas que usam esse recurso frequentemente têm mais chance de entender e reter as mensagens aceleradas, como se estivessem treinadas.

Mas uma eventual compreensão prejudicada não é a única coisa que deve nos preocupar. Especialistas apontam uma correlação entre uma vida acelerada e o crescimento explosivo de casos de ansiedade. E nós, brasileiros, não estamos nada bem nisso: segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil possui a população com a maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo, com 9,3% dos brasileiros sofrendo de ansiedade patológica.

Tanta ansiedade transforma tudo que fazemos. Qualquer coisa que exija mais tempo, atenção ou reflexão pode disparar esses processos, assim as pessoas procuram evitar isso tudo. Mas gostemos ou não, eles continuam fazendo parte de nosso trabalho, nosso estudo e até de nossos relacionamentos. Nos escritórios, isso se sente em queda de produtividade e menos compromisso profissional.

Essa falta de envolvimento pode tornar tudo superficial. No caso de relacionamentos, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman já havia identificado isso em seu livro “Amor Líquido” (editora Zahar, 2004). Para ele, a redução nas suas qualidades é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. Aceleram-se os inícios e os términos com o clique em um aplicativo. Troca-se, sem remorsos, aqueles que deixam de ser “interessantes” por outros “melhores”.

Como professor, sinto isso na alteração do formato de cursos de extensão universitária. As pessoas desejam, cada vez mais, cursos rápidos e focados em um tema específico, para aplicação imediata no cotidiano. Cursos que oferecem uma visão analítica e estratégica, responsáveis pela formação de profissionais capazes de solucionar grandes problemas, perdem espaço.

Dou aulas presenciais e a distância. Essas últimas, apesar de dadas sempre ao vivo, ficam gravadas e muitos alunos talvez as vejam aceleradamente. Mas seria uma pena: mesmo as pausas nas aulas são importantes para a construção de um raciocínio e para a fixação do conteúdo. Se forem eliminadas, o aprendizado fica comprometido.

Ninguém questiona como as plataformas digitais se tornaram inestimáveis ferramentas de produtividade. É praticamente impossível viver hoje sem o que elas nos oferecem. Mas como qualquer ferramenta, elas precisam ser usadas com inteligência. Longe de representar “esperteza”, o abuso da “aceleração da vida” demonstra um letramento digital pobre da população.

Como diz o ditado, “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza”. A natureza continua seguindo seu ritmo natural, desacelerado. Não somos máquinas! Ao tentar subverter isso, trocamos bem-estar por ansiedade, produtividade por acúmulo insustentável. Esse não é o caminho a ser seguido.

 

Cena de “O Exterminador do Futuro” (1984), em que máquinas inteligentes querem exterminar a humanidade - Foto: reprodução

Qual será a próxima vítima da inteligência artificial?

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No dia 13, o sindicato dos atores de Hollywood se juntou à greve do sindicato dos roteiristas dos EUA, que acontece desde maio. É a primeira vez em 63 anos que as duas organizações cruzam os braços ao mesmo tempo, o que já impacta a produção de filmes e séries. Entre reivindicações mais convencionais, como melhores condições de trabalho e salários, os dois grupos preocupam-se com o impacto que a inteligência artificial terá em suas profissões.

Já debati longamente, nesse mesmo espaço, sobre a substituição de profissionais por essa tecnologia. Mas esse caso é emblemático porque são as primeiras grandes entidades trabalhistas que colocam isso na pauta de reivindicações para seus patrões.

É curioso porque, no atual estágio de desenvolvimento da inteligência artificial, não se vislumbra que ela substitua consistentemente atores ou roteiristas em grandes produções, como filmes ou séries. Isso não quer dizer que, com o avanço galopante de sua evolução, não possa acontecer em algum momento. Portanto, a reivindicação dos sindicatos visa uma proteção futura, contra um concorrente digital implacável que ainda está por vir.

O que me preocupa, no presente, são empresas de todos os setores que possam estar se preparando para usar a IA, do jeito que está, para substituir trabalhadores de “níveis mais baixos da cadeia alimentar”, mesmo quando isso resulte em produtos ou atendimentos piores para os consumidores. Aqueles dispostos a cortar custos de forma dramática, irresponsável e impensada representam um perigo muito maior que a tecnologia em si.

Como dizem por aí, “isso é tão Black Mirror!”


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Não me interpretem mal! Sou um entusiasta da inteligência artificial bem usada, e entendo que esse movimento não tem volta. E nem deveria ter: quando aplicada de forma consciente e responsável, a IA traz inegáveis benefícios a empresas e a indivíduos. Nós mesmos já somos muito beneficiados em nosso cotidiano, em incontáveis aplicativos em nosso celular, que só existem graças a ela.

Mas a inteligência artificial não é uma panaceia. E isso fica claro com o popularíssimo ChatGPT, lançado em novembro e que provocou uma explosão de discussões e de uso da IA, além de uma corrida para empresas demonstrarem que estão nesse barco. Depois do frisson criado pela sua capacidade de manter conversas consistentes sobre qualquer assunto, as pessoas começaram a perceber que muito do que ele fala são verdadeiras bobagens. A despeito dos melhores esforços de seus desenvolvedores, ainda é uma ferramenta sem compromisso com a verdade.

Mas isso não impede que pessoas e empresas usem a plataforma como um oráculo. Gestores vêm confiando em respostas da plataforma para oferecer serviços. Alguns chegam a alimentar o sistema com dados sigilosos de seus clientes, uma calamidade se considerarmos que a ferramenta não promete nenhuma segurança nisso.

Da mesma forma, algumas pessoas têm usado o ChatGPT para funções para as quais não foi desenvolvido, como “fazer terapia” com um sistema incapaz de desenvolver empatia ou que sequer sabe realmente o que está falando: todas essas plataformas simplesmente encadeiam palavras seguindo análises estatísticas a partir de uma gigantesca base de informações com a qual foram “treinadas”.

O problema não é, portanto, usar a tecnologia, e sim usar mal uma coisa boa! Se o objetivo for somente economizar custos, essa é uma “economia porca” que resulta em uma queda dramática na entrega ao público.

 

Exterminador do Futuro

No dia 18, James Cameron, diretor e roteirista de sucessos como “Avatar” (2009) e “Titanic” (1997), deu uma entrevista à rede de TV canadense CTV News, afirmando que a inteligência artificial não é capaz de produzir roteiros. “Não acredito que uma mente desencarnada, que apenas regurgita o que outras mentes vivas disseram sobre a vida que tiveram, sobre amor, sobre mentira, sobre medo, sobre mortalidade, tenha algo que vá comover o público”, disse.

Há um ponto essencial na fala de Cameron, que também foi diretor e roteirista de “O Exterminador do Futuro” (1984), em que máquinas inteligentes tentam eliminar a humanidade: precisamos entender que a inteligência artificial não é realmente criativa!

Ela apenas agrupa padrões e estilos para suas criações, mas não tem algo essencial a qualquer artista: a subjetividade. A nossa história de vida faz com que os padrões que aprendemos sejam inspiração para nossa criatividade, e não uma limitação. A máquina, por outro lado, fica restrita a eles, sendo incapaz de alterá-los.

Mas eu não me iludo: o que puder ser automatizado será. Funções cujos trabalhadores atuam de forma previsível, seguindo regras muito estritas, já estão sendo substituídas por robôs. Em situações como essas, a máquina desempenha as tarefas de maneira mais rápida, eficiente e barata. A qualidade das entregas ao cliente pode até melhorar!

Nos demais casos, a inteligência artificial não deveria ser usada como uma ferramenta para substituir profissionais, e sim para torná-los mais eficientes em suas atividades, oferecendo-lhes sugestões e informações que jamais conseguiriam ter sozinhos, pelas suas limitações humanas.

Em outra frente, o Google está testando, com alguns jornais, um sistema baseado em inteligência artificial capaz de escrever textos a partir de informações que lhe forem apresentadas. Em um comunicado, a empresa disse que “essa ferramenta não pretende e não pode substituir o papel essencial que os jornalistas têm em reportar, criar e verificar os fatos”, devendo ser usado como um apoio a esses profissionais, liberando seu tempo para tarefas mais nobres. Resta saber se, uma vez lançado, o produto não será usado por editores para enxugar mais as já minguadas redações, mesmo que isso resulte em publicações suscetíveis a erros e menos criativas.

Na mesma entrevista, Cameron explicou que, sobre os roteiros, “nunca é uma questão de quem os escreveu, mas de serem boas histórias”. Só faltou definir, de maneira inequívoca, o que é “boa”. Alguns filmes têm roteiros escritos por humanos que são muito ruins. Para escrever aquilo, talvez a inteligência artificial bastasse.

Isso vale para roteiristas, atores, jornalistas e qualquer profissional que se sinta ameaçado pela tecnologia. A melhor proteção que podem ter contra os robôs é fazer melhor que o que eles são capazes de entregar.

Nós, como clientes de todos esses serviços, também temos um papel importante: não podemos aceitar que produtos ruins nos sejam empurrados. Muitos gestores tentarão usar esses recursos assim! Com isso, perderemos nós e os profissionais, todos vítimas dessa “tecnoganância”. Isso não pode passar e muito menos se normalizar.

 

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen - Foto: reprodução

Não podemos mais acreditar no que nossos olhos veem

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São Tomé ficou famoso por dizer que precisava “ver para crer” que Jesus havia ressuscitado. Seu pedido está associado ao fato de que, de todos os nossos sentidos, a visão é o que transmite mais segurança e confiabilidade. Se vemos algo acontecendo diante de nós, nosso cérebro entende aquilo como verdadeiro. Mas o avanço tecnológico, capaz de criar imagens falsas cada vez mais críveis, coloca isso em xeque e dispara alguns alertas.

Na segunda passada, o comercial “Gerações”, criado em comemoração aos 70 anos da Volkswagen no Brasil, provocou polêmica ao colocar a cantora Elis Regina (morta em 1982) cantando ao lado da filha Maria Rita. Elis aparece no filme dirigindo um antigo modelo de Kombi (que deixou de ser produzida no Brasil em 2013), enquanto a filha aparece ao volante de uma ID.Buzz, furgão elétrico recém-lançado, chamado de “Nova Kombi”.

Muitas pessoas questionaram o uso da imagem de Elis em algo que nunca fez (ou que pelo menos não há nenhum registro): cantar “Como Nossos Pais” enquanto dirige uma Kombi. O debate é válido, mas não me preocupo tanto com o uso da tecnologia dessa forma. Afinal, os produtores do comercial nunca propuseram enganar o público para que achasse que Elis estivesse viva e jovem.

O que me deixa tenso é o uso dessa tecnologia por pessoas inescrupulosas para deliberadamente distorcerem a realidade e enganar as massas para seu benefício. Quando isso acontecer, talvez nossos olhos já não sejam mais suficientes para nos garantir o que é verdadeiro.


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Para viabilizar o dueto entre Elis Regina e Maria Rita, a agência AlmapBBDO trabalhou com duas tecnologias: o “deep fake” e o “deep dub”. Elas já existem há alguns anos, mas a qualidade do que criam vem crescendo exponencialmente.

O primeiro “mapeia” os rostos de uma pessoa que é gravada em vídeo e o de quem efetivamente aparecerá na imagem final. Com isso, o sistema recria o vídeo com o segundo rosto no lugar do primeiro, fazendo exatamente os movimentos da pessoa original. Na peça da Volkswagen, a atriz Ana Rios gravou as cenas dirigindo a Kombi e fazendo movimentos típicos de Elis Regina. Quando o sistema trocou seu rosto pelo da cantora, é como se ela mesma estivesse lá.

Como a voz usada era de uma gravação da própria Elis, entrou em cena o “deep dub”. Sua função é modificar imagens já criadas para que exista um perfeito sincronismo entre a voz e o movimento dos lábios.

Apesar de o comercial ter agradado pela sua criatividade, sensibilidade e uso inteligente da tecnologia, muita gente o criticou por usar a inteligência artificial para criar imagens inéditas de alguém que já morreu. Mas não se trata de violação do direito de imagem. Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), explica que, quando alguém morre, esse direito passa a seus herdeiros.

“Mas é sempre importante considerar que eventualmente o próprio falecido não tivesse a intenção de participar post-mortem de atividades com sua imagem”, acrescenta Crespo. Ele explica que, nesse caso, a pessoa deve manifestar explicitamente sua contrariedade ainda em vida.

A publicidade se vale desde sempre de imagens de pessoas famosas que já se foram, com fotos ou filmagens antigas para montagens, e até o uso de atores maquiados para se parecer aos falecidos. A diferença agora é o uso da tecnologia para tornar tudo muito realista.

 

Limites éticos

De toda forma, o debate em torno do comercial foi interessante para se questionar se há um limite ético e moral para o uso dessa tecnologia, com pessoas vivas ou mortas.

Da mesma forma que devemos ver isso cada vez mais em produções audiovisuais, devemos estar preparados para encarar uma avalanche de “deep fakes” criados com o objetivo de prejudicar outras pessoas. Isso tampouco é novo, mas, como explica Crespo, “ficará mais difícil, a olho nu, detectar o que é verdadeiro e o que é uma construção baseada em inteligência artificial”, restando aos peritos identificar as falsificações. “O desafio, daqui pra frente, é que será mais comum ver esse tipo de debate na Justiça, com discussões sobre vídeos”, acrescenta.

Muitos profissionais estão preocupados que categorias inteiras desapareçam graças a essas tecnologias. É o caso dos dubladores. Seu trabalho artístico envolve fazer as falas traduzidas combinarem, tanto quanto possível, com o movimento dos lábios do ator no idioma original.

Agora as plataformas de inteligência artificial podem “aprender a voz” dos atores para recriá-la em qualquer idioma. Dessa forma, seria possível ter, por exemplo, Tom Hanks falando não apenas seu idioma nativo (o inglês), como também português, alemão, russo ou japonês, sem nenhum sotaque e com os lábios no vídeo perfeitamente sincronizados com sua fala em todos os idiomas.

De certa forma, isso ofereceria um produto mais interessante para o público e a produção das versões internacionais ficaria muito mais barata e rápida para os estúdios. Mas também significaria o fim da categoria dos dubladores. Esse não é um problema tecnológico, e sim social, e os países precisam se debruçar sobre um tema trabalhista sem precedentes.

No último dia 13, o músico Paul McCartney revelou que a voz de John Lennon havia sido extraída e aperfeiçoada por inteligência artificial a partir de uma antiga gravação. Nesse caso, a tecnologia não sintetizou nada, mas foi usada para captar a voz de John. Isso permitirá que, até o fim do ano, o mundo conheça uma nova música dos Beatles, apesar de Lennon ter sido assassinado em 1980 e de George Harrison ter morrido em 2001. Além de Paul, Ringo Starr também está vivo.

Por tudo isso, esse debate é válido e necessário. A tecnologia está madura e será cada vez mais usada, tanto em atividades lícitas quando na prática de crimes. Nosso desafio é sermos capazes de identificar o que é verdadeiro e o que é falso, e, nesse caso, se se trata de um uso legítimo, como no comercial da Volkswagen.

Uma educação de qualidade para todos fica ainda mais necessária para que as pessoas desenvolvam um senso crítico apurado. Ela é a melhor ferramenta que temos para fugir de arapucas digitais que coloquem em nosso caminho. Infelizmente esse é um investimento de longo prazo, enquanto a tecnologia avança de maneira galopante.

 

Matt Hicks, CEO da Red Hat, durante a abertura do Red Hat Summit 2023: “esse é o momento da IA” - Foto: Paulo Silvestre

Inteligência artificial produz coisas incríveis, mas não podemos perder nosso protagonismo

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Estive na semana passada em Boston (EUA), participando do Red Hat Summit, maior evento de software open source do mundo. Apesar desse modelo de desenvolvimento de programas aparecer a todo momento, a estrela da festa foi a inteligência artificial. E algo que me chamou a atenção foi a preocupação da Red Hat e de seus executivos em demonstrar como essa tecnologia, por mais poderosa que seja, não deve fazer nada sozinha, precisando ser “treinada” com bons dados, com o ser humano ocupando o centro do processo.

O próprio CEO, Matt Hicks, abriu a conferência dizendo que esse é o “momento da IA”. Muitos dos principais anúncios do evento, como o Ansible Lightspeed e o OpenShift AI, embutiam um incrível poder da inteligência artificial na automação de tarefas, como geração de código a partir de pedidos simples em português, liberando o tempo das equipes para funções mais nobres.

Isso não quer dizer, entretanto, que os profissionais possam simplesmente “terceirizar” o raciocínio e a sua criatividade para as máquinas. Pelo contrário, por mais fabulosas que sejam essas ferramentas, elas pouco ajudam se o usuário não conhecer pelo menos o essencial do que os sistemas produzem.

Tanto é verdade que assistimos a casos de pessoas e de empresas que enfrentam grandes contratempos por usar plataformas generalistas de inteligência artificial (como o ChatGPT) de maneira descuidada. Precisamos ter em mente que, por mais que ela chegue a parecer mágica, não é infalível!


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Foi o que aconteceu recentemente com o advogado americano Steven Schwartz, da firma Levidow, Levidow & Oberman, com mais de 30 anos de experiência: ele enfrentará agora medidas disciplinares por usar o ChatpGPT para pesquisas para o caso de um cliente que processava a Avianca. Tudo porque apresentou à corte um documento com supostos casos semelhantes envolvendo outras empresas aéreas.

O problema é que nenhum desses casos existia: todos foram inventados pelo ChatGPT. Schwartz ainda chegou a perguntar à plataforma se os casos eram reais, o que ela candidamente confirmou. É o que os especialistas chamam de “alucinação da inteligência artificial”: ela apresenta algo completamente errado como um fato, cheia de “convicção”, a ponto de conseguir argumentar sobre aquilo.

“Nessa nova fase, temos que conhecer a pergunta para qual queremos a resposta”, explicou-me Hicks, em uma conversa com jornalistas durante o Summit. “Se você for um novato, poderá criar melhor, mais rápido; se for um especialista, poderá melhorar muito o que faz e usar seu domínio para refinar a entrega”, concluiu.

Para Paulo Bonucci, vice-presidente e gerente-geral da Red Hat para a América Latina, “não adianta você chegar com inteligência artificial assustando a todos, dizendo que vai faltar emprego”. Para o executivo, a transformação que a inteligência artificial promoverá nas empresas passa por uma transformação cultural nos profissionais. “A atenção principal enquanto se desenvolvem os códigos e as tecnologias de inteligência artificial são as pessoas, são os talentos”, acrescenta.

Chega a ser reconfortante ver lideranças de uma empresa desse porte –a Red Hat é a maior empresa de soluções empresariais open source do mundo– demonstrando essa consciência. Pois não se enganem: a inteligência artificial representa uma mudança de patamar tecnológico com um impacto semelhante ao visto com a introdução dos smartphones ou da própria Internet comercial.

A diferença é que, no mundo exponencial em que vivemos, as transformações são maiores e os tempos são menores. E nem sempre as empresas e ainda mais as pessoas têm sido capazes de absorver esse impacto.

 

Corrida do ouro

Infelizmente o que se vê é uma corrida tecnológica, que pode estar atropelando muita gente por descuido e até falta de ética de alguns fabricantes. “Existem empresas grandes que fazem anúncios quando sua tecnologia não está madura”, afirma Victoria Martínez, gerente de negócios e data science da Red Hat para a América’ Latina. “Essa corrida tornou-se muito agressiva”.

É interessante pensarmos que as pesquisas em inteligência artificial existem há décadas, mas o assunto se tornou um tema corriqueiro até entre não-especialistas apenas após o ChatGPT ser lançado, em novembro. Não é à toa que se tornou a ferramenta (de qualquer tipo) de adoção mais rápida da história: todos querem usar o robô para passar para ele suas tarefas. E, graças a essa corrida, isso tem sido feito de maneira descuidada, pois alguns fabricantes parecem não se preocupar tanto com perigos que isso pode representar.

“Isso é uma coisa que a gente deveria estar discutindo mais”, sugere Eduardo Shimizu, diretor de ecossistemas da Red Hat Brasil. “Entendo que nós, não só como especialistas em segurança ou em tecnologia, mas como seres humanos, precisamos discutir esses temas éticos da forma de usar a tecnologia”, acrescenta.

Martínez lembra das preocupações que educadores vêm apresentando sobre o uso de plataformas de IA generativas, como o próprio ChatGPT por crianças. “Não podemos esquecer de aprender o processo”, alerta. Em uma situação limite, seria como entregar uma calculadora a uma criança que não sabe sequer conceitualmente as quatro operações básicas. Ela se desenvolveria como um adulto com seríssimos problemas cognitivos e de adaptação à realidade.

Por isso, a qualquer um que não saiba fazer uma divisão deveria ser proibido usar uma calculadora. Por outro lado, para quem domina suficientemente a matemática, a calculadora e mais ainda uma planilha eletrônica são ferramentas inestimáveis.

É assim que devemos encarar essa mudança de patamar tecnológico. Como escreveu Hicks em um artigo recente, “não sabemos o que o futuro reserva –nem mesmo o ChatGPT é precognitivo ainda. Isso não significa que não podemos antecipar quais desafios enfrentaremos nos próximos meses e anos.”

Quaisquer que sejam, quem deve estar no comando somos nós. Os robôs, por sua vez, serão ajudantes valiosíssimos nesse processo.


Você pode assistir à íntegra em vídeo das minhas entrevistas com os quatro executivos da Red Hat. Basta clicar no seu nome: Matt Hicks, Paulo Bonucci, Victoria Martínez e Eduardo Shimizu.

 

Cena de “Tempos Modernos” (1936), em que Charles Chaplin já criticava a automação do trabalho – Foto: reprodução

Que empregos a inteligência artificial deixará para nós?

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As grandes empresas de tecnologia continuam “passando o facão” em suas equipes no mundo todo. Em 2022, foram cerca de 150 mil demitidos; nesse ano, já são quase 100 mil. A maior parte dos cortes está associada a uma adequação dos times depois de grandes contratações na pandemia e pela crise nos EUA, mas especialistas indicam que podemos estar observando mudanças profissionais patrocinadas pela inteligência artificial em ascensão.

Não se trata de ficção científica distópica. Desde que o ChatGPT, o sistema produtor de textos da OpenAI, foi lançado no dia 30 de novembro, a quantidade de aplicações para a chamada “inteligência artificial generativa” não para de crescer.

Se antes o risco de substituição de trabalhadores humanos por máquinas era restrito a funções menos especializadas e criativas, essa tecnologia agora impacta trabalhadores que se sentiam “protegidos dos robôs” pela sua formação. E como o avanço das capacidades digitais acontece exponencialmente, alguns começam a se perguntar que empregos restarão em breve para humanos diante de máquinas cada vez mais eficientes.


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Na semana passada, a Amazon anunciou o corte de 9.000 funcionários no mundo, totalizando 27.000 vagas a menos desde novembro. Uma semana antes, a Meta (dona do Facebook) disse que demitirá outros 10.000 profissionais e congelará 5.000 contratações, somados aos 11 mil funcionários demitidos globalmente há três meses.

Um estudo divulgado no final de janeiro e feito sobre os cortes de 2022 indicou que supreendentemente a maior parte dos demitidos foi de funções ligadas a recursos humanos –27,8%– e não a tecnologia –que vieram na sequência, com 22,1%. Segundo a consultoria 365 Data Science, responsável pela pesquisa, isso se explica em parte por essas empresas estarem necessitando menos de analistas de RH, mas também porque grande parte do processo de recrutamento (e até de demissões) passou a ser automatizado pela inteligência artificial.

Coincidência ou não, algumas das que mais demitiram estão realizando investimentos massivos no tema. A Microsoft, que cortou 10 mil funcionários no fim de 2022, anunciou ao mesmo tempo um investimento estimado em US$ 10 bilhões na OpenAI. A Alphabet (controladora do Google), que mandou para casa 12 mil pessoas, lançou na semana passada o Bard, seu sistema concorrente do ChatGPT.

Outro estudo, realizado por pesquisadores da Universidade da Pensilvânia (EUA) e da OpenAI, concluiu que 80% dos trabalhadores americanos podem ter pelo menos 10% de suas tarefas afetadas por essa tecnologia, com 19% deles tendo que encarar metade do que fazem sendo tomado pela máquina. A influência abrange todos os níveis salariais, com empregos de renda mais alta sendo mais afetados.

“O importante é não entrar em estado de negação quanto ao avanço da tecnologia e estar aberto ao aprendizado contínuo através da empresa ou autodesenvolvimento”, explica a consultora de carreira Ticyana Arnaud. Isso está em linha com os pesquisadores da 365 Data Science, que afirmam ser essencial possuir a capacidade de se adaptar e se manter atualizado com as mais recentes inovações tecnológicas.

 

Aprender a aprender

“O indivíduo deve ser verdadeiramente protagonista de sua própria aprendizagem”, explica Karen Kanaan, sócia da École 42 no Brasil, uma escola francesa de tecnologia que forma profissionais a partir de projetos em que necessariamente precisam colaborar uns com os outros. “Deve ser uma formação que estimule que ele busque aprender a aprender, a colaborar, a ter empatia, a pensar de forma crítica, a ter criatividade e raciocínio lógico”, completa.

Como acontece com toda nova tecnologia, ela acaba extinguindo profissões inteiras, enquanto cria oportunidades. Isso acontece desde o início da Revolução Industrial, no século XVIII. A diferença é que, em mundos digitais, o tempo para que as pessoas se adaptem é muito menor, o que se agrava porque os novos ofícios exigem habilidades básicas que a maioria da população não tem.

Como disse no sábado ao Estadão o economista José Pastore, “a destruição (de empregos) é rápida e visível; a criação é lenta e é invisível”. Para o professor da FEA-USP, “isso traz impactos sociais imediatos, e apavora todo mundo.”

O mesmo Estadão trouxe uma reportagem sobre novas profissões ligadas a inteligência artificial, cujos salários chegam a R$ 20 mil. Apesar de a maioria estar, de alguma maneira, associada à área de TI, é importante observar que a adoção de inteligência artificial necessita de equipes multidisciplinares, para “treinar” as plataformas em tarefas dos mais diversos setores da economia. Além disso, algum domínio da tecnologia vem se tornando essencial em todas as carreiras.

Isso aparece na origem dos estudantes da École 42, cujo curso equivale a uma formação em engenharia de software. A maioria não vem da área de tecnologia e trazem, na sua bagagem, carreiras tão distintas quanto publicitários, cozinheiros, médicos e cabelereiros. E todos podem adquirir as novas habilidades de TI.

“É preciso conhecer seus limites, valores, o que gosta, o que sabe, o que quer fazer para levar uma vida que seja relevante, antes de tudo, pra si”, explica Kanaan. E isso é algo que a inteligência artificial não consegue fazer. Para ela, “um indivíduo criativo, capaz de imaginar, raciocinar consegue se adaptar a qualquer movimento.”

Em outras palavras, ninguém está “seguro”, mas também não precisa se desesperar. “A inteligência artificial fomenta a importância de uma vida voltada ao aprendizado”, afirma Arnaud. Temos que estar sempre atentos às tendências com implicações em nosso trabalho, aprendendo o que há de novo.

Muitas pessoas podem dizer que “falar é fácil”, e não as julgaria por isso. Talvez fosse mesmo mais confortável o mundo de 30 anos atrás, quando o que se aprendia na faculdade era suficiente para chegar até a aposentadoria.

Isso ficou literalmente no passado. Agora somos obrigados a estar em constante movimento. Mas isso pode ser uma incrível oportunidade, não apenas para continuarmos profissionalmente relevantes, mas para nos tornarmos pessoas melhores. Esse é o melhor caminho para os robôs não nos alcançarem.

 

Imagens inéditas geradas pelo Lensa, que usa inteligência artificial para criá-las a partir de outras fotos do usuário

Como nos defender das armadilhas da inteligência artificial

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Se alguém ainda tinha dúvida de como a IA (inteligência artificial) está disseminada em nossas vidas, dois sistemas movidos por essa tecnologia possivelmente acabaram com ela ao inundar as redes sociais nos últimos dias com conteúdo que produzem. O primeiro foi o Lensa e seus retratos estilizados de nossos amigos, e o outro foi o ChatGPT com textos incríveis que escreve a partir de simples comandos. De quebra, ambos escancararam como podemos pautar escolhas pessoais pelas sugestões da IA, às vezes sem ter plena noção disso. E essa nossa inocência esconde um grave problema, pois, apesar de os resultados dessa tecnologia parecerem incríveis, podem embutir falhas graves, que nós engoliremos alegremente.

Sou um entusiasta do que a inteligência artificial pode nos brindar nos diferentes campos do saber. Se bem utilizada, ela pode trazer ganhos que nos levarão a um nível de produtividade inédito. Mas precisamos dosar a euforia e entender que não existe almoço grátis.

Tudo porque a inteligência artificial não é inteligente de fato! Sim, esses sistemas efetivamente aprendem à medida que são usados e com seus próprios erros. Mas a qualidade de suas entregas depende do material usado para sua “educação” e até da índole de seus usuários. Assim como acontece com uma criança, se ela for mal instruída, repetirá tudo de ruim que tiver aprendido.

A diferença é que, ao contrário da criança com seu alcance limitado, plataformas com inteligência artificial mal instruídas podem influenciar negativamente milhões de pessoas com isso.


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Em setembro, a IBM divulgou um estudo global que indicou que 41% das empresas brasileiras já adotam IA. Ironicamente, muitas não sabem disso, porque ela está por trás de aplicações que se tornaram corriqueiras. E, da mesma forma que a inteligência artificial se presta a criar inocentes retratos a partir de outras fotos, pode ser o motor de sistemas empresariais para se tomar decisões de milhões de reais.

Há um outro aspecto que não pode ser ignorado: a IA também está no coração de incontáveis aplicativos em nossos smartphones e nas redes sociais. E, como já debatemos nesse espaço incontáveis vezes, essas plataformas têm um incrível poder de nos influenciar.

Em outras palavras, uma IA “mal orientada” pode não apenas nos fazer perder muito dinheiro, como ainda provocar diferentes danos no âmbito pessoal.

Não entendam isso como uma visão apocalíptica da tecnologia. Pelo contrário, a inteligência artificial quase nos dá “superpoderes”, ou pelo menos habilidades que nós eventualmente não tenhamos, como tirar uma foto incrível, escrever um texto brilhante ou evitar grandes riscos nos negócios. Entretanto, precisamos estar atentos para não achar que ela é infalível.

Há ainda um aspecto profissional a ser considerado. Com sistemas tão sofisticados cuspindo sensacionais fotos, textos ou contratos (só para ficar em alguns poucos exemplos), fotógrafos, escritores e advogados estão com seus empregos sob risco?

Por enquanto, isso não acontecerá por dois motivos. Em ambientes corporativos, essas plataformas acabam sendo usadas principalmente para mastigar grande quantidade de informações específicas para produzir um resultado de qualidade. Mas ainda é necessário um profissional que entenda do assunto para dar os comandos aos sistemas e confirmar suas entregas, fazendo eventuais correções de rumo. São necessárias ainda pessoas que produzam os conteúdos “originais” que os alimentarão.

Na verdade, uma nova profissão pode surgir disso: os “prompt designers”, capazes de extrair o melhor dessas plataformas. E eles também precisam de conhecimento na área do saber que o sistema trabalho. Fazendo uma analogia, é como comparar alguém que sempre consegue boas respostas do Google porque sabe fazer boas perguntas com a maioria dos usuários, que só recebem as páginas mais óbvias.

 

Máquinas preconceituosas

Há ainda um ponto de atenção central nessa tecnologia: os vieses que ela pode desenvolver. Sim, uma máquina pode verdadeiramente se tornar preconceituosa! Tanto que esse foi um dos temas centrais do World Summit AI Americas, um dos maiores eventos do setor no mundo, do qual participei em maio, em Montréal (Canadá).

Como disse anteriormente, para sistemas de IA oferecerem boas respostas, eles precisam ser ensinados com bons conteúdos e por bons usuários. Quanto pior qualquer um deles for, piores serão os resultados. E isso vale também para preconceitos.

Um exemplo clássico são sistemas de recrutamento profissional com inteligência artificial. Eles analisam milhares de currículos e escolhem poucos candidatos que seriam os mais adequados para que o RH os entreviste. Se, a cada contratação, o sistema identifica que os recrutadores humanos nunca escolhem alguém com mais de 40 anos, ele passará a indicar apenas candidatos até essa idade. Ou seja, o sistema terá incorporado o preconceito dos recrutadores contra profissionais mais velhos.

Outro tipo de viés desses sistemas pode ter efeitos nefastos na autoimagem das pessoas. Filtros do Instagram e do TikTok, e o próprio Lensa já foram acusados de gerar imagens com a pele mais clara e lisa do que as pessoas realmente têm, com rostos mais simétricos e magros, com narizes mais finos e lábios mais carnudos e até com aparência mais jovem. Dessa forma, reforçam ideais de beleza, às vezes inatingíveis.

Muitas pessoas, especialmente mulheres, têm pedido a cirurgiões plásticos para ficarem como vistas nesses aplicativos, mas isso não é possível, podendo causar enorme frustração com o próprio corpo. E isso dispara sinais de alerta e abre muitas reflexões.

Pode parecer irônico que uma tecnologia nos faça avaliar muito de nossa própria humanidade. Afinal, por que tanta gente criou suas imagens com o Lensa? Foi só um “efeito manada”? É um movimento egocêntrico ou narcisista? Foram mais uma vez controladas pelas redes sociais? Ou estão, de alguma forma, querendo “reescrever” sua própria realidade?

Qualquer que seja a resposta, a inteligência artificial ocupará um espaço cada vez maior em tudo que fizermos, conscientemente ou não. Ela realmente tem o potencial de fazer nossas vidas mais fáceis, divertidas, rápidas. Apenas não podemos usá-la para distorcer a realidade ou –pior ainda– sermos vítimas desses vieses e preconceitos. Precisamos conhecer e nos apropriar da tecnologia para algo bom, sem nos afastar do que somos!

Afinal, por mais que a realidade possa ser dura às vezes, é nela que temos nossas melhores experiências, que desencadeiam as verdadeiras transformações em nós mesmos. E é a partir delas que crescemos como indivíduos.